Open-access ALBERTO TORRES E RUI BARBOSA: DUAS VISÕES DO BRASIL NA PRIMEIRA REPÚBLICA

ALBERTO TORRES AND RUI BARBOSA: TWO VISIONS OF BRAZIL IN THE FIRST REPUBLIC

Resumo

Este artigo aborda os projetos de país desenhados por dois autores/atores entre o final do século XIX e as décadas iniciais do século XX: Rui Barbosa, expoente do pensamento liberal; e Alberto Torres, reconhecido como matriz do pensamento autoritário no Brasil. O texto é dividido em três seções: a primeira apresenta de maneira sucinta a visão dos autores sobre a Brasil em termos mais gerais, considerando o contexto histórico e a posição ocupada por cada um; a segunda aborda a visão de cada um sobre a situação econômica e as respectivas propostas para o país, centrando a análise no debate agrarismo x industrialismo; a terceira traz uma comparação mais direta entre os dois autores, indo além dos rótulos liberal e autoritário, ou idealista e realista.

Palavras-chave: Pensamento Político; Realista; Idealista; Agrarismo; Industrialismo

Abstract

This article approaches the projects for the country idealized by two authors/political agents between the end of the nineteenth century and the first decades of the twentieth century: Rui Barbosa, exponent of liberal thinking; and Alberto Torres, recognized as the mentor of authoritarian thinking in Brazil. The text is divided into three sections: the first presents in a succinct way the authors’ view on Brazil in more general terms, considering the historical context and the position occupied by each one; the second discusses the vision of each one on the economic situation and their respective proposals for the country, focusing the analysis on the agrarianism x industrialism debate; the third brings a more direct comparison between the two authors, going beyond the labels liberal and authoritarian, or idealist and realistic.

Keywords: Political Thought; Realistic; Idealistic; Agrarianism; Industrialism

Introdução

A dupla transição de trabalho escravo para trabalho livre e de monarquia para república trouxe uma série de questões para a pauta política brasileira. O que significava o novo regime? Como se constituiria o povo brasileiro e quais instituições seriam agora mais adequadas ao país? Que país emergiria no século XX? Como se daria sua inserção no mundo? As questões se desdobravam em inúmeras outras e recebiam respostas diferentes pelos atores políticos da época.

Partindo de dois autores/atores atuantes nesse turbulento contexto de transição e consagrados pela posteridade, Alberto Torres e Rui Barbosa, buscaremos entender como foram construídas duas propostas de organização para o país que, de alguma maneira, contribuíram para consolidar visões diferenciadas de Brasil, grosso modo identificadas como autoritária e liberal.

Mais do que apontar as divergências entre essas duas propostas, nosso intento é problematizar os rótulos dicotômicos atribuídos ao pensamento desses dois autores - tanto o mencionado acima, que os classifica como autoritário e liberal; quanto outro, que deve muito a Oliveira Vianna, opondo um Alberto Torres realista, consciente da realidade brasileira, a um Rui Barbosa idealista, imitador de modelos político-institucionais estrangeiros e descolado da realidade. Em alguma medida, este artigo dialoga também com a hipótese, levantada por Gildo Marçal Brandão (2007), da existência de algumas linhagens do pensamento político brasileiro, formas de pensar persistentes ao longo do tempo. Dentre elas, as linhagens inspiradas nos termos de Oliveira Vianna, do idealismo constitucional (da qual Rui Barbosa seria um dos maiores representantes) e do idealismo orgânico (na qual figuraria Alberto Torres).1

Além da questão premente da organização política do país, um dos temas fundamentais do período, enfrentado por ambos os autores, dizia respeito ao futuro do Brasil em termos econômicos e sociais. Com o fim da escravidão, intensificava-se o debate sobre a reorganização do trabalho e sobre a vocação do país, se agrícola, se industrial. Entre os agraristas, havia os que defendiam a manutenção da produção em latifúndios para exportação, enquanto outros preferiam o investimento na pequena propriedade e na produção diversificada. Essa questão vinha associada ao problema da mão-de-obra: como deveria se reestruturar o trabalho? A imigração tornava-se, então, outro tema na ordem do dia. Questões dessa natureza encontravam ancoragem, por sua vez, em determinadas perspectivas teóricas.2 Tanto a defesa da agricultura quanto a da indústria buscavam apoio na teoria econômica liberal, efetuando leituras diferentes e mesmo divergentes de teóricos, como Smith e Say.3

