Acessibilidade / Reportar erro

A INTERCULTURALIDADE NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO RELACIONADO AOS INDÍGENAS DA ALDEIA JAMÃ TŸ TÃNH

Resumo

A matriz colonial está presente nas normas jurídicas brasileiras de modo que a interculturalidade consiste em uma proposta que visa abrir novos caminhos que confrontam os aspectos da colonialidade. O Brasil conta com 896 mil indígenas, dos quais 572 mil são moradores de áreas rurais e 324 mil vivem em áreas urbanas. A investigação utiliza casos de experiência da etnia Kaingang, a qual se encontra distribuída em quatro estados brasileiros e soma 39 mil pessoas. O objetivo deste trabalho é compreender quais aspectos da interculturalidade são utilizados no Direito Previdenciário em relação aos indígenas Kaingang da comunidade Jamã Tÿ Tãnh, localizada no município de Estrela/RS. Foram utilizados relatos de experiência acerca do acesso à Previdência Social de oito indígenas da comunidade Jamã Tÿ Tãnh . Adotou-se o método de estudo de caso, sendo a pesquisa do tipo qualitativa, cujos instrumentos técnicos foram a pesquisa bibliográfica, documental, observações registradas em diários de campo e história oral. Conclui-se que a interculturalidade busca confrontar a matriz da colonial presente no ordenamento jurídico brasileiro, a qual dificulta o acesso aos benefícios da Previdência Social, especialmente, quando se trata de populações indígenas.

Palavras-chave:
Direito Previdenciário; indígenas; interculturalidade; Kaingang

Resumen

La matriz colonial está presente en las normas jurídicas brasileñas, por lo que la interculturalidad es una propuesta que pretende abrir nuevos caminos que enfrenten aspectos de la colonialidad. Brasil tiene 896 mil indígenas, de los cuales 572 mil viven en áreas rurales y 324 mil en áreas urbanas. La investigación utiliza estudios de caso del grupo étnico Kaingang, que se extiende por cuatro estados brasileños y cuenta con 39 mil personas. El objetivo de este trabajo es comprender qué aspectos de la interculturalidad se utilizan en el Derecho Previsional en relación con los indígenas Kaingang de la comunidad Jamã Tÿ Tãnh, ubicada en el municipio de Estrela/RS. Se utilizaron relatos de experiencias sobre el acceso a la Seguridad Social de ocho miembros indígenas de la comunidad Jamã Tÿ Tãnh. Se adoptó el método de estudio de casos y la investigación fue cualitativa, siendo los instrumentos técnicos la investigación bibliográfica, los documentos, las observaciones registradas en diarios de campo y la historia oral. Se concluye que la interculturalidad busca enfrentar la matriz colonial presente en el ordenamiento jurídico brasileño, que dificulta el acceso a los beneficios de la Seguridad Social, especialmente cuando se trata de poblaciones indígenas.

Palabras clave:
Derecho Previsional; indígenas; interculturalidad; Kaingang

Abstract

The colonial matrix is present in Brazilian legal norms so that interculturality consists of a proposal that aims to open new paths that confront aspects of coloniality. Brazil has 896 thousand indigenous people, of which 572 thousand live in rural areas and 324 thousand live in urban areas. The investigation uses experience cases from the Kaingang ethnic group, which is distributed across four Brazilian states and has a population of 39 thousand people. This paper aims to understand which aspects of interculturality are used in Social Security Law in relation to the Kaingang indigenous people of the Jamã Tÿ Tãnh community, located in the municipality of Estrela/RS. Experience reports about access to Social Security from eight indigenous people from the Jamã Tÿ Tãnh community were used. The case study method was adopted, being the research qualitative, whose technical instruments were bibliographic and documentary research, observations recorded in field diaries and oral history. It is concluded that interculturality seeks to confront the colonial matrix present in the Brazilian legal system, which makes access to Social Security benefits difficult, especially when it comes to indigenous populations.

Palavras-chave:
Social Security Law; indigenous people; interculturality; Kaingang

Introdução

A população brasileira é constituída de várias culturas, sendo uma delas a cultura indígena, que corresponde a 896 mil pessoas. A etnia Kaingang representa, no período vigente, um dos maiores povos indígenas do Brasil, compreendendo cerca de 38 mil pessoas. Os grupos Kaingang estão distribuídos por quatro estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. A comunidade em análise encontra-se no Vale do Taquari, na área urbana de Estrela, no Rio Grande do Sul. Esta investigação aborda os temas da interculturalidade enquanto prática social e política pública e o Direito Previdenciário com relação aos indígenas.

Os grupos indígenas têm direitos assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, tais como: direito de organização social própria, costumes, línguas, crenças, culturas, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, entre outros dispositivos correlatos. Ocorre que, apesar de o ordenamento jurídico brasileiro prever diversas normas que reconhecem os direitos e a diferença cultural dessas comunidades, os indígenas ainda se empenham para ver reconhecidos os direitos fundamentais, em especial, o direito à terra, imprescindível para a reprodução cultural. Os indígenas permanecem lutando por locais com água potável e alimentos, os quais, muitas vezes, são entendidos como privilégios, mas são apenas direitos básicos. Isso ocorre em função da grande violência cultural que os povos tradicionais sofreram no passado, somada à falta de conhecimento e ao preconceito por parte da população local, bem como da inércia das autoridades quando se trata de direitos indigenistas.

A matriz colonial está presente nas normas jurídicas brasileiras de modo que a interculturalidade, no que lhe concerne, consiste em uma proposta de processo e projeto social, político, ético e epistêmico que possibilita outros caminhos que confrontam aspectos coloniais. Assim, sugere-se o uso das práticas sociais e de políticas públicas para alcançar os propósitos da interculturalidade, haja vista que a interculturalidade é uma ação, e não somente uma vertente teórica. Salienta-se que as práticas sociais se referem às relações, religiões, organizações e modos de vida presentes nas comunidades tradicionais, ao passo que as políticas públicas servem para materializar os processos e projetos sociais com vistas a efetivar os direitos fundamentais.

O objetivo deste trabalho é compreender quais práticas sociais e políticas públicas da interculturalidade são utilizadas no Direito Previdenciário em relação aos indígenas em contextos urbanos no caso dos Kaingang da Jamã Tÿ Tãnh de Estrela/RS. Adota-se o método de estudo de caso, tratando-se, também, de uma pesquisa do tipo qualitativa, cujos dados foram coletados por meio dos seguintes instrumentos técnicos: bibliografia, documentação, observações registradas em diários de campo e história oral por meio da técnica de entrevistas. A liderança da comunidade assinou o termo de anuência prévia (TAP), e todos os interlocutores entrevistados autorizaram-no por meio do termo de consentimento livre esclarecido (TCLE), garantindo-lhes resguardar sua identidade.

As questões para entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado, e foram entrevistados quatro indígenas, havendo, também, diálogo com outros três. Os registros das conversas encontram-se em diários de campo. Os pesquisadores auxiliaram indiretamente outras dois indígenas, por intermédio das lideranças da comunidade.

Para alcançar o objetivo, o trabalho está dividido em três seções. Na primeira abordou-se o tema da interculturalidade enquanto prática social e política pública. A segunda apresenta os aspectos da etnia Kaingang e da comunidade investigada. Por fim, a terceira seção discorre a respeito do Direito Previdenciário e legislações correlatas referentes aos indígenas, bem como das experiências relatadas pelos integrantes da aldeia Jamã Tÿ Tãnh .

1 Interculturalidade

Diversos fatos históricos visaram à extinção dos indígenas e negros, por exemplo, a política de branqueamento do século XIX, a qual entendia o homem branco e europeu como um padrão a ser seguido e, portanto, buscava aperfeiçoar as demais etnias por meio da adoção de fatores universais, tais como cultura, costumes e saberes, sob a justificativa da construção de uma cultura nacional e de uma sociedade moderna ( MAIA; ZAMORA, 2018MAIA, K. S.; ZAMORA; M. H. N. O Brasil e a lógica racial: do branqueamento à produção de subjetividade do racismo. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 265-286, 2018. ). Percebeu-se que, embora seja considerada uma ocorrência do passado, seus aspectos se encontram refletidos, atualmente, por meio do racismo estrutural. Quanto a este último, compreende-se que se trata de um elemento incorporado na organização política e econômica da sociedade, uma manifestação tratada com normalidade, sem estranheza e reprovação, ainda que de modo velado ( ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. ).

Observou-se que, assim como ocorreu em países da América Latina, vizinhos ao Brasil, a identidade da sociedade brasileira foi construída a partir da negação de seus ancestrais e da adoção de uma identidade idealizada, conforme os ditames do homem branco europeu. Walsh (2012)WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. destaca que foi na América do Sul que a ambição de dominação do mundo e a imposição da modernidade e a colonialidade ganharam forma, prática e significado. O branqueamento físico e cultural funcionou e continua funcionando como um sistema estruturado em todos os níveis da sociedade, tratando-se, também, de um aspecto imposto pela colonialidade, a qual configurou um padrão de poder fundamentado na ideia de raça. A “colonialidade” foi um termo apresentado pelo sociólogo Anibal Quijano entre as décadas de 1980 e 1990 ( MIGNOLO, 2017 MIGNOLO, W. D. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, e329402, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 dez. 2023.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPr...
).

Segundo Quijano (1992)QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. , a colonialidade está presente na sociedade, visto que ainda existe certa relação de dominação pela cultura europeia, também denominada “ocidental”, para com as demais. A colonialidade, no que lhe concerne, trata-se de uma forma de perpetuação dos princípios do colonialismo, o qual consistiu em um movimento mais explícito de relação de dominação política, social e cultural dos europeus sobre os “conquistados” da África, da Ásia e da América Latina, encerrando-se com a independência desses continentes ( QUIJANO, 1992QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. ). Esse cenário mostra que, embora o colonialismo tenha sido eliminado, seus propósitos ainda atuam por meio da colonialidade, que também consiste no lado constitutivo e mais obscuro da modernidade ( MIGNOLO, 2017 MIGNOLO, W. D. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, e329402, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 dez. 2023.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPr...
).

Respaldado na dicotomia da modernidade entre civilizados e bárbaros, a colonialidade estabeleceu uma hierarquia em que os não indígenas e europeus são tratados como superiores e, portanto, figuram no topo do que se pode visualizar como pirâmide social. Os mestiços se encontram no meio dessa pirâmide, representando uma nova identidade, e os indígenas e negros encontram-se em degraus inferiores, representando uma categoria homogênea e subalterna ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ). Quijano (1992)QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. relata que, naquele momento, seguiram-se os padrões de expressão impostos pelos então dominantes, bem como as crenças e imagens, as quais serviram não só para impedir a produção cultural dos dominados, mas, também, como meio mais eficaz de controle social e cultural. Walsh (2009)WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. complementa destacando que foi esse padrão de dominação que instituiu um sistema de classificação social que estimulou a universalização do sistema capitalista, por meio da exploração do trabalho e da formação da sociedade nacional.

