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O conceito de vizinhança na legislação urbana brasileira e sua aplicação nos Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV) em Florianópolis/SC

The concept of neighborhood in Brazilian urban legislation and its application in Neighborhood Impact Studies (EIV) in Florianópolis/SC

Resumo

A delimitação das áreas de influências dos impactos no meio urbano, realizada durante os Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV), é fundamental para que os empreendimentos contribuam com o cumprimento da função social da propriedade e da cidade. Este artigo demonstra, a partir de pesquisa em casos concretos, como a vizinhança vem sendo delimitada nos primeiros cinco anos de aplicação do instrumento na cidade de Florianópolis/SC. Trinta e dois EIVs aprovados foram analisados como casos-referência para esse objetivo, os dados e especificações técnicas utilizados na pesquisa foram extraídos dos documentos protocolados pelos empreendedores, dos pareceres emitidos pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) e Termos de Compromisso de Compensação assinados, além de visitas exploratórias. O universo estudado demonstrou frequentes distorções quanto ao conceito de vizinhança utilizado na implementação do instrumento da política urbana EIV, pois a delimitação dos impactados na cidade não é utilizada como parâmetro para a definição da área de influência dos impactos dos empreendimentos. Os levantamentos indicaram a necessidade da revisão do princípio para a delimitação da vizinhança, essencial para que o princípio da função social da propriedade prevaleça sobre os interesses individuais.

Palavras-chave:
Vizinhança; Impactos urbanos; Função social da propriedade

Abstract

The delimitation of the affected areas by the urban environmental impacts, carried out during the Vicinity Impact Studies (EIV), is essential for the projects’ fulfillment of the property’s social role and the city’s social role. The article demonstrates, based on concrete cases’ research, how the vicinity has been circumscribed during the first five years of application of the instrument in the city of Florianópolis/SC. Thirty-two approved EIVs constituted the reference cases for the analysis. Furthermore, the documents submitted by the entrepreneurs, the evaluation issued by the Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), and the approved Terms of Compensation Commitment, in addition to exploratory visits provided the data and technical specifications elected for the research. The research sampling highlighted frequent distortions regarding the concept of vicinity applied in the implementation of the EIV urban policy instrument since the delimitation of those impacted in the city is not used as a parameter for defining the affected area by the impacts of the projects. The surveys indicated the need to review the vicinity delimitation precept, essential for the principle of the social role of the property to prevail over individual benefits.

Keywords:
Vicinity; Urban impacts; Property’s social role

Introdução

Com a promulgação da Constituição Federal (CF/88), o capítulo II, que trata exclusivamente da política urbana, promove algumas diretrizes para a legislação das cidades, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Essas diretrizes promovem: a municipalização do planejamento urbano a partir da obrigatoriedade dos Planos Diretores conforme determinação legal; a função social da propriedade urbana, que deve ter seu uso e potencial construtivo estabelecidos de acordo com o bem coletivo; e a participação social na implementação das políticas públicas (Brasil, 1988Brasil (1988, 5 de outubro). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Diário Oficial da União. Recuperado em 10 de setembro de 2021, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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). Para regulamentar a política urbana da CF/88, foi sancionada a Lei nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade.

O Estatuto da Cidade estabelece a obrigatoriedade do Plano Diretor aos municípios com as seguintes características: que possuam mais de 20 mil habitantes; integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal; integrantes de áreas de especial interesse turístico ou inseridas na área de influência de empreendimentos que possuam atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional; e aos incluídos no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos (Brasil, 2001Brasil (2001, 10 de julho). Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União. Recuperado em 10 de setembro de 2019, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
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). O Plano Diretor contempla diretrizes e critérios para que a propriedade urbana exerça sua função social por meio da aplicação dos instrumentos urbanísticos.

O princípio da função social da propriedade urbana é representado no início da CF/88, no seu artigo 5º, inciso XXIII, no qual é consignada a garantia aos brasileiros à igualdade perante a lei, em que se encontra escrito que a propriedade atenderá à sua função social. Assim como no inciso III, do artigo 170, no qual é citada a “função social da propriedade” como um dos princípios gerais da atividade econômica no país.

Segundo Saule Jr. (2002)Saule, N. Jr (2002). O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor: possibilidade de uma nova ordem legal urbana justa e democrática. In: L. M. Osório (Org.), Estatuto da Cidade e Reforma Urbana. Porto Alegre: Nuria Fabris Editor., a função social é um princípio norteador do direito de propriedade brasileiro. Nesse sentido, o imóvel não fica inteiramente à disposição do seu titular para usufruí-lo de qualquer maneira, pois o Poder Público municipal, baseado no Plano Diretor, deve exigir que a destinação do seu imóvel atenda também aos interesses sociais para benefício da coletividade.

Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos - prestação de fazer -, e não meramente de não fazer, àquele que detém o poder que defere da propriedade (Decarli & Ferrareze Filho, 2008Decarli, N., & Ferrareze Filho, P. (2008). Plano Diretor no Estatuto da Cidade: uma forma de participação social no âmbito da gestão dos interesses públicos. Senatus: Cadernos da Secretaria de Informação e Documentação do Senado, 6(1), 35-43. Recuperado em 18 de agosto de 2021, de https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/131832/Plano_diretor_estatuto_cidade.pdf?sequence=3&isAllowed=y
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, p. 37).

No Estatuto da Cidade (Brasil, 2001Brasil (2001, 10 de julho). Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União. Recuperado em 10 de setembro de 2019, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
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), no parágrafo único do seu artigo 1º, é descrita a sua principal função: “[...] estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Assim, a função social da propriedade, atrelada aos direitos de acesso à cidade, torna-se um direito difuso, compreendendo a cidade enquanto produto coletivo.

Os interesses difusos caracterizam-se pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço. Ademais, não há relação jurídica entre sujeitos componentes, cujo agrupamento constitui-se meramente circunstancial (Guilherme, 2015, pGuilherme, L. F. V. A. (2015). Responsabilidade do Poder Público em face do acesso universal à cidade como direito difuso. São Paulo: Migalhas. Recuperado em 11 de outubro de 2022, de https://www.migalhas.com.br/depeso/220397/responsabilidade-do-poder-publico-em-face-do-acesso-universal-a-cidade-como-direito-difuso
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. 3).

É a função social da cidade um interesse difuso, em prol do bem-estar e segurança dos cidadãos, e para que ela efetivamente seja cumprida, de acordo com Guilherme (2015)Guilherme, L. F. V. A. (2015). Responsabilidade do Poder Público em face do acesso universal à cidade como direito difuso. São Paulo: Migalhas. Recuperado em 11 de outubro de 2022, de https://www.migalhas.com.br/depeso/220397/responsabilidade-do-poder-publico-em-face-do-acesso-universal-a-cidade-como-direito-difuso
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, esse direito também depende do combate às desigualdades sociais, com o cumprimento de diretrizes relacionadas à qualidade de vida, como habitação, circulação, lazer e trabalho.