Tratava-se, portanto, de um debate sobre o melhor caminho para a modernização do país, ou seja, para a inserção do Brasil no sistema capitalista mundial em um patamar superior. Do ponto de vista econômico, os dois autores que abordamos neste texto também são tradicionalmente vistos em campos opostos: Torres seria um agrarista e Rui um defensor da industrialização. Neste texto, um de nossos objetivos será explorar quais eram os conceitos de industrialismo e agrarismo sustentados pelos autores e como isso se encaixava em suas visões do Brasil.

Este artigo encontra-se dividido em três seções: em um primeiro momento, faremos uma breve apresentação da visão dos autores sobre o Brasil em termos mais gerais, considerando o contexto histórico e a posição ocupada por cada um; em seguida, trataremos mais especificamente da avaliação feita por cada autor acerca da situação econômica e as propostas sugeridas para o país, centrando a análise no debate agrarismo x industrialismo; e, por fim, buscaremos empreender uma comparação entre os dois autores, indo além da pecha liberal e autoritário, ou idealista e realista, e procurando mostrar pontos de aproximação entre os pensamentos de Rui Barbosa e de Alberto Torres tanto na análise que fazem do país quanto na formulação de propostas políticas à época.

Diagnósticos do Brasil

Alberto Torres nasceu em 1865, no interior fluminense, em uma família remediada e ligada ao Partido Liberal. Formado em direito, participou ativamente de grupos abolicionistas e entrou para o Partido Republicano. No partido, aproximou-se da linha moderada de Quintino Bocaiúva, a despeito de sua ligação com radicais, como Silva Jardim, construída no movimento abolicionista. Na mocidade, defendia a federação e a descentralização como remédios para os males do regime monárquico. Foi, porém, alterando sua posição conforme sua atuação política, sobretudo após a experiência na chefia do Poder Executivo fluminense entre 1897 e 1900. Nas páginas iniciais de A Organização Nacional (1914), Torres relatava que sua confiança na Constituição republicana, tão forte ao assumir o governo do Rio de Janeiro, não era a mesma ao final do mandato: “ao passar, em 31 de dezembro de 1900, o governo da terra fluminense a meu sucessor, o General Quintino Bocayuva, já não podia ser tão firme - desiludida, como fora, pelos fatos, a minha confiança no regime político que havíamos instituído” (Torres, 1978a, p. 6).

Como muitos de sua geração, desencantou-se com o arranjo institucional republicano, passando a criticar o excesso de descentralização e identificando-o com o governo das oligarquias. A partir de então, propôs reformas que visavam à instituição de mecanismos de controle das oligarquias e de centralização do poder. Em A Organização Nacional, Torres defendia a adoção de um modelo político centralizado no Poder Coordenador,4 promotor da harmonia entre os poderes e entre os entes federativos. Propunha também uma representação de caráter classista, superando o partidarismo estéril e regionalizado da república.

