Open-access TOLERÂNCIA POLÍTICA, NEUTRALIDADE E PLURALISMO NAS DEMOCRACIAS LIBERAIS

POLITICAL TOLERATION, NEUTRALITY AND PLURALISM IN THE LIBERAL DEMOCRACIES

Resumo

Este artigo discute a situação da tolerância política nas democracias liberais, analisando algumas críticas que lhe são dirigidas e tentando mostrar que, apesar dessas, sua relevância permanece. Para isso, é utilizado como fio condutor o recente debate sobre a relação entre tolerância e neutralidade, no qual é sugerida a incompatibilidade entre ambas. A seguir, é apresentada a resposta do filósofo político Peter Jones, segundo o qual é o compromisso dos cidadãos com a tolerância que pode levar, posteriormente, à proposição da neutralidade estatal nas democracias liberais marcadas pelo pluralismo. Por último, esta linha de defesa é complementada pela sugestão, contrária ao texto do próprio Jones, de que há uma implicação recíproca entre tolerância e neutralidade políticas em tais sociedades.

Palavras-chave: Filosofia Política; Democracia; Liberalismo; Tolerância; Neutralidade; Pluralismo

Abstract

This paper discusses the situation of political toleration in liberal democracies, analyzing some criticisms addressed to it and demonstrating that, in spite of this, its relevance remains. For such, the recent debate on the relationship between toleration and neutrality is adopted as a guideline, in which the incompatibility between both is suggested. Then, political philosopher Peter Jones’s reply on the commitment of citizens towards toleration that leads to the proposition of state neutrality in liberal democracies marked by pluralism is presented. Lastly, this line of defense is supplemented by the suggestion, contrary to the text of Jones, that there is a reciprocal implication between tolerance and political neutrality in such societies.

Keywords: Political Philosophy; Democracy; Liberalism; Toleration; Neutrality; Pluralism

Apresentação

A história da tolerância política se mistura com a das democracias liberais, já que as grandes transformações democratizantes, nelas ocorridas entre os séculos XVII e XIX, incluíram a previsão legal e a prática crescente de diversas formas de tolerância, especialmente a religiosa, como uma de suas bases. Além disso, aquela mistura também se aplica ao âmbito teórico, pois nomes como John Locke, Thomas Jefferson e Stuart Mill são comumente associados tanto à fundação e à consolidação teóricas das democracias liberais como à construção conceitual do ideal de tolerância. Assim, ao longo do século XX, essa firme e constante associação entre a tolerância e as crenças e práticas das democracias liberais se tornou uma obviedade e, enquanto tal, deixou de ser objeto central da reflexão teórica no campo da Filosofia política, que passou a se preocupar mais com questões como o poder político, o Estado e suas relações, embora conflitos e diferenças contornados pela aplicação prática da tolerância tenham continuado a existir.

Todavia, desde as últimas décadas do século passado, o ideal de tolerância voltou ao centro das atenções. Essa retomada de interesse teve uma motivação prática nas significativas modificações na composição populacional das sociedades democráticas liberais, com a mescla cada vez maior de etnias, culturas e religiões diversas convivendo em seu interior. Essas modificações são ainda mais drásticas se for recordado que, ao contrário do que ocorreu em períodos anteriores, em que houve afluxo de grande número de pessoas escravizadas e de trabalhadores imigrantes, ambos vistos como corpos estranhos, suportados apenas por razões de ordem econômica e sem direito à cidadania plena, atualmente, seus descendentes que nasceram nos Estados democráticos liberais ocidentais desfrutam formalmente da condição de cidadãos, o que significa que precisam ter seus interesses, inclusive os ligados à sua proveniência, levados em conta. É notório que essa exigência ainda não permite a superação das desigualdades econômicas e sociais, mas é inegável que antigas soluções intolerantes, como a segregação e/ou a proibição de crenças e práticas culturais diversas, não estão mais oficialmente disponíveis em tais Estados. Portanto, o modelo tradicional de tolerância, inicialmente estabelecido para uma diversidade limitada basicamente ao aspecto religioso e somente dentro de um espectro cristão, católico-reformado, ainda que potencialmente ampliável para além desse espectro, se vê defrontado com uma ampliação radical da diversidade, para a qual não foi projetado, e precisa ser repensado.

Em geral, o fenômeno de multiplicação da diversidade nas sociedades democráticas liberais tem sido tratado pela Filosofia política através de dois conceitos relacionados e que, algumas vezes, se sobrepõem: multiculturalismo e pluralismo. Aqui, será feita uma opção metodológica pelo segundo, com a utilização da famosa expressão cunhada pelo filósofo John Rawls, o “fato do pluralismo”, por dois motivos: primeiro, as teorias rawlsianas são o pano de fundo do debate sobre tolerância e neutralidade que será abordado adiante; segundo, a discussão do pluralismo feita por Rawls se liga à questão da tolerância desde sua definição inicial, apontando para sua necessidade diante das incompatibilidades constitutivas da pluralidade.

Uma sociedade democrática moderna não se caracteriza apenas por um pluralismo de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes, e sim por um pluralismo de doutrinas incompatíveis entre si e que, no entanto, são razoáveis. Nenhuma dessas doutrinas é professada pelos cidadãos em geral. (Rawls, 2011, p. xvii)

Entretanto, mesmo com o renovado interesse teórico pela tolerância e com a evidente necessidade prática dessa nas sociedades democráticas liberais, o ideal de tolerância política tem sofrido ataques de várias fontes. Seus mais óbvios e tenazes detratores têm sido sempre, justamente, os intolerantes, aqueles que julgam que qualquer diversidade mais profunda, seja ela moral, étnica e/ou religiosa, deve ser eliminada, ainda que violentamente, ou trazida à uniformidade, através de processos de assimilação/conversão. Aquilo que os torna adversários da tolerância é sua indisposição de tolerar a diversidade, isto é, sua recusa a se abster de tentar impedir aquilo que desaprovam. Essa definição será exposta adiante, porém, antecipando essa discussão, pode-se afirmar que uma estrutura conceitual mínima da tolerância deverá incluir a existência de algo que se desaprova, mas que, ao mesmo tempo, aquele que desaprova se abstém de tentar impedir, ou seja, tolera. É claro que nem tudo aquilo que se desaprova deve ser tolerado, pois as razões para se abster de interferir precisam ser mais fortes do que as razões para a desaprovação, o que estabelece os limites da tolerância. Porém, mesmo que a tolerância seja sempre limitada, o fato é que sua história, sua persistência nas crenças e práticas democráticas liberais, mostra que os ataques dos intolerantes não conseguiram prevalecer.