A função social da cidade como princípio balizador da política urbana pode redirecionar, de forma saudável, os recursos e a riqueza de forma mais justa, de modo a combater as situações de desigualdade econômica e social vivenciadas em nossas cidades (Decarli & Ferrareze Filho, 2008, p. 39).

O Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, apresenta diretrizes da política urbana para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. No inciso IX, ele apresenta que deve haver uma “[...] justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização” (Brasil, 2001Brasil (2001, 10 de julho). Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União. Recuperado em 10 de setembro de 2019, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
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), corroborando para decisões mais distributiva dos investimentos na cidade e possibilitando, assim, que os recursos públicos, inclusive os oriundos de medidas compensatórias, possam ser aplicados em prol do coletivo.

O Poder Público tem a possibilidade de agir mediando os conflitos decorrentes da urbanização, mas, para validar o processo, deve ser proporcionada a gestão democrática por meio da participação popular, uma das diretrizes do Estatuto da Cidade. A garantia do interesse coletivo está associada à participação nas decisões da cidade pela população a partir dos vários segmentos da sociedade.

A legislação federal traz alguns instrumentos baseados na integração da cidade e democracia que contribuem para a efetividade do princípio da função social da cidade e da propriedade urbana, assim como para uma justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização. Entre eles, o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) pode e deve compor o rol de instrumentos contidos nos Planos Diretores. Ele tem como objetivo melhorar a qualidade de vida nas cidades a partir do princípio da função social da propriedade urbana, servindo como instrumento para prever, minimizar ou impedir os impactos da urbanização, assim como para produzir medidas compensatórias com efeitos positivos para a coletividade.

Para que esse instrumento possa contribuir com a aplicação da função social, um dos pressupostos é entender que o termo “vizinhança”, contido na letra da lei, tem conceito e finalidade diversas do que se entende por “vizinhança” na esfera civil.

Este artigo apresenta fundamentação teórica e resultados obtidos a partir de pesquisa e avaliação de casos concretos na capital catarinense Florianópolis, realizados durante os anos de 2015 a 2020. Por meio da análise dos dados obtidos de 32 EIVs localizados na região central do município, foi possível identificar distorções na delimitação da área de vizinhança dos impactos, assim como na espacialização e destinação das medidas compensatórias destinadas às áreas de influência.

Vizinhança: Área de Influência dos Impactos

A implementação do EIV precisa cumprir as diretrizes gerais estabelecidas nas políticas urbanas nacionais, sendo que suas estratégias e ações municipais somente podem ser consideradas legítimas se estiverem de acordo com essas diretrizes. Para isso, faz-se necessário entender alguns conceitos básicos e, entre eles, os principais em questão são os de impacto e de vizinhança. Afinal, compreender quais os impactos devem ser analisados neste estudo e qual a área de influência dos impactos é fundamental para a implementação desse instrumento.

O conceito de impacto, a partir da perspectiva do planejamento urbano, está relacionado ao efeito de uma ação na cidade que acarreta mudanças que modificam a qualidade de vida. Para Rehbein & Ros (2010)Rehbein, M. O., & Ros, L. S. (2010). Impacto ambiental urbano: revisões e construções de significados. Geousp Espaço e Tempo, 14(1), 95-112. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2010.74157.
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Impactos ambientais urbanos são constituídos por julgamentos de valores de significâncias de efeitos perturbadores, de gêneses ou consequências antrópicas, no urbano ou para além, no ambiente, que, na promoção de mudanças ecológicas e/ou sociais, coloquem em questão estados de “auto-organização” e/ou de “relativa estabilidade ambiental” (p. 1).

Para as finalidades do EIV, segundo Schvarsberg et al. (2016, pSchvarsberg, B., Martins, G. C., & Kallas, L. M. E. (2016). Estudo de Impacto de Vizinhança: caderno técnico de regulamentação e implementação. Brasília: Universidade de Brasília.. 13), “[...] devem ser considerados os impactos que afetam a qualidade de vida da população urbana, gerando incomodidade significativa”. Desse modo, ao prever os impactos, também é necessário reconhecer os impactados, identificar a população urbana afetada, que, na maioria das vezes, transcende a vizinhança imediata. Geralmente aqueles que já sofrem por privações na cidade e que estão há tempos esperando melhores condições de moradia, de acesso à infraestrutura e de equipamentos urbanos continuam sendo os mais impactados. Portanto, compreender o real conceito de vizinhança do EIV é fundamental para a completa implementação do instrumento.

Vamos primeiramente entender o direito de vizinhança que nasce na esfera civil, que, segundo Rodrigues (2002)Rodrigues, S. (2002). Direito Civil: direito das coisas (27a ed., Vol. 5). São Paulo: Saraiva., surge a partir da necessidade do legislador de resolver conflitos de interesses entre vizinhos em determinado espaço. No Código Civil de 1916 (Brasil, 1916Brasil (1916, 1º de janeiro). Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União. Recuperado em 2 de agosto de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm
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), o texto legal já previa alguns limites no uso da propriedade individual, principalmente para impedir o seu mau uso e prejuízos a outrem. Na legislação civil, portanto, o termo “vizinhança” descreve conflitos, geralmente com o entorno imediato. São exemplos desses conflitos os problemas resultantes das relações de vizinhança relacionados às árvores limítrofes, escoamento de águas e passagem forçada, dentre outros.

Santos (1990)Santos, U. P. (1990). Direito de vizinhança: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forence. afirma que o direito de vizinhança está presente há muito tempo na legislação brasileira, no entanto, antes servia apenas para defender direitos mais individuais e não os coletivos. Esse entendimento das relações de vizinhança do Código Civil é uma imposição de ordem privada que está sujeito a alterações e até à renúncia de optar pelo conflito por parte dos vizinhos, diferentemente de uma obrigação de interesse público, que é intransigível.

Na esfera urbana, o direito de vizinhança não pode ser entendido apenas como transtornos nos limites do empreendimento, pois os limites da vizinhança estão relacionados diretamente com a área de influência dos impactos. Acerca disso, Sant’Anna (2007)Sant’Anna, M. S. (2007). Estudo de Impacto de Vizinhança: instrumento de garantia de qualidade de vida dos cidadãos urbanos. Belo Horizonte: Fórum. aborda do seguinte modo a distinção do termo “vizinhança” no EIV:

O impacto de vizinhança previsto no Estatuto da Cidade por meio da instituição do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) possui características distintas, mas ao mesmo tempo complementares, daquelas previstas no Código Civil (p. 52).

O Estatuto da Cidade estabelece condições de natureza pública que obrigam o proprietário a fazer com que sua propriedade seja utilizada não só a seu favor, mas em favor da coletividade. A natureza pública das obrigações impostas as transforma em intransigíveis, enquanto aquelas mencionadas [...] fazem parte do direito de vizinhança - de natureza civil, que são negociáveis (p. 54).