Nesse cenário, o indígena era visto como um ser submisso e infantilizado, mas possível de ser assimilado e aculturado. Logo, sua eliminação não se daria de maneira exclusivamente etnocida 1 1 O conceito de “etnocídio” tem sua origem na obra do antropólogo francês Robert Jaulin, notadamente em seu livro La paix blanche: introduction à l’ethnocide (1970) […] é um processo que visa a destruição sistemática do modo específico de vida (técnicas de subsistência e relações de produção, sistema de parentesco, organização comunitária, língua, costumes e tradições) de povos diferentes, sob estes aspectos, do povo, agência ou Estado que leva a cabo a empresa de destruição. Se o genocídio consiste na eliminação física deliberada de uma etnia, povo ou população, o etnocídio visa o “espírito” (a moral) de um povo, sua eliminação enquanto coletividade sociocultural diferenciada ( VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 2 ). , mas conforme uma ótica civilizatória ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ). Entretanto, percebeu-se que, em contrapartida, os povos das culturas tradicionais resistiram – e assim permanecem até o momento – a todas as imposições da matriz colonial. Ao contrário do que se pretendia, os povos originários não foram aculturados, pois a dinâmica sociocultural desses grupos permitiu que eles ressignificassem e utilizassem, de acordo com suas necessidades e interesses, tudo aquilo que estava a sua disposição, desafiando o suposto padrão de poder dos não indígenas, ao tempo em que perpetuavam sua cultura como dominante ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ).

Observou-se que a cultura é uma prática indissociável da temática indígena, pois é por meio dela que os grupos sociais organizam seu modo de ser. Nesse sentido, notou-se que a interculturalidade está intrinsecamente relacionada com a cultura, sendo, portanto, relevante destacar alguns aspectos a respeito desse conceito. A palavra cultura é originada do termo em latim colere , que, no sentido etimológico, significa “cultivar”, pois tinha relação com a agricultura. A definição dessa palavra não foi unânime entre os estudiosos, o que provocou uma longa discussão a respeito das múltiplas concepções nos últimos séculos.

Poutignat e Streiff-Fenart (2011)POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnocidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011. , mencionando as teorias de Frederik Barth, afirmam que a cultura é constantemente introduzida pelas experiências do indivíduo, por meio das quais se dá o aprendizado. Trata-se de uma variação contínua, algo distribuído por meio das relações pessoais, como resultado de suas experiências, estando em um fluxo constante e em mudança. “A cultura que cada pessoa está acumulando e vivendo está em constante reformulação, não apenas devido à sua expansão, mas também por ser limitada e canalizada” por três processos: processos de controle, silenciamento e apagamento das experiências ( POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 22POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnocidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011. ). Faz-se necessário entender que a cultura

[…] nomeia e distingue: a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se, essencialmente, como valores e significados – significados que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas

( SAHLINS, 1997, p. 41 SAHLINS, M. O “Pessimismo Sentimental” e a experiência etnográfica: porque cultura não é um “objeto” em via de extinção (Parte I). Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 41-73, 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/4xFgqqMPbXLHGc8xkfXBCVH/abstract/?lang=pt . Acesso 10 nov. 2021.
https://www.scielo.br/j/mana/a/4xFgqqMPb...
).

Esse entendimento corrobora com os postulados de Almeida ( 2015, p. 32ALMEIDA, G. G. F. A identidade territorial gaúcha no branding das marcas regionais: caso da marca da cerveja Polar. 2015. f. 175. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2015. ), ao descrever que

[…] a sociedade, ao produzir cultura, produz o próprio indivíduo novamente e assim sucessivamente através de suas representações sociais (hegemônicas e não hegemônicas) […] é um processo social que a partir de uma experiência vivenciada gera uma nova produção de sentidos e, assim continuamente.

Portanto, cultura é um processo de reprodução e modificação contínua que revela seu caráter dinâmico. Isso acontece porque os homens têm a capacidade de questionar os próprios padrões, além de se apropriar e ressignificar elementos externos, conforme seus interesses, sem modificar o eixo – essência – cultural. Laraia (2001)LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. afirma que entender essa dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos.

[…] homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado […] ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções

( LARAIA, 2001, p. 30LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ).

Em outras palavras, o homem produz e reproduz tudo aquilo que aprendeu com seus ancestrais. A existência de diferentes grupos culturais, bem como as continuidades e transformações provocadas pelo tempo, geraram diversos conflitos e enfrentamentos pelo mundo. Notou-se que, quando se trata da temática indígena, não é diferente; pelo contrário, a história demonstra que esse grupo social sofreu grande violência, em razão de suas diferenças culturais. Essas questões evidenciam a necessidade de diálogos que verifiquem e estabeleçam práticas sociais e políticas públicas contempladas pelo movimento da interculturalidade, o qual consiste em uma proposta de processo e projeto social, político, ético e epistêmico que visa abrir outros caminhos que confrontem a colonialidade ainda presente na sociedade e alcancem novas e diferentes posturas e condições, relações e estruturas ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ).

A diversidade cultural foi reconhecida no campo do multiculturalismo, que, segundo Hall (2003)HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. , é um termo utilizado universalmente que não pode ser confundido com o conceito de “multicultural”. Para o autor, enquanto o termo “multicultural” é qualitativo e descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados pela sociedade, em que diferentes grupos culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, o termo “multiculturalismo” é substantivo e diz respeito às estratégias e políticas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais ( HALL, 2003HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. ). Embora não se pretenda, aqui, aprofundar questões relacionadas ao multiculturalismo, salienta-se que essa vertente precedeu a interculturalidade e se originou nos Estados Unidos, em meados de 1960, em razão das mobilizações do movimento social afro-americano. Tratou-se de um movimento decorrente da luta pela superação das desigualdades étnicas e pela democratização das oportunidades de acesso ao ensino superior ( GAIVIZZO, 2014GAIVIZZO, S. B. O direito dos povos indígenas à educação superior na América Latina: concepções, controvérsias e propostas. 2014. f. 131. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2014. ).

Tendo em vista que somente identificar e conviver com uma cultura diferente nunca foi uma garantia de respeito e aceitação do “outro”, a perspectiva do multiculturalismo começou a receber críticas, as quais não estimularam as relações recíprocas de enriquecimento entre os sujeitos portadores de uma cultura distinta, pois permitia a consagração de determinada cultura como hegemônica ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ). A referida vertente teórica limitou-se a identificar a diversidade cultural como um fato dado, sem promover a potencialização das inter-relações abrangidas, posteriormente, pela interculturalidade ( SILVA, 2006SILVA, G. F. Culturas(s), currículo, diversidade: por uma proposição intercultural. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 6, n.1, p. 137-148, 2006. ).

A interculturalidade tem sido abordada na América Latina desde os anos 1980 nas discussões de políticas educativas promovidas pelos povos indígenas. Nos anos 1990, essa vertente passou a contemplar não somente as questões da educação, mas, também, a diversidade étnico-racial. Buscavam-se promover relações positivas entre diferentes culturas, enfrentar a discriminação, o racismo e a exclusão social para formar cidadãos conscientes que trabalhassem em conjunto para uma sociedade justa, equitativa e plural ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ). Astrain (2003)ASTRAIN, R. S. Ética intercultural e pensamento latino-americano. In: SIDEKUM, A. (org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 319-350. salientou que o prefixo “inter” se refere a uma interação positiva que visa eliminar a barreira existente entre os povos, as comunidades étnicas e os grupos humanos. Dessa forma, “[…] supõe-se, assim, que a busca de instâncias dialogais esteja enfocada na aceitação mútua e na colaboração entre as culturas que se entrecruzam” ( ASTRAIN, 2003, p. 327ASTRAIN, R. S. Ética intercultural e pensamento latino-americano. In: SIDEKUM, A. (org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 319-350. ).

Como conceito, projeto, prática e processo, a interculturalidade significa o contato e a troca entre as culturas. Entretanto, não se deve pensar nessa possibilidade apenas em termos étnicos, mas a partir do relacionamento permanente, de comunicação e aprendizado entre as pessoas, grupos, diferentes conhecimentos, valores, tradições, lógicas e racionalidades, visando orientar, gerar, construir e promover o respeito mútuo e o pleno desenvolvimento das capacidades de todos os indivíduos, independentemente dos grupos aos quais pertencem, acima de suas diferenças culturais e sociais ( WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. ). Segundo a autora, a interculturalidade não deve ser pensada como um substantivo, mas, sim, como verbo de ação, pois seu objetivo é agir nas estruturas institucionais, relações e mentalidades que reproduzem a diferença, como a desigualdade, permitindo, igualmente, a reconstrução das sociedades, estruturas, sistemas e processos nos campos educativo, social, político, jurídico e epistêmico, estabelecendo o encontro, o diálogo e a articulação entre seres e saberes, sentidos e práticas, lógicas e racionalidades diversas.

Astrain ( 2003, p. 327ASTRAIN, R. S. Ética intercultural e pensamento latino-americano. In: SIDEKUM, A. (org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 319-350. ) ressaltou que a interculturalidade “[…] alude a um tipo de sociedade emergente, em que as comunidades étnicas, os grupos e classes sociais se reconhecem em suas diferenças e buscam sua mútua compreensão e valorização” por meio de “instâncias dialogais”. Pozzer, Cecchetti e Díaz ( 2021, p. 576 POZZER, A.; CECCHETTI, E.; DÍAZ, J. M. H. Interculturalidade e imigração: impactos e desafios à educação. ETD – Educ. Temat. Digit, Campinas, v. 23, n. 3, p. 576-580, jul. 2021. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-25922021000300576&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 11 nov. 2022.
http://educa.fcc.org.br/scielo.php?scrip...
) destacam que “[…] as relações interculturais ocorrem em meio a tensões, conflitos e jogos de interesse, justamente porque se opõem a lógicas padronizantes do mundo contemporâneo, sustentadas pela modernidade capitalista que, em geral, oprime e nega a pluralidade e o diverso […]”. A proposta intercultural está voltada não somente aos grupos tradicionais, mas, também, à sociedade como um todo, na medida em que está designada a responder aos desafios de uma sociedade pluricultural, possibilitando a convivência humana. Cumpre salientar que, por se tratar de uma temática em voga, a interculturalidade tem sido aplicada em diversos contextos sociopolíticos, sendo alguns, inclusive, opostos a sua essência e a seu objetivo ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ). Assim, entende-se ser relevante apresentar o sentido da interculturalidade a partir de três perspectivas distintas.

A primeira delas trata da perspectiva relacional, que se refere ao intercâmbio entre culturas, práticas, saberes, valores e tradições culturais diferentes ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ). Essa perspectiva sempre existiu na América Latina, visto que são indiscutíveis o contato e o relacionamento entre os povos indígenas e afrodescendentes e a sociedade branco-mestiça. Os contatos e intercâmbios entre os diferentes povos e culturas são inegáveis e podem ser visualizados nos processos históricos e na contemporaneidade. Contudo, também são usados para justificar e negar o racismo e as diferenças de gêneros. Nesse sentido, a perspectiva relacional disfarça os contextos de poder e dominação contínua nas relações de interculturalidade. Igualmente, limita a vertente da interculturalidade ao contato e ao relacionamento, ocultando a estrutura social, política e econômica, que geralmente trata a diferença cultural como superior ou inferior.

A segunda perspectiva da interculturalidade é denominada funcional ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ), a qual reconhece a diversidade e a diferença cultural e tem a finalidade de incluir um grupo historicamente excluído dentro de uma estrutura social estabelecida. A vertente da interculturalidade funcional foi entendida como uma nova lógica multiculturalista, uma vez que não expõe as causas de assimetria, desigualdade social e cultural, limitando-se a “[…] promover uma tolerância à diversidade e aceitar a sua coexistência na sociedade, mas não o seu intercâmbio” ( GAIVIZZO, 2014, p. 77GAIVIZZO, S. B. O direito dos povos indígenas à educação superior na América Latina: concepções, controvérsias e propostas. 2014. f. 131. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2014. ). Segundo Walsh (2012)WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. , esse reconhecimento e respeito à diversidade cultural se refere a uma nova estratégia de dominação, cujo objetivo é o controle do conflito étnico e a preservação da estabilidade social, ao incluir na sociedade grupos historicamente invisibilizados.