Por outro lado, uma nova e inesperada fonte dos ataques mais nocivos contra a tolerância é interna às democracias, produzindo uma espécie de “fogo amigo” mais difícil de responder, mas que é um dos propósitos deste artigo refutar. Há duas manifestações principais dessa rejeição interna. Uma delas, que não será aprofundada aqui, rejeita a primeira parte dessa estrutura conceitual, negando qualquer possibilidade teoricamente válida de desaprovação à diversidade, e adota apenas a segunda, que é abster-se de interferência sobre ela. Isso deriva do deslocamento recente na percepção teórica da diversidade, cuja positividade tem sido crescentemente defendida. De fato, na medida em que toda alteridade, especialmente a cultural, passa a ser considerada apenas como a concretização de mais um dos infindáveis modos de existência dos seres humanos, sem qualquer hierarquia entre eles, o que se poderia ainda reprovar de modo legítimo para que seja possível, posteriormente, tolerar? Esse tipo de percepção afeta a compreensão da tolerância, que passa a ser entendida como reconhecimento ou respeito em relação àquilo que é diverso, mas que pode reivindicar uma reciprocidade ou horizontalidade moral e política, ao contrário do que ocorria com o modelo tradicional de tolerância, como será analisado adiante, em que existia uma verticalidade hierárquica entre tolerantes e tolerados.

Em oposição a isso, a outra concepção de tolerância - a concepção como respeito - é aquela na qual as partes tolerantes reconhecem uma a outra em um sentido recíproco: embora difiram notavelmente em suas convicções éticas a respeito do bem e do modo de vida legítimo e em suas práticas culturais, e sustentem em muitos aspectos visões incompatíveis, elas se respeitam mutuamente como moral e politicamente iguais. (Forst, 2009, p. 20)

As razões para deixar parcialmente de lado essa concepção da tolerância, mantendo-se apenas a reciprocidade horizontal entre os cidadãos, serão explicitadas nas considerações finais, mas é possível adiantar que essa proposta, ao sugerir que “as partes tolerantes […] se respeitam mutuamente como moral e politicamente iguais”, uniformiza algo que deveria ser diferenciado aqui, o moral e o político, pois é possível que as condições de pluralismo das sociedades democráticas liberais não sejam passageiras, mas constitutivas, especialmente no que se refere à incompatibilidade e ao conflito (e não apenas diversidade) entre as “convicções éticas a respeito do bem” existentes1 (Forst, 2009, p. 20). Assim, pode ser necessário, do ponto de vista democrático, deixar algum espaço para a expressão de julgamentos de desaprovação moral recíproca, seguidos de abstenção de interferência, por parte daquelas que Forst chamou de “visões incompatíveis”. Isso significa que as partes se respeitariam como politicamente iguais, o que constituiria uma razão poderosa para tolerar as mais profundas diferenças morais entre elas, até mesmo aquelas que reciprocamente desprezariam.

A segunda forma de rejeição interna à concepção tradicional de tolerância estabelece suas críticas com base em outro ideal liberal, mais recente que o da tolerância e estreitamente relacionado a ela, a neutralidade. Esse tipo de crítica propõe a existência de uma incompatibilidade entre os dois ideais.

Este artigo pretende analisar o recente debate entre Glen Newey, um dos principais críticos, e o filósofo político Peter Jones, que defende a compatibilidade entre tolerância política e neutralidade estatal sustentando, com base no liberalismo político de John Rawls, que é justamente o profundo compromisso que os cidadãos têm com a primeira que pode levá-los à busca da segunda (cf. Jones, 2007, pp. 389-390). Após a apresentação das críticas e das respectivas respostas, espera-se que fique claro que as primeiras não se sustentam diante das últimas. Em conclusão, a fim de fortalecer a linha de defesa proposta por Jones, será sustentado, contra a letra do texto desse último, que não há apenas compatibilidade entre os ideais de tolerância política e de neutralidade estatal, mas uma implicação recíproca entre ambos em qualquer Estado que se possa considerar democrático e liberal.

A crítica de incompatibilidade entre os ideais de tolerância e de neutralidade políticas

Uma das primeiras atitudes que se deve tomar ao analisar uma discussão orientada para o entendimento, quando há uma troca de razões que visa um possível convencimento recíproco, mas em que há posições diversas, é verificar se os interlocutores estão efetivamente se referindo ao mesmo objeto ou se estão chamando objetos diversos pelo mesmo nome. No caso do debate entre Glen Newey e Peter Jones, há uma convergência em suas definições da tolerância, embora nenhuma delas possa ser considerada uma definição completa.2 Segundo o primeiro, ela deve ser compreendida a partir de uma estrutura tríplice:

Eu presumirei, sem argumentar, que questões de tolerância se ajustam à certa estrutura tríplice. Esta fornece três tipos de razão que podem estar envolvidas quando precisa ser tomada uma decisão (seja na vida pessoal ou na esfera pública) sobre se algo deve ser tolerado. […]:(a) uma razão para desaprovar a prática; (b) uma razão para deixar de intervir a fim de impedir ou censurar a prática […]; (c) uma razão para intervir a fim de impedir ou censurar certas práticas […]. Eu considero […] que, em si mesmo, o fato de que uma razão para tolerar é adotada não anula a força do outro tipo de razão. Aquela simplesmente tem mais força. (Newey, 2001, pp. 316-317)3

O terceiro tipo de razão, “c”, estabelece aquilo que não deve ser tolerado, assinalando o ponto em que as razões do tipo “a” ficam mais fortes do que as do tipo “b”; assim, “c” define o limite do tolerável, de modo que a estrutura interna da própria tolerância seria composta por apenas dois tipos de razão: razões para desaprovar algo e razões para não tentar impedir aquilo que se desaprova. Essa estrutura conceitual é semelhante à proposta por Jones, que também a apresenta com esses dois elementos principais:

Quando as pessoas se ajustam ao caso modelo da tolerância, é usualmente considerado que elas possuem dois tipos de razão: (a) uma razão para objetar a x e, portanto, para impedi-lo e (b) uma razão para não impedir x. Sua razão para não impedir x prevalece sobre sua razão para impedi-lo, por isso, elas toleram x. (Jones, 2018, p. 384)

Newey acrescenta que o poder para interferir naquilo que se desaprova é um pressuposto óbvio para que se possa falar em tolerância: “Também obviamente, interferir deve ser algo que está em poder do tolerador fazer […]” (Newey, 2001, p. 317). Do mesmo modo, Jones coloca esse poder de interferir como um pressuposto: “[…] nós podemos tolerar apenas aquilo que somos capazes de impedir” (Jones, 2018, p. 384). Outras análises contemporâneas da tolerância costumam qualificar adicionalmente essas estruturas análogas, levando em conta outros aspectos além do poder, entre eles, a aceitabilidade das razões para desaprovar algo e o questionamento se as razões para tolerar precisam ser morais ou se elas também poderiam ser epistemológicas e/ou prudenciais. Newey apenas menciona esse tipo de discussão, deixando-o de lado em seguida (Newey, 2001, p. 316), ao passo que Jones reconhece a existência de diversas razões para tolerar, mas afirma que se interessa apenas pelas razões morais: “Há muitas razões diferentes pelas quais nós poderíamos, ou deveríamos, optar pela tolerância e não pela intolerância. […] Meu interesse é primariamente nas razões morais para a tolerância” (Jones, 2018, p. 119).

Baseado na estrutura tríplice apresentada, Newey busca relacioná-la com a forma padrão das questões de tolerância política: “Minha principal preocupação aqui é identificar uma forma para questões de tolerância política, relacionando-a à estrutura tríplice já estabelecida” (Newey, 2001, p. 319). A forma proposta por ele, especificando as circunstâncias políticas da tolerância, descreve a seguinte situação: um grupo possui certa crença ou prática que outro grupo desaprova e não está disposto a tolerar, clamando pela intervenção estatal a fim de proibi-la; isso gera uma reação do primeiro grupo, que não tolera ser desaprovado nem impedido e apela em sentido contrário ao mesmo Estado; nesse ponto, está estabelecido o conflito que Newey considera o caso padrão em que se dão as circunstâncias da tolerância política (Newey, 2001, p. 320). Quando as coisas chegam a esse ponto, ele toma como evidente que não ocorreu a aplicação da tolerância, de modo que as razões para não interferir ou tolerar não foram capazes de superar as razões para desaprovação e interferência, fazendo com que os grupos em conflito precisem recorrer àquele terceiro, o Estado, que possui a prerrogativa do uso legítimo da força nas democracias liberais. Isso permite a Newey propor duas linhas críticas, uma que ele denomina como “a alegação de simetria” desse conflito e outra ligada à inadequação da introdução da perspectiva de um terceiro, o Estado, nas questões de tolerância nas democracias liberais.

A primeira linha crítica se baseia na posição equivalente dos grupos conflitantes: “A alegação de simetria é que, nas circunstâncias da tolerância, onde dois grupos da sociedade civil entram em conflito, cada lado pode levantar a acusação de intolerância contra o outro” (Newey, 2010, p. 223). Assim, se o grupo B sustenta que a prática “x” do grupo A deveria ser proibida e, reativamente, o grupo A alega que essa tentativa de proibição é intolerável e deveria ser proibida, A e B defendem uma intolerância recíproca (Newey, 2001, p. 320). Essa alegação, confrontada com o pressuposto da neutralidade liberal do Estado, que é chamado a se posicionar sobre o conflito, permite a Newey estabelecer um dilema. Quando os grupos conflitantes clamam pela ação estatal contra o grupo oposto, isto é, quando ambos estão indispostos a tolerar-se reciprocamente, eles estão simetricamente situados em relação ao Estado neutro, cada um exigindo que esse seja intolerante com o outro lado. Assim, se o Estado toma o partido de um dos lados, cuja conduta considera tolerável, ele será intolerante em relação ao outro, mas romperá sua neutralidade. Isso implica que o Estado democrático liberal, nas circunstâncias políticas da tolerância, só pode ser tolerante às custas de sua neutralidade e, mesmo assim, apenas parcialmente tolerante: “Se a simetria se aplica indistintamente nas circunstâncias da tolerância, não haverá curso de ação exclusivamente tolerante que o Estado possa empreender e daí a neutralidade será violada […]” (Newey, 2010, p. 223).

A segunda linha crítica se baseia na problematização da introdução do Estado democrático liberal como agente tolerante. A estrutura interna da tolerância é constituída por razões para desaprovar/interferir e razões para não interferir, mais fortes do que as do primeiro tipo. Essas razões não são analisadas e pesadas por um agente externo, neutro em relação a elas, mas por agentes envolvidos em situações concretas em que a tolerância é uma das possibilidades de ação para lidar com certas diferenças. Assim, há um agente tolerante A, que desaprova a crença ou prática “x” adotada por B, mas possui razões mais fortes para não tentar interferir em “x”. No caso típico da tolerância, a força relativa dessas razões opostas será avaliada pelo possível agente tolerante, que precisará refletir para decidir qual delas é mais forte, já que ambas são suas razões: “Assim, a deliberação que resulta em um ato de tolerância envolve reflexão crítica sobre as características do próprio deliberador enquanto um agente” (Newey, 2001, p. 328). Quando foi concebida no começo da Modernidade, a tolerância funcionava como análoga a esse modelo interpessoal, pois o Estado era representado pessoalmente pelo soberano, que desaprovava determinada crença ou prática de seus súditos, mas decidia, após deliberação, não as impedir, por possuir razões mais fortes para proceder desse modo tolerante (Newey, 2001, p. 324). Nas sociedades democráticas liberais, essa relação interpessoal não se reproduz, pois o Estado é compreendido como neutro entre concepções morais diversas: “Isto é particularmente claro nas teorias da neutralidade, em que o Estado ou a autoridade política é pensado como um vácuo normativo” (Newey, 2001, p. 325).