Apesar da origem republicana e abolicionista de Alberto Torres, sua visão do Brasil era filtrada pela situação fluminense, o que em certo sentido a aproximava da visão saquarema originalmente combatida por ele. Afinal, em nenhum outro lugar a abolição e a república contribuíram tanto para a chamada desorganização da produção. O impacto da libertação dos escravos se fez sentir em uma região já decadente que concentrava os braços cativos do país. Se não chegava a ser como Oliveira Vianna, um “exilado do mundo rural decadente na cidade grande” (Carvalho, 1993, p. 29), Torres também se prendia a esse passado rural. Diante da situação da província do Rio de Janeiro, era-lhe difícil não manifestar uma certa nostalgia da organização da produção e do trabalho sob o regime imperial. As atitudes tomadas pelos governos republicanos no sentido de estimular o trabalho no campo, fosse de imigrantes, fosse dos nacionais, não vinham, segundo ele, mostrando resultados. Pelo contrário, e essa era uma crítica importante, eram cada vez mais frequentes o abandono e o desinteresse pelo trabalho agrícola em detrimento das atividades ligadas ao setor urbano. Sua postura manifestou-se de maneira mais clara quando exerceu a presidência do Estado do Rio de Janeiro. Tendo que lidar diretamente com a baixa na produção e na arrecadação de impostos, enfrentando a concorrência com a capital federal e a resistência dos senhores,5 Torres desenvolveu uma visão pessimista quanto à situação brasileira, o que contribuiu para sua decepção, ou desencanto, com o novo regime republicano.

O país que enxergava era desorganizado e sem projeto. As transformações do final dos anos 1880 não tiveram desdobramentos positivos ao longo dos anos 1890. A abolição apenas jogara os negros na rua, atraídos pelos ganhos fáceis da cidade - sobretudo a Capital Federal - sem criar qualquer tipo de incentivo que os prendessem às propriedades rurais. Ao mesmo tempo, o arcabouço institucional republicano se tornara absolutamente artificial, um arremedo de democracia num país sem raízes históricas para tanto. A crítica à inadequação das instituições6 surgiu de maneira precoce em Torres, tornando-se ainda mais ácida a partir de sua experiência administrativa. Se a herança do passado do país, apoiado na monocultura escravista, era negativa na sua maior parte, havia também um lado positivo que não poderia ser abandonado, ou seja, justamente a questão da organização do trabalho, de um lado, e a adequação institucional, do outro. Por adequação institucional pode-se entender aqui a centralização governamental da monarquia, substituída pela descentralização anárquica da república federativa.

A crítica de Torres, vinda de um republicano histórico, abolicionista e defensor da federação, não pode ser encarada como fruto de saudosismo imperial. Nesse sentido, acreditamos que ela pode se aproximar muito mais das críticas de republicanos como Bocaiúva7 ou mesmo de monarquistas convertidos, como Rui Barbosa, do que das efetuadas por seu maior discípulo, Oliveira Vianna.

A posição de Rui Barbosa é distinta, a princípio. Monarquista federalista, militante também do abolicionismo, converteu-se ao novo regime, tornando-se ministro e vice-chefe do Governo Provisório.

Ao contrário de Alberto Torres, não havia em Rui Barbosa uma nostalgia do mundo rural, até porque provinha de outro estrato social. Nascido em Salvador, em 1849, filho de um médico que lutara na Sabinada e que fora deputado geral pela Bahia (pelo Partido Liberal), Rui não pertencia ao mundo da aristocracia rural. Estudou direito em Recife e em São Paulo (onde se formou em 1870), e precisou desde cedo sustentar-se por meio do trabalho. Sua militância no abolicionismo o formou para uma crítica aguda ao sistema escravista de produção. Ao lado da escravidão, o latifúndio e a monocultura exportadora eram vistos por ele como responsáveis pelo atraso do país. Apesar de suas convicções liberais, acreditava que a superação do atraso dependia também da atuação firme do Estado, sobretudo na promoção de uma educação mais efetiva para a população brasileira.

De alguma maneira, o diagnóstico de Rui Barbosa acerca da situação brasileira apresentava uma novidade em relação a outros, como Alberto Torres. Sua visão era urbana, do ponto de vista de uma camada média e era na cidade que via o futuro do país; daí sua ênfase na necessidade de se pensar uma reforma geral também em termos econômicos, apostando na industrialização e na urbanização. Conforme veremos, a sua controvertida gestão no ministério da Fazenda do Governo Provisório ia na direção do estímulo à atividade econômica em geral e à indústria em particular.