A terceira perspectiva é chamada de interculturalidade crítica ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ), que não parte somente do pressuposto de tolerância e inclusão cultural – como é o caso da funcional –, mas do problema estrutural-colonial-racial que ainda está presente na sociedade. A interculturalidade crítica questiona e busca afastar os modelos de poder institucional-estrutural, bem como o padrão de racialização, que são responsáveis por promover a discriminação, a iniquidade e a desigualdade. Enquanto o interculturalismo funcional se restringe a responder aos interesses e necessidades das instituições sociais, a interculturalidade crítica é utilizada em favor dos povos que sofreram com o processo histórico e a subalternização a partir de reformas, de decolonizações sociais e da construção de outros mundos ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ).

A interculturalidade crítica tornou-se evidente no contexto equatoriano, em que é um projeto sustentado pelo movimento indígena, o qual vem pontuando e transformando as estruturas, instituições e relações coloniais. Essa mudança não contempla somente grupos indígenas, mas a sociedade como um todo. Salienta-se que a interculturalidade não tem como problema central somente a diversidade étnico-cultural, mas, também, a diferença estabelecida por um padrão de poder colonial que ainda permeia todas as esferas sociais em pleno século XXI. Trata-se de um projeto político, social, ético e epistêmico que não se baseia nos legados eurocêntricos e na concepção da modernidade, pois sua função é desconstruir as estruturas, condições e dispositivos de poder que alimentam as mazelas sociais, a subalternização dos povos, a inferiorização dos seres, saberes e modos, lógicas e racionalidades da vida, atuando diretamente na matriz da colonialidade ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ). Embora esta última esteja presente em todos os aspectos da vida contemporânea, ela pode ser mais bem compreendida a partir do destaque de quatro eixos interligados: eixo da colonialidade do poder, eixo da colonialidade do saber, eixo da colonialidade do ser e eixo da colonialidade cosmogônica da mãe natureza e da própria vida.

A colonialidade do poder, expressão cunhada por Quijano (1992)QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. , tem sua origem na discussão se os indígenas tinham alma ou não, referindo-se à classificação da população mundial de acordo com a ideia de raça, como critério para distribuição, dominação, exploração e controle geral do trabalho em torno do capital econômico. Este eixo está fundado na identificação da raça, uma suposta estrutura biológica que, naturalmente, coloca o sujeito em uma situação de inferioridade em relação aos outros, evidenciando a formação de uma divisão de identidade hierárquica que posiciona os brancos europeus, seguidos dos mestiços e, finalmente, dos indígenas e negros ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ).

A ideia de raça abordada pela colonialidade do poder facilitou as relações de dominação impostas pela conquista na América, e a Europa ganhou uma nova identidade, pois começou a propagar o colonialismo pelo resto do mundo, o que provocou a perspectiva eurocêntrica do conhecimento e a naturalização das relações coloniais de dominação entre europeus e não europeus. A ideia de racialização colocou os povos conquistados e dominados numa situação natural de inferioridade e, consequentemente, também seus traços fenotípicos, descobertas mentais e culturais ( QUIJANO, 2007QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasifi cación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, p. 93-126. ).

Antes de adentrar o segundo eixo – colonialidade do saber –, faz-se relevante tratar dos conceitos de etnocentrismo, sociocentrismo e eurocentrismo, visto que estes são abordados pela interculturalidade. De acordo com Restrepo e Rojas (2010)RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamiento. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2010. , o etnocentrismo ocorre quando o indivíduo considera que seus saberes, seu modo de vida e as perspectivas associadas a sua própria formação cultural são superiores aos de outras formações culturais. O sociocentrismo representa uma desqualificação e uma rejeição da cultura de grupos sociais diferentes daqueles aos quais o sujeito pertence. Em ambos os conceitos, tanto a diferença cultural quanto a social são motivos de inferioridade. Os autores afirmam que o eurocentrismo é a união do etnocentrismo e do sociocentrismo europeu, o qual se impôs como um padrão universal de história, política, estética, modo de existência e, especialmente, saberes.

Destarte, pode-se afirmar que o eixo da colonialidade do saber se refere à função da epistemologia e às tarefas da produção de conhecimento na reprodução de regimes do pensamento colonial ( MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 127-168. ). Walsh (2012)WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. salienta que se trata de um posicionamento eurocêntrico e que, mesmo com a ordem exclusiva da razão, do conhecimento e do pensamento, visa descartar a existência e a viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e outros conhecimentos que não sejam os dos homens brancos europeus ou europeizados. A colonialidade do saber pode ser “[…] entendida como a repressão de outras formas de produção de conhecimento […], elevando uma perspectiva eurocêntrica do conhecimento e negando o legado intelectual dos indígenas e negros, reduzindo-os como primitivos da categoria básica e natural de raça” ( WALSH, 2009, p. 130WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009. , tradução livre). Nesse sentido, esse eixo “[…] pode ser considerado como a dimensão epistêmica da colonialidade de poder e, portanto, é um aspecto constitutivo da colonialidade” ( RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 136RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamiento. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2010. ).

A colonialidade do saber é uma arrogância epistêmica daqueles que se imaginam modernos e se consideram possuidores dos meios mais adequados para produzir conhecimento e, em vista disso, acreditam que podem manipular o mundo de acordo com os próprios interesses ( RESTREPO; ROJAS, 2010RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamiento. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2010. ). Para Colaço e Damázio ( 2018, p. 131COLAÇO, T. L.; DAMÁZIO, E. S. P. Antropologia Jurídica: uma perspectiva decolonial para a América Latina. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2018. ), “[…] é impossível, portanto, mudar as relações de poder sem colocar em questão a relação de conhecimento que continua a vigorar nos dias atuais, estabelecendo a diferença colonial, mesmo que disfarçada por discursos que, supostamente, reconhecem os saberes locais”.

O terceiro eixo é a colonialidade do ser, que surge a partir de diálogos acerca das implicações da colonialidade do poder em diferentes áreas da sociedade, bem como da necessidade de elucidar questões sobre a colonialidade em experiência vivida pelos indivíduos, conectando os aspectos genético, existencial e histórico ( MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 127-168. ). A invisibilidade e a desumanização dos sujeitos subalternos são situações naturalizadas pela colonialidade do ser, tendo Walsh (2012)WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. destacado que o valor humano desses grupos é marcado por suas cores e raízes ancestrais.

O quarto e último eixo, denominado colonialidade cosmogônica da mãe natureza e da própria vida, ainda não foi muito explorado. Todavia, entende-se relevante discorrer a seu respeito, uma vez que atravessa a cultura temática indígena, especialmente, a dos Kaingang. O referido eixo se destaca na divisão binária entre natureza e sociedade, descartando as cosmologias de povos nativos, tradicionais e relações entre os mundos humanos e espirituais (espíritos, deuses, orixás) que estão presentes e dão suporte ao modo de vida desses grupos ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ). Segundo Walsh ( 2012, p. 68WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ), “[…] a mãe natureza – a mãe de todos os seres – é aquela que estabelece e dá ordem e sentido ao universo e à vida, entrelaçando saberes, territórios, história, corpo, mente, espiritualidade e existência dentro de um quadro cosmológico, de coexistência relacional e complementar 2 2 La madre naturaleza – la madre de todos los seres – es la que establece y da orden y sentido al universo y la vida, entretejiendo conocimientos, territorio, historia, cuerpo, mente, espiritualidad y existencia dentro de un marco cosmológico, relacional y complementario de convivencia ( WALSH, 2012, p. 68 ). ”. A autora enfatiza, ainda, que esse eixo da matriz colonial busca acabar com os grupos que têm essa concepção com vistas a explorar e controlar a natureza, evidenciando o poder do indivíduo moderno civilizado.

Percebeu-se que, no diálogo da interculturalidade, as práticas sociais se apresentam como um aspecto importante a ser discutido, pois ao tempo que as culturas se encontram, as práticas sociais também se deparam e interagem entre si. Por sua vez, as políticas públicas surgem como uma das ferramentas para a efetivação do discurso da interculturalidade, ou seja, para abordar essa vertente se faz necessário apresentar as particularidades das práticas sociais e políticas públicas.

A prática social refere-se ao modo como a sociedade se organiza e se estrutura, consistindo em um conjunto de ações, tarefas, funções e modos de ser e viver que conduzem a vida dos indivíduos. Trata-se de uma prática integrada à interculturalidade, uma vez que se baseia nas relações e interações sociais e culturais. Marx (1982[1845]) MARX, K. Teses sobre Feuerbach. [1845]. In: BARATA-MOURA, J. et al. Obras escolhidas. Tomo I. Tradução: Alvaro Pina. Lisboa: Avante, 1982. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
https://www.marxists.org/portugues/marx/...
, na oitava das 11 Teses sobre Feuerbach, expôs o conceito de prática social ao descrever que “[…] a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na praxe humana e no compreender desta praxe”. As comunidades tradicionais têm formas de organização, relações, religiões, entre outros aspectos, diferentes daquelas dos não indígenas ( BRANDÃO, 1986BRANDÃO, C. R. Identidade e etnia: a construção da pessoa e a resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986. ). Até mesmo quando se transita por comunidades da mesma etnia é possível identificar que as práticas sociais são diferentes entre si. Pensar a interculturalidade como prática social contribui para o diálogo e o fortalecimento das relações positivas entre os diferentes grupos culturais, além da conscientização crítica e da transformação da sociedade, que permanece disseminando a discriminação, o racismo e a exclusão ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ).

Ademais, as políticas públicas se tornam relevantes com o passar do tempo para a garantia de direitos, a manutenção da harmonia social e amelhoria da qualidade de vida, refletindo em todos os âmbitos da vida dos indivíduos, tais como saúde, moradia, educação, dignidade da pessoa humana, cultura etc. Holanda (2015)HOLANDA, F. C. C. Interculturalidade e políticas públicas: desafios da educação escolar na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 2015. f. 167. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015. salienta que as políticas públicas se apresentam como algo complexo que se materializa na figura de programas, ações e projetos que concretizam os princípios constitucionais da isonomia, estimulando transformações culturais e sociais, bem como atacando as discriminações existentes na sociedade. Trata-se de demandas promovidas pelo poder público em conjunto com a sociedade privada, cujo objetivo é facilitar as discussões e concretizar direitos fundamentais ( MUNHÓS; AGUILERA URQUIZA, 2021MUNHÓS, L. V. A.; AGUILERA URQUIZA, A. H. Direitos culturais fundamentais dos povos indígenas: do multiculturalismo à interculturalidade. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 16, n. 40, p. 69-84, 2021. ).

Walsh (2012)WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. destaca que a interculturalidade está presente nas políticas públicas, reformas educacionais e constitucionais, sendo um aspecto importante tanto na esfera nacional-institucional quanto na intertransnacional e de cooperação. A interculturalidade enquanto política pública é um efeito das lutas de movimentos sociopolítico-ancestrais, decorrentes de suas demandas por reconhecimento de direitos fundamentais e transformação social ( WALSH, 2012WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ). Nesse sentido, pode-se considerar que as políticas públicas se apresentam como um meio que permite a aplicação da vertente intercultural.