Essas duas linhas críticas apontam a incompatibilidade entre os ideais de tolerância e de neutralidade, levando à conclusão de que, ao menos nos Estados democráticos liberais neutros, ela se tornou uma ideia inconsistente ou, como sugere a pergunta retórica no título do seu artigo, ela é “a Rubber Duck” (Newey, 2001), um “pato de borracha”, isto é, um objeto cuja descrição especifica algo que esse objeto não é:

Um ‘pato de borracha’ [rubber duck] exemplifica um objeto cuja descrição não traduz este objeto: se um pato é um pato de borracha, ele não pode ser um pato (real). Assim, a alegação análoga é que se a tolerância é democrática, ela não pode realmente ser tolerância. (Jones, 2007, p. 393)

Apesar dessa incisiva argumentação em favor da incompatibilidade entre os ideais de tolerância política e de neutralidade, Newey deixa aberta a possibilidade de rejeição do segundo por Estados liberais hipotéticos, que poderiam adotar uma postura perfeccionista ou confessional (Newey, 2001, p. 21). Certamente, é possível alegar o contrário, sustentando que a neutralidade seria um valor constitutivo de qualquer liberalismo, mas esse ponto ainda não será examinado aqui, pois partiremos do pressuposto de que aquela não é constitutiva desse. Em tais formas de liberalismo perfeccionista ou abrangente, em que os Estados não seriam neutros, mas adotariam valores substantivos, como a autonomia, esses não seriam professados por todos os seus cidadãos, devido às já referidas condições de pluralismo atuais. Isso implicaria na necessidade da tolerância estatal em relação aos valores diversos daqueles oficialmente adotados, já que a liberdade de escolha dos próprios valores por todos os cidadãos, dentro de determinados limites, é uma condição essencial de qualquer regime que se pretenda liberal (Rawls, 2011, p. lii). Assim, diante da ausência da neutralidade estatal em Estados perfeccionistas, Newey não consideraria inconsistente o ideal de tolerância política.

Todavia, esse cenário é alterado se, como efetivamente costuma acontecer, o ideal de neutralidade é professado por determinado Estado democrático liberal, caso em que se estabelece a incompatibilidade entre os dois ideais e o ideal de tolerância se mostra inconsistente. Assim, ele não seria mais uma possibilidade viável para a solução dos conflitos políticos: “O conceito de tolerância é, de diversas maneiras, peculiarmente inadequado para resolver o conflito político” (Newey, 2001, p. 322, grifo do autor). Isso pareceria indicar que a outra possibilidade, a neutralidade, poderia ser uma alternativa para a resolução acordada desse tipo de conflito, mas Newey não dá esse passo, deixando uma inevitável impressão de pessimismo político generalizado: “A possibilidade da política surgirá somente quando uma parte ou outra falhar em reconhecer, ou em agir como se reconhecesse, que há razões para concordar” (Newey, 2001, p. 333). Um dos propósitos deste artigo é mostrar que esse pessimismo é injustificado, utilizando para isso as respostas oferecidas pelo filósofo Peter Jones em favor da compatibilidade entre os ideais de tolerância política e de neutralidade, que serão tratadas adiante.

A relevância atual do ideal de tolerância política como justificação da neutralidade estatal e resposta ao pluralismo nos Estados democráticos liberais

Peter Jones não deixa qualquer dúvida sobre a relevância que atribui à crítica ao ideal de tolerância política que busca refutar: “Glen Newey tem elaborado a mais extensa e incisiva crítica contemporânea à ideia de tolerância política” (Jones, 2007, p. 391). Ocorre que, apesar da relevância que é atribuída a essas críticas por Jones, será mostrado que elas resistem pouco ao exame realizado por ele. Segundo Jones, a alegação de simetria é uma tentativa de mostrar a impossibilidade da tolerância política nas democracias:

Um governo democrático, defrontando-se com este conflito, não tem nenhuma opção tolerante; ele pode decidir apenas qual das duas demandas por intolerância ele deveria atender. Daí, conclui Newey, “tolerância política em circunstâncias democráticas é impossível”. (Jones, 2010, p. 445)

Como já mostrado, tais governos só poderiam ser tolerantes em relação a um dos grupos em conflito e intolerantes em relação ao outro, mesmo que ambos possam igualmente acusar o grupo oposto de intolerância (Newey, 2010, p. 223). Certamente, não se trata aqui de casos em que apenas um dos grupos conflitantes estaria no âmbito do que se considera tolerável, enquanto o outro estaria na esfera do intolerável, nem de situações em que as demandas de ambos seriam intoleráveis. Se fosse assim, a alegação de simetria não faria sentido algum. Considere-se uma situação em que um grupo pretende realizar um ritual religioso pacífico e há um segundo grupo que busca impedir isso, sendo que ambos apelam ao Estado para impedir a ação do outro. Nesse caso, não há dúvida de que a postura do segundo grupo seria considerada uma restrição intolerável à livre expressão religiosa do primeiro, de modo que não haveria simetria entre os apelos de ambos solicitando a intervenção do Estado contra o outro. Também não seria possível alegar simetria entre os apelos de ambos se o ritual religioso em questão fosse alguma forma de estupro ritual e o segundo grupo tentasse impedi-lo, caso em que a pretensão do primeiro de realizar tal ritual é que seria considerada intolerável. Do mesmo modo, também não poderia ser o caso de simetria se ambos estivessem no âmbito do intolerável. Nesse caso, não haveria qualquer espaço para a tolerância, mas deveria entrar em cena a manifestação democrática da intolerância, isto é, a proibição legal. Esse seria o caso de um conflito entre um grupo que pretendesse praticar o estupro ritual de uma mulher acusada de infidelidade e outro grupo que preferisse apedrejá-la até a morte. Em quaisquer das três situações imaginadas, o ideal de tolerância seria capaz de fornecer soluções democraticamente aceitáveis, inclusive estabelecendo limites para sua aplicação.