No EIV, o termo “vizinhança” pode ser designado, “[...] como o conjunto de pessoas, edificações e atividades compreendidas em uma mesma base territorial que possa ser atingido ou beneficiado pelos efeitos de empreendimentos” (Schvarsberg et al., 2016, pSchvarsberg, B., Martins, G. C., & Kallas, L. M. E. (2016). Estudo de Impacto de Vizinhança: caderno técnico de regulamentação e implementação. Brasília: Universidade de Brasília.. 14). Portanto, além de fazer uma leitura prévia dos impactos, é necessário definir quem serão os impactados, os beneficiados e os preteridos. Afinal, o EIV não deve ser um instrumento implementado para validar ou restringir os empreendimentos, mas para promover de uma melhor qualidade de vida para todos.

Então, qual será o limite dessa vizinhança? Muitas vezes o limite poderá ser toda a bacia hidrográfica, toda cidade, toda uma região. O limite será o resultado do diagnóstico realizado: a área de influência de cada impacto relacionado no estudo.

Importante salientar ainda que os critérios para delimitação das áreas de influência repercutirão diretamente na espacialização das medidas compensatórias acordadas, pois estas, segundo Schvarsberg et al. (2016)Schvarsberg, B., Martins, G. C., & Kallas, L. M. E. (2016). Estudo de Impacto de Vizinhança: caderno técnico de regulamentação e implementação. Brasília: Universidade de Brasília., devem agir indiretamente no impacto negativo como medida de equilíbrio para a vizinhança impactada, devem ser propostas apenas quando não houver mais possibilidades de mitigar os impactos e são externas ao empreendimento ou atividade. A definição da vizinhança no meio urbano define, por si só, a legitimação da sociedade a pleitear a reparação dos danos. Nesse contexto, é importante citar que antes das medidas compensatórias devem ser aplicadas as medidas mitigadoras, que agem diretamente para extinguir ou eliminar o impacto e são internas ao empreendimento (Schvarsberg et al., 2016Schvarsberg, B., Martins, G. C., & Kallas, L. M. E. (2016). Estudo de Impacto de Vizinhança: caderno técnico de regulamentação e implementação. Brasília: Universidade de Brasília.).

O conceito do termo “vizinhança” não deve trazer apenas a delimitação de um entorno imediato ao empreendimento ou atividade. Muitas vezes, a vizinhança lindeira ao empreendimento já é beneficiada, já possui investimentos em infraestrutura, enquanto podem existir comunidades também próximas em situação de precariedade, sem acesso às mesmas infraestruturas. O impacto causado pelo aumento da demanda dos investimentos nessas infraestruturas pode ser compensado a partir da aplicação desses investimentos nessas áreas mais carentes por infraestrutura urbana, provocando um efeito positivo, compensando essas comunidades, mitigando essas desigualdades.

Rocco (2006)Rocco, R. (2006). Estudo de Impacto de Vizinhança: instrumento de garantia do direito às cidades sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris. aponta que a visão do impacto de vizinhança limitado ao entorno imediato ainda existe porque por décadas esse conceito foi limitado aos danos à propriedade privada. Na legislação urbana brasileira, o conceito de vizinhança extrapola o direito privado, o impacto de vizinhança ultrapassa essa perspectiva e o impacto pode acontecer em todo o ambiente urbano. Conceitua o que se entende por impacto de vizinhança o jurista e professor Rogério Rocco (2006)Rocco, R. (2006). Estudo de Impacto de Vizinhança: instrumento de garantia do direito às cidades sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris.:

Portanto, por impacto de vizinhança podemos entender as diversas alterações de um ambiente especificado, mas dinâmico - que irá variar de dimensão de acordo com o alcance da atividade impactante - e que comprometam não mais apenas os usos das propriedades vizinhas, mas também, e acima de tudo, o direito à cidade sustentável - pensando como um direito transgeracional, que deve ser assegurado na perspectiva da garantia de qualidade de vida para as atuais e futuras gerações (p. 114).

O grande potencial do EIV de proporcionar aos empreendimentos a possibilidade de promoção da função social da propriedade depende do modo como a vizinhança será delimitada: ou como no século passado pela legislação civil ou sob o direito da coletividade.

Panorama da regulamentação do EIV em Florianópolis

O Plano Diretor de Florianópolis foi instituído pela Lei Complementar nº 482/2014Florianópolis (2014, 17 de janeiro). Lei Complementar nº 482, de 17 de janeiro de 2014. Institui o Plano Diretor de Florianópolis. Florianópolis: PMF. Recuperado em 24 de outubro de 2021, de http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/04_02_2014_12.01.39.ae8afdb369c91e13ca6efcc14b25e055.pdf
http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquiv...
, e em seu título III, relativo aos instrumentos urbanísticos, capítulo X, artigos 265 a 283, foi estabelecido o Estudo de Impacto de Vizinhança. O Decreto nº 13.348, de 2014Florianópolis (2014, 30 de julho). Decreto nº 13.348, de 30 de julho de 2014. Regulamenta o Estudo de Impacto de Vizinhança e o Relatório de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de agosto de 2022, de https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/decreto/2014/1334/13348/decreto-n-13348-2014-regulamenta-o-estudo-de-impacto-na-vizinhanca-eiv-e-o-relatorio-de-impacto-de-vizinhanca-riv-disposto-nos-arts-n-65-4-n-282-n-283-e-n-338-da-lei-complementar-n-482-de-2014-que-institui-o-plano-diretor-de-florianopolis
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, regulamenta o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e o Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV) de Florianópolis.

Em 2017, o Decreto Municipal nº 18.048 cria uma comissão técnica multidisciplinar para análise do EIV, formada por: um representante do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf); um representante da Secretaria Municipal de Planejamento, Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano; um representante da Secretaria Municipal de Infraestrutura; um representante da Secretaria de Transporte e Mobilidade Urbana ou da Secretaria de Meio Ambiente, Planejamento e Desenvolvimento Urbano, vinculado à Diretoria de Operações de Trânsito; e um representante da Procuradoria-Geral do Município. Esse decreto também identifica que as medidas compensatórias devem ser

[...] definidas por ato conjunto do Secretário Municipal de Planejamento, Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, do Superintendente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), do Secretário Municipal da Infraestrutura, do Secretário Municipal da Fazenda e do Chefe de Gabinete do Prefeito Municipal, de acordo com o Plano de Gestão e Ação do Município (Florianópolis, 2017Florianópolis (2017, 17 de outubro). Decreto nº 18.048, de 17 de outubro de 2017 (Revogado pelo Decreto nº 23054/2021). Cria comissão técnica multidisciplinar para análise de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e respectivo Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV) e dá outras providências. Florianópolis: PMF. Recuperado em 21 de outubro de 2021, de https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/decreto/2017/1804/18048/decreto-n-18048-2017-cria-comissao-tecnica-multidisciplinar-para-analise-de-estudo-de-impacto-de-vizinhanca-eiv-e-respectivo-relatorio-de-impacto-de-vizinhanca-riv-e-da-outras-providencias
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, artigo 4º).