2 Comunidade Jamã Tÿ Tãnh da etnia Kaingang

Os indígenas Kaingang representam um grupo étnico composto de 39 mil pessoas, aproximadamente, pertencente ao tronco linguístico Jê, da família linguística Macro Jê ( IBGE, 2010 IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Características gerais dos indígenas: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf . Acesso em: 20 out. 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
). No estado do Rio Grande do Sul, os Kaingang ocupam áreas localizadas às margens das bacias hidrográficas do rio Jacuí até as margens do rio Uruguai ( LAROQUE, 2013LAROQUE, L. F. S.; SILVA, J. B. S. Ambiente e cultura Kaingang: saúde e educação na pauta das lutas e conquistas dos Kaingang de uma Terra Indígena. Educação em Revista. Belo Horizonte. v. 29, n. 02, p. 253-275, jun. 2013. ). Mota (2004) relata que o termo “Kaingang” inicialmente foi utilizado pelo engenheiro Franz Keller, em 1867, e pelo sertanista Telêmaco Borba, em 1882.

Segundo Tommasino (2000), a denominação Kaingang significa “povo do mato”, cuja identificação alude à noção de meio ambiente que também constitui a identidade desse grupo, considerando que seus integrantes mantêm uma forte ligação com a natureza e com o local onde vivem ( ASSMANN; LAROQUE; MAGALHÃES, 2021ASSMANN, B. F; LAROQUE, L. F. S; MAGALHÃES, M. L. Saúde indígena em tempos de pandemia: relações de respeito às especifidades culturais dos indígenas Kaingang no campo da saúde. Destaques Acadêmicos, Lajeado, v. 13, n. 3, p. 281-297, 2021. ). De acordo com Tommasino (2000), a terra e a natureza representam para os Kaingang sua “Grande mãe”, pois se trata do lugar onde reproduzem suas práticas socioculturais e que viabiliza os elementos necessários a sua subsistência.

A comunidade Jamã Tÿ Tãnh está localizada às margens da Rodovia Federal BR-386, em Estrela/RS, também município do Vale do Taquari. Seu nome pode ser traduzido como “os coqueiros também vivem ali” ou “nós e os coqueiros”. O Vale do Taquari é formado por 36 municípios, estando localizado na porção centro-leste do Rio Grande do Sul. Foi preponderantemente colonizado por imigrantes descendentes de alemães e italianos, entretanto, tem uma forte ancestralidade ligada aos indígenas que viviam no território. Na atualidade, além da comunidade da Jamã Tÿ Tãnh , também é composto de outras três aldeias da etnia Kaingaing, sendo elas a Comunidade Fosá , em Lajeado, a Comunidade Tãnh Mág , em Cruzeiro do Sul, e a Comunidade Pó Mág , em Tabaí.

A Jamã Tÿ Tãnh é constituída a partir dos descendentes do Sr. Manoel Soares, ex-morador do município de Santa Cruz do Sul, que iniciou seu movimento migratório em meados da década de 1960, visto que tinha raízes nos territórios da bacia hidrográfica Taquari-Antas ( SCHWINGEL; LAROQUE; PILGER, 2014SCHWINGEL, K.; LAROQUE, L. F. S.; PILGER, M. I. Jamã Tý Tãnh. Ig Vênh vêj Kaingag: Morada do Coqueiro – jeito de viver Kaingang. São Leopoldo: Oikos, 2014. ), e os Kaingang têm o costume de transitar pelos territórios de seus antepassados. Em um primeiro momento, os moradores se estabeleceram nas proximidades do trevo de acesso a Bom Retiro do Sul. Posteriormente, instalaram-se na “aldeia velha”, localizada a dois quilômetros desse local, onde permaneceram por 40 anos. No ano de 1990, o Sr. Manoel Soares faleceu, e quem assumiu a liderança da comunidade foi sua filha, Maria Antônia Soares, mulher indígena que viria a ser respeitada pela forte atuação à frente da comunidade estrelense e por causa da luta pelo reconhecimento dos direitos indigenistas ( SILVA, 2016SILVA, J. B. S. “Eles viram que o índio tem poder, né!”: o protagonismo kaingang da Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh/Estrela diante do avanço desenvolvimentista de uma frente pioneira. 2016. 256 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2016. ). Desde então, o círculo de lideranças da comunidade Jamã Tÿ Tãnh tem sido protagonizado por mulheres, algo não muito comum na cultura Kaingang.

No ano de 2002, ações da Cacique Maria Antônia e suas irmãs, Indígena, Maria Sandra e Maria Conceição, fizeram que o grupo fosse reconhecido como sendo da etnia Kaingang, o que permitiu a fundação de uma escola junto à Secretaria Estadual de Educação, por meio do Decreto n . 41.700/2002, sendo chamada de Escola zIndígena Manoel Soares ( SILVA, 2016SILVA, J. B. S. “Eles viram que o índio tem poder, né!”: o protagonismo kaingang da Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh/Estrela diante do avanço desenvolvimentista de uma frente pioneira. 2016. 256 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2016. ). Todavia, somente dois anos depois ocorreu a regularização da escola junto ao Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, por meio do Parecer n. 447/2004, passando a ser nomeada Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares ( LAROQUE; SILVA, 2013LAROQUE, L. F. S.; SILVA, J. B. S. Ambiente e cultura Kaingang: saúde e educação na pauta das lutas e conquistas dos Kaingang de uma Terra Indígena. Educação em Revista. Belo Horizonte. v. 29, n. 02, p. 253-275, jun. 2013. ).

No ano de 2005, o projeto de duplicação da BR-386 passou a impactar diretamente a comunidade local da Jamã Tÿ Tãnh . Em 2008, alguns técnicos começaram os trabalhos a partir do estudo do impacto ambiental, o qual, após aprovação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), concedeu a licença permitindo o início da obra. No ano de 2009, a FUNAI passou a intermediar o processo e, em 2010, foi publicado o Programa de Apoio às Comunidades Kaingang, que considerou as áreas da Jamã Tÿ Tãnh e da Fosá áreas de influência direta ( PRESTES, 2018PRESTES, F. S. O bem viver Kaingang: as conexões entre os princípios da teoria do buen vivir e os saberes tradicionais que orientam o seu modo de ser. 2018. f. 279. Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2018. ).

A atual área da Jamã Tÿ Tãnh foi concedida em razão das medidas compensatórias de responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). Em 2014 foi iniciada a construção da aldeia, cuja conclusão se deu em meados de 2015 ( PRESTES, 2018PRESTES, F. S. O bem viver Kaingang: as conexões entre os princípios da teoria do buen vivir e os saberes tradicionais que orientam o seu modo de ser. 2018. f. 279. Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2018. ). O local é constituído por moradias, escola, centro cultural e um quiosque utilizado para a venda de artesanatos, sendo uma das fontes de renda da comunidade ( SILVA, 2020SILVA, J. B. S. Trajetória indígena e Trajetórias de vida: a agência do feminino na relação com os territórios, corpos e pessoas Kaingang. 2020. f. 313. Tese (Doutorado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2020. ). Atualmente a liderança é representada nas pessoas de Márcia Soares Silva e Taiane Soares Silva, cacique e vice-cacique, respectivamente ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ).

3 Relatos de experiências da comunidade Jamã Tÿ Tãnh com os direitos da previdência social

Promulgada em 5 de outubro de 1988, a CRFB instituiu o Estado Democrático de Direito e previu, em seu preâmbulo, a garantia de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. A Carta Magna foi promulgada com base nos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias ( BRASIL, 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
). Foi a Constituição de 1988 que inovou e garantiu aos indígenas seus principais direitos previstos nos arts. 215, 231 e 232.

A seção III dos arts. 201 e 202 dirige-se aos direitos relacionados à Previdência Social, tratando-se de um dos ramos da Seguridade Social, prevista no art. 194 da CRFB. Frisa-se que, além de assegurar direitos fundamentais relacionados aos indígenas e à Previdência Social, a Carta Magna também rompeu com a interpretação posta no Estatuto do Índio, em 1973, de que o indígena deveria ser incorporado à sociedade não indígena. O referido Estatuto permanece vigente, portanto, é importante ressaltar o cuidado ao utilizá-lo, pois, equivocadamente, trata o indígena como um sujeito a ser “aculturado”. Assim, utilizam-se isoladamente neste estudo os arts. 14 e 55 do referido Estatuto, que asseguram o direito à Previdência Social aos grupos indígenas.

Atualmente, entre as principais legislações previdenciárias, encontram-se a Lei n. 8.212/91, que trata do plano de custeio da Seguridade Social, a Lei n. 8.213/91, a qual aborda os benefícios previdenciários por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente ( BRASIL, 1991a BRASIL. Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14801, 25 jul. 1991a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, 1991b BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), e o Decreto n. 3.048/99 BRASIL. Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o regulamento da previdência social, e dá outras providências. Diário Oficial de União: seção 1, Brasília, DF, p. 50, 7 maio 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
. Cumpre salientar a modificação mais recente dos direitos previdenciários, qual seja, a EC n. 103, de 2019, mais conhecida como Reforma da Previdência Social, que restringiu ainda mais o acesso aos direitos. Outrossim, é relevante mencionar a Convenção n. 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

A Convenção trata especificamente da Previdência Social na parte “V – Seguridade Social e Saúde”, arts. 24 e 25 ( BRASIL, 2004 BRASIL. Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. Diário Oficial de União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 20 abr. 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm . Acesso em: 21 out. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_a...
). Os dispositivos descrevem que os regimes de seguridade social deverão ser estendidos e aplicados aos povos indígenas sem qualquer discriminação, bem como que sejam proporcionados às comunidades serviços de saúde adequados ( BRASIL, 2019 BRASIL. [Constituição (1988)]. Emenda Constitucional n. 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 13 nov. 2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2019/emendaconstitucional-103-12-novembro-2019-789412-publicacaooriginal-159409-pl.html . Acesso em: 2 ago. 2022.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/eme...
). Na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de setembro de 2007, a respeito da Previdência Social, o art. 21 prevê que “[…] os povos indígenas têm direito, sem qualquer discriminação, à melhora de suas condições econômicas e sociais, especialmente, nas áreas da educação, emprego, capacitação e reconversão profissionais, habitação, saneamento, saúde e seguridade social” ( ONU, 2008ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008. ).

O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) conta com os benefícios de aposentadorias programáveis, os benefícios por incapacidade e aqueles de proteção à família e à maternidade. São benefícios de aposentadoria programáveis a aposentadoria programada, a aposentadoria por idade urbana e rural, a aposentadoria por tempo de contribuição, a aposentadoria do professor, a aposentadoria especial e a aposentadoria do segurado com deficiência. Consistem em benefícios por incapacidade o auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença), a aposentadoria por incapacidade permanente (antiga aposentadoria por invalidez) e o auxílio-acidente. Por fim, os benefícios de proteção à família e à maternidade incluem a pensão por morte, o auxílio-reclusão, o salário-maternidade e o salário-família.