Porém, nessas situações, a questão colocada pela alegação de simetria não mostra sua força, o que só ocorre se as duas alegações conflitantes forem individualmente toleráveis, mas excludentes ou incompatíveis entre si, de modo que o ideal de tolerância se mostraria inútil para solucionar o conflito. Esse seria o caso de um dos exemplos utilizados por Newey, a disputa interminável na Irlanda do Norte, que se repete anualmente com graus variados de tensão, entre unionistas protestantes, favoráveis à continuidade da união da Irlanda do Norte ao Reino Unido, e nacionalistas católicos, que prefeririam ver a primeira unida à República da Irlanda:

Por exemplo, na Irlanda do Norte, onde os Orange lodges desejam marchar através dos bairros católicos, enquanto os residentes desejam impedi-los de fazer isto, cada lado pode bem alegar que o curso de ação proposto pelo outro - realizar as marchas ou impedi-las - é intolerante, ao passo que permitir sua própria ação é tolerante. (Newey, 2010, p. 223, grifos do autor)

Esse é um caso especialmente ilustrativo porque: (1) a questão é evidentemente política, envolvendo o apelo ao uso do poder estatal; (2) as pretensões de ambos, realizar ou impedir determinada marcha, são individualmente toleráveis; (3) há acusações recíprocas de intolerância; e (4) o Estado permanece incapaz de solucionar o conflito através do recurso ao ideal de tolerância. Não é preciso um grande esforço imaginativo para encontrar diversas situações de impasse e tensão semelhantes, ainda que com outras causas, em diversos episódios recentes no Brasil. Situações com aparência semelhantemente intratável também podem ser buscadas na recente crise dos refugiados sírios que atingiu a Europa, no episódio separatista na Espanha e em muitos outros conflitos políticos generalizados nas democracias liberais pluralistas. Em todos eles, as dificuldades encontradas para sua solução parecem justificar o pessimismo de Newey quanto à possibilidade de resolução de conflitos mediante o ideal de tolerância, justamente nas circunstâncias políticas agudas em que ele se faz necessário.

A estratégia de Jones para refutar a alegação de simetria é sustentar que os grupos envolvidos nas circunstâncias de aplicação da tolerância política sempre desempenham papeis diferentes, de agentes, de pacientes e de observadores, o que introduziria uma assimetria entre suas alegações, de acordo com o papel momentaneamente desempenhado: “[…] nós deveríamos pensar na tolerância como algo que nós estendemos a ‘agentes’ em vez de a ‘observadores’, a atores em vez de àqueles que observam e avaliam as ações de outros” (Jones, 2007, p. 394). Ademais, o autor estipula que os termos “agentes” e “ações” devem ser compreendidos de maneira generosa, incluindo-se neles identidades e crenças, bem como a ação e a inação voluntárias (Jones, 2007, p. 395). Colocado dessa forma, não é difícil perceber que ele remete o ideal de tolerância à sua proveniência liberal, isto é, à sua criação como forma de garantir a liberdade de escolha, dentro de determinados limites, dos próprios valores, ações e crenças por todos os cidadãos, que é uma condição essencial de qualquer regime que se pretenda liberal (Rawls, 2011, p. lii). Nesse sentido, a tolerância política foi estipulada para proteger a liberdade dos agentes, incluindo suas identidades, crenças e escolhas de agir ou não agir de determinada forma; por outro lado, ela nunca se destinou a atender às demandas de observadores que desejam reprimir tais manifestações de liberdade. Assim, há uma evidente assimetria entre alegações conflitantes, isoladamente toleráveis, de modo que a tolerância política deve ser geralmente aplicada àquelas que representam a livre escolha dos agentes e não àquelas que buscam impedi-las.

Jones ainda acrescenta três argumentos contra a alegação de simetria, utilizando o exemplo do conflito na Irlanda do Norte. O primeiro refuta a alegação de que observadores também podem ser considerados pacientes, por sofrer com as ações que buscam impedir, o que seria suficiente para sustentar a alegação de simetria (Jones, 2007, p. 397). De fato, os nacionalistas católicos, que buscam impedir a marcha dos unionistas protestantes, argumentam no sentido de que não são apenas observadores que pretendem censurar a liberdade de manifestação dos últimos, mas também pacientes que sofrem com tal manifestação. Jones não nega o sofrimento gerado pela manifestação, considerada ofensiva e humilhante pelos nacionalistas, mas sustenta que sempre há espaço para discordância quanto ao equilíbrio entre ofensa e proibição, o que deve ser avaliado caso a caso. Além disso, ele propõe que nem toda ação julgada ofensiva pode ser considerada intolerante, mas apenas se tal ação restringir a liberdade do ofendido, o que não ocorre nesse caso, em que os nacionalistas católicos não são reprimidos nas manifestações de suas identidades e ações pela marcha (Jones, 2007, p. 398). O segundo argumento é que o ideal de tolerância só será útil se as visões conflitantes forem compossíveis, isto é, se a existência de uma não implicar a inexistência de outra. Assim, mesmo se a realização da marcha ou sua proibição fossem respectivamente centrais para os modos de vida e identidades de unionistas e nacionalistas, o que ele não considera que é o caso, esse não seria um exemplo de simetria entre alegações conflitantes em que a aplicação do ideal de tolerância política fracassaria, mas simplesmente não seria um caso de aplicação da tolerância, pois essa só será uma possibilidade se os modos de vida conflitantes forem compossíveis (Jones, 2007). O terceiro argumento é que a assimetria entre as alegações conflitantes de agentes e observadores, proposta em favor dos primeiros, não significa aprovar moralmente suas ações, mas tolerá-las. Ao avaliar a importância da marcha dos unionistas protestantes para o modo de vida desses em comparação à dor e à humilhação que causam nos nacionalistas católicos, pode-se julgar adequado tolerar a manifestação, mas considerá-la moralmente errada, inclusive buscando dissuadir seus autores através de campanhas e de ações baseadas em razões prudenciais e/ou morais. Assim, a retomada da função primordial da tolerância e as análises de sua aplicação ao caso espinhoso proposto por Newey tornam insustentável a alegação de simetria: “Portanto, a tese de simetria de Newey não suporta um exame crítico” (Jones, 2010, p. 446).