A maior contribuição intelectual de Rui Barbosa se deu no campo jurídico-institucional. Inspirado pela tradição política anglo-americana, acreditava firmemente no poder do direito e do justo ordenamento institucional para forjar um bom país. Monarquista a princípio, mas federalista antes de mais nada, Rui via o antigo regime como fadado a desaparecer se não instituísse a descentralização governamental e administrativa.8 Finalmente, enxergou na instituição da República a oportunidade de ver realizado seu projeto liberal e democrático nos moldes da república norte-americana. Rui redigiu o primeiro decreto do novo regime, de 15 de novembro de 1889, que transformava o Brasil em uma República Federativa. Foi um dos principais redatores da Constituição provisória que serviria de anteprojeto aos trabalhos da Assembleia Constituinte. Segundo Christian Lynch, o texto

representava uma tentativa consciente de ‘sobre as mais amplas bases democráticas e liberais’- como constava em seu preâmbulo -, romper com a moldura intelectual francesa do pensamento brasileiro, substituindo a centralização pelo federalismo, o parlamentarismo pelo presidencialismo, a justiça administrativa pelo poder Judiciário autônomo, o Conselho de Estado e o Tribunal de Cassação por um Supremo Tribunal Federal e o poder Moderador, pelo controle normativo da constitucionalidade. (Lynch, 2008, p. 120)

Como vários outros personagens da transição da monarquia à república, entre eles Alberto Torres, Rui se decepcionou com o novo regime. Em uma realidade política sucessivamente dominada pelo jacobinismo, o militarismo e o domínio oligárquico, havia pouco espaço para a realização do modelo ideal de república sustentado por ele. Passou a defender a revisão constitucional e, com suas várias candidaturas à presidência da república - ou anticandidaturas (Lynch, 2007) -, sobretudo as de 1909-1910 e de 1919, tornou-se um símbolo da luta contra os males da república que ele ajudara a erigir. Na sua plataforma de campanha lançada em Salvador, em janeiro de 1910, além de pregar a reação contra o militarismo renascente, materializado na candidatura do Marechal Hermes da Fonseca, defendia a reforma de uma Constituição que, numa espécie de autocrítica, admitia ser “meramente uma transplantação, um tentâmen adaptativo” (Barbosa, 1910, p. 25). Dentre as mudanças constitucionais necessárias, o documento de 1910 elencava a unidade judiciária; a garantia da autonomia da magistratura; o detalhamento do artigo sexto da Constituição, que previa a intervenção da União nos estados; a regulação da faculdade de estados e municípios contraírem empréstimos externos. O programa de governo referia-se também quanto à necessidade de uma reforma eleitoral que instituísse um registro civil eleitoral e o voto secreto, assim como quanto ao investimento na instrução do povo para “habilitá-lo a governar a si mesmo” (Barbosa, 1910, p. 56).

Embora frequentemente acusado de carecer de realismo, Rui Barbosa enxergava com precisão muitos dos males do Brasil. Como Alberto Torres, via no domínio das facções e no arbítrio do poder oligárquico algumas das principais questões a combater:

À sombra da semi-soberania que as antigas províncias adquiriram com a federação atual, se implantou, em algumas delas, uma espécie de satrapismo irresponsável e onipotente, que as sangra, as exaure, as absorve, em proveito de um grupo, de uma família, ou de um homem. Os governos se revezam ali entre meia dúzia de individualidades ligias do mesmo senhor, ou filiadas na mesma parentela. (Barbosa, 1910, p. 43)

Através da política dos governadores, continuava ele, o governo federal tornara-se cúmplice do domínio das oligarquias. Era preciso mudar essa realidade: “Cesse, em suma, a União de ser o guarda-costas das oligarquias locais, e estas, dentro em breve, expirarão naturalmente, asfixiadas na sua impopularidade” (Barbosa, 1910, p. 45).

Agrarismos e industrialismos

O final do século XIX e o início do XX trazem a questão da chamada modernização do país para o centro do debate nacional. Com a monarquia e a escravidão, prolongara-se o passado colonial e, na aurora do século XX, parecia que o país enfim rompia com essa herança e passava a caminhar de maneira autônoma - ou ao menos havia essa possibilidade no horizonte.

