QUESTÕES DA DEMOCRACIA E DO SOCIALISMO
Dilemas da legitimidade política*
Francisco C. Weffort
Prof. titular do Depto. de Ciência Política da USP e diretor do CEDEC
"La urgencia - la consciência de esa
urgencia - es (...) la característica esencial del
actual momento latinoamericano".
"La formula democratica puede perecer
consumida por el estrago de la ineficacia. Pero
también puede morir por una anemia
galopante en la savia mantenedora de su
legitimidad. Ahora bien, conviene en ese punto
no enganarse ante ambas amenazas; la
segunda es mucho mas grave e implacable
que la primera. (...) la evaporación completa
de las creencias, la quiebra moral que hasta
en sus ultimos fundamentos puede tener la
disolución de esa fe-la anomia generalizada
de todo un cuerpo social - no deja sino
desesperanza y extremismo".
(don José Medina Echavarria)
O conceito de legitimidade política propõe uma discussão sobre a democracia e sobre a política. Ou melhor, sobre as possibilidades de que a democracia resgate o sentido da política depois de uma época na qual os regimes autoritários, aos quais não faltaram um certo sabor tecnocrático, a amesquinharam até o extremo do achincalhe. Isso significa admitir, desde logo, que o conceito de legitimidade política contém uma afirmação de princípio, aliás essencial a todo pensamento autenticamente democrático, qual seja a do primado da razão histórica sobre a razão instrumental.
O fato de que comecemos por algumas referências conceituais abstraías não deve induzir ninguém a imaginar, temerosamente, que os dilemas da legitimidade política nos obriguem a todos a caminhar pela estratosfera. Não, pelo menos não o tempo todo. A verdade é que quando se fala de legitimidade política se fala também, e principalmente, de fatos muito reais e muito dramáticos de uma época histórica. Precisamente esta em que nos foi dado viver.
Combinar a reflexão teórica com a sensibilidade para a experiência viva da história é uma das características mais atraentes do pensamento de don José Medina Echavarria, grande mestre espanhol que, depois da Guerra Civil, fez da América Latina sua segunda pátria. Aliás, penso que não escapará ao estudioso da sociologia e da política o muito que estas reflexões, que apresento agora, devem à inspiração de Medina, mesmo quando tenhamos aqui que nos empenhar em entender um momento histórico do qual ele, infelizmente, já não pode participar. E, como era próprio do seu pensamento, bem como de toda reflexão que se volta para a clareza dos fatos e das idéias, sempre que se pode é bom começar por definir aquilo de que se fala. Os conceitos existem precisamente para isso. Assim, são eles que mais aparecem nas partes iniciais desta exposição. Nas partes seguintes, me refiro à crise de alguns países da América Latina. (Sei que todos estão em crise, mas falo apenas de alguns). E nas partes finais, tratarei daquilo que vejo como os dilemas atuais da legitimidade política e das possibilidades (seria apenas um sonho?) da construção da democracia nesta parte do mundo.
I - Legitimidade: Dimensões de um Conceito
Em importante trabalho de inícios dos anos 60, "Consideraciones Sociológicas sobre el Desarrollo Económico de América Latina", don José Medina, com os olhos abertos para a história do presente, oferece as dimensões essenciais daquilo que a sociologia e a ciência política entendem por legitimidade política. "El hueco de la estructura de poder que mantiene todavia la inadecuada transformación de los partidos políticos históricos que forjé en su momento - y con acierto - el sistema de la hacienda, es un vacio gravísimo porque deja en el aire - sin sustancia - las raíces de la legitimidad" 1 Na página seguinte Medina acrescenta, buscando concretizar o sentido do conceito: "No es imposible que las viejas clases - las oligarquias de otrora - sean capaces de ganar una nueva legalidad si se esfuerzan por modificar a la altura de los tiempos su formula política". E ainda: "El vacio de poder dejado por el proclive de la oligarquia secular (...) tratan de colmarlo con esfuerzo pacifico las nuevas organizaciones - quizás con excesivos tropiezos y tanteos - de las fuerzas productivas mas importantes (...) de las modernas sociedades industriales".
Com o poder de síntese que lhe era habitual, Medina entrega ao leitor, junto com as dimensões essenciais de um conceito fundamental da sociologia e da política, as questões centrais de toda urna época histórica Pretendo resumi-las aqui em quatro pontos.
Primeiro, quando falamos de legitimidade política, mencionamos, em primeiro lugar, a existência de crenças, normas e valores que - segundo sugere Max Weber, de cuja obra Medina foi, aliás, o principal apresentador na América Latina - plasmam o espaço das ações e das relações sociais, estas sempre ligadas à noção de uma reciprocidade de sentido entre os atores. De modo mais específico para o campo da política, fala-se da legitimidade de um líder frente aos seus seguidores, de um governo frente aos cidadãos de uma república, de um partido político frente aos seus eleitores, de uma classe (ou elite) como dirigente de uma sociedade, etc. Em todos os casos que se imagine, a legitimidade política estará, porém, caracterizada por um traço que é próprio à legitimidade da dominação social em geral. E, ainda segundo Weber, a legitimidade de uma relação de dominação social estaria no fato de que aquele que obedece a uma ordem o faz como se esta viesse de uma disposição interior, ou como se obedecer fosse coisa do seu próprio interesse: "um determinado mínimo de vontade de obediência, ou seja, de interesse (externo ou interno) em obedecer, é essencial em toda relação autêntica de autoridade"2. Em uma palavra, a raiz da legitimidade do mando está no consentimento daquele que obedece. Temos, portanto, um conceito muito bem definido, capaz de um uso analítico muito preciso e muito específico.
Em todo caso, penso que é importante assinalar que Medina, e também nisso seguindo o espírito da sociologia weberiana, dá ao conceito um sentido muito mais amplo. Ao falar de legitimidade política, ele menciona, mais do que relações de dominação política, a existência de um sistema social. Ele se refere ao sistema da hacienda, no qual entende encontrar a matriz da organização social, econômica e política da América Latina tradicional. A presença deste sistema no plano político é apresentada do modo mais claro possível. Para ele, a hacienda é "protectora y opressora a la vez, es decir, autoritaria y paternal. Y esa imagen de las relaciones de subordinacion - proteccion y obediencia, arbitrariedad y gracia, fidelidad y resentimiento, violencia y caridad - (...) es mantenida intacta por mucho tiempo cuando al rey sucede el presidente de la República. El modelo de autoridad creado por la hacienda se extiende y penetra por todas las relaciones de mando y encarna en el patrón la persistente representacion popular"3.
Nos anos 60, quando Medina escreveu este livro, a sociedade e o Estado que o sistema da hacienda havia gerado se achavam na terceira ou quarta década de sua demorada crise. Uma longa crise que deixava à mostra, muito visíveis, as ruínas de uma época em desaparecimento, ao mesmo tempo em que anunciava a emergência de uma nova fase histórica. Seria, para Medina, a emergência de uma nova sociedade, de um novo sistema social, este moderno, urbano e industrial, já não enraizado na hacienda mas na empresa e na cidade.