Para regulamentar os critérios para a aplicação das medidas mitigadoras e compensatórias, foram desenvolvidas fórmulas para o cálculo do valor dessas medidas, legalizadas por meio do Decreto nº 19.146/2018 (Florianópolis, 2018Florianópolis (2018, 14 de novembro). Decreto nº 19.146, de 14 de novembro de 2018. Regulamenta o art. 267, da Lei Complementar nº 482, de 2014, definindo os critérios para a aplicação das medidas mitigadoras e compensatórias sempre que não for possível a eliminação integral dos impactos sociourbanísticos negativos, no âmbito das análises em Estudos de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: PMF. Recuperado em 21 de outubro de 2019, de https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/decreto/2018/1915/19146/decreto-n-19146-2018-regulamenta-o-art-267-da-lei-complementar-n-482-de-2014-definindo-os-criterios-para-a-aplicacao-das-medidas-mitigadoras-e-compensatorias-sempre-que-nao-for-possivel-a-eliminacao-integral-dos-impactos-sociourbanisticos-negativos-no-ambito-das-analises-em-estudos-de-impacto-de-vizinhanca
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). Nessas fórmulas são levados em consideração os coeficientes de padrão construtivo, mobilidade urbana, salubridade ambiental, equipamentos públicos, consolidação urbana e dinamismo econômico, além de fatores como desenho urbano, patrimônio e a área construída do empreendimento.

O Decreto nº 19.610/2019Florianópolis (2019, 15 de janeiro). Decreto nº 19.610, de 15 de janeiro de 2019. Regulamenta o art. 267, da lei complementar nº 482, de 2014, definindo a forma de garantia de execução de Termo de Compromisso de Compensação derivados de Estudos de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: PMF. Recuperado em 21 de outubro de 2019, de https://leismunicipais.com.br/a1/sc/f/florianopolis/decreto/2019/1961/19610/decreto-n-19610-2019-regulamenta-o-art-267-da-lei-complementar-n-482-de-2014-definindo-a-forma-de-garantia-de-execucao-de-termo-de-compromisso-de-compensacao-derivados-de-estudos-de-impacto-de-vizinhanca
https://leismunicipais.com.br/a1/sc/f/fl...
foi promulgado para regulamentar e definir a forma de garantia de execução do Termo de Compromisso de Compensação (TCC) derivado de EIV. As garantias legais foram a caução de unidades imobiliárias, que deverão ser averbadas na matrícula imobiliária e somente retiradas após o cumprimento integral do termo de compromisso. O Ipuf publicou também, em 2019, um Termo de Referência Padrão para obras que interferem no patrimônio e uma Instrução Normativa que mensura os coeficientes e fatores para o cálculo das medidas compensatórias (Ipuf, 2019Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis - Ipuf (2019). Termo de Referência para edificações com interferência no patrimônio cultural. Florianópolis: Ipuf. Recuperado em 2 de agosto de 2022, de http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/ipuf/index.php?cms=manuais+e+termos+de+referencia&menu=4&submenuid=612
http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/ipuf/...
).

Em 2021, o Decreto nº 23.054Florianópolis (2021, 20 de julho). Decreto nº 23.054, de 20 de julho de 2021. Cria Câmara de Aprovação e Compensação (CAC-EIV), para a gestão dos processos e procedimentos relativos aos Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV), e aprovação e gestão das medidas e ações de mitigação e compensação derivados destes estudos e dá outras providências. Florianópolis: PMF. Recuperado em 6 de janeiro de 2022, de https://leismunicipais.com.br/a1/sc/f/florianopolis/decreto/2021/2306/23054/decreto-n-23054-2021-cria-camara-de-aprovacao-e-compensacao-cac-eiv-para-a-gestao-dos-processos-e-procedimentos-relativos-aos-estudos-de-impacto-de-vizinhanca-eiv-e-aprovacao-e-gestao-das-medidas-e-acoes-de-mitigacao-e-compensacao-derivados-destes-estudos-e-da-outras-providencias?r=p
https://leismunicipais.com.br/a1/sc/f/fl...
cria a Câmara de Aprovação e Compensação (CAC-EIV) para a gestão dos processos e procedimentos relativos aos EIVs e aprovação e gestão das medidas e ações de mitigação e compensação derivados desses estudos, modificando a composição da equipe que analisará os próximos EIVs, passando a fazer parte: o superintendente do Ipuf ou, na ausência deste, o diretor-geral do Ipuf; o secretário de mobilidade e planejamento urbano ou, na ausência deste, o secretário adjunto; e um servidor do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) e respectivo suplente, sendo que a CAC-EIV será secretariada pela Gerência de Compensações e Incentivos, vinculada à SMPU. Na Figura 1 é demonstrada a linha do tempo contendo a legislação de Florianópolis pertinente ao EIV.

Figura 1
- Legislação do EIV em Florianópolis. Fonte: Os autores (2021).

No Plano Diretor (Florianópolis, 2014Florianópolis (2014, 17 de janeiro). Lei Complementar nº 482, de 17 de janeiro de 2014. Institui o Plano Diretor de Florianópolis. Florianópolis: PMF. Recuperado em 24 de outubro de 2021, de http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/04_02_2014_12.01.39.ae8afdb369c91e13ca6efcc14b25e055.pdf
http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquiv...
, 17 de janeiro), a função social da propriedade urbana é definida no seu artigo 7º, inciso XXXIX, como “[...] atributo a ser alcançado pela propriedade urbana e que será considerado preenchido quando o uso e a ocupação do solo atenderem às exigências mínimas previstas nesta legislação”.

A mesma legislação, em seu artigo 267, define a vizinhança como uma área que sofrerá impactos urbanísticos decorrentes da implantação de um empreendimento ou atividade, necessitando de medidas mitigadoras ou compensatórias. O artigo 274 afirma que é a partir da área de influência que serão delimitados os estudos que deverão ser realizados e os impactos negativos e efeitos positivos a serem considerados. Portanto, se essa área for minorada ou mal dimensionada, o estudo dos impactos e as medidas compensatórias ficarão também comprometidos.

O EIV poderá perder sua relevância quanto à contribuição da função social da cidade caso a área de influência fique restringida aos quarteirões que contornam o empreendimento. Caso isso ocorra, as análises da dinâmica da mobilidade urbana, da carência de infraestruturas e equipamentos públicos e comunitários, dos impactos no meio ambiente e na estrutura socioeconômica da região gerados pelo empreendimento podem não representar a real situação dos fatos.

No site do Ipuf existem algumas recomendações, dividindo as áreas impactadas em: Área de Influência Direta e Área de Influência Indireta, seguida de uma imagem representativa, assim descritas:

Área de Influência Direta - É aquela onde os impactos incidem de forma primária sobre os espaços urbanos e atividades cotidianas da população nas fases de implantação e operação do empreendimento e deverá ser bastante detalhada no EIV.