A segunda linha crítica de Newey afirma que a professada neutralidade dos Estados democráticos liberais seria incompatível com o ideal de tolerância política, tornando-o inconsistente, pela impossibilidade de que tais Estados neutros possam desaprovar algo, o que seria uma das condições para tolerá-lo posteriormente. Para ele, se não há, nas circunstâncias políticas democráticas, nenhum agente que possa ocupar essa posição desaprovadora, falta um elemento constitutivo da estrutura conceitual da tolerância. A estratégia de refutação de Jones será mostrar que a alegação de inconsistência do ideal de tolerância política em Estados neutros se deve à compreensão anacrônica daquele ideal, cuja estrutura conceitual, implicando razões e poder para desaprovar/impedir algo e razões mais fortes para não o fazer, permanece válida na contemporaneidade, mas deve ser preenchida de modo diverso. Segundo ele, o modelo inicial de tolerância política é vertical, hierarquizado, com o agente tolerante representado pelo soberano/Estado sendo previamente fixado pelo fato de que é o único a ter poder, que é uma condição constitutiva daquela estrutura. Esse modelo, agora obsoleto, que ele nomeia como “ruler-subject” (Jones, 2007, p. 386), governante-súdito, deve ser substituído pelo modelo de tolerância democrática, que é horizontal e móvel. Porém, antes de caracterizar esse segundo modelo, o autor faz duas ressalvas. A primeira é que atribuir aos governos eleitos pelas maiorias o poder de tolerar politicamente os cidadãos, especialmente aqueles pertencentes a minorias, não permite ainda escapar do modelo governante-súdito. Ademais, isso corromperia a noção de poder democrático, pois esse não deve ser exercido pelos governantes sobre os cidadãos, que permanecem em pé de igualdade entre si e são a fonte última de todo o poder legítimo dos primeiros: “[…] a noção de que um governo eleito possa tolerar seus eleitores inverte a relação democrática apropriada” (Jones, 2007, p. 385). A segunda ressalva é que a inadequação teórica do modelo governante-súdito às circunstâncias democráticas não significa que não haja questões práticas, devido à dificuldade de controle popular dos governantes eleitos, que permitem que tais governantes ajam como agentes livres em diversas ocasiões, em vez de agir como representantes cujo único poder legítimo é delegado pelos governados (Jones, 2007, p. 385).

Feitas essas ressalvas, Jones busca indicar a passagem do modelo governante-súdito (ruler-subject) para o de tolerância política democrática, utilizando um jogo de palavras com significativo poder heurístico: “from rulers to rules” (Jones, 2007, p. 386), isto é, de governantes a regras. Se a tolerância política deve ser consistente com o status e os direitos iguais de que desfrutam os cidadãos das democracias liberais, ela não deve ser procurada em um suposto equivalente dos monarcas ou governantes (rulers) do início da Modernidade, mas sim nas regras (rules) que regulam a vida da sociedade: “Em vez de localizar a tolerância política nas disposições e caprichos de governos ou maiorias, nós deveríamos localizá-la nos arranjos legais e políticos da sociedade” (Jones, 2007, p. 386). Isso significa que a tolerância democrática não é hierarquicamente fixada, com apenas um dos seus elementos, governantes e/ou maiorias sucedâneos dos monarcas, decidindo não impedir aquilo que desaprovam. Nas sociedades democráticas liberais, ninguém ocupa esse lugar fixo, pois a tolerância é horizontalmente disseminada pelos arranjos legais e políticos democraticamente estabelecidos, que protegem todos os cidadãos contra a intolerância alheia. Esses arranjos serão considerados tolerantes na medida em que permitirem a existência desimpedida, dentro dos limites do tolerável, de visões e formas de vida plurais, ou seja, na medida em que possibilitarem que os mais variados agentes possam agir e manifestar suas identidades livremente, sem serem impedidos por observadores que se opõem a elas: “Eles asseguram uma ordem de coisas em que as pessoas podem viver suas vidas como lhes parece adequado, sem ser impedidos por outros desaprovadores que, de outro modo, poderiam impedi-las” (Jones, 2007, p. 387). A exceção é o caso em que observadores desaprovadores não apenas alegam ser ofendidos, mas também são considerados pacientes pela sociedade em geral, por terem suas próprias ações e crenças identitárias reprimidas pelas visões conflitantes que desejam impedir, caso que precisará ser examinado concreta e individualmente para que se possa decidir como aplicar o ideal de tolerância política à questão. Essa exceção confirma a mobilidade horizontal da tolerância democrática, pois os cidadãos ocupam os diferentes papeis de agentes, observadores e pacientes, ora tolerando, ora sendo tolerados, enquanto os Estados/governos neutros, que não toleram nem deixam de tolerar ninguém, velam pela realização dessa ordem de coisas.

São estes arranjos que definem se determinada sociedade pode ou não ser considerada politicamente tolerante, assegurando a tolerância para seus membros. Porém, há outro sentido para a expressão “sociedade tolerante”, que costuma ser julgada assim se há significativa proporção de seus membros que consideram a tolerância como algo correto ou desejável, agindo pessoalmente a partir dela (Jones, 2007, p. 387). A questão é se a existência desses dois sentidos, que apontam para dois âmbitos da tolerância, o público e o não público, permitiria chegar à conclusão de Newey, que rejeita o primeiro, a tolerância política, como inconsistente, mas admite o segundo, a virtude pessoal da tolerância, isolando-os um do outro (Newey, 2001, p. 336). Jones, ao contrário, estipula a valorização pessoal da tolerância como condição de sua concretização política:

É claro que estes dois aspectos segundo os quais uma sociedade pode ser descrita como tolerante provavelmente serão encontrados juntos, especialmente em circunstâncias democráticas. Arranjos políticos e legais tolerantes só serão estabelecidos se desfrutarem de razoável apoio entre a população relevante. (Jones, 2007, p. 387)

Esse é o passo decisivo para sua tentativa de mostrar que tolerância e neutralidade são ideais compatíveis, de modo que a presença do segundo não torna o primeiro inconsistente. Se os Estados liberais democráticos são neutros, no sentido de neutralidade de intenções, não de resultados,4 entre as diferentes visões abrangentes dos seus cidadãos, de modo que os seus arranjos legais e políticos não buscam promover nem prejudicar quaisquer dessas visões, isso não ocorre por uma concessão dos Estados ou de seus governantes, mas sim porque os cidadãos estipulam tais arranjos desde o início. Eles assim o fazem justamente por seu compromisso pessoal com a tolerância, por não desejarem que suas visões sejam vítimas da intolerância alheia, de modo que criam e sustentam Estados neutros entre elas. Assim, Newey compreende equivocadamente a relação entre tolerância e neutralidade: “Não é a neutralidade que, per impossibile, leva à tolerância. Ao contrário, é um tipo particular de compromisso com a tolerância que produz uma razão a favor da neutralidade” (Jones, 2007, pp. 389-390, grifo do autor).