Segundo, quando falamos de legitimidade política mencionamos não só um sistema social, mas também uma classe dirigente. O conceito de classe dirigente tem em Medina origens diversas, que mencionaremos logo a seguir. A démarche, porém, tem origens declaradas em um jovem Max Weber, enfrentado com as vicissitudes do sistema bismarckiano e se indagando por outra classe para dirigir a Alemanha que não fosse a "velha classe" dos junker. Weber oferece o modelo, mas a indagação é tipicamente latinoamericana:" En la America Latina de hoy, donde estan los grupos de hombres capaces de llevar a buen término el intenso proceso de transformación que sacude su cuerpo? En que clases apoyarse ? La clase política brotada del sistema de la hacienda y que gobernó no sin exitos un trecho largo de su historia? La nueva clase burguesa nacida de la exportación y de la industria? La novísima clase proletaria de escasas experiencias de mando y apenas organizada?"4
Nos anos 60, muitos dos que trabalhamos com Medina - e nos beneficiamos tanto de sua cultura excepcional quanto de sua abertura de espírito e de sua tolerante gentileza para com as opiniões divergentes, em particular as dos seus discípulos - atribuíamos ao conceito de classe dirigente um sentído muito mais abrangente e ambicioso. Era, sem a menor dúvida, uma ressonância dofascínio que exercia sobre nós certa concepção de um marxismo, não direi vulgar mas certamente romântico. A exemplo da missão redentora que o jovem Marx atribuía ao proletariado, a classe dirigente, mais do que apenas dirigente, seria para alguns de nós, a portadora das virtualidades do futuro, do desenvolvimento global da sociedade e, finalmente, de um sonho de redenção da humanidade. É interessante notar que tal idealização do conceito de classe dirigente - conceito construído sobre as expectativas utópicas criadas em torno do proletariado - tinha vigência mesmo quando a classe em discussão, como candidata a dirigente, era a burguesia. Isso se pode verificar, com facilidade, nos escritos dos que, à época, ainda acreditavam nas possibilidades históricas da chamada "burguesia nacional". Aliás muitos dos que assim pensavam eram eles próprios de formação marxista.
Medina via, por certo, a classe dirigente com uma capacidade de ação e de transformação sobre a sociedade, mas, tomando o conceito numa acepção mais próxima a Gaetano Mosca, a Raymond Aron e a Schumpeter, visualizava um protagonista histórico de proporções mais modestas (mais realistas?). Portadora de uma "fórmula política", ou seja de um conjunto de justificações de uma ordem e de um sistema, a classe dirigente deve propor um regime, ou uma "legalidad", que tem que ser legítima (pois, como sabemos, nem toda legalidade é legítima) e eficaz. Quanto ao mais, ela deve ser capaz de "llevara buen término"um processo de transformação que já se acha em curso, ou seja, a mudança da América Latina em uma sociedade urbana e industrial moderna.
Estamos, pois, distantes da noção de negatividade revolucionária que caracteriza no marxismo tanto o proletariado, hoje, quanto a burguesia, em seus tempos de emergência revolucionária. Do mesmo modo, Medina define distâncias ante a visão unitária, ou unificadora, que o marxismo, por força de sua concepção da totalidade social, identifica na classe dirigente. (Exemplo desse unitarismo totalizante é a célebre proposição de Marx: ás idéias dominantes de uma época são ás idéias da classe dominante). Mas estamos também longe das visões fragmentárias de algumas das sociologias de hoje, deslumbradas com o espírito (ou a falta de espírito?) do que se chama por aí de pós-modernidade. Pará estas visões fragmentárias que se comprazem com a sua própria insuficiência, perdem o seu significado tanto a noção de direção da sociedade quanto a própria noção de sociedade, pelo menos na acepção de sociedade global que lhe deu, desde sempre, a sociologia clássica, tenha esta suas origens em Marx, em Durkhein ou em Weber.
Para uma sociologia como a de Medina, exemplo brilhante da sociologia clássica, a visão fragmentária da sociedade e a fragmentação do pensamento teriam que ser entendidas como outros tantos modos de expressão de uma crise tão prolongada que parece ameaçar, em nossa época, a própria possibilidade de uma razão histórica. Medina raciocina, como ele próprio diz, como "un viejo liberar. E isso significa que raciocina como um homem que acredita naracionalidade humana sem que tal o impeça de ver toda a violencia e a irracionalidade de que os homens também são capazes. Apesar de todos os grandes dramas e tragédias que assistiu ao longo da vida, apesar do fascismo e da Guerra Civil espanhola, apesar dos totalitarismos nazista e estalinista, apesar da grande crise latinoamericana, ele acredita que a historia tem um sentido e que cabe à razão tentar alcançá-lo. Depois de todos estes "apesar de", não deveria haver em Medina (nem em nós) muitos motivos para excessos de otimismo. Mas, ainda assim, cabe à razão realizar a tentativa, sob pena de que se torne definitivamente estéril.
A identificação sociológica (política) de uma classe dirigente é parte central desta tentativa. A pergunta quem dirige? é também uma pergunta sobre o sentido da sociedade e da sua história. É com este olhar que Medina examina a história da América Latina para reconhecer às oligarquias do passado o mérito de haverem se constituído, em seu tempo, na classe dirigente que se cria à volta da hacienda. Do mesmo modo, é também com este olhar que ele espera venha a ser esta classe dirigente substituída por outra, emergente "con esfuerzo pacifico" no processo de formação de uma nova sociedade urbana e industrial.
Terceiro, o conceito de legitimidade política remete, portanto, para o reconhecimento da existência, na sociedade, de uma estrutura de poder. Ou, como é o caso nos anos 60 e mesmo agora em muitos países, de uma crise de poder. Medina fala tanto de uma crise de poder, de um "hueco de la estructura de poder", quanto de um vazio político - "vacio gravísimo porque deja en el aire, sin sustancia, las raices de la legitimidad"'. E já houve quem, olhando mais para o som das palavras do que para o seu significado, alegasse no tom pomposo das falsas descobertas que, como na física, também na política inexiste o vácuo. Uma alegação sobre palavras e, portanto, de pequeno valor.
O que está em questão aqui é a ênfase que Medina atribui ao conceito de legitimidade. Quando usa das metáforas do "vazio"e do "buraco da estrutura de poder", pretende apenas enfatizar algo que com freqüência se esquece: o poder não se sustenta apenas na eficácia (nem apenas na força), tem que ser legítimo. E, como diz, em pensamento surpreendente para muitos, "si mucho se aprieta es mas importante la legitimidad que la eficácia". Ou mais adiante: "el hombre heredero de la mejor tradición europea preferirá siempre la posibilidad del dialogo, o si se quiere el valor quiza intangible de la legitimidad sobre el pragmatismo de la eficacia"5. Pode-se pedir maior clareza democrática? Pode-se pedir maior clareza na crítica ao viés tecnocrático de uma razão instrumental que deturpava o sentido da política dos anos 60 e que, ainda mais gravemente, continuou deturpando o sentido da política nos regimes autoritários das décadas seguintes?
Quarto, a questão da legitimidade política remete diretamente ao tema institucional, o dos regimes políticos e, em particular, o dos partidos políticos. Na visão de Medina, a crise da legitimidade na América Latina está ligada diretamente à crise dos "partidos históricos". Estes são, por exemplo, os blancos e os colorados do Uruguai, os republicanos do Brasil da Primeira República, e, em sentido mais geral, os liberais e os conservadores que se distribuem um pouco por toda parte nos velhos regimes oligárquicos da América Latina. Creio que este é um aspecto especialmente significativo quando nos lembramos, Com Enzo Falletto, que a preocupação com os mecanismos institucionais não estava na moda nos anos 60. Pelo menos entre os sociólogos (na verdade, é mais do que isso, poderíamos falar aqui da intelectualidade latinoamericana em sua grande maioria), o tema institucional estava inteiramente fora de moda6.
Medina nadava, portanto, contra a corrente quando afirmava que a legitimidade política, mais do que um tema relativo ao sistema social, às relações entre as classes e à estrutura de poder, é um tema também das então desprezadas formas institucionais. Quando se fala de legitimidade política se fala também de partidos políticos, de sistemas eleitorais, de regimes de governo, matérias que são motivo de amplas digressões nas "Consideraciones Sociológicas sobre el Desarrollo Economico". O tema da legitimidade política traz, portanto, à discussão, também o tema da "legalidad", isto é, de todo o conjunto de instituições legais que dão forma à organização do poder.