Área de Influência Indireta - É onde os impactos incidem de forma secundária, sobretudo durante a fase de operação. A Área de Influência Indireta, em geral, é mais ampla, podendo inclusive, ter um alcance regional (Ipuf, 2021, sInstituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis - Ipuf (2021). Estudo de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: Ipuf. Recuperado em 10 de novembro de 2021, de http://ipuf.webflow.io/instrumentos/eiv
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.p.).

O esquema apresentado pelo Ipuf (2021)Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis - Ipuf (2021). Estudo de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: Ipuf. Recuperado em 10 de novembro de 2021, de http://ipuf.webflow.io/instrumentos/eiv
http://ipuf.webflow.io/instrumentos/eiv...
como exemplo (Figura 2) insinua a indicação das áreas de influência dos impactos baseada praticamente na vizinhança descrita pela legislação civil, ou seja, nas áreas próximas ao empreendimento. No entanto, quando é descrito no texto, o entendimento passa a ser mais amplo, sugerindo inclusive que o impacto pode ter uma repercussão regional.

Figura 2
- Esquema para exemplificar a Área de Influência. Fonte: Ipuf (2021)Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis - Ipuf (2021). Estudo de Impacto de Vizinhança. Florianópolis: Ipuf. Recuperado em 10 de novembro de 2021, de http://ipuf.webflow.io/instrumentos/eiv
http://ipuf.webflow.io/instrumentos/eiv...
.

Assim, a Área de Influência Direta (AID) pode ser comparada à vizinhança mais imediata ou aquela que sofre com os impactos principalmente na fase de implantação, como as oriundas da mobilização do canteiro de obras, terraplanagem, escavações para a fundação, movimentação de caminhões, ruídos, resíduos da construção civil, dentre outros. A Área de Influência Indireta (AII) é sempre mais ampla e nela os impactos são duradouros e sentidos por grande parte da cidade, principalmente quando o empreendimento entra em operação. Nela se inclui a análise das questões elencadas no artigo 37 do Estatuto da Cidade: adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e ocupação do solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e demanda por transporte público; ventilação e iluminação; paisagem urbana; e patrimônio natural e cultural.

Estudo de caso: implementação do EIV em Florianópolis

A cidade de Florianópolis/SC foi utilizada como estudo de caso para avaliar as delimitações das áreas de influência dos EIVs e as aplicações das medidas compensatórias a partir da função social da propriedade urbana. O desenvolvimento do estudo de caso englobou uma análise documental, legislativa e de mapas, complementados com visitas exploratórias e dados de casos concretos, a partir de documentos dos processos administrativos de implementação do EIV na capital catarinense.

A caracterização das vulnerabilidades urbanas da capital foi realizada a partir de levantamentos e diagnósticos preexistentes: Plano Municipal de Habitação de Interesse Social de Florianópolis - PMHIS (Florianópolis, 2012Florianópolis (2012). Plano Municipal de Habitação de Interesse Social. PMHIS Produtos e anexos. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de novembro de 2021, de https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infraestrutura/index.php?cms=plano+municipal+de+habitacao+de+interesse+social&menu=0
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, junho), IBGE (2021)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2021). Florianópolis - 2021. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 2 de agosto de 2021, de https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama
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https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
) e Revisão do Plano Municipal de Redução de Riscos (Florianópolis, 2014Florianópolis (2014, julho). Revisão do Plano Municipal de Redução de Riscos - PMRR. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de agosto de 2022, de https://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/17_09_2014_12.18.46.47d9f3cf658ee472868d5324eb4f2c6d.pdf
https://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arqui...
, julho). Esses levantamentos indicaram que há uma necessidade de melhor distribuição das infraestruturas públicas, o que não é algo novo, muito menos recente, tampouco exclusivo da cidade de Florianópolis.

Os problemas relacionados à desigualdade de acessos à infraestrutura urbana é uma questão histórica na capital de Santa Catarina. Acerca disso, Santos (2009, pSantos, A. L. (2009). Do mar ao morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis (Tese de doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.. 18) aponta que a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis foi acentuada no início do século XX, com a “[...] expulsão de parte dessa população para os morros e exclusão dos equipamentos e serviços urbanos que estavam sendo implantados na cidade”. Isso é evidente ainda hoje na distribuição territorial de Florianópolis, onde as populações mais pobres estão nos bairros com menor oferta de infraestrutura urbana e muitos habitantes vivem em áreas de risco. Há partes da cidade dotadas de sistemas de infraestruturas adequadas, enquanto algumas comunidades estão cada vez mais vulneráveis. Uma implementação adequada do EIV pode contribuir para amenizar essas desigualdades.

A coleta e análise dos dados ocorre cinco anos após o início da aplicação do EIV na cidade de Florianópolis e pretende corroborar com os preceitos do instrumento, verificando sua eficácia a partir da análise de casos significativos e concretos, os quais denominamos “casos-referência”, a partir da metodologia de Cavallazzi (1993)Cavallazzi, R. L. (1993). O plano da plasticidade na teoria contratual (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.. O caso-referência é um método de estudo adotado por Cavallazzi (1993)Cavallazzi, R. L. (1993). O plano da plasticidade na teoria contratual (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. que permite a análise de exemplos significativos e concretos, buscando a compreensão da eficácia social da norma jurídica, permitindo uma análise com base em fatos e a partir da pesquisa teórica. O método foi adaptado para este estudo direcionado à compreensão da aplicação e resultados dos EIVs na cidade de Florianópolis/SC.

Desses casos concretos foram extraídos dados a partir dos Relatórios de Impactos de Vizinhança (RIV) e dos Termos de Compromisso de Compensação (TCC). Os casos-referência foram delimitados entre os EIVs aprovados na cidade de Florianópolis; estes casos reais foram categorizados e analisados para a compreensão dos impactos elencados, da delimitação das áreas de influência e do destino das medidas compensatórias.

Quantificação e categorização dos casos-referência

Para a quantificação dos casos-referência, foram determinadas delimitações temporal, espacial e de tipologia, para tornar a coleta de dados mais eficiente e ao mesmo tempo mostrar transparência e consistência quanto à técnica de amostragem utilizada, garantindo o rigor empregado nesta investigação científica para sistematizar a análise dos dados coletados nesta pesquisa de abordagem qualitativa.