Para ter acesso aos benefícios da Previdência Social, o indivíduo deve ser segurado – seja obrigatório ou facultativo – ou dependente (isto é, aquele que depende do segurado). Para Horvath Júnior ( 2011, p. 26HORVATH JÚNIOR, M. Direito Previdenciário. Barueri: Manole, 2011. ), os “[…] segurados obrigatórios são aqueles que, por determinação legal ( ex lege ), vinculam-se à Previdência Social pelo fato de exercerem alguma atividade remunerada de natureza urbana ou rural, em caráter efetivo ou de forma eventual”. De acordo com o art. 11 da Lei n. 8.213/1991, são segurados obrigatórios os empregados, empregados domésticos, avulsos, contribuintes individuais e segurados especiais, sendo que os indígenas podem ser enquadrados em qualquer uma dessas espécies ( BRASIL, 1991b BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

A Instrução Normativa (IN) 3 3 A Instrução Normativa é uma norma administrativa estabelecida e utilizada pelo INSS e, portanto, o âmbito judicial poderá ter entendimento diverso. n. 77/2015, do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), determinou, em seu art. 39, V, § 4º, que o indígena se enquadrava como segurado especial, como artesão ( INSS, 2015 INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 77, de 21 de janeiro de 2015. Estabelece rotinas para agilizar e uniformizar reconhecimento de direitos dos segurados e beneficiários da Previdência Social, com observância dos princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 15, p. 32, 22 jan. 2015. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/32120879/do1-2015-01-22-instrucao-normativa-n-77-de-21-de-janeiro-de-2015-32120750 . Acesso em: 24 nov. 2022.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
). A referida IN foi substituída pela IN 128/2022 que ratificou esse direito (art. 109 V, § 4º) ( INSS, 2022 INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 128, de 29 de março de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 60, p. 132, 29 mar. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 . Acesso em: 21 out. 2022.
https://www.in.gov.br/web/dou/-/instruca...
). Além disso, a IN apresenta outros direitos e deveres relacionados à Previdência Social e aos indígenas. Entre eles, pode-se mencionar o art. 8º, VII, §§ 4º e 5º, os quais determinam que, se o indígena não conseguir emitir o número do NIT em razão da falta de certidão de registro civil, o INSS deverá comunicar tal fato à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que orientará e ajudará o indígena sem registro civil a obter o documento. Além disso, o INSS não utilizará, para fins de concessão de benefícios previdenciários e assistenciais, os registros administrativos de nascimento e óbito fornecidos pela FUNAI em caso de ausência da certidão de registro civil ( INSS, 2022 INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 128, de 29 de março de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 60, p. 132, 29 mar. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 . Acesso em: 21 out. 2022.
https://www.in.gov.br/web/dou/-/instruca...
).

A IN ainda prevê que, em se tratando de segurado indígena não certificado pela FUNAI ou de não indígena cônjuge e companheiro, ainda que exerça suas atividades em terras indígenas, a comprovação das atividades na condição de segurado especial será por meio de certidão fornecida pela FUNAI, certificando a condição de indígena como trabalhador rural, nos termos do art. 109, V, § 5º, e do art. 116, X, da IN 128/2022. Essa certidão poderá ser emitida de maneira física ou digital pela FUNAI, devendo conter a identificação da entidade e do emitente da declaração, estando sujeita a homologação do INSS, conforme art. 116, § 6º ( INSS, 2022 INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 128, de 29 de março de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 60, p. 132, 29 mar. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 . Acesso em: 21 out. 2022.
https://www.in.gov.br/web/dou/-/instruca...
).

Em 20 de agosto de 2021, quando as intenções dos pesquisadores foram apresentadas às lideranças da Jamã Tÿ Tãnh , a vice-cacique explicou que a FUNAI auxilia com os pedidos dos benefícios previdenciários, mas que geralmente ocorre muita confusão na análise dos benefícios. A indígena destacou que eles são enquadrados como trabalhadores rurais em virtude da produção de artesanato, relatando que encontram muitas dificuldades ao ter de comprovar que desenvolvem as atividades exigidas para se enquadrarem como segurados especiais (rural, artesanato etc.). Revelou que os Registros Civis dos não indígenas, muitas vezes, informavam na certidão de nascimento a condição de indígena e que, considerando que muitos indígenas não têm o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), o processo administrativo se torna ainda mais burocrático ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ).

Durante outra entrevista com indígenas da Jamã Tÿ Tãnh no dia 18 de junho de 2022, os pesquisadores abordaram novamente este assunto com vistas a ratificar as informações coletadas por meio de diário de campo no dia 20 de agosto de 2021. Portanto, a respeito do impacto do registro civil na concessão de benefícios da Previdência Social, as indígenas relataram o seguinte:

Pesquisadores: […] E me diz uma coisa, teve um dia que eu vim aqui Indígena B, acho que você deve se lembrar, ãh… tu comentou que às vezes dá divergência de documentos por causa da certidão de nascimento que às vezes não está o escrito indígena como é que funciona isso assim? Não lembra? Que a gente estava ali acho que foi no mesmo dia que eu vim com a Juciane, que as vezes dá divergência de documentação porque no registro de nascimento não tem às vezes o indígena e vai no INSS e não… como é que funciona isso? Não sei se tu lembra dessa afirmação, né…

Indígena A: Quando eles pedem, Danda, a tua raça, daí quando a criança nasce muitos não botam indígena. Acho que é nesse sentido que ela quer dizer. Daí lá não tem como afirmar que é índio, né?

Pesquisadores: Isso, é mais ou menos isso que a senhora comentou aquela vez pra mim, eu só queria registrar de novo isso.

Indígena B: Sim.

Pesquisadores: Mas já aconteceu algum caso?

Indígena B: Está acontecendo ainda. Agora eles pediram no caso que o INSS tá exigindo agora no caso quando a mãe vai ganhar o neném, né? Aqui dentro da aldeia, já tem que avisar que no caso que é indígena e que é da aldeia.

Indígena A: Daí no papel amarelo eles botam raça indígena e tem que tá indígena, não pode ser pardo.

Pesquisadores: Que papel é esse amarelo?

Indígena A: É o papel quando a criança nasce.

Pesquisadores: A certidão de nascimento?

Indígena B: Não, que tem que fazer o registro.

Indígena A: Que faz o registro.

Indígena B: É um papel amarelo que eles dão.

Indígena A: Eles dão no hospital quando a criança nasce, com os dados dos pais e da criança.

Pesquisadores: ah, entendi.

Indígena B: E da onde mora, se é área rural ou se é ou se é de aldeia.

Pesquisadores: Ali nesse papel tem que ter que é indígena.

Indígena B: Esse sim, daí tu manda daí faz, tu leva lá pra FUNAI, a FUNAI pede, agora não leva mais, agora manda tudo lá por negócio lá…

Indígena A: Computador.

Indígena B: É, computador. E daí ali eles já vejam que não tem aquilo ali que o hospital não colocou. Só se a gente agora a gente tem que avisar e pedir quando vai ganhar o neném já tem que avisar ó sou de aldeia e sou indígena.

Pesquisadores: Mas isso dá depois algum problema pra o auxílio maternidade?

Indígena A: É, né? Acaba negando que daí a FUNAI faz o papel como indígena e na certidão não tá, tá outra raça no caso

( ENTREVISTA..., 2022, p. 4ENTREVISTA 18.06.2022. Coletivo indígena Jamã Tÿ Tãnh. Entrevistadora: Débora Pires Medeiros da Silva. Estrela (RS): 2022. Gravação por voz. Acervo do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang e Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas. Lajeado: Univates, 2022. ).

Freitas (2016)FREITAS, E. M. N. A seguridade social dos indígenas brasileiros à luz dos direitos humanos e fundamentais. 2016. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. salienta que, em diversos casos, a certidão emitida pela FUNAI – acredita-se que o autor se refere ao atual Ofício Circular n. 46 (Autodeclaração do Segurado Especial – Rural), documento hábil para comprovar a qualidade de segurado especial – não é o suficiente, haja vista que, durante o cruzamento de dados, ocorrem divergências em seu preenchimento, além de muitos indígenas acabarem laborando por curtos períodos em empresas, o que descaracteriza a atividade especial.

Os benefícios por incapacidade, tais como auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença), aposentadoria por incapacidade permanente (antiga aposentadoria por invalidez) e auxílio-acidente, são devidos a todos os segurados da Previdência Social que, por algum motivo, se encontram incapacitados permanente ou temporariamente para as atividades laborais, ou, ainda, àqueles que apresentam alguma redução da capacidade laborativa devida a algum acidente, seja de natureza comum ou do trabalho.

Durante as incursões a campo na Jamã Tÿ Tãnh , os pesquisadores não dialogaram com indígenas que requereram benefícios por incapacidade. Sobre experiências com os benefícios de aposentadorias programáveis, os pesquisadores conversaram somente com um interlocutor indígena que havia se aposentado recentemente. Apesar de ter sido uma breve conversa, o interlocutor relatou que se aposentou com o auxílio da FUNAI, sendo seu benefício implementado após três meses do requerimento. Entendeu-se que, em sua experiência com o INSS, o interlocutor não enfrentou muitos obstáculos, pois, geralmente, os pedidos de aposentadoria podem levar anos, a depender da situação, e, no caso dele, demorou somente três meses, o que representa, além de uma exceção, um tempo razoável para análise e concessão de um benefício como este ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ).

Os benefícios de proteção à família e à maternidade consistem no salário-maternidade, no salário-família, na pensão por morte e no auxílio-reclusão. O salário-maternidade está previsto no art. 71 e seguintes, e será concedido à segurada “[…] durante 120 dias, com início no período entre 28 dias antes do parto e a data de ocorrência deste” ( BRASIL, 1991b BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Não há carência mínima, bastando a manutenção da qualidade de segurada da empregada, da trabalhadora avulsa e da empregada doméstica ( CASTRO; LAZZARI, 2022CASTRO, C. A. P.; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. ). A experiência com o acesso aos benefícios da Previdência Social é mais evidente em relatos de mulheres da Jamã Tÿ Tãnh , justamente porque a maioria das mães receberam o benefício de salário-maternidade ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022aDIÁRIO DE CAMPO de 18.06.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 18 jun. 2022a. 1 p. ).

A respeito de experiências com o benefício de salário-maternidade, no dia 20 de agosto de 2021 as lideranças responderam que seus benefícios foram deferidos sem muitos problemas, tendo contado, à época, com o auxílio da FUNAI. Quando perguntadas sobre a demora para o recebimento, um indígena agente de saúde que estava presente na roda de conversa interrompeu informando que normalmente o INSS leva até quatro meses para implementar o benefício de salário-maternidade. A vice-cacique complementou informando que um número considerável de indígenas não encaminha o salário-maternidade logo após o parto de seus bebês e, com o decorrer do tempo, perdem o direito de receber o benefício. A liderança afirmou que o prazo para encaminhar o salário-maternidade é de cinco anos. A cacique interferiu e relatou que teve conhecimento de que o prazo mudaria para um ano ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ).

Com o intuito de conscientização, os pesquisadores informaram que o prazo é de cinco anos, pois se trata do prazo prescricional. Nesse sentido, observou-se que as lideranças se referem à prescrição para a concessão do salário-maternidade, e a informação da vice-cacique convergia com a legislação, mais especificamente no art. 103, parágrafo único, da Lei n. 8.213/1991, que prevê o seguinte: “[…] prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes […]” ( BRASIL, 1991b BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Ainda no dia 20 de agosto de 2021, em um breve diálogo com uma indígena que estava em frente a sua casa, com seu bebê de apenas 1 mês, quando questionada, esta respondeu que havia encaminhado seu salário-maternidade por intermédio da FUNAI, mas ainda não estava recebendo o benefício, pois a implementação deste demora em torno de três meses, o que ratifica a informação prestada anteriormente pelo indígena agente de saúde ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ).