Em uma palavra, quando se fala de legitimidade política se fala de democracia política. Da democracia que existe ou daquela que desejamos venha a existir. "La democracia es ante todo, una creencia, una ilusión si se quiere, un principio de legitimidad"7. Ou como diz um pouco antes, no parágrafo imediatamente anterior: "...los sistemas democráticos dependen sobretodo de una vigencia, o sea de la creencia en la legitimidad de la elite"
II - Legitimidade e Hegemonía: Conceitos Históricos
Estes quatro requisitos que vejo associados à noção de legitimidade política não devem ser entendidos à maneira de condições meramente analíticas, as quais, enquanto tais, poderiam valer para qualquer época histórica. O sentido histórico de proposições teóricas desta natureza se entende quando Medina reconhece, por exemplo, às classes oligárquicas deste período de crise certas capacidades de mando, certa concepção da unidade nacional, mas constata também nelas um apego aos seus interesses particulares que pesa demasiado para permitir-lhes atuar com eficácia como classes dirigentes.Trata-se, portanto, de uma constelação histórica, na qual, por outra parte, as novas esquerdas, tanto pela urgência dos seus problemas imediatos quanto por sua própria formação e por seus sonhos idealistas, são pobres em suas concepções da legitimidade nacional e, em seu conjunto, dotadas de frágeis instintos de poder e de mando8. Estamos, como já se disse, no campo da célebre reflexão de Max Weber. Mas, como para sugerir até onde situações como estas podem levar, não faltam em Medina as referencias a momentos posteriores a Weber, em especial à República de Weimar, com a sua conotação de fragilidade da civilização e da democracia diante da avalanche brutal do irracionalismo e da violência.
O conceito de legitimidade política envolve, pois, no pensamento de don José Medina, uma ampla significação histórica, obrigando a reflexão a resgatar aspectos da formação da América Latina e dos estados latinoamericanos, pelo menos desde os movimentos de Independência, muitos deles acompanhando as ondas históricas criadas, na Europa, pelas ambições napoleônicas, "...el hecho de que la libertad - la aspiracion democrática y constitucional - sea uno de los elementos esenciales de la constelación originaria de América Latina, arrastra también consigo la primera gran paradoja de su historia: haber mantenido por mucho tiempo en pleno desacuerdo las formulas de una ideologia con las 'creencias' y conductas efectivas de la existencia cotidiana. Sobre un cuerpo de estructura agraria y vida tradicional se extendió la debil capa de una doctrina predominantemente liberal y urbana."9
A construção de sistemas políticos legítimos foi, portanto, aqui, desde sempre mais difícil, afetando a própria possibilidade da existência de um Estado em nossos países. O Estado surgiu onde a mencionada contradição se resolveu, aliás por meio de alguma forma de compromisso. Essa "contradición tuvo en muchas partes sus atenuaciones y compromisos; y alla donde así ocurrió - como en el caso de Chile - comienza temprano la autentica organización del Estado". Entendendo o caso do Chile, onde o Estado se forma muito antes dos demais, como uma exceção, Medina encontra a regra geral a partir da formação do Estado nacional na Argentina, tomando como referência inicial a batalha de Monte Caseros. E acrescenta que onde esse compromisso ocorreu temos o conteúdo da fórmula política dos regimes oligárquicos com a sua clássica distinção entre liberais e conservadores.
Sem risco de perder especificidade analítica, a noção de legitimidade política em Medina recobre um vasto campo histórico. Se quisermos uma comparação, a teremos, por exemplo, no campo do pensamento marxista, na concepção de hegemonia, tal como entendida por Antonio Gramsci. Medinamenciona Estados, classes, governos, crenças, ideologias, instituições, etc. Tudo isso, ao invés de suscitar a dispersão do pensamento, se acha articulado por um claro fio condutor: o de se buscar entender as possibilidades de que uma sociedade estabeleça estruturas de mando que estejam autorizadas ou consentidas pelos indivíduos que a compõem. Isso significa dizer que a questão da legitimidade política diz respeito à possibilidade de um povo governar-se a si próprio. E é isso, finalmente, o que se encontra na raiz da noção de democracia. E é isso, finalmente, de que se fala quando se reivindica o primado da razão histórica sobre a razão instrumental.
A confiança na razão tem as suas exigências. E às vezes nos coloca ante situações embaraçosas. Se seguirmos, como faço aqui e tenho feito, em outros trabalhos10, a perspectiva de Medina, que, como já disse, entendo aparentada na raiz comum dos clássicos da sociologia e da política, a qualificação do longo período que se abre, na história da América Latina, com a crise de 1929 e com as mudanças dos anos 30, comporta objeções que devem ser enfrentadas. Se falamos de legitimidade, no sentido de Medina (ou de hegemonia, no sentido de Gramsci), com toda a amplitude histórica que vimos esboçando até aqui, o período desde os anos 30 para cá comportaria mais de meio século de crise de legitimidade ou, se se quiser, mais de meio século de crise de hegemonia. A objeção é de que esta seria uma duração excessiva para uma crise/Qualquer crise, diz-se, de duração tão larga se tornaria no seu reverso, isto é, em padrão de sua própria normalidade.
O problema maior desta crítica está em que, razoável no plano da mera especulação teórica, ela se acha, porém, desautorizada pela história, tal como esta foi vivida, e tal como continua sendo vivida, pelos participantes e protagonistas. A verdade é que estes viam (e continuam vendo) a história de que faziam parte como uma história de crise. E tomaram parte nela com a consciência de que se tratava de uma crise. Em alguns momentos, viram a crise como um fenômeno crônico, mas assim como falar de uma doença crônica não significa dizer que o seu portador se encontra em plena saúde, também o falar de uma crise permanente não significa, de nenhum modo, transfigurar a sociedade que a sofre em uma sociedade estável, ou seja, capaz de estabelecer para si o padrão de sua própria ordem. Ao longo de todo este período, foi (e continua sendo) um traço característico da consciência latinoamericana o saber que as coisas estavam (aliás continuam) "erradas", de algum modo erradas, qualquer que fosse o lugar e as razões que se encontrassem para o "erro".
De alguma forma, a referência à crise traz implícita alguma noção da racionalidade histórica. Penso que a referência à crise se mantém para este período porque, embora longo, ele comporta acontecimentos que não se enquadram naquilo que consideramos, tanto do ponto de vista da teoria quanto do ponto de vista normativo, devesse ser a sociedade ou o Estado. Parece-me claro que, nisso, pelo menos, isto é, na consciência da crise e das suas urgências, os latinoamericanos expressam, de modo cabal, sua pertenencia ocidental, isto é, suas origens e suas heranças européias, como Medina gostava de dizer. Esta capacidade de fazer a história e a sua crítica tem algo que ver com a condição latinoamericana, uma história que acompanha a da Europa à distancia mas sem nunca separar-se por completo, uma condição que, desde as origens mais remotas, envolveria o "haver mantido por muito tempo em pleno desacordo as fórmulas de uma ideologia com as 'crenças' e condutas efetivas da existência cotidiana". Em todo caso, o certo é que, consideradas de conjunto as vicissitudes deste longo período histórico, nada poderia ser pior do que o hegelianismo barato que, às vezes, porém, circula nos melhores ambientes; segundo o qual "todo o real é racional". Quem considera uma crise como normal pelo fato de que a crise é demorada, está a um passo de renunciar à teoria, se é que tem alguma, e a dois passos de renunciar à razão. Esse tipo de atitude intelectual é, na verdade, uma demissão do intelectual. Quando e onde isso teve vigência entre nós, só serviu para coonestar iniqüidades e para desembocar nas formas mais sinistras do elogio da irrazão e da violência.