Até então, éramos um país marcado pela escravidão e pela economia agrícola; mais ainda, extremamente dependentes de produtos voltados à exportação, como o café e o açúcar. Quando do fim da escravidão, cerca de 60% das receitas oriundas da exportação provinham exclusivamente do café. Uma questão que se colocava então era a continuidade ou o rompimento com um modelo agroexportador baseado no latifúndio, mas não mais na escravidão. A definição do modelo foi objeto de debates que se estenderam por todo o período final do século XIX até meados do XX. O Brasil deveria manter sua vocação agrícola e pensar em formas de substituição do trabalho escravo que suprissem a demanda de mão-de-obra para a agricultura de exportação produzida nas grandes propriedades? A adoção dessa posição implicaria, por exemplo, a defesa da imigração subsidiada e mesmo a importação de chins (forma pejorativa como os trabalhadores chineses eram chamados). Postura assim é encontrada, por exemplo, nos apontamentos de Martinho Prado.

No entanto, essa não era a única posição no chamado campo dos agraristas: havia divergências entre os defensores da vocação agrária do Brasil, sendo uma das posições a que almejava não o prolongamento do modelo exportador, mas sim uma produção agrícola diversificada, com o parcelamento de propriedades. Essa era a posição de Alberto Torres, que via a possibilidade da construção, num futuro próximo, de uma nação de pequenos proprietários. A produção seria assim diversificada, mas ficaria mantida a vocação do país. Para tanto, não se poderia incentivar a imigração subsidiada tampouco trazer os chins, simples substitutos de escravos, dificultando ainda mais a formação do povo brasileiro com a introdução de um elemento de diferenciação étnica difícil de reduzir.

A posição agrarista de Alberto Torres é inequívoca. Em O Problema Nacional Brasileiro, afirmava categoricamente: “O Brasil tem por destino evidente ser um país agrícola: toda a ação que tender a desviá-lo desse destino é um crime contra a sua natureza e contra os interesses humanos” (Torres, 1978b, p. 101). Mais do que uma simples atividade econômica, a agricultura seria responsável pela própria construção da noção de pátria e pela formação da solidariedade entre o povo brasileiro. Em contrapartida, a indústria era encarada como atividade artificial e desagregadora. As atividades industriais e mercantis trariam consigo a desarticulação da sociedade e a instabilidade social. A chamada questão social seria criada pela indústria, com o aparecimento de uma massa de proletários potencialmente perigosa nos grandes centros. O comércio, atividade complementar à industrial, por sua vez, seria responsável pela introdução do luxo e da futilidade na sociedade, o que era mais grave no caso do Brasil, uma nação nova cuja solidariedade do povo ainda não havia sido completamente criada. Os centros urbanos, antros de desagregação, seriam espaços inadequados para a criação de uma solidariedade social. Os exemplos vindos da Europa e dos Estados Unidos eram definitivos: “um olhar observador, lançado, durante algumas semanas, sobre as populações das grandes capitais europeias, basta para convencer que a decadência física, de causa patológica, é um fato muito generalizado, nos centros das velhas civilizações.” (Torres, 1978b, p. 81).

Mas a defesa do agrarismo em Torres não era a defesa da grande lavoura, que se encontrava em decadência - o que era mais perceptível no vale do Paraíba fluminense - e não contribuía para a formação do povo brasileiro. Se ainda era objeto de defesa por parte dele, isso se devia apenas ao seu caráter essencial para o país, já que boa parte das divisas provinha da exportação dos produtos oriundos da produção de gêneros primários.9 No entanto, o latifúndio e a monocultura haviam provocado grande parte dos males do país: o esgotamento do solo e a dispersão da população, impedindo a criação da solidariedade social. Além disso, ao expulsar o trabalhador para os centros urbanos, contribuíram também para a formação daquelas massas perigosas citadas anteriormente. O foco na monocultura criava um outro problema: a inserção do Brasil no mercado internacional de maneira periférica, mero fornecedor de gêneros tropicais exóticos e receptor de artigos supérfluos e de luxo, o que, por sua vez, alimentava uma elite deslumbrada e alienada. Mesmo o progresso que vinha nos trilhos dos trens era enganoso, produzido pela própria estrutura agrária perversa e, como o comércio, artificial e danoso. Nos dizeres de Torres:

as estradas de ferro criam transportes, mas seria inexato dizer-se que, nos países novos, promovam circulação e distribuição econômica: o que elas realmente fazem é estimular a exploração extensiva. Com esse efeito, cooperam para todos os males assinalados; e, facilitando o intercurso do interior para as praças comerciais, contribuem para a falsa troca econômica (uma das grandes causas de ruína, nos países novos), com introdução, em grande escala, de mercadorias de luxo, gêneros de pronto consumo e vitualhas, em troca da extração e do desbarato das riquezas naturais. Nem a viação férrea, nem a navegação, nem o comércio são, por sua ação isolada, fatores de prosperidade econômica. (Torres, 1978a, p. 190).

A superação dessa estrutura agrária e dos males que dela advinham deveria vir com o parcelamento das propriedades - sobretudo das improdutivas - e com a diversificação da produção. Para tanto, quando foi presidente do estado do Rio de Janeiro (1897-1899), empreendeu uma mudança tributária cuja peça central era a criação do Imposto Territorial Rural (ITR), a ser aplicado principalmente sobre as propriedades improdutivas, que ajudaria no parcelamento dessas terras improdutivas. Ao mesmo tempo, a grande propriedade produtiva deveria também ser estimulada e protegida, com isenção de impostos e auxílio governamental. Esse era o caso, por exemplo, de sua defesa da redução do imposto sobre exportação do café.10 O ITR não foi aprovado e Torres sofreu uma tentativa de impeachment, em parte por conta dessa iniciativa.

Quanto ao parcelamento das terras, seria necessário agregar o trabalhador, agora pequeno proprietário. Com esse intuito fundou uma colônia em Barra do Piraí, com a cessão de lotes a trabalhadores interessados em produzir no regime de pequena propriedade. No entanto, poucos foram os que ingressaram no programa para adquirir terras, e menor ainda o número dos que obtiveram sucesso na empreitada. Fracasso nessa tentativa e, também, na reforma tributária, foi-se o sonho do povo formado por pequenos proprietários vivendo no campo, longe das luzes decadentes da cidade e unidos de maneira solidária.

Na visão de Torres, a vocação agrária ficava mais evidente quando se comparava a atividade agrícola com a industrial no país: a indústria nacional, além de contribuir para manter o trabalhador na cidade - impedindo sua volta ao campo - era artificial, já que não operava com produtos nacionais e existia apenas graças à proteção governamental, onerando o povo brasileiro.

A indústria também introduzia no país o ódio entre as classes e os distúrbios urbanos. Numa sociedade agrária, a questão social não existiria, já que a atividade ligada ao campo estimularia a cooperação entre os setores da sociedade, criando uma solidariedade social. A atividade industrial, por outro lado, ao concentrar as massas nas cidades, agravava a sensação de exploração desse grupo por parte dos donos do capital e gerava “certas atitudes extremas do proletariado, como a pretensão de dominar a sociedade, a guerra à burguesia e às classes letradas” (Torres, 1978a, p. 228).

O que havia no Brasil, dizia Torres, era uma civilização de empréstimo baseada na imitação. Isso era visível não só na indústria e no comércio artificiais, mas também na postura de uma elite afrancesada que negava o próprio país, voltando-se ao litoral e esquecendo o interior; no formalismo de nossa constituição; na condenação do povo brasileiro como inapto e inferior - e na consequente defesa da imigração europeia -; no elogio ao cosmopolitismo e ao progresso. Emblemáticas dessa postura eram, segundo Torres, as reformas urbanas empreendidas no Rio de Janeiro por Pereira Passos (1903-1906) e a política sanitarista de Oswaldo Cruz, aplicadas no mesmo período. Essas ações visavam apenas melhorar a fachada do país, esquecendo-se do campo e da população que lá vivia: as secas, as doenças endêmicas dos sertanejos, a desnutrição permaneceram sem nenhum tipo de tratamento por parte dos governantes (Fernandes, 1997).