Com relação aos dependentes dos segurados, estes recebem o benefício de pensão por morte, nos termos do art. 74 e seguintes da Lei n. 8.213/991 e do art. 201, V, da CRFB, sendo pago aos dependentes do segurado. Os requisitos para concessão da pensão por morte são: (a) óbito do segurado; (b) qualidade de dependente do falecido; (c) existência de beneficiários; e (d) 18 contribuições mensais e no mínimo dois anos após o início do casamento ou união estável ( BRASIL, 1991b BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Entre as principais inovações (restrições) trazidas pela EC n. 103/2019 no que tange à pensão por morte, menciona-se o fato de o valor do benefício corresponder a uma cota familiar de 50% do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de dez pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100%. Igualmente, determinou que, em caso de cumulação do benefício de pensão por morte e aposentadoria concedida no âmbito do RGPS ou de RPPS, será assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente, de acordo com as seguintes faixas: 60% do valor que exceder um salário-mínimo, até o limite de dois salários-mínimos; 40% do valor que exceder dois salários-mínimos, até o limite de três salários-mínimos; 20% do valor que exceder três salários-mínimos, até o limite de quatro salários-mínimos; e 10% do valor que exceder quatro salários-mínimos 4 4 Exemplificando: uma pessoa que recebe três salários-mínimos de aposentadoria, ao receber uma pensão por morte, deverá escolher qual o mais vantajoso para receber integralmente, sendo que o segundo benefício receberia somente 40%, tendo em vista que o mais vantajoso, conforme o exemplo, é no valor entre dois a três salários-mínimos. O percentual de redução do segundo benefício dependerá do valor recebido pelo benefício mais vantajoso. ( BRASIL, 2019 BRASIL. [Constituição (1988)]. Emenda Constitucional n. 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 13 nov. 2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2019/emendaconstitucional-103-12-novembro-2019-789412-publicacaooriginal-159409-pl.html . Acesso em: 2 ago. 2022.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/eme...
).

Durante a saída de campo do dia 18 de junho de 2022, uma das lideranças relatou que, quando da morte do patriarca da comunidade, Sr. Manoel Soares, em 1990, os documentos para encaminhamentos de uma indenização foram entregues a uma pessoa que compareceu à comunidade. Os indígenas não se lembravam do nome do indivíduo. Na ocasião, quem cuidava da questão era Maria Antônia, que também veio a falecer posteriormente. Certa vez, esse indivíduo visitou a comunidade e entregou alguns valores, e desde então não houve mais notícias. As lideranças questionaram os pesquisadores se havia como verificar a existência ou não de requerimento de pensão por morte em nome de sua mãe, viúva do Sr. Manoel ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022aDIÁRIO DE CAMPO de 18.06.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 18 jun. 2022a. 1 p. ). Os pesquisadores responderam que poderiam verificar. Após buscas nos sites do Tribunal de Justiça, da Justiça Federal e do INSS, os pesquisadores nada encontraram, tanto no âmbito administrativo como no judicial.

Assim, a saída de campo do dia 29 de julho de 2022 teve como objetivo dar um retorno às lideranças sobre a referida demanda. Na oportunidade, os pesquisadores explicaram como procederam para verificar a possibilidade de requerer uma pensão por morte para a indígena viúva do patriarca da comunidade, explicando o seguinte para todos:

Que Maria Conceição informou o número de CPF de dona Lídia para a voluntária acessar seu cadastro no INSS. Que tentou acesso ao cadastro do “Meu Inss” de dona Lídia, mas que não conseguiu acessar porque havia senha cadastrada. Que por meio de mensagens de WhatsApp explicou a Maria Conceição que precisava verificar na plataforma se já havia pedido de pensão por morte e, caso positivo, quais eram os desdobramentos. Que Maria Conceição informou que não tinha a senha e nem suas irmãs. Que a voluntária solicitou que Maria Conceição enviasse uma foto de dona Lídia segurando seu documento de identificação e o uma foto do próprio documento para enviar ao INSS a solicitação de uma nova senha. Que Maria Conceição assim o fez. Que o INSS enviou nova senha conforme o solicitado. Que Débora conseguiu acessar a plataforma do “Meu INSS” de dona Lídia

( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022b, p. 1DIÁRIO DE CAMPO de 29.07.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 29 jul. 2022b. 2 p. ).

Após relatarem o que haviam feito para poderem estar ali com informações sobre a demanda, os pesquisadores relataram que no cadastro da indígena viúva havia três pedidos de aposentaria, todos requeridos no ano de 2004, e que precisaram solicitar a cópia do processo administrativo de cada um deles para analisar. Analisando os requerimentos, verificou-se que dois deles haviam sido indeferidos, e o último, concedido, sendo o benefício de aposentadoria que ela recebia atualmente. Em todos os processos administrativos constatou-se que a viúva declarou que Sr. Manoel era agricultor, que dependia dele e que quem a ajudava eram suas filhas. Os pesquisadores salientaram que não constavam requerimentos de pensão por morte no cadastro do “Meu INSS”, mas que tal ausência poderia decorrer por ser um requerimento muito antigo, visto que a morte do segurado foi em 1990 ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022bDIÁRIO DE CAMPO de 29.07.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 29 jul. 2022b. 2 p. ).

Os pesquisadores explicaram que o requerimento de pensão por morte não prescreve e, por isso, as lideranças poderiam encaminhá-lo, mas que não ganhariam os salários retroativos, somente após o requerimento, caso desse certo. Outrossim, mencionou-se que não havia garantias de que o requerimento fosse bem-sucedido, pelo fato de a morte ter ocorrido 32 anos antes, mas era importante tentar, pois havia decisões judiciais no sentido de a prescrição não atingir o direito da requerente, somente as prestações não reclamadas no lapso de cinco anos, em razão da inércia do beneficiário ( GOIÁS, 2019GOIÁS. Tribunal de Justiça. Comarca de Jaraguá Vara das Fazendas Públicas. Sentença. Processo n. 5243740-67.2019.8.09.0091. Pedro Henrique Guarda Dias Juiz De Direito. 2019. Julgamento em: 25 julho 2021. Publicado em: 27 julho 2021. ).

As lideranças acenaram que gostariam de requerer o benefício. Assim, os pesquisadores informaram que precisariam dos documentos da viúva, certidão de casamento dela com o Sr. Manoel e certidão de óbito do Sr. Manoel, oportunidade em que a Indígena B buscou-os e entregou-os aos pesquisadores, os quais também solicitaram que as lideranças providenciassem a certidão fornecida pela FUNAI, certificando a condição do indígena como trabalhador rural. A Indígena C informou que faria a solicitação pelo aplicativo WhatsApp ™, meio de contato entre a comunidade e a FUNAI. Por fim, foi informado às lideranças que inicialmente seria feito o pedido na via administrativa e que, se fosse indeferido, teriam a alternativa de encaminhar também pela via judicial ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022bDIÁRIO DE CAMPO de 29.07.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 29 jul. 2022b. 2 p. ). No dia 1º de setembro de 2022, ao retornarem à aldeia e questionarem se a FUNAI havia enviado o documento, a liderança informou aos pesquisadores que a própria fundação faria o requerimento, porque consideraram uma boa ideia, ressaltando apenas que a viúva não teria direito aos salários retroativos, conforme já havia sido mencionado também pelos pesquisadores ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2022cDIÁRIO DE CAMPO de 01.09.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 01 set. 2022c. 2 p. ).

Ao cogitar um benefício de pensão por morte para a indígena viúva do patriarca da comunidade, surgiram alguns questionamentos, sendo um deles os motivos pelos quais a FUNAI, sabendo da condição da indígena, como viúva de um segurado da Previdência Social, não a informou desse direito ou fez o requerimento do benefício. Talvez a resposta esteja na displicência com que a fundação tem atuado quando se trata de direitos indigenistas. Outra questão é que os pesquisadores tinham conhecimento de que o Sr. Manoel tinha outras duas esposas ( SILVA, 2020SILVA, J. B. S. Trajetória indígena e Trajetórias de vida: a agência do feminino na relação com os territórios, corpos e pessoas Kaingang. 2020. f. 313. Tese (Doutorado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2020. ). Nesse sentido, como a autarquia procederia com a pensão por morte, caso todas elas requeressem o benefício no momento? Para esse questionamento, encontramos a resposta no art. 371, § 1º, da IN 128/2022:

Art. 371. A pensão por morte, havendo mais de um pensionista, será rateada entre todos os dependentes, em partes iguais, observando-se:

[…]

§ 1º Para requerimento a partir de 24 de fevereiro de 2016, será permitido o rateio de pensão por morte entre companheiras de segurado indígena poligâmico ou companheiros de segurada indígena poliândrica, desde que as/os dependentes também sejam indígenas e apresentem declaração emitida pelo órgão local da FUNAI, atestando que o instituidor do benefício vivia em comunidade com cultura poligâmica/poliândrica, além dos demais documentos exigidos

( INSS, 2022 INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 128, de 29 de março de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 60, p. 132, 29 mar. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 . Acesso em: 21 out. 2022.
https://www.in.gov.br/web/dou/-/instruca...
).

O auxílio-reclusão está previsto no art. 80 da Lei n. 8.213/1991 e no art. 201, V, da CRFB. Trata-se de um benefício pago aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado. Castro e Lazzari (2022)CASTRO, C. A. P.; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. afirmam que se equipara à condição de recolhido o maior de 16 anos e menor de 18 anos filiado ao RGPS que esteja internado em local educacional, sob cuidados do Juizado da Infância e da Juventude. Freitas ( 2016, p. 75FREITAS, E. M. N. A seguridade social dos indígenas brasileiros à luz dos direitos humanos e fundamentais. 2016. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. ) enfatiza que “[…] os dependentes deverão comprovar, então, a condição de preso, a qualidade de segurado do preso e a condição de indígena”.

Para Freitas (2016)FREITAS, E. M. N. A seguridade social dos indígenas brasileiros à luz dos direitos humanos e fundamentais. 2016. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. , os indígenas segurados especiais podem solicitar o requerimento, e muitos casos acontecem em razão de disputas de terras. Diferentemente do que o senso comum comenta, o auxílio-reclusão não é devido a todos os presos, e serve para garantir a proteção da família do segurado recluso que, assim como todos os contribuintes, deve ter seu direito assegurado se preenchidos os requisitos para o benefício pleiteado, os quais consistem em ter a qualidade de segurado, 24 meses de carência e ser segurado de baixa renda, com renda bruta máxima de R$ 1.655,98 em 2022 (valor este que se altera a cada ano) ( CASTRO; LAZZARI, 2022CASTRO, C. A. P.; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. ).

Durante saída de campo em 20 de agosto de 2021, a cacique da época relatou que havia requerido o benefício de auxílio-reclusão, obtendo a informação de que a decisão sairia em aproximadamente 30 dias. Entretanto, inicialmente o INSS já havia solicitado algumas diligências, pois seu companheiro constava como foragido, mas na verdade só estava em outro sistema prisional ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021aDIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p. ). Após algumas semanas, durante a saída de campo, a cacique da época confirmou o deferimento de seu benefício de auxílio-reclusão ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021bDIÁRIO DE CAMPO de 13.09.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 13 set. 2021b. 4 p. ), e desde então os pesquisadores têm ajudado a indígena a emitir a certidão de cárcere, que deve ser renovada no INSS a cada três meses. A cacique ainda relatou uma situação semelhante que havia sido enfrentada por uma indígena da aldeia. A liderança disse que foi requerido o benefício de auxílio-reclusão, porém, a solicitação foi indeferida, mas que, para solucionar a situação, bastava complementar algumas informações no pedido, da mesma maneira como ela havia feito.