Não tenho aqui a possibilidade senão de algumas poucas linhas sobre esta época de crise. Deste modo, digo apenas que tendo sido de crise foi também, sem dúvida, uma época de transformação, da qual dão exemplo a intensificação da industrialização e da urbanização, indicando que a sociedade estaria criando as condições de sua própria reorganização futura. Mas, na ausência das oligarquias, ou das "velhas classes", faltam aqueles segmentos que Medina chama de "elites de reemplazo"e que só poderiam surgir das novas classes emergentes. E na sua falta, a crise se comunica também ao sistema institucional, afetado por uma instabilidade crônica que se revela nas ameaças constantes de golpes de Estado e em fenômenos políticos como os populismos e as intervenções militares, ambos tentativas de preencher o "vazio", "el hueco de la estructura de poder".E como é próprio de toda estrutura de poder em crise, se este já não é dirigido pelas elites tradicionais, também não se revela capaz de substituí-las. Elas continuam, seja através de tentativas de restauração, seja por força do seu tradicional prestígio social e cultural, em todo caso dotadas de uma permeabilidade que, se não garante a legitimidade de suas pretensões de dominação social, basta para assegurar a sua sobrevivência nas vizinhanças do Estado.
III - Modernização e Democracia
Como se apresentam hoje os dilemas da legitimidade política? Penso que é inevitável começar pela constatação de um sentimento, mais ou menos geral, de desencanto que afeta os países democráticos (ou em transição) da América Latina. Talvez o desencanto não seja específico das democracias em formação, como a do Brasil, ou em consolidação, por exemplo a da Argentina. Talvez seja um fenômeno mais geral, nem mesmo específico da América Latina. Fala-se, por exemplo, de um grande desencanto na Espanha, e de democracia consolidada depois do ocaso do franquismo e já no governo socialista. Poderia ser um desencanto com a democracia? Poderia ser um desencanto com a política, em seu sentido geral? Estaríamos de volta às atmosferas políticas carregadas de tensão e de descrença que, nos anos 60, abriram caminho para a implantação dos regimes militares? Estaríamos vi vendo as preliminares de um retrocesso histórico?
O tema da legitimidade política se relaciona com a questão mais geral da legitimidade da política enquanto tal. Isso é particularmente verdadeiro para o caso do Brasil, que, porém, me parece generalizável, pelo menos neste aspecto, para outros países da América Latina. No meio da crise em que vivemos, muita gente duvida que se possa encontrar saída para os seus problemas através da política. Existem, por exemplo, pressões sociais fortes, de há muito represadas e que não têm como ser atendidas de modo imediato. Seja por esta razão ou por outra qualquer, muita gente - e isso inclui tanto indivíduos quanto grupos ou setores sociais - entende que tem que resolver seus problemas sozinhos, fora das arenas políticas. Isso para não mencionar os que estão convencidos de que os problemas, os seus e os dos outros, simplesmente não têm qualquer perspectiva de solução.
O movimentismo e o corporativismo são expressão disso. Eles expressam, quaisquer que sejam os setores sociais onde sé manifestam, uma angústia que leva as pessoas e os grupos, em meio à crise, a tratar de defender-se de qualquer maneira. Para mencionar apenas movimentos sociais conhecidos e grupos dotados de alta capacidade de organização, temos sinais disso tanto em movimentos de trabalhadores pobres do campo, quanto em setores do professorado, bem como em grupos de banqueiros e parcelas do empresariado industrial. As razões econômicas e de justiça social que impulsionam grupos tão diversos são, evidentemente, muito diferentes. Não há como colocar no mesmo saco o corporativismo de certos grupos de banqueiros e o movimentismo de certos setores populares. Mas não há também como deixar de perceber a deterioração da atmosfera política, um clima pesado do "salve-se quem puder".
É uma espécie de "estado de natureza" hobbesiano, uma espécie de "estado de guerra" implantado entre os grupos sociais e os grupos econômicos mais diversos. Quem pode extorquir lucros extraordinários (ou, como é mais freqüente, juros a taxas de especulação) o faz sem maior preocupação com os protestos; quem pode se defender se defende, com os recursos que tem à mão, quaisquer que sejam, embora às vezes se atritando com outros setores com interesses sociais semelhantes. É que quem não pode explorar nem tem capacidade para se defender, paga a parte mais pesada da crise (e da dívida). Tudo isso no ambiente de frenesi criado por uma inflação galopante que anda perto dos 20% ao mês e que ninguém, aparentemente, se revela capaz de controlar. Anoto observações do mesmo tipo, vindas de Aldo Solari e de Jorge Graciarena, para os casos do Uruguai e da Argentina11.
Talvez não seja ainda aquela situação que don José Medina menciona, em certo momento de suas Consideraciones Sociológicas, como anomia generalizada. Mas anda perto disso ou, pelo menos, faz temer que algum dia possamos chegar lá. Não é apenas uma crise de Estado, um Estado ao qual, aliás, se atribui, entre outros males, ser uma fonte da inflação e do autoritarismo. É também uma situação de desmoralização da atividade política e dos próprios políticos como figuras reconhecíveis pela sociedade. Se amplos setores da sociedade civil descrêem da política, como seria possível estancar a corrente do autoritarismo que, realimentada, continua a fluir mesmo depois do fim dos regimes militares, como mostram os exemplos, embora bastante diferentes entre si, da Argentina e do Brasil? Mais importante do que isso: se existe um grande desencanto com democracias que recém começam a funcionar, que dizer das suas possibilidades de consolidação?
Creio, porém, que nem tudo são problemas e dificuldades. Apesar da experiência recente da ditadura, o Uruguai é provavelmente o melhor exemplo de que dispomos na América Latina de como a modernização de uma sociedade pode sustentar uma cultura política democrática. Algo perto disso se pode dizer da Argentina, pelo menos no que se refere ao sistema partidário. Mas mesmo no caso do Brasil, onde é muito maior o peso da vida agrária e da tradição, o processo de transição política - que tem caminhado sob o impulso das lutas de resistência democrática e das lutas de natureza estritamente política - tem avançado também sob a pressão, digamos extrapolítica, da modernização da sociedade, isto é, da intensificação dos processos de urbanização e de industrialização. Estes processos, como sabemos, vêm de muito antes do regime militar mas ganham um novo ritmo nas últimas décadas.
Creio que se pode afirmar, para o caso do Brasil, que a transformação da democracia em um valor geral, isto é, num elemento relevante da cultura política, é um fenômeno recente das circunstâncias da época de lutas contra o regime militar. (No caso do Uruguai, isso deve ser coisa de épocas muito anteriores). Mas, ainda para o caso do Brasil, também podemos dizer que esta generalização da democracia como um valor deve algo às circunstâncias de crise econômica e social que acompanham o processo de transição democrática e que se prolongam até hoje. Em circunstâncias nas quais a crise multiplica os conflitos e os generaliza na sociedade, a democracia pode aparecer como um mecanismo eficaz para a construção de uma ordem política satisfatória. Isso aparece assim senão para a maioria da sociedade, pelo menos para a maioria daqueles que, durante e depois da ditadura, lutam para participar da política.
Significa dizer que aquilo que aparece como um problema de um ângulo, ou seja, a ameaça de uma anomia generalizada, também pode aparecer como uma condição favorável, dependendo da capacidade das lideranças e das instituições enfrentarem o problema. O mesmo que se diz da crise pode ser dito dos seus efeitos. O movimentismo e o corporativismo podem ser vistos não apenas como fatores de deterioração política mas também como o modo, de início politicamente caótico e confuso, pelo qual se realiza a conflitividade normal de interesses em uma sociedade moderna e democrática. Além disso, convém lembrar que o fato de que a democracia se torne um valor geral significa também que se aguça na sociedade a memória de uma época em que o regime militar administrava os conflitos de modo autoritário e, certamente, de modo muito insatisfatório, pelo menos para a maioria dos participantes (ou dos que aspiravam à participação). Evidentemente, os sinais da existência desta memória teriam que ser muito mais visíveis no Uruguai e na Argentina, sociedades mais modernas onde os regimes militares foram bem mais desastrosos do que no Brasil.