Essa compreensão da relação entre tolerância e neutralidade pode ser justificada a partir do liberalismo político de John Rawls, que ele utiliza diretamente, mas também em outras versões do chamado liberalismo deontológico: “[…] a ideia do Estado neutro, como ela aparece no liberalismo deontológico, é, em parte, uma concepção de como a tolerância deveria se realizar sob as condições contemporâneas de democracia e diversidade […]” (Jones, 2007, p. 402). Aqui, não será o caso de expor detalhadamente as concepções rawlsianas, bastando elencar os pontos relevantes. O liberalismo político de Rawls busca esboçar uma concepção de justiça aplicável nas condições de pluralismo das democracias liberais contemporâneas, cujos cidadãos professam visões diversas e conflitantes do bem, de modo que aquela concepção não pode se fundar em nenhuma dessas em particular. Devido a esse fato do pluralismo, Rawls busca articular sua concepção de justiça partindo de ideias profundamente enraizadas e amplamente compartilhadas em tais sociedades, especialmente a de que elas são formadas pela cooperação justa entre pessoas livres e iguais. Reunindo o fato do pluralismo e essa ideia fundamental em uma situação neocontratualista, que ele chama de “posição original”, os cidadãos concretos teriam seus interesses representados por cidadãos hipotéticos, que buscariam um acordo sobre o modo justo de regular a sociedade, sendo que esses reconheceriam o pluralismo e aquela ideia de sociedade, mas não saberiam quais seriam efetivamente aqueles interesses, ocultos por um véu de ignorância. Rawls sustenta que o resultado desse acordo seria a obtenção de princípios de justiça capazes, entre outras coisas, de proteger todas as concepções do bem que poderiam ser adotadas pelos cidadãos concretos, as quais deveriam ser compatíveis com a igual proteção das demais (Rawls, 2011). Para Jones, é justamente porque desejam que suas concepções do bem sejam protegidas da possível intolerância de qualquer outra delas, que os representantes dos cidadãos na posição original estipularão que o Estado deverá ser neutro entre elas, abstendo-se de promovê-las ou de prejudicá-las. Assim, é o compromisso com a tolerância que leva ao compromisso com a neutralidade estatal:

Bons cidadãos rawlsianos manifestam seu compromisso com a tolerância através do seu compromisso com arranjos políticos que não são projetados para favorecer suas próprias concepções do bem nem para prejudicar as concepções conflitantes de outros. (Jones, 2007, p. 390)

Considerações finais: a implicação recíproca entre tolerância e neutralidade nos Estados democráticos liberais

Até aqui, a defesa do ideal de tolerância política feita por Jones consegue refutar persuasivamente as críticas de Newey, sustentando a relevância atual daquele ideal e sua compatibilidade com o ideal de neutralidade. Porém, tal defesa ainda parece incompleta, permitindo duas brechas interligadas: a admissão de possibilidade de Estados democráticos liberais tolerantes que não são neutros e a suposição de que seria possível haver Estados neutros, mas não tolerantes: “Eu não alego que tolerância deve implicar neutralidade nem que a neutralidade deve implicar tolerância” (Jones, 2018, p. 1090). Assim, em conclusão, será apresentada uma tentativa de negar essas duas possibilidades, sustentando que há uma implicação recíproca entre tolerância e neutralidade em quaisquer Estados democráticos liberais.

A primeira possibilidade, tolerância sem neutralidade, está de acordo com a experiência histórica, já que o primeiro ideal é muito anterior ao primeiro. De fato, o modelo inicial de tolerância político é aquele que Jones chamou de modelo governante-súdito, em que o Estado, representado pessoalmente pelo soberano, possuía seus próprios valores substantivos. Esse conjunto de valores levava o governante a reprovar determinadas crenças e práticas de seus súditos, mas, apesar de seu poder para fazê-lo, deixar de impedi-las por razões mais fortes, inicialmente prudenciais (paz social) e, mais tarde, epistemológicas (ceticismo religioso) e/ou morais (liberdade de consciência). Todavia, Jones considera que esse modelo está obsoleto nas democracias liberais contemporâneas, devendo ser substituído pela tolerância democrática, justamente porque seus cidadãos não consideram justo que o Estado possa reprovar moralmente seus cidadãos. Essa acusação de anacronismo e de injustiça da aplicação do ideal de tolerância da Modernidade nas condições atuais torna difícil compreender a afirmativa de que ainda seria possível a existência de Estados tolerantes que não sejam neutros:

Historicamente, um Estado tolerante religiosamente não tem sido neutro […]. Mais geralmente, um Estado pode ser tolerante sem ser neutro, na medida em que pode apreciar e tratar algumas concepções do bem mais favoravelmente do que outras, mas ainda permitir a busca daquelas concepções que ele desfavorece. (Jones, 2018, p. 1090)

Aqui, há um salto equivocado entre aquilo que é designado pelas expressões “historicamente” e “geralmente”, pois a primeira designa experiências passadas, que não podem ser reproduzidas nas democracias liberais, e a segunda indica possibilidades que seriam relativas a Estados hipotéticos atuais. Jones parece pensá-los como Estados perfeccionistas, que adotariam oficialmente valores substantivos, tais como a autonomia e a liberdade, buscando favorecer modos de vida baseados neles, mas não interfeririam nas crenças e práticas de grupos opostos àqueles valores. Nesse caso, tal Estado poderia não interferir nesses grupos, ainda que não aprovasse suas práticas, em nome daqueles próprios valores que adotasse oficialmente. Assim, a pluralidade de visões do bem em uma mesma comunidade política liberal não impediria a adoção do perfeccionismo e a respectiva ausência de neutralidade estatal, dado que somente a recusa à coerção de quaisquer das visões plurais, ainda que se possa dificultá-las por outros meios, seria uma característica fundamental da visão democrática liberal, que adotaria então a tolerância para lidar com as visões que desaprovasse. Ocorre que a experiência de tolerância religiosa no início da Modernidade, baseada no modelo governante-súdito, não pode ser generalizada para as condições de pluralismo das democracias liberais contemporâneas, cuja concepção de justiça inclui um ideal de tolerância democrática que implica a neutralidade estatal, pois não se considera legítimo que governantes ou maiorias possam legitimamente desaprovar moralmente os cidadãos a partir de valores substantivos. Assim, pace a admissão, compartilhada por Newey e Jones, de que poderiam existir Estados democráticos liberais perfeccionistas, isto é, não neutros, mas ainda assim tolerantes, é preciso concluir que, conforme a melhor interpretação das ideias do próprio Jones, ainda que contra a letra de seus textos, a tolerância democrática não é compatível com o perfeccionismo, mas, ao contrário, ela implica a exigência de neutralidade de intenções entre as visões morais ou concepções do bem dos cidadãos.