A saída de campo do dia 5 de outubro de 2021 tinha como objetivo ajudar em um requerimento de benefício de auxílio-reclusão que havia sido encaminhado em duas oportunidades e que em ambas haviam sido indeferidos pela autarquia. A requerente era uma mulher não indígena, mas em união estável há muitos anos com um indígena da comunidade. Segundo ela, o benefício havia sido negado porque foi encaminhado em seu CPF, quando, segundo uma atendente do canal telefônico do INSS, deveria ter sido requerido em nome dos dependentes de seu marido, ou seja, seus filhos. Antes de se debruçar sobre o caso, os pesquisadores solicitaram autorização da liderança, a qual acenou positivamente para o auxílio na questão ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021cDIÁRIO DE CAMPO de 25.10.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 25 out. 2021c. 5 p. ).

Ao analisar o processo administrativo para identificar o motivo do indeferimento, verificou-se que o servidor da FUNAI informou corretamente os dados e documentos de todos os dependentes, sendo que o motivo do indeferimento seria a falta da certidão judicial de cárcere, documento hábil para comprovar o efetivo recolhimento à prisão, bem como que não foram apresentados indícios de que o segurado tenha sido trabalhador rural, ou seja, razões diferentes da informada pela indígena. Assim, os pesquisadores auxiliaram na busca da certidão judicial de cárcere, bem como destacaram para a indígena a importância de conversar com o servidor da FUNAI para verificar a comprovação das atividades rurais, visto que a fundação é responsável pela emissão desse tipo de documento e que a qualidade de segurado especial não ocorre pela condição de ser indígena, mas da comprovação das atividades (rural, artesanal etc.) ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021cDIÁRIO DE CAMPO de 25.10.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 25 out. 2021c. 5 p. ).

A referida certidão de cárcere judicial foi encaminhada para a autarquia, todavia, novamente o benefício foi indeferido, mas agora sob a justificativa de que o indígena apenado não tinha qualidade de segurado por não ter comprovado as atividades rurais/artesanais. Na oportunidade, os pesquisadores indicaram que a indígena procurasse o procurador da FUNAI para tentar entrar com a demanda judicialmente. Entretanto, a indígena explicou que a FUNAI auxiliava apenas fornecendo documentos. Nesse sentido, com vistas a conscientizar a indígena, os pesquisadores explicaram que ela poderia ir até o Juizado Especial Federal e ajuizar a ação sem a necessidade de um advogado, pelo menos até a fase recursal, visto que se tratava de demanda com valor inferior a 60 salários-mínimos ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021cDIÁRIO DE CAMPO de 25.10.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 25 out. 2021c. 5 p. ).

Os pesquisadores também foram procurados para auxiliar outra indígena a buscar a certidão judicial de cárcere para fins de encaminhamento do benefício de auxílio-reclusão. Ao entregar o documento para a liderança, a indígena prontamente informou que o encaminhamento não seria bem-sucedido, pois a pessoa presa era não indígena. Além disso, essa pessoa estava na aldeia somente há um ano, sendo necessário o convívio de ao menos cinco anos para a FUNAI estender a ele o direito dos indígenas ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021cDIÁRIO DE CAMPO de 25.10.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 25 out. 2021c. 5 p. ).

A Jamã Tÿ Tãnh é uma comunidade sui generis em vários aspectos, e um deles é a permissão da união entre indígenas e não indígenas. A liderança, inclusive, relatou que essa prática social causa recorrentes problemas no INSS, pois os benefícios requeridos por não indígenas que convivem na aldeia com indígenas têm sido indeferidos, destacando que a autarquia “[…] diz que eles não são indígenas” ( DIÁRIO DE CAMPO..., 2021bDIÁRIO DE CAMPO de 13.09.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 13 set. 2021b. 4 p. ). Sobre esse contato interétnico 5 5 Diferenças biológicas (cor da pele, tipo de olhos ou cabelos) e diferenças culturais (forma de organização do trabalho comunitário, regras de casamento, códigos de orientação do comportamento, crenças religiosas) até algum tempo atrás qualificadas como diferenças raciais podem ser pensadas como diferenças étnicas. Um grupo diferenciado com base em critérios dessa natureza é um grupo étnico (como ciganos, lapões ou índios tapirapé), e o terreno onde se pisa é o da etnicidade, da etnia. O encontro entre esses grupos e outras tribos, outras minorias étnicas ou brancos colonizadores pode ser chamado de contato interétnico ( BRANDÃO, 1986 ). não compreendido pelo INSS, a partir da teoria de Frederik Barth, Poutignat e Streiff-Fenart (2011)POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnocidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011. , o reconhecimento de uma outra pessoa como integrante de um mesmo grupo étnico exige um compartilhamento de critérios de avaliação e de julgamento, não importando o quão diferentes possam ser os membros em seus comportamentos, isto é, se eles dizem que são A, em oposição a outra categoria B, eles estão querendo ser tratados e ter seus comportamentos julgados como os de A, e não de B. É necessário que ambos estejam “jogando o mesmo jogo”, demonstrando que há entre eles a possibilidade de diversificação e expansão de suas relações sociais, ou seja, uma aliança, um acordo, um entendimento em comum, não necessariamente em razão do fenótipo, mas, sim, da cultura, de modo a eventualmente cobrir todos os diferentes setores e domínios de acordo seus interesses. Nesse sentido, segue diálogo entre os pesquisadores e a “não indígena”, cônjuge de um indígena da Jamã Tÿ Tãnh .

Indígena A: É que nem agora, eu fui fazer a segunda via da minha identidade, me pediram qual raça eu me identifico, eu botei indígena, como eu moro há anos aqui, né, já tenho um vínculo dentro da comunidade, eu me sinto uma indígena.

Pesquisadores: Hummm. Entendi. Quantos anos você mora aqui?

Indígena A: Mais de dez anos.

Pesquisadores: Ela é cunhada da senhora, né?

Indígena B: Sim.

( ENTREVISTA..., 2022, p. 5ENTREVISTA 18.06.2022. Coletivo indígena Jamã Tÿ Tãnh. Entrevistadora: Débora Pires Medeiros da Silva. Estrela (RS): 2022. Gravação por voz. Acervo do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang e Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas. Lajeado: Univates, 2022. ).

Como visto, a população indígena poderá se enquadrar em qualquer uma das categorias dos benefícios da Previdência Social, em que pese, normalmente, esteja enquadrado como segurado especial pelo fato de suas atividades se equipararem às do trabalhador rural. Destaca-se que não existem privilégios nem benefícios destinados aos indígenas por causa de suas condições, ao contrário do que diz o senso comum.

Quando se abordou a temática previdenciária com os indígenas da Jamã Tÿ Tãnh , percebeu-se que eles têm dificuldades ao explicar como foram suas experiências com o INSS. Ademais, observou-se que eles conhecem seus direitos e, em sua maioria, sabem quando podem requerer benefícios previdenciários. Entretanto, quando algo dá errado no meio do processo, encontram dificuldades na resolução dos problemas, isso porque não encontram uma assistência jurídica adequada, de modo que, ao se depararem com a burocratização do ordenamento jurídico brasileiro, a qual, conforme exposto anteriormente, foi herdada pela colonização, muitos renunciam a seus direitos.

O sistema burocrático herdado pela colonialidade está presente no sistema brasileiro até a contemporaneidade, contudo, esse modelo jurídico estruturado verticalmente, por pessoas com poder econômico e político, não logrou êxito em resolver os conflitos e as mazelas sociais ( RIBEIRO, 2021RIBEIRO, B. C. R. Direito e decolonialidade: insurgência e contra- hegemonia em Abya Ayla. Andradina: Meraki, 2021. ). Nesse sentido, revela-se o Direito Previdenciário, que, somado a uma legislação complexa, ainda tem a própria autarquia do INSS, emitindo instruções normativas e resoluções que dificultam cada vez mais o acesso dos segurados.

Os relatos dos indígenas muitas vezes dificultaram até mesmo a compreensão dos próprios pesquisadores, os quais, apesar de terem utilizado termos simples para introduzir o assunto e coletar os dados, também enfrentaram desafios para identificar o real motivo do indeferimento dos benefícios requeridos, considerando que muitas vezes era desconhecido pelos indígenas. A complexidade e a mudança frequente da legislação previdenciária também causam diversos equívocos de entendimento. Muitas vezes, as matérias que ainda estão em discussão no legislativo ou em medidas provisórias que permaneceram vigentes por pouco tempo confundem o cidadão, que passa a disseminar informações divergentes. Frisa-se que, embora as normas sejam complexas e elaborados, em grande parte, sem a participação de indígenas, estes têm se apropriado desses códigos e buscado utilizá-los a seu favor.

Conclusão

O Direito tem como uma das principais características o positivismo, os princípios da legalidade, de modo que seu pensamento, elaboração e aplicação estão direcionados à concepção ocidental, sem considerar as particularidades e realidades sociais. A matriz colonial atravessa a sociedade em diversos aspectos, sobretudo nas instituições e estruturas encarregadas justamente de elaborar a aplicar a norma jurídica. Assim, os mecanismos que, em sua essência, deveriam servir para proteger e promover justiça, acabam não cumprindo seu papel primordial. É o caso do Direito Previdenciário, que, embora esteja calcado no princípio da legalidade, em diversos momentos não cumpre sua função social, haja vista sua visão cada vez mais restritiva. A interculturalidade enquanto prática social e política pública pode ser pensada como um mecanismo que busca afastar o pensamento universal e homogeneizante, com vistas a eliminar a invisibilidade das características e realidades das populações tradicionais, como é o caso dos indígenas da comunidade Jamã Tÿ Tãnh.

À vista disso, apresentam-se as práticas sociais e políticas públicas enquanto mecanismos da interculturalidade, posto que a prática social se refere ao modo como uma sociedade se organiza e se estrutura; e as políticas públicas se mostram como um meio que permite a aplicação da vertente intercultural. Trata-se, portanto, de conceitos indissociáveis. Observou-se que os indígenas da comunidade Jamã Tÿ Tãnh acessam os direitos da Previdência Social, geralmente, enquadrados como segurados especiais, em razão das atividades exercidas. Ademais, considerando que o Direito Previdenciário está calcado na legalidade, que em diversos momentos desconsidera a realidade social e a diversidade cultural brasileira, bem como que a interculturalidade busca intervir nessa estrutura, na forma de atuação das instituições, abordagem e aplicação do Direito, demonstrou-se o diálogo entre o Direito Previdenciário e a interculturalidade enquanto prática social e política pública – prática social e política pública porque se trata de uma ação, e não apenas uma vertente teórica.