No mesmo sentido, penso oportuno recordar uma reflexão de Luciano Martins assinalando a implantação, nos últimos decênios, do que ele chama de um ethos capitalista na sociedade brasileira12. Este fenômeno, provavelmente muito anterior na Argentina, no Uruguai e Chile, teria se tornado geral no Brasil, alcançando mesmo aquelas regiões nas quais sobrevivem ainda muitas relações sociais de tipo pré-capitalista. Martins assinala, deste modo, um processo de transformação, já observado de outros ângulos por outros pesquisadores, que teria levado não apenas à modernização, via "milagre econômico", das bases estruturais do sistema capitalista implantado no país, como à generalização dos valores e normas de conduta social e econômica que um sistema capitalista moderno exige. Para dizer o mesmo com os conceitos de Medina, ainda ali onde permanecem padrões originários do sistema de hacienda, o essencial daquilo que determina o conjunto da vida social tem hoje origem no sistema da empresa e da cidade.
Existiriam, de fato, as célebres vantagens do atraso? Poder-se-ia dizer que o Brasil se beneficie, em algum sentido, por chegar mais tarde à modernidade, quando comparado com a Argentina, o Uruguai e o Chile13? Se não se pode, em geral, falar de vantagens nem de desvantagens, há pelo menos um ponto significativo a atribuir ao atraso relativo do país. Não se pode acusar o regime autoritário brasileiro de haver destruído a economia do país, como se diz com freqüência a respeito do regime militar argentino. No Brasil, os militares deram a sua resposta, muito autoritária evidentemente, aos temas reformistas apresentados pela sociedade brasileira nos anos 60: repressão dos movimentos populares, os quais visavam as reformas sociais, e a incorporação de todos os temas reformistas que suscitavam a necessidade de mudanças econômicas ou outras que pudessem conduzir à modernização do sistema capitalista no país.
Entre estas mencionem-se as reformas do sistema tributário, da administração pública, a modernização dos correios e dos serviços de comunicação em geral, os novos mecanismos financeiros de captação de poupança, a racionalização (e concentração) do sistema bancário, etc. Sem esquecer as áreas onde as reformas do regime militar tiveram o sentido, não de uma alternativa aos movimentos reformistas anteriores, mas de contra-reformas, entre as quais a reforma da educação universitária (resposta contra os movimentos reformistas dos estudantes), a implantação do MOBRAL (resposta contra os movimentos de alfabetização de adultos, em geral de inspiração de esquerda) i a definição do Estatuto do Trabalhador Rural (resposta contra os movimentos que visavam a reforma agrária).
Ficam, porém, algumas perguntas. Consideradas as dificuldades atuais da democratização brasileira, sem dúvida maiores do que as do Uruguai e da Argentina, pode-se dizer que o "êxito" anterior do regime militar ajuda ou atrapalha as perspectivas de consolidação democrática? Mas há ainda uma segunda pergunta. Com todas as suas diferenças de desempenho, as quais respondem às diferenças existentes entre as sociedades nacionais onde emergiram, não terão os regimes militares conduzido, apesar deles próprios, e tanto por seus "êxitos" quanto por seus "fracassos", ao resultado comum da superação definitiva das velhas sociedades agrárias (ou pastoris) que foram, no passado, todos estes países? Tanto nos casos em que suas políticas de modernização, todas de corte neo-liberal e seguindo mais ou menos os mesmos figurinos, tiveram êxito, quanto nos casos em que fracassaram, parece claro que ao fim dos regimes militares se assiste também ao enterro do que ainda restava das imagens destas sociedades como sociedades agrárias. Significa dizer que, pelo menos nos países do Cone Sul (considerando-se incluído neste o caso do Brasil), os dilemas da legitimidade política e os problemas correlatos de construção da democracia têm a ver hoje, sobretudo, com os problemas de sociedades de perfil moderno e urbano. O que, evidentemente, não é bastante para resolver as óbvias dificuldades da conquista e da consolidação da democracia nestes países, mas que deixa pelo menos o consolo de que entre essas dificuldades já não ocupam o primeiro plano aquelas típicas de sociedades agrárias de tipo tradicional e oligárquico.
IV - Legitimidade e Instituições Políticas
Quais as diferenças entre os dilemas da legitimidade política, tais como se apresentam hoje e tais como se apresentavam no passado? Aqui é necessário enfrentar um problema que estava apenas implícito em minha exposição e que foi retomado, ampliado e tornado explícito, por Adolfo Gurrieri14. Pode-se falar de legitimidade política para as sociedades tradicionais, diz Gurrieri, porque elas conseguiram alguma coerência nisso que Medina chamava de seus "suportes" materiais, ideológicos e políticos. Conseguiram alguma coerência entre o sistema da hacienda, a classe dirigente oligárquica, o sistema partidário (liberais versus conservadores) e o liberalismo como fórmula política. Gurrieri não deixa de reconhecer, falando agora para a época atual de crise, que tenham evoluído as condições materiais no rumo de uma sociedade moderna e industrial, mas assinala, junto com Graciarena, que neste processo a concentração de poder na sociedade alcançou uma tal escala que parecia tomar as coisas ainda mais difíceis. Diz ele: "hay una incoherencia basica y aparentemente cresciente entre el suporte material y nuestras utopias democráticas". Daí as questões que sugere: uma situação como esta não tornaria muito provável o desgaste, se não das democracias, pelo menos o dos governos democráticos? Ao invés da democracia servir à mudança da sociedade, não estaria condenada a ter que se adaptar à sociedade que existe e à estrutura de poder que existe?
Na busca de uma resposta para tais questões, começo por assinalar, no quadro de uma rápida comparação histórica, que os dilemas da legitimidade política, tal como podemos vê-los nos anos 80, sugerem um panorama bastante diferente daquele que Medina podia constatar nos anos 60. Não um panorama menos preocupante, talvez até mais; em todo caso, bastante diferente, Em primeiro lugar, se nos anos 60, o sistema da hacienda, embora em crise, ainda permitia a hipótese de uma restauração oligárquica, parece claro que tal possibilidade se encontra definitivamente afastada do horizonte nos anos 80. Quaisquer que sejam as nossas perspectivas para o futuro, parece claro que as "velhas classes" entraram definitivamente no plano inclinado que conduz ao seu desaparecimento como fator de poder. Para o bem e para o mal, o sistema social destes países tem, hoje, por referência a empresa e a cidade.
Em segundo: permanece, por certo, a questão weberiana sobre a classe dirigente, segundo a qual a "velha classe" já não governa e a nova ainda não tem capacidade para governar. Mas depois dos regimes militares, os quais, com seu autoritarismo, negaram qualquer capacidade de governo à sociedade civil, a velha questão da classe dirigente teria que aparecer em patamar inteiramente diferente, e talvez não tão difícil quanto se poderia imaginar. Há quem, tomando como base o crescimento do corporativismo e do movimentismo, conclua que, em uma época de crise prolongada, a modernização, isto é, a urbanização e a industrialização, não contribuem para a formação de classes com capacidade de direção política. Numa concepção que qualifiquei mais atrás como menos ambiciosa e mais realista sobre as classes e, em particular, sobre as classes dirigentes, me parece que os setores sociais, hoje engolfados no movimentismo e no corporativismo, estão simplesmente fazendo o seu primeiro ensaio de participação no plano do social para, amanhã, assumirem as suas responsabilidades no plano da política. Isto é, se no plano político tivermos condições institucionais adequadas para tal.