O agrarismo de Alberto Torres deve ser entendido dentro de seu nacionalismo e de um projeto mais amplo para o país. O que o autor buscava era o rompimento com a inserção dependente e periférica do Brasil, acabando com uma dependência que remontava aos tempos coloniais e que permaneceu na monarquia, reforçada pelo latifúndio e pela escravidão. Em termos econômicos apenas uma organização que enfatizasse a agricultura voltada para o consumo interno poderia garantir a soberania nacional. A defesa da agricultura confundia-se com a própria defesa do país:

Nosso país tem de ser, em primeiro lugar, um país agrícola. Fora-lhe ridículo contestar-lhe este destino, diante de seu vasto território. Deve manter, depois, o cultivo dos produtos necessários à vida dos que empregam matéria-prima nacional. É isso que nos impõe a área do nosso território, a falta de hulha, industrialmente explorável, e o isolamento geográfico de quase todo o país. O equívoco dos que pensam de outra forma só pode resultar do prejuízo de que a produção deve constar dos gêneros comuns na Europa, e da idéia, arraigada no espírito de muitos, da necessidade das grandes propriedades, de extensa exploração intensiva. O Brasil, exatamente porque é um país tropical e equatorial, pobre em muitas regiões, e onde a terra e o clima carecem, quase geralmente, de elementos necessários às culturas européias, deve ser um país agrícola, não no sentido ianque, de país de vastas propriedades e fazendas-modelo, mas no de nação de pequenos proprietários remediados, vivendo na intimidade de produtos da nossa terra, de excelente valor nutritivo para seu clima, sendo reservadas as regiões temperadas para algumas culturas européias e confiado o suprimento de outros produtos, absolutamente inaclimáveis, assim como o dos produtos industriais que não têm aqui matéria-prima, às trocas com o estrangeiro. (Torres, 1978a, p. 207)

O projeto de Torres para o Brasil era agrarista, mas não era conservador11 no sentido da defesa da manutenção da estrutura agrária tal como era fundada no latifúndio. Não pode ser confundido com uma mera expressão dos interesses dos fazendeiros de seu estado. Por outro lado, ao negar a indústria e o processo de urbanização, apegava-se a um passado mítico, ideal, de uma comunidade solidária composta por pequenos proprietários vivendo dentro do mundo, mas imunes aos seus malefícios.12

A defesa da vocação agrícola, conforme vimos, não era homogênea. Tampouco a defesa do industrialismo o era. Mais ainda, a defesa da agricultura poderia se combinar à defesa da indústria, contanto que esta não fosse artificial. A despeito da realidade que se transformava, com a modernização trazendo a indústria e a urbanização, para muitos no final do século XIX e no início do XX, a industrialização não poderia levar ao abandono do campo. Por parte desses, havia a defesa da indústria natural contraposta à indústria artificial.13 Muitos defensores da industrialização no período eram adeptos do protecionismo apenas para essas atividades. No início da República, Joaquim Murtinho foi um grande divulgador dos conceitos de indústria natural e indústria artificial ao defender a primeira e condenar a segunda, bradando contra o protecionismo e pregando o “desenvolvimento natural” da indústria no país (Luz, 1975, p. 84).

A defesa da industrialização do país, diferentemente da defesa do agrarismo, não encontrou muitos adeptos até o século XX. Grande parte dos atores políticos e dos pensadores tinha restrições com relação à necessidade de investir nas atividades industriais. Prevalecia, nesse sentido, a visão liberal extremada e literal da divisão internacional do trabalho e da inadequação da industrialização às condições naturais, sociais e econômicas do país.14 Ao mesmo tempo, se houve empenho em auxiliar a lavoura por parte do governo brasileiro ao longo da Monarquia, poucas (e durante pouco tempo) foram as iniciativas que de fato buscavam incentivar o desenvolvimento da indústria nacional.