A partir dos diálogos dos interlocutores indígenas, entendeu-se que os indígenas Kaingang buscam cada vez mais se apropriar dos códigos não indígenas para utilizá-los em seu favor, como é o caso das leis a respeito de seus territórios, educação etc. Outrossim, notou-se que a complexidade, a burocratização e a alteração frequente da legislação previdenciária contribuem para a dificuldade de compreensão a respeito dos benefícios da Previdência Social, tanto que, conforme visto, os indígenas, em sua grande maioria, pleiteiam os benefícios somente na via administrativa. A maioria dos indígenas buscam o benefício na via administrativa, às vezes mais de uma vez, deixando de tentar reverter uma eventual decisão administrativa desfavorável na via judicial, justamente por causa do sistema burocrático e por não contarem com auxílio jurídico nesse sentido, pois, conforme visto, a FUNAI auxilia somente nas questões administrativas. Assim, com vistas a uma sociedade mais equânime e um Direito mais abrangente, sugere-se a aplicação da interculturalidade enquanto prática social e política pública.

Referências

  • ALMEIDA, G. G. F. A identidade territorial gaúcha no branding das marcas regionais: caso da marca da cerveja Polar. 2015. f. 175. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2015.
  • ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
  • ASSMANN, B. F; LAROQUE, L. F. S; MAGALHÃES, M. L. Saúde indígena em tempos de pandemia: relações de respeito às especifidades culturais dos indígenas Kaingang no campo da saúde. Destaques Acadêmicos, Lajeado, v. 13, n. 3, p. 281-297, 2021.
  • ASTRAIN, R. S. Ética intercultural e pensamento latino-americano. In: SIDEKUM, A. (org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 319-350.
  • BRANDÃO, C. R. Identidade e etnia: a construção da pessoa e a resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
  • BRASIL. [Constituição (1988)]. Emenda Constitucional n. 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 13 nov. 2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2019/emendaconstitucional-103-12-novembro-2019-789412-publicacaooriginal-159409-pl.html . Acesso em: 2 ago. 2022.
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2019/emendaconstitucional-103-12-novembro-2019-789412-publicacaooriginal-159409-pl.html
  • BRASIL. Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o regulamento da previdência social, e dá outras providências. Diário Oficial de União: seção 1, Brasília, DF, p. 50, 7 maio 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm
  • BRASIL. Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. Diário Oficial de União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 20 abr. 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm . Acesso em: 21 out. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm
  • BRASIL. Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14801, 25 jul. 1991a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm
  • BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14809, 25 jul. 1991b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm
  • CASTRO, C. A. P.; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
  • COLAÇO, T. L.; DAMÁZIO, E. S. P. Antropologia Jurídica: uma perspectiva decolonial para a América Latina. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2018.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 20.08.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 20 ago. 2021a. 3 p.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 13.09.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 13 set. 2021b. 4 p.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 25.10.2021. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 25 out. 2021c. 5 p.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 18.06.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 18 jun. 2022a. 1 p.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 29.07.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 29 jul. 2022b. 2 p.
  • DIÁRIO DE CAMPO de 01.09.2022. Saída de Campo a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Acervo do Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas e do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang da Universidade do Vale do Taquari – Univates. Lajeado: Univates. 01 set. 2022c. 2 p.
  • ENTREVISTA 18.06.2022. Coletivo indígena Jamã Tÿ Tãnh. Entrevistadora: Débora Pires Medeiros da Silva. Estrela (RS): 2022. Gravação por voz. Acervo do Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang e Projeto de Pesquisa Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas. Lajeado: Univates, 2022.
  • FREITAS, E. M. N. A seguridade social dos indígenas brasileiros à luz dos direitos humanos e fundamentais. 2016. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
  • GAIVIZZO, S. B. O direito dos povos indígenas à educação superior na América Latina: concepções, controvérsias e propostas. 2014. f. 131. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2014.
  • GOIÁS. Tribunal de Justiça. Comarca de Jaraguá Vara das Fazendas Públicas. Sentença. Processo n. 5243740-67.2019.8.09.0091. Pedro Henrique Guarda Dias Juiz De Direito. 2019. Julgamento em: 25 julho 2021. Publicado em: 27 julho 2021.
  • HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
  • HOLANDA, F. C. C. Interculturalidade e políticas públicas: desafios da educação escolar na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 2015. f. 167. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015.
  • HORVATH JÚNIOR, M. Direito Previdenciário. Barueri: Manole, 2011.
  • IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Características gerais dos indígenas: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf . Acesso em: 20 out. 2021.
    » https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf
  • INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 77, de 21 de janeiro de 2015. Estabelece rotinas para agilizar e uniformizar reconhecimento de direitos dos segurados e beneficiários da Previdência Social, com observância dos princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 15, p. 32, 22 jan. 2015. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/32120879/do1-2015-01-22-instrucao-normativa-n-77-de-21-de-janeiro-de-2015-32120750 . Acesso em: 24 nov. 2022.
    » https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/32120879/do1-2015-01-22-instrucao-normativa-n-77-de-21-de-janeiro-de-2015-32120750
  • INSS – INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa n. 128, de 29 de março de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 60, p. 132, 29 mar. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 . Acesso em: 21 out. 2022.
    » https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446
  • LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • LAROQUE, L. F. S.; SILVA, J. B. S. Ambiente e cultura Kaingang: saúde e educação na pauta das lutas e conquistas dos Kaingang de uma Terra Indígena. Educação em Revista. Belo Horizonte. v. 29, n. 02, p. 253-275, jun. 2013.
  • MAIA, K. S.; ZAMORA; M. H. N. O Brasil e a lógica racial: do branqueamento à produção de subjetividade do racismo. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 265-286, 2018.
  • MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 127-168.
  • MARX, K. Teses sobre Feuerbach. [1845]. In: BARATA-MOURA, J. et al. Obras escolhidas. Tomo I. Tradução: Alvaro Pina. Lisboa: Avante, 1982. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm . Acesso em: 2 ago. 2022.
    » https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm
  • MIGNOLO, W. D. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, e329402, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 dez. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/?format=pdf⟨=pt
  • MUNHÓS, L. V. A.; AGUILERA URQUIZA, A. H. Direitos culturais fundamentais dos povos indígenas: do multiculturalismo à interculturalidade. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 16, n. 40, p. 69-84, 2021.
  • ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008.
  • POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnocidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011.
  • POZZER, A.; CECCHETTI, E.; DÍAZ, J. M. H. Interculturalidade e imigração: impactos e desafios à educação. ETD – Educ. Temat. Digit, Campinas, v. 23, n. 3, p. 576-580, jul. 2021. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-25922021000300576&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 11 nov. 2022.
    » http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-25922021000300576&lng=pt&nrm=iso
  • PRESTES, F. S. O bem viver Kaingang: as conexões entre os princípios da teoria do buen vivir e os saberes tradicionais que orientam o seu modo de ser. 2018. f. 279. Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2018.
  • QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasifi cación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, p. 93-126.
  • QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992.
  • RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamiento. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2010.
  • RIBEIRO, B. C. R. Direito e decolonialidade: insurgência e contra- hegemonia em Abya Ayla. Andradina: Meraki, 2021.
  • SAHLINS, M. O “Pessimismo Sentimental” e a experiência etnográfica: porque cultura não é um “objeto” em via de extinção (Parte I). Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 41-73, 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/4xFgqqMPbXLHGc8xkfXBCVH/abstract/?lang=pt . Acesso 10 nov. 2021.
    » https://www.scielo.br/j/mana/a/4xFgqqMPbXLHGc8xkfXBCVH/abstract/?lang=pt
  • SCHWINGEL, K.; LAROQUE, L. F. S.; PILGER, M. I. Jamã Tý Tãnh. Ig Vênh vêj Kaingag: Morada do Coqueiro – jeito de viver Kaingang. São Leopoldo: Oikos, 2014.
  • SILVA, G. F. Culturas(s), currículo, diversidade: por uma proposição intercultural. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 6, n.1, p. 137-148, 2006.
  • SILVA, J. B. S. “Eles viram que o índio tem poder, né!”: o protagonismo kaingang da Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh/Estrela diante do avanço desenvolvimentista de uma frente pioneira. 2016. 256 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2016.
  • SILVA, J. B. S. Trajetória indígena e Trajetórias de vida: a agência do feminino na relação com os territórios, corpos e pessoas Kaingang. 2020. f. 313. Tese (Doutorado em Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2020.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Sobre la noción de etnocidio, con especial atención al caso brasileño. Estudios de História Moderna y Contemporánea de México, v. 60, p. 111-144, 2020.
  • WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012.
  • WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2009.
  • 1
    O conceito de “etnocídio” tem sua origem na obra do antropólogo francês Robert Jaulin, notadamente em seu livro La paix blanche: introduction à l’ethnocide (1970) […] é um processo que visa a destruição sistemática do modo específico de vida (técnicas de subsistência e relações de produção, sistema de parentesco, organização comunitária, língua, costumes e tradições) de povos diferentes, sob estes aspectos, do povo, agência ou Estado que leva a cabo a empresa de destruição. Se o genocídio consiste na eliminação física deliberada de uma etnia, povo ou população, o etnocídio visa o “espírito” (a moral) de um povo, sua eliminação enquanto coletividade sociocultural diferenciada ( VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 2VIVEIROS DE CASTRO, E. Sobre la noción de etnocidio, con especial atención al caso brasileño. Estudios de História Moderna y Contemporánea de México, v. 60, p. 111-144, 2020. ).
  • 2
    La madre naturaleza – la madre de todos los seres – es la que establece y da orden y sentido al universo y la vida, entretejiendo conocimientos, territorio, historia, cuerpo, mente, espiritualidad y existencia dentro de un marco cosmológico, relacional y complementario de convivencia ( WALSH, 2012, p. 68WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, 2012. ).
  • 3
    A Instrução Normativa é uma norma administrativa estabelecida e utilizada pelo INSS e, portanto, o âmbito judicial poderá ter entendimento diverso.
  • 4
    Exemplificando: uma pessoa que recebe três salários-mínimos de aposentadoria, ao receber uma pensão por morte, deverá escolher qual o mais vantajoso para receber integralmente, sendo que o segundo benefício receberia somente 40%, tendo em vista que o mais vantajoso, conforme o exemplo, é no valor entre dois a três salários-mínimos. O percentual de redução do segundo benefício dependerá do valor recebido pelo benefício mais vantajoso.
  • 5
    Diferenças biológicas (cor da pele, tipo de olhos ou cabelos) e diferenças culturais (forma de organização do trabalho comunitário, regras de casamento, códigos de orientação do comportamento, crenças religiosas) até algum tempo atrás qualificadas como diferenças raciais podem ser pensadas como diferenças étnicas. Um grupo diferenciado com base em critérios dessa natureza é um grupo étnico (como ciganos, lapões ou índios tapirapé), e o terreno onde se pisa é o da etnicidade, da etnia. O encontro entre esses grupos e outras tribos, outras minorias étnicas ou brancos colonizadores pode ser chamado de contato interétnico ( BRANDÃO, 1986BRANDÃO, C. R. Identidade e etnia: a construção da pessoa e a resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986. ).
  • Como citar este artigo (ABNT):
    LAROQUE, L. F. S.; SILVA, D. P. M. A interculturalidade no Direito Previdenciário relacionado aos indígenas da aldeia Jamã Tÿ Tãnh . Veredas do Direito , Belo Horizonte, v. 21, e212470, 2024. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2470 . Acesso em: dia mês. ano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2022
  • Aceito
    18 Dez 2023
Editora Dom Helder Rua Álvares Maciel, 628, Bairro Santa Efigênia, , CEP: 30150-250, Tel. +55 (31) 2125-8836 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: veredas@domhelder.edu.br