Em terceiro: aqui, na questão institucional, está a maior dificuldade, Don José Medina via, nos anos 60, a raiz da crise de legitimidade ligada à quebra do sistema bi-partidário tradicional: "la quiebra de la combinación bipartidista tradicional que acompaña al ocaso del sistema de la hacienda es el resultado de ¡a transformación profunda antes reseñada, es la consecuencia de la aparición de las nuevas clases médias - urbanas y en parte rurales -, es el derivado de la confusa descomposición ideológica que acompaña o se mezcla con esos mismos fenomenos"15. Neste particular, a situação permanece mutatis mutandis muito semelhante nos termos fundamentais do problema. Nos anos 80, esta associação entre a modernização, que Medina aqui expressa no aparecimento de novas classes, a crise de poder (ou de legitimidade) a questão institucional, que Medina aqui representa pela questão dos partidos - esta associação teria que ser não só reafirmada como enfatizada com toda a força Até porque os fenômenos de "decomposição ideológica" são hoje muito mais violentos do que em qualquer momento do nosso passado.
Segundo me parece, e aqui retomo um aspecto central dos problemas propostos por Gurrieri, a coerência entre os "suportes" materiais, ideológicos e políticos não é dada mas produzida. E isso é uma tarefa sobretudo das instituições políticas, em especial, dos partidos. Acontece que nos anos 80, o "elo débil" da associação modernização, poder (legitimidade) e instituições (partidos) está, precisamente, nas instituições políticas e, particularmente, nos partidos. Em que pesem os avanços que se assistem nesta área, em especial nos casos da Argentina e do Uruguai, mesmo nestes, que são os países mais modernos do Cone Sul, persistem problemas típicos de um processo mal resolvido, ou ainda não resolvido, de construção partidária. O Uruguai mantém ainda um sistema de "partidos tradicionais" que funcionam mais como legendas eleitorais do que como capacidade de agregação de demandas e de definição de políticas governamentais. A Frente Amplia, o "terceiro" no jogo, é a novidade que se pode esperar que venha a contribuir para uma modernização do conjunto do sistema partidário.
O caso argentino, motivo de tanto pessimismo na área militar e na área econômica, é, talvez, o que permite maiores esperanças na questão partidária. Em especial, depois das suas duas experiências eleitorais recentes: a primeira, que elege os radicais de Alfonsin e derrota os peronistas, a primeira derrota sofrida pelos peronistas no campo aberto da luta democrática, pois até então eles só haviam sido derrotados pelas armas; a segunda, na qual os peronistas, ao invés de se colocarem como outsiders do jogo democrático, reafirmam seu compromisso com a democracia e vencem os radicais no mesmo campo democrático. Se é verdade, como diz Robert Dahl, que a democracia começa no momento, que vem depois de muita luta, em que os adversários se convencem de que a tentativa de suprimir o outro é mais dispendiosa do que conviver com ele, talvez possamos sustentar a hipótese de que as recentes disputas eleitorais argentinas assinalam o começo de um sistema partidário moderno e estável. Para que tal alternância de resultados ocorresse, parece-me necessário supor que os dois grandes adversários tivessem que se aproximar um pouco no momento em que a disputa se tornava mais acirrada. O que significa que tenham se tornado, ambos, solidários com a democracia que lhes assegurava a possibilidade de competir e que tenham isolado os inimigos da democracia16
Embora com a vantagem dos impulsos derivados do crescimento econômico e da modernização recentes, a situação brasileira é, talvez, a pior quando se discute a questão institucional e, em particular, a questão partidária. Se limitarmos o raciocínio aos grandes partidos, aqueles que têm, no momento, as responsabilidades maiores de dirigir o Estado, o quadro é desolador. Temos, no Brasil, grandes partidos políticos que, contudo, não formam governo e que, portanto, não assumem responsabilidades de Estado. São partidos que se definem apenas para funções eleitorais e para a administração de interesses de clientelas. No Brasil, os grandes partidos têm hoje algo dos "partidos tradicionais" do Uruguai, mas infelizmente sem a cultura política democrática deste país. As políticas de governo começam a explicitar-se não antes das eleições mas depois. Em muitos casos, só se explicitam depois que o partido chegou ao governo; ou melhor, depois que o governo, já eleito, começa a definir seu ministério ou seu secretariado. Nesta hora, que é tanto de disputas em torno de políticas quanto de disputas em torno de cargos e de prebendas, tem início uma separação ao invés de uma aproximação maior entre o governo e o seu partido. Daí por diante, os partidos governistas começam a emitir sinais de que não respondem pelo governo, ao qual só permanecem ligados através daqueles políticos que, em caráter pessoal, chegaram ao ministério, ao secretariado ou a qualquer função que considerem importante.
O caso do Brasil serve para ilustrar, em sentido negativo, a importância dos partidos para a consolidação de um regime de legitimidade política. Não temos partidos fortes, portanto, temos uma democracia frágil. E, contudo, a democracia se defende e, até aqui, sobrevive. Como? A democracia, no Brasil, não se defende ou se pratica de modo organizado, através de partidos políticos, mas de modo difuso, através de movimentos políticos, na maior parte das vezes sem identidade definida. São movimentos políticos que, às vezes, só existem no sentido cultural da palavra; nem mesmo têm consciência da sua própria existência, são simples emanações do processo de modernização e de um sentimento de valorização da democracia que ainda resiste ao desencanto. Isso dá sinal da força e da debilidade da democracia no Brasil. Uma democracia forte, porque enraizada nos "suportes" materiais, na "força das coisas", mas muito débil do onto de vista institucional.
V - Democracia e Reformas
Um regime de legitimidade política só pode ser a democracia. Este é o grande tema na agenda histórica dos nossos países hoje. É o que fica de essencial quando comparamos os dilemas da legitimidade política entre os anos 60 e os anos 80. E isso porque a democracia é o único regime que organiza, isto é, institucionaliza, o consentimento popular, sem o qual a legitimidade perece. E é este o único paradigma de que podemos dispor para discernir os dilemas da legitimidade política na atualidade17.
Existem épocas nas quais a grande luta política se dá entre ditadura e democracia. O Chile do período Allende e o Brasil de João Goulart, cada qual cornil suas peculiaridades, são casos expressivos de uma luta entre uma democracia de esquerda (Allende) e uma democracia populista (Goulart) e ditaduras de direita. Temos vários exemplos mais recentes do que significam lutas entre ditaduras e democracias na história dos países latinoamericanos que passaram pela experiência das ditaduras militares. Existem também épocas nas quais a grande luta se dá entre diferentes formas de ditadura. A revolução russa é um caso nítido, mas de modo algum o único, de luta entre uma ditadura de direita e uma ditadura de esquerda. Um caso que, como outros, se resolveu pela esquerda. Há, em especial nos anos 30, vários exemplos de casos deste mesmo tipo que, porém, se resolveram através de ditaduras de direita.
Mas existem também épocas - e penso que é o nosso caso agora - nas quais a grande luta se dá no campo da democracia. Pode-se dizer que, no essencial, trata-se de uma grande luta histórica pelo significado da democracia. Na Argentina, um militante do Partido Justicialista (peronista) terá da democracia uma visão diferente, talvez muito diferente, da visão de um militante da União Cívica Radical. No Brasil, um militante do Partido dos Trabalhadores (PT) tem, por certo, uma visão da democracia que se diferencia bastante daquela de um militante do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e estas duas imagens da democracia se distinguem em muitos pontos da visão de um militante do Partido da Frente Liberal (PFL) ou, mais ainda, do Partido Democrático Social (PDS). Mas sustento que, nos dois países, estas e outras forças políticas estarão obrigadas a propor a sua visão da democracia. E estarão obrigadas a dar seu combate sobre o significado da democracia no terreno da democracia.