Como delimitação temporal, foi utilizado o ano de início das aprovações dos EIVs em Florianópolis: 2015. Embora a lei que regulamentou o EIV seja datada de janeiro de 2014, durante esse ano apenas um EIV foi aprovado, e em seu relatório nenhuma medida compensatória foi proposta. Como data limite, foi escolhido o ano de 2020, para que o ano de 2021 fosse utilizado para tratamento e análise dos dados coletados. Entre 2015 e 2020 foram aprovados 128 EIVs, o que pode ser observado no Gráfico 1:

Gráfico 1
- EIVs aprovados em Florianópolis, entre 2015 e 2020, por ano do protocolo

Quanto à delimitação espacial, foram comparados mapeamentos das Áreas de Interesse Social (AIS) e a localização geográfica dos 128 EIVs. A cidade de Florianópolis foi dividida, a partir de 1997, em 12 distritos: Sede, Barra da Lagoa, Cachoeira de Bom Jesus, Campeche, Canasvieiras, Ingleses do Rio Vermelho, Lagoa, Pântano do Sul, Ratones, Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e São João do Rio Vermelho. De acordo com o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social (Florianópolis, 2012Florianópolis (2012). Plano Municipal de Habitação de Interesse Social. PMHIS Produtos e anexos. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de novembro de 2021, de https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infraestrutura/index.php?cms=plano+municipal+de+habitacao+de+interesse+social&menu=0
https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infr...
), das 65 comunidades elencadas como AIS, 53 estão localizadas no Distrito Sede, distribuídas tanto na parte Insular quanto Continental. Ele também é o apontado, na hierarquização das AIS (Florianópolis, 2012Florianópolis (2012). Plano Municipal de Habitação de Interesse Social. PMHIS Produtos e anexos. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de novembro de 2021, de https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infraestrutura/index.php?cms=plano+municipal+de+habitacao+de+interesse+social&menu=0
https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infr...
), como aquele que possui mais habitações em situação de precariedade em urbanização, o que demanda mais investimentos em infraestrutura, incluindo os sistemas de saneamento básico, equipamentos urbanos e comunitários, sistema viário e aporte ambiental. Para esta pesquisa, foram escolhidos como caso-referência os EIVs cujos empreendimentos estão nos Distrito Sede, tanto Insular quanto Continental (Figura 3), pois neles, além de estarem localizadas as áreas mais carentes de infraestrutura, também está localizado o maior número de casos-referências em relação aos demais distritos: 63 EIVs aprovados.

Figura 3
- Delimitação do Distrito Sede Continental e Insular. Fonte: Mapa gerado pela autora a partir do website de geoprocessamento da Prefeitura Municipal de Florianópolis (Florianópolis, 2022Florianópolis (2022). Geoprocessamento corporativo. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de agosto de 2022, de http://geo.pmf.sc.gov.br/
http://geo.pmf.sc.gov.br/...
).

Quanto à tipologia, o Plano Diretor de Florianópolis (2014, 17 de janeiro), no seu artigo 273, enumera os empreendimentos e atividades que devem ser objetos de elaboração de EIV. Entre esses empreendimentos e atividades, o recorte estudado continha: centro comercial com área construída superior a 5 mil metros quadrados; Estação Rádio Base de telefonia celular; indústria causadora de ruídos e emissão de gases; condomínio multifamiliar com mais de 50 unidades habitacionais ou comerciais; loteamentos com área superior a três hectares. Para compor a amostra de casos-referência, foram excluídas as análises dos EIVs de Estação Rádio Base (ERB), pois, após realizada a análise desses estudos, foi constatada a inexistência da proposta de medidas compensatórias para a vizinhança impactada. Assim, de acordo com o tipo, os EIVs analisados foram os seguintes: indústria causadora de ruídos e emissão de gases; condomínio multifamiliar com mais de 50 unidades habitacionais ou comerciais e loteamento ou desmembramento em terreno com área superior a três hectares.

Com a delimitação do universo dos casos-referência com base na delimitação temporal de 2015 a 2020, na localização Distrito Sede (Continental e Insular) e nos tipos elencados, foram quantificados em 32, sendo 18 no Distrito Sede Insular e 14 no Distrito Sede Continental (Tabela 1).

Tabela 1
- Relação dos casos-referência: EIVs

Este artigo é fruto de uma tese na qual foram gerados gráficos e tabelas para sistematizar os dados extraídos dos 32 EIVs, a partir da análise de mais de 5.500 páginas de estudos técnicos. Para o tratamento dos dados dos casos-referência, foi elaborado um roteiro contendo os seguintes pontos: descrição do empreendimento; zoneamento; áreas de influência dos impactos; proximidades com as AIS e se estas estão ou não contidas nas áreas de influência; impactos negativos elencados; e as medidas compensatórias propostas pelos estudos e aquelas finais estipuladas nos Termos de Compromisso de Compensação. Algumas questões levantadas na tese foram respondidas em relação à implementação do EIV em Florianópolis, como quanto à vizinhança e qual o critério para a delimitação das áreas de influência.

Resultados da pesquisa quanto à delimitação das áreas de influência dos impactos e as Áreas de Interesse Social

Em relação à vizinhança impactada pelos empreendimentos, em todos os 32 EIVs analisados foram apresentadas AID e AII de forma única para todos os impactos elencados. Assim, todos os impactos foram tratados de forma igual quanto à sua abrangência na cidade, o que corrobora para exemplificar o equívoco na delimitação da vizinhança nesses casos.

A delimitação da vizinhança não foi baseada nas áreas de influência dos impactos, mas em critérios de divisão territorial, como: as Unidades Espaciais de Planejamento (UEP); os bairros; os Setores Censitários do IBGE; as ruas e quadras adjacentes; e a circunferência a partir do centro do empreendimento, divididos conforme o Gráfico 2.

Gráfico 2
- Critérios para estipular as áreas de influência dos impactos. Fonte: Os autores (2021).

Os 32 EIVs foram mapeados tendo como base a localização geográfica e endereços fornecidos nos estudos disponibilizados pelo Ipuf em 2021, e a localização das AIS a partir dos produtos disponibilizados do Plano de Habitação e Interesse Social de Florianópolis (Florianópolis, 2012Florianópolis (2012). Plano Municipal de Habitação de Interesse Social. PMHIS Produtos e anexos. Florianópolis: PMF. Recuperado em 2 de novembro de 2021, de https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infraestrutura/index.php?cms=plano+municipal+de+habitacao+de+interesse+social&menu=0
https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infr...
) e do Geoprocessamento Corporativo da Prefeitura Municipal. As informações foram agrupadas fazendo uso do programa Google Earth (2022). Recuperado em 2 de agosto de 2022, de https://www.google.com.br/earth/about/
https://www.google.com.br/earth/about/...
Google Earth e disponibilizadas via QR Code pelo serviço Google My Maps (2022). Recuperado em 2 de agosto de 2022, de https://www.google.com/maps/d/u/0/
https://www.google.com/maps/d/u/0/...
Google My Maps.

As AIS, consideradas as áreas mais carentes a partir do diagnóstico do PMHIS e com muitas privações de infraestrutura urbana, não foram incluídas em metade das áreas de influência dos casos-referência, mesmo quando eram lindeiras aos empreendimentos ou faziam parte das análises dos seus estudos. Na outra metade, mesmo as AIS estando contidas nas áreas de influência, as medidas compensatórias propostas pelos técnicos contratados pelos empreendedores não as beneficiaram. Um exemplo foi o EIV 24, que a área de influência marcada pelo polígono em vermelho (Figura 4) demonstra claramente a exclusão das AIS PC3, Nossa Senhora do Rosário, Monte Cristo, Santa Terezinha, Nova Esperança, Chico Mendes e Novo Horizonte dos seus estudos, não os reconhecendo como impactados e tampouco como beneficiários das medidas compensatórias.