Quanto à segunda brecha na defesa de Jones, é ainda mais difícil compreender as razões que o levaram a permiti-la. No caso anterior, é compreensível que se conceba a existência de uma forma de tolerância, no modelo governante-súdito, independente da neutralidade estatal, pois essa foi uma experiência histórica, ainda que ela não possa mais se repetir atualmente com a tolerância democrática. No caso da possibilidade de neutralidade sem tolerância, não há, ao contrário, nenhuma experiência histórica, mas apenas uma suposição inverossímil a que ele nos convida:

Imagine uma sociedade cujos membros desejam viver formas de vida diferentes, mas cada um considera as diferentes formas buscadas pelos outros como não refletindo mais do que suas diferentes preferências. […] Ninguém encontra razão para objetar à forma escolhida por qualquer um. Em tal sociedade, ainda poderia haver lugar para a neutralidade: pode ser considerado justo que o poder político não deveria ser usado para promover nem para prejudicar as formas de vida preferidas por algumas pessoas. (Jones, 2018, p. 1090)

Nessa sociedade hipotética, haveria pluralismo, mas não haveria desaprovação moral, de modo que a tolerância não seria necessária. Por outro lado, seus cidadãos poderiam considerar a neutralidade como uma questão de justiça, impedindo que o Estado tomasse o partido de quaisquer de suas diversas concepções do bem. Aqui, há dois problemas. O primeiro é que essa hipótese contraria a persuasiva tese rawlsiana, sustentada pelo próprio Jones, de que a exigência de neutralidade estatal é a manifestação do compromisso dos cidadãos com a tolerância recíproca, como forma de proteger as respectivas visões do bem da intolerância alheia. O segundo e mais grave problema não é apenas uma contradição do autor, mas uma contradição na própria ideia, com a suposição de que poderia haver pluralismo de concepções do bem dos cidadãos sem que ninguém encontrasse “razão para objetar à forma escolhida por qualquer um”.

Essa suposição merece ser contestada por diversas razões. A primeira é que ela contraria a própria definição do “fato do pluralismo” proposta por Rawls e aceita por ele, pois as doutrinas abrangentes não são apenas diferentes, mas também conflitantes: “O liberalismo político de Rawls é concebido para uma sociedade cujos membros subscrevem doutrinas abrangentes diferentes e conflitantes, bem como diferentes e conflitantes concepções do bem fundadas nestas doutrinas” (Jones, 2007, p. 390). A segunda é a utilização que Jones faz da necessidade prévia de compossibilidade entre visões de mundo conflitantes para que faça sentido falar em tolerância. Segundo seu argumento, só seria possível dizer que A deveria tolerar B se as concepções de bem de ambos não fossem excludentes, mas compossíveis. Caso contrário, não seria adequado invocar o ideal de tolerância política para resolver o conflito, pois as razões morais para não impedir aquilo que se desaprova nunca poderiam ser superadas por quaisquer outras razões mais fortes do que as razões de desaprovação. Ora, se o pluralismo implica a existência de visões até mesmo incompossíveis, a fortiori ele implica que haja visões meramente conflitantes, isto é, que se desaprovam moralmente, mas que são reciprocamente toleráveis. Isso leva à terceira e mais forte razão para contestar a possibilidade de uma sociedade em que os cidadãos não encontrassem razão para objetar às visões do bem dos demais: o caráter contraintuitivo de tal hipótese para aqueles que vivem nas condições de pluralismo nas democracias liberais contemporâneas, onde os cidadãos convivem cotidianamente com a desaprovação moral recíproca. Considere-se, por exemplo, a relação entre cidadãos ateus hedonistas e cidadãos religiosos tradicionalistas. Seria razoável esperar que não houvesse recíproca desaprovação moral entre eles? Obviamente, não seria razoável esperar outra reação nesse caso nem em inúmeros outros, menos extremos, mas igualmente inevitáveis. Todavia, mesmo essas visões de mundo tão diversas ainda são compossíveis politicamente, surgindo justamente aí as circunstâncias políticas da tolerância e a exigência da neutralidade estatal. De fato, há boas razões morais, tais como o respeito à autonomia e à liberdade que os cidadãos concedem igualmente uns aos outros em qualquer Estado que se possa chamar de democrático liberal, para que os portadores das visões conflitantes decidam não tentar usar o poder estatal para impedir todas as práticas, dentro de certo limite, ligadas àquelas visões que, algumas delas de forma inevitável, desaprovarão moralmente. Todavia, se a desaprovação moral recíproca é o resultado esperado e cotidiano dos conflitos constitutivos do fato do pluralismo, a releitura do ideal de tolerância política como tolerância democrática, que implica a exigência de neutralidade estatal, renova sua relevância e a esperança de que tais conflitos não sejam intratáveis politicamente.

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  • 1
    Forst introduz uma distinção entre concepções éticas do bem e normas morais de justeza, sugerindo que as últimas possuem um “sentido mais objetivo” do que as primeiras, meramente subjetivas. É graças a essa distinção, que não é adotada neste artigo, que ele pode sustentar que os cidadãos se respeitam como “moral e politicamente iguais” e, em consequência, devem tolerar as concepções éticas do bem que consideram reciprocamente erradas (Forst, 2009, p. 20).
  • 2
    Para uma análise pormenorizada da estrutura da tolerância, remeto os leitores àqueles que considero os dois textos principais sobre essa questão: Nicholson (1985) e Horton (1996).
  • 3
    Todos os textos originalmente em inglês foram traduzidos pelo autor.
  • 4
    Para uma discussão detalhada dos tipos de neutralidade, ver Araujo (2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2019
  • Aceito
    11 Nov 2019
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