Estes países em transição virão a ter, talvez, uma democracia representativa de tipo liberal tradicional, ou uma democracia liberal moderna, isto é, de algum conteúdo social, ou uma democracia moderna de massas, com ampla participação popular, ou uma democracia socialista moderna, isto é, de massas, representativa e pluralista, mas também com variados mecanismos de participação direta. Poderíamos formular ainda outras hipóteses. Por exemplo, é bem possível que em alguns países, como por exemplo o Brasil, terminem prevalecendo democracias de corte marcadamente conservador. Em todo caso, o certo é que a disputa em torno do significado da democracia é uma disputa central em nossa época. Nenhuma força política com vocação para o poder, ou melhor, com vocação para a hegemonia, capaz portanto de se propor como representante de forças sociais aptas a exercer funções de classe dirigente na sociedade, pode simplesmente ignorá-la. Um regime de legitimidade política só pode ser a democracia, e a definição daquilo que se entende por democracia é parte essencial do conteúdo das políticas de qualquer classe que pretenda disputar as funções de classe dirigente na época atual.
O debate sobre a democracia é, nas condições da América Latina, uma discussão sobre a legitimidade política e, portanto, sobre as formas políticas e institucionais sem as quais não se pode falar de legitimidade18. Mas é também uma discussão sobre a eficácia da democracia; o fato de que tomemos a democracia em primeiro lugar pelo ângulo da legitimidade "no puede desviarnos de reconocer que la democracia pueda morir por ineficaz"19. Não se trata, evidentemente, de subordinar o valor da democracia ao crescimento econômico. Antes pelo contrário, pois como diz Medina, "si mucho se aprieta es más importante la legitimidad que la eficácia".Recordo que numa análise das relações entre a democracia e a riqueza, don José Medina afirmava a democracia como um valor em si da maneira mais nítida possível: "...frente a la realidad latinoamericana interesaba especialmente la subrayada acentuación que cobran los aspectos de legitimidad. Y pués que ha habido antes extensas referencias a la correlación 'materialista democracia y riqueza, es justo insistir ahora en la versión 'idealista' que insiste más que nada em el valor de las creencias, en el peso de seculares 'vigencias intangible' (valor del sistema político, valor de la autoridad legitimamente constituida, valor de las reglas del juego, valor del dialogo entre iguales, valor del significado humano del compromiso razonable)"20.
Existem, por certo, na América Latina de hoje os que desejam a democracia "ao menor custo possível". Como diriam Enzo Falletto e Aníbal Quijano, existem os que entendem que as reformas poderiam colocar a democracia em risco e, por isso, teriam que ser reduzidas ao mínimo. São aqueles que, como diz Falletto, pareceriam entender o tema da democracia nos seguintes termos: "preservemos la democracia y no transformemos mucho las cosas para preservar la democracia".Neste caso, caminharíamos para uma situação paradoxal, de uma democracia que, para se preservar, evitaria tanto quanto possível as situações de conflito. Ou nas palavras de Quijano: "en la medida en que la democracia se convierte solament en un campo de negociaciones y de conciliación, entonces todo se va achatando, porque efectivamente no hay nada que cambie de manera importante en área alguna en la vida cotidiana".Como se pode ver, as indagações sobre a eficácia da democracia podem ser não indagações exteriores mas indagações sobre o seu conteúdo, isto é, sobre o seu verdadeiro significado. Se a democracia não existe como espaço de conflitos, qual o sentido da democracia?21
Asseguradas as devidas diferenças na hierarquia dos valores, há a reconhecer que as questões da vida social e econômica não podem ser vistas como alheias ao sentido de urna democracia moderna. Todos sabemos que um dos impulsos importantes da democratização é o crescimento do emprego, a correção da desigualdade social extrema, a redistribuição da renda, etc. O tema da construção institucional, isto é o tema típico da democracia política, leva ao tema da democracia social e, por conseqüência, ao tema de urna política de reformas para a economia e para a sociedade22. Haverá, segundo os partidos, os interesses e as classes, diferentes concepções sobre quais devem ser as reformas, sobre como devem ser realizadas e a quem devem beneficiar. Depois do ocaso das "velhas classes", é difícil imaginar qualquer "nova classe" - sejam a burguesia, o operariado, as "classes médias" ou o que mais se admita como possível no campo das classes emergentes - que possa ter pretensões de "classe dirigente" na sociedade sem apresentar a esta uma perspectiva de reformas, que mais adiante terá que se converter em uma política de reformas23.
Há algo mais. Desde os anos 30 até os anos 50, estes temas apareciamem nível nacional, isto é, ao nível de cada país, e podiam obter respostas adequadas neste nível. Don José Medina menciona, por exemplo, que uma das tarefas históricas da América Latina era a da integração nacional, entendendo como tal a integração das populações no interior de uma nação, a questão do dualismo estrutural, a questão da heterogeneidade cultural, etc. Possivelmente, uma boa parte destas questões continue na agenda histórica da maior parte das nações latinoamericanas. Penso, porém, que nos dias de hoje é preciso resgatar a relevância de um outro tema tratado também por Medina. Refiro-me à necessidade da integração latinoamericana, se não a integração do conjunto dos países da região, perspectiva improvável nas circunstâncias atuais, pelo menos a de países assemelhados por interesses comuns e que, de imediato, apresentem a possibilidade de uma união. Existem algumas experiências de êxito nos esforços da integração latinoamericana e que de veriam estimular novos esforços no rumo de uma integração maior.
A verdade é que, em meio a uma ordem internacional que também se acha em crise e em processo da redefinição, a maior parte dos países latinoamericanos enfrentará enormes dificuldades, talvez dificuldades insuperáveis, para se tornarem viáveis como sociedades modernas e democráticas. Sempre existem exceções, mas para a maioria torna-se urgente o tema da integração: ou se integram entre si para sustentar, em conjunto, sua autonomia no plano internacional, ou se integram a alguma grande potência, mas em posição de subordinação. O que significa o conceito de soberania para a maior parte dos Estados latinoamericanos quando têm, hoje, que disputar com o sistema financeiro internacional a questão da dívida externa? E convém não esquecer que, por importante que esta questão se apresente neste momento, é apenas um exemplo. Todos sabemos que existem-vários outros.
VI - Os Paradigmas e os Intelectuais
Porque se referem aos rumos, à direção, ao sentido que a sociedade haverá de tomar, os dilemas da legitimidade política propõem, hoje como nos anos 30 e nos anos 60, o debate sobre os grandes temas do desenvolvimento político e econômico dos países da América Latina. Deste modo, somando-se ao tema novo (seria mesmo novo?) da construção institucional da democracia, voltam à agenda histórica os temas referentes à mudança da sociedade e à viabilidade nacional dos países da região. É o grande debate que travam, ou deveriam travar, hoje, as classes que pretendem um dia chegar a ser dirigentes. E que travam, ou deveriam travar, os intelectuais, sejam, os "orgânicos", os "tradicionais" ou quaisquer outros.
Nestas circunstâncias, seria indispensável que voltássemos as discussões sobre os projetos e os paradigmas, discussões que andavam muito em voga nos anos 30 e nos 60 e que se acham inteiramente fora de moda nos dias de hoje. Não se trata, evidentemente, de repetir o dogmatismo, seja esteromântico ou vulgar, dos paradigmas dos 60, seu autoritarismo implícito (às vezes explícito), seu iluminismo e seu elitismo. Nem se pretende que coma volta do debate sobre os projetos e os paradigmas venhamos a repeti-los ou defini-los segundo o mesmo estilo de antes. Acontece, porém, que não podemos ficar sem algum tipo de visão global sobre estas sociedades, se é que pretendemos torná-las viáveis, se é que pretendemos reformá-las (ou transformá-las) e se é que pretendemos nelas viabilizar a democracia. Ou seja, se é que pretendemos reencontrar a "coerência" dos seus "suportes".