Figura 4
- Área de influência do EIV 24 e AIS próximas. Fonte: Elaborada pelos autores utilizando o programa Google Earth Pro e o serviço Google My Maps (2021).

Foi constatado que 33 AIS do Distrito Sede estão contidas nas áreas de influência dos impactos elencados nos estudos, ou seja, 78% das áreas carentes poderiam ser contempladas com algum benefício das medidas compensatórias.

As comunidades mais vulneráveis têm menos poder de resposta aos impactos recorrentes do processo de urbanização e adensamento populacional. Sakata (2011)Sakata, F. G. (2011). Paisagismo urbano: requalificação e criação de imagens. São Paulo: Edusp. descreve que as melhorias na infraestrutura urbana, tais como obras viárias, espaços públicos e comunitários, redes de esgoto e fornecimento de água tratada e energia elétrica ocorrem com mais frequência nas áreas já providas de infraestrutura. Se o princípio norteador do EIV é a função social da propriedade, é essencial que as medidas compensatórias atinjam a área de influência dos impactos como um todo, principalmente os mais impactados devido à carência de infraestrutura. “Os investimentos em bens públicos - incluindo o sistema educativo, as infraestruturas, o saneamento e a segurança - poderiam beneficiar preferencialmente as pessoas mais carentes que, de outro modo, não teriam acesso a esses serviços” (Pnud, 2019, pPrograma das Nações Unidas para o Desenvolvimento - Pnud. (2019). Relatório do Desenvolvimento Humano 2019. Nova York. Recuperado em 10 de agosto de 2021, de http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2019_pt.pdf
http://hdr.undp.org/sites/default/files/...
. 243).

Resultados da pesquisa quanto às medidas propostas e acordadas nos Termos de Compromisso de Compensação

De acordo com o Plano Diretor de Florianópolis (2014, 17 de janeiro), no seu artigo 274, o EIV deve ser instruído com a identificação e avaliação dos impactos positivos e negativos, considerando os seguintes conteúdos:

  • a) nova estruturação e modificação na dinâmica da mobilidade urbana;

  • b) necessidade de inserção de novos equipamentos públicos comunitários, no que se refere à demanda gerada pelo eventual incremento populacional;

  • c) relação do empreendimento ou atividade com o patrimônio ambiental natural e construído; patrimônio cultural, histórico e artístico com seus respectivos entornos no que se refere à conservação, à apreensão visual, à valorização dos bens já consolidados e os de interesse à preservação; elementos de arte pública; ambiências urbanas criadas e consolidadas que formam o espírito e a identidade do lugar;

  • d) relação do empreendimento ou atividade com o patrimônio ambiental natural e construído, arqueológico, arquitetônico, etnográfico, histórico ou paisagístico, com seus entornos no que se refere à conservação, à apreensão visual, à valorização dos bens já consolidados e os de interesse a elementos de arte pública, ambiências urbanas criadas;

  • e) demanda gerada para a infraestrutura urbana, no que se refere a equipamentos e redes de água, esgoto, drenagem, energia, comunicação, coleta e tratamento de resíduos sólidos, entre outras;

  • f) influência sobre bens ambientais, no que se refere à qualidade do ar, do solo e subsolo, das águas, da flora, da fauna, e poluições ambiental, visual e sonora decorrentes da atividade; e

    • g) impacto na estrutura socioeconômica e cultural, no que se refere à produção, consumo, emprego, renda e demanda por habitação (Florianópolis, 2014Florianópolis (2014, 17 de janeiro). Lei Complementar nº 482, de 17 de janeiro de 2014. Institui o Plano Diretor de Florianópolis. Florianópolis: PMF. Recuperado em 24 de outubro de 2021, de http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/04_02_2014_12.01.39.ae8afdb369c91e13ca6efcc14b25e055.pdf
    http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquiv...
    , 17 de janeiro, art. 274, inciso VIII).

A partir dos impactos elencados, foram propostas pelos empreendedores nos 32 EIVs um total de 291 medidas, sendo que, nessa etapa, todas as medidas ficaram localizadas no próprio empreendimento ou no seu entorno imediato. Na análise do documento protocolado pelos empreendedores, a relação entre os impactos negativos elencados e as medidas propostas corroboram com a indicação que existem frequentes distorções quanto ao conceito de vizinhança. Um exemplo foi que em um dos estudos foi apontado o impacto de conflitos sociais durante as análises, mas quando as medidas foram propostas ficaram inexplícitas e relacionadas à segurança do próprio empreendimento, como a implantação de comunicação social e de um plano de segurança. No Gráfico 3 estão os impactos negativos citados e a quantidade total das medidas propostas para cada um deles.

Gráfico 3
- Impactos negativos elencados e analisados nos 32 EIVs e a quantidade de medidas propostas. Fonte: Os autores (2021).

Entre os impactos negativos elencados nos estudos, alguns foram específicos, dada a natureza do empreendimento, por exemplo, uma indústria de concreto que envolvia situações como: ruídos, vibrações, gases e suspensão de partículas; ou a instalação de um equipamento institucional de atendimento ao público que impulsionaria pressão por vagas de estacionamento. As demais questões analisadas e apontadas como impacto são mais recorrentes às tipologias de empreendimentos como edifícios residenciais multifamiliares, comerciais e de serviços e mistos. Foi constatado que as medidas propostas ou precisariam ser executadas por atores externos aos empreendimentos, como o aumento de linhas de transporte público, ou ficaram restritas ao empreendimento e seu entorno, não se configurando medidas compensatórias para os impactados, mas medidas mitigadoras. Para exemplificar essa afirmativa, na Tabela 2 são descritas algumas medidas citadas nos casos-referência.

Tabela 2
- Medidas compensatórias propostas nos EIVs analisados

As medidas exemplificadas são essenciais para minimizar os impactos da urbanização, causados pela introdução do empreendimento, e são inerentes ao seu melhor desempenho, portanto, são mitigadoras. As medidas compensatórias devem promover um efeito positivo na vizinhança impactada, visto que não foi possível mitigar todo o efeito negativo previamente apontado pelo EIV. Portanto, a delimitação adequada da vizinhança é imprescindível para a definição das medidas compensatórias e implementação do instrumento.

Na fase final do processo do EIV, se o empreendimento for aprovado mediante o cumprimento de algumas medidas, é emitido o TCC. O termo é um acordo assinado entre empreendedor e o Ipuf, originado a partir do parecer técnico da comissão responsável pela análise e aprovação do EIV, no qual as medidas são definidamente descritas. Dentre as medidas compensatórias acordadas nos casos-referência, apenas quatro, citadas na Tabela 3, atenderam às Áreas de Interesse Social e indicam indícios de que o instrumento EIV pode e deve ser implementado sob o princípio constitucional da função social da propriedade urbana, além de fomentar a importância da aplicação do verdadeiro sentido da palavra “vizinhança” para os estudos de impactos urbanos.