É assim que a figura de Rui Barbosa se torna interessante para efetuar um contraponto e um diálogo com a de Alberto Torres. Um dos poucos defensores da indústria nacional, Rui tem seu nome associado à crise do Encilhamento, vista durante muito tempo como uma consequência de uma política econômica desastrosa e inflacionária sem consistência que teria sido elaborada por ele. No entanto, os fundamentos da política econômica de Rui apontavam para uma proposta industrialista e boa parte da crítica a essa política - produzida tanto na época quanto posteriormente - trazia a marca da defesa do agrarismo.15

Como atestava seu passado abolicionista no Império, o político baiano considerava fundamentais a superação do escravismo e a introdução do trabalho livre como imperativas para o ingresso do Brasil na civilização. No entanto, para de fato sermos um país moderno, era preciso também superar o latifúndio e a monocultura e apostar na industrialização e na urbanização.

Ao se tornar ministro da Fazenda do Governo Provisório, Rui Barbosa de certa maneira deu continuidade à política econômica do gabinete Ouro Preto - o último do Império - com sua política emissionista. Após a abolição, esta foi a tônica do governo, já que era necessário aumentar o meio circulante, até para viabilizar os empréstimos à lavoura atingida pela falta de braços. Nos 14 meses em que permaneceu no ministério - de 15 de novembro de 1889 a 21 de janeiro de 1891 - Rui Barbosa promoveu uma reforma financeira, tarifária e tributária destinada a lidar com o problema premente da escassez de moeda e, ao mesmo tempo, lançar as bases de uma nova orientação econômica para um novo regime político. Embora tivesse consciência de que a lavoura cafeeira era a principal base da economia do país, o ministro apostou na diversificação da produção agrícola e, mais ainda, no incentivo à industrialização. No seu relatório como ministro da Fazenda, em 1891, dizia:

Não pouca vantagem haverá em passarmos da condição de país exclusivamente consumidor, em matéria industrial, para a de país também produtor. O nosso grande erro tem sido aplicar ao Estado, em grande escala, o sistema em geral seguido pelos nossos ricos agrícolas: produzir muito café, ainda que hajam de comprar tudo o mais, inclusive os gêneros de primeira necessidade, que eles mesmos poderiam produzir. (Barbosa, 1891a, pp. 129-130)

Dois dos principais pontos da reforma se deram no campo financeiro, com a adoção da emissão inconversível e da pluralidade bancária. Pela reforma financeira instituída no início de 1890 organizavam-se bancos emissores nas diferentes regiões do país, sendo as emissões garantidas por títulos da dívida pública. No debate entre papelistas e metalistas, Rui Barbosa abraçava decididamente o papelismo, mesmo que sua formação liberal ortodoxa em matéria econômica o inclinasse mais, em tese, à emissão sobre o ouro. Também optava pela pluralidade bancária, ao menos em um momento inicial,16 multiplicando as fontes de emissão monetária. O ministro via como fundamental um aumento dramático da liquidez para sustentar o crescimento da atividade produtiva tanto na lavoura quanto no campo.

Apesar de suas convicções liberais e da consequente crença de que no livre mercado residia “o amplo ideal de futuro” (1891a, p. 127), Rui Barbosa também adotou medidas protecionistas seletivas, com o intuito de amparar a indústria nacional. Apoiando-se em Princípios de Economia Política, de John Stuart Mill, dizia:

Nenhum país reúne talvez, nos seus recursos naturais, proporções tamanhas e tão variadas, como este, para o desenvolvimento de indústrias poderosas e opulentas. Mas outros, em todos esses ramos de aplicação do trabalho, principiaram muito antes de nós; e, para esmagar nossa concorrência, ou dificultá-la, condenando-a à inferioridade, à atrofia e ao marasmo, bastam-lhes as vantagens inerentes a essa prioridade. Impossível será, pois, estabelecer-se a concorrência em condições equitativas, proporcionar-se ao trabalho nacional esse fair play, em que, aliás, consiste o objeto e o atrativo do regime livre, se não buscarmos ressarcir