Um artigo muito interessante de Adam Przeworski fala da democracia como um resultado eventual de conflitos ("contingent outcome of conflicts"). Sua tradução brasileira tem um título muito livre mas muito sugestivo: "Ama a incerteza e serás democrático"24. Minha convicção, em contraste com Przeworski, é que a democracia na América Latina, além de um resultado contingente de conflitos, tem que ser um programa político. Não, pelo menos não necessariamente, um programa partidário, mas certamente um programa de vários partidos, os quais, a despeito de suas muitas divergências sobre outras questões, terão que inscrever a construção da democracia como a primeira de suas prioridades. E mais: terá que ser um programa não só dos partidos, por plurais e numerosos que sejam, mas também de instituições intelectuais, culturais, religiosas, sindicais, profissionais, etc. Em uma palavra: terá que ser uma cultura organizada. Se, na América Latina, deixarmos o jogo das forças "à sua espontaneidade", como se estivéssemos diante de um mercado político já estabelecido, teremos provavelmente coisa muito pior do que uma possível regressão aos regimes militares. É bem possível que, nas circunstâncias econômicas, sociais e políticas que prevalecem nos países da região, tenhamos uma deterioração dos valores políticos, fenômenos de degenerescência social e de estancamento econômico, que restabelece toda a verossimilhança da hipótese de Medina sobre os riscos de uma anomia generalizada com todas as conseqüências terríveis e hoje, em grande medida, imprevisíveis a que uma situação como esta pode levar.
Muita coisa mudou na América Latina entre os anos 60 e os anos 80. Mas não mudou a urgência, "la conciencia de esa urgencia", como diz Medina. Esta "consciência da urgência" é, hoje como a vinte anos atrás, "la característica esencial del actual momento latinoamericano".Medina fazia, no início dos 60, isto é, antes do golpe de Estado de 1964 no Brasil e da série de golpes de Estado que se seguiram em diversos outros países, uma advertência semelhante. Mas naqueles anos, Medina admitia a possibilidade de restaurações oligárquicas, que não ocorreram, e de intervenções militares, as quais de fato ocorreram, instaurando uma época de triste memória em nossa história. Hoje, me parece,excluídas as possibilidades de restaurações oligárquicas e diminuídas, por força do seu próprio desgaste, as chances de novas intervenções militares, talvez não seja ao fantasma das regressões que devamos maiores temores. Se fracassarem as perspectivas democráticas, talvez estejamos condenados a coisa muito pior do que tudo o que já vimos no passado recente. Medina, nos anos 60, mencionava Weimar e o que se seguiu. E estas imagens parecem demasiado distantes de nós para que as tomemos como possíveis. Talvez não tenhamos mais à espreita um totalitarismo à la Hitler ou à la Stalin. Mas deveríamos estar mais tranqüilos por acreditar que regressões históricas como estas já não sejam possíveis? Entre as funções do intelectual, uma das mais importantes é a de espreitar os perigos e advertir sobre eles, propondo, se puder, as perspectivas que permitam superá-los.
Don José Medina Echavarria aparece como uma figura exemplar nisso que talvez esteja entre os papéis importantes que podem ter os intelectuais, em circunstâncias como estas que vivemos. Estes papéis são os de juntar informações, organizar conhecimentos e, se possível, projetar grandes idéias que resgatem o sentido da política e da razão histórica. Creio fazer justiça à memória de don José Medina tanto quanto às minhas próprias convicções, ao dizer que as funções dos intelectuais, neste mundo em crise no qual vivemos, incluem também o resgate das utopias. Das utopias liberais, socialistas, ou de outras que se imagine (e não nos esqueçamos que o liberalismo, como diz Medina seguindo Ortega y Gasset, é uma utopia, "es la decisión de convivir con el enemigo; es decirla capacidad del dialogo y del compromiso"). Mas terão que ser utopias democráticas e de molde a inspirar a ação no sentido da construção da democracia e da mudança de uma sociedade que ainda tem muito caminho a fazer até se afirmar como sociedade democrática.
Estas funções do intelectual na política não podem ser confundidas com as opções partidárias que tais ou quais intelectuais possam realizar. É que, em sentido estrito, as opções partidárias são opções de cidadãos. Como cidadãos, os intelectuais têm, como de resto quaisquer outros cidadãos,o direito de entrar ou não em partidos políticos. Mas caso o intelectual entre em um partido, tanto melhor se tiver a consciência de que isso não o exime de seus deveres de intelectual. E esses deveres são com a coleta de informações, com a organização do conhecimento e com a construção das grandes perspectivas de uma sociedade democrática e civilizada. Deveres que o vinculam; além de a seu partido, ao conjunto da sociedade.
O diálogo em torno da obra de don José Medina Echavarria que, não sendo homem de partido, era, porém, um cidadão de fina sensibilidade política, talvez se torne em uma oportunidade de resgate do papel do intelectual na política. Do intelectual que, estando nos partidos ou fora deles, se coloca a serviço da razão histórica e da construção da democracia.
Referências bibliográficas
- 1 Medina Echavarria, José, Consideraciones Sociológicas sobre el Desarrollo Economico de America Latina, Editora Solar/Hachette, Buenos Aires, 1964.
- 2 Weber, Max, Economia y Sociedad, Fundo de Cultura Econômica, Mexico, 1964, 2ÂŞ edição em espanhol.
- 6 Refiro-me à participação de Enzo Falletto no Seminário sobre "Cambios en los estilos de desarrollo en el futuro de America Latina"
- 10 Boa parte desta exposição se inspira no uso que dei ao conceito e ao tema de Medina sobre a legitimidade política em meu livro O Populismo na Política Brasileira, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1986, 3ÂŞ edição,
- 11 Conforme os registros cio Seminário sobre "Cambios en los estilos de desarrollo".
- 12 Refiro-me a uma exposição de Luciano Martins, no CEDEC, São Paulo, numa série de seminários realizados em 1987, sobre a transição brasileira.
- 13 Gostaria de lembrar, neste passo, as análises comparativas sobre os países do Cone Sul, de Fernando Fajnzylber, sobre o desenvolvimento econômico e a desigualdade social, e de Carlos Filgueira, sobre a mobilidade social, apresentados no II Forum Cone Sul, promovido pelo ILDES, em Colonia, Uruguai, Julho de 1985.
- 14 Eu me refiro aos debates no Seminário sobre "Cambios en los estilos de Desarrollo".
- 16 Seria interessante ver se a hipótese é generalizável também para os pequenos partidos argentinos. Embora em termos algo diferentes, encontro indicações para uma hipótese deste género em uma entrevista de Guillermo O'Donnell ao Jornal do Brasil. "Benedito Susto", 24-1-88.
- 21 De novo, faço referência à participação destes pesquisadores nos debates do Seminário sobre "Cambios en los estilos de desarrollo".
- 22 Este tema, clássico no pensamento político da época moderna, foi retomado, recentemente, no quadro do debate latinoamericano, por Femando Calderón e Mario dos Santos. Ver paper apresentado por estes autores no simpósio sobre Democracia, Totalitarismo e Socialismo, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, Janeiro de 1987.
- 24 Przeworski, Adam, "Ama a incerteza e serás democrático", revista Novos Estudos, Cebrap.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jan 2011 -
Data do Fascículo
Out 1988