Tabela 3
- Medidas compensatórias acordadas no TCC que atenderam AIS

No EIV 1, a medida compensatória foi a execução da praça Plácido Domingos de Souza, bem próxima às comunidades Vila Cachoeira e Sol Nascente, conforme Figura 5, ofertando um espaço público de lazer que oferece mais qualidade de vida para essas comunidades a partir de novas formas de inter-relações entre as pessoas.

Figura 5
- Relação de proximidade entre o EIV 1, comunidades Vila Cachoeira e Sol Nascente e a Praça Plácido Domingos de Souza. Fonte: Medeiros (2021)Medeiros, C. F. (2021). Vulnerabilidades na cidade: o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e as desigualdades socioambientais (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis..

A utilização de parques e praças pode ser considerada como um índice positivo na qualidade de vida urbana, desde que esses espaços sejam adequados para sua compatibilização com os aspectos cruciais da vida contemporânea e, principalmente, com os lazeres (Santini, 1993, pSantini, R. de C. G. (1993). Dimensões do lazer e da recreação: questões espaciais, sociais e psicológicas. São Paulo: Angelotti.. 44).

No EIV 3, a medida compensatória foi a melhoria em equipamentos comunitários na área de influência, na qual estão contidas as comunidades Vila Cachoeira e Sol Nascente. Não foi indicado no TCC quais equipamentos receberiam o benefício, entretanto, na Figura 6 foi apontada, a título de exemplo, a localização de alguns equipamentos, como o Centro de Saúde Pública e os dois Núcleos de Educação Infantil Municipal (Neim) como locais passíveis a receber o benefício estipulado na medida compensatória.

Figura 6
- Relação de proximidade entre o EIV 3, comunidades Vila Cachoeira e Sol Nascente e equipamentos comunitários incluídos na área de influência. Fonte: Medeiros (2021)Medeiros, C. F. (2021). Vulnerabilidades na cidade: o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e as desigualdades socioambientais (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis..

No EIV 23, a medida compensatória foi a reforma da Biblioteca Municipal Professor Barreiros Filho do Estreito; o equipamento atende às comunidades de Nossa Senhora do Rosário, Santa Teresinha, CC1, Jardim Ilha Continente e Morro da Caixa (Figura 7). De acordo com a Ferramenta de Avaliação de Inserção Urbana do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), o uso biblioteca pública deve estar a 30 minutos por transporte público ou a 20 minutos a pé, o que corresponde a aproximadamente 1.400 metros de percurso (Rolnik & Torres, 2014Rolnik, R., & Torres, P. (2014). Ferramenta de avaliação de inserção urbana para os empreendimentos de faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida. São Paulo: LabCidade: ITDP Brasil. Recuperado em 5 de janeiro de 2022, de http://itdpbrasil.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Ferramenta-MCMV_vers%C3%A3o-final_WEB.pdf
http://itdpbrasil.org.br/wp-content/uplo...
).

Figura 7
- Relação de proximidade entre o EIV 23, comunidades Nossa Senhora do Rosário, Santa Teresinha, Jardim Ilha Continente, CC1 e Morro da Caixa e a biblioteca pública. Fonte: Medeiros (2021)Medeiros, C. F. (2021). Vulnerabilidades na cidade: o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e as desigualdades socioambientais (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis..

No EIV 30, a medida compensatória foi a instalação ou melhoria de um equipamento comunitário na área de lazer, voltado à cultura e esporte nas comunidades da área de influência. Embora não tenha sido definido onde o equipamento será instalado, a proximidade e relação do empreendimento com as comunidades de Vila Aparecida I e II, MacLarem, Arranha Céu e Nova Jerusalém, demonstrada na Figura 8, indica que essa medida compensatória deve também beneficiar as AIS.

Figura 8
- Relação de proximidade entre o EIV 30 e as comunidades Vila Aparecida, MacLarem, Arranha Céu e Nova Jerusalém. Fonte: Medeiros (2021)Medeiros, C. F. (2021). Vulnerabilidades na cidade: o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e as desigualdades socioambientais (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis..

Esses raros exemplos significativos demonstram a importância de delimitar a vizinhança pela área de influência de cada impacto elencado e da utilização do instrumento sob o princípio da função social da propriedade urbana, contribuindo com a mitigação das desigualdades socioambientais na cidade.

Considerações finais

Como foi apresentada e justificada, a delimitação das áreas de influência dos impactos, que corresponde à vizinhança na legislação urbana, nos 32 casos-referência avaliados, corroborou com a indicação da existência real de uma frequente distorção quanto a esse conceito já no início dos estudos, o que acaba comprometendo todo o desenvolvimento e os resultados apresentados.

Embora sejam apontados os impactos negativos, suas áreas de abrangência são geralmente delimitadas ou pelas divisões administrativas ou pela demarcação de uma poligonal ou raio de abrangência abstratos. Esses parâmetros adotados para a delimitação das áreas de influência podem até parecer uma maneira para agilizar os estudos, mas não representam a realidade de abrangência dos impactos, nem conseguem justificar a inclusão ou exclusão dos impactados pelo empreendimento.

Sem o correto apontamento da vizinhança impactada, as medidas compensatórias propostas ficam restritas ao próprio empreendimento ou ao seu entorno imediato. Na maioria dos casos elas são designadas a melhorar a qualidade de vida daqueles futuros usuários que já possuem a infraestrutura pública instalada; enquanto isso, aqueles que possuem muitas privações, inclusive de falta de acesso às infraestruturas básicas, são expostos a mais impactos negativos, ficando cada vez mais longe dos benefícios da cidade. Os casos aqui estudados demonstram a dificuldade para considerar a diretriz do Estatuto da Cidade que prevê a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização.

Algumas medidas compensatórias propostas nos casos-referência, como instalação de abrigos de passageiros, sistema semafórico eletrônico, melhoria nas intersecções das vias próximas, trechos de ciclovia e arborização das calçadas do perímetro do lote, são relativas ao entorno do empreendimento e se configuram mais como medidas mitigadoras dos impactos do que compensatórias para a área impactada. Outras medidas internas ao empreendimento, como empregar sistemas de redução do consumo de água, coleta e reaproveitamento das águas de chuvas, utilização de sensores de presença e lâmpadas de LED, não se configuram da mesma forma como compensação.

Os direitos coletivos são preceitos constitucionais e devem prevalecer na implementação do EIV nas cidades brasileiras. A correta interpretação do termo “vizinhança” na legislação urbana é fundamental para que os impactos sejam compensados de forma positiva e que prevaleça a função social da propriedade urbana e da cidade.

  • Como citar: Medeiros, C. F., Kós, J. R., & Fauth, G. (2022). O conceito de vizinhança na legislação urbana brasileira e sua aplicação nos Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV) em Florianópolis/SC. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 14, e20220020. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20220020
  • Declaração de disponibilidade de dados

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.L40GGF

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Editado por

Editor responsável: Rodrigo Firmino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    08 Jul 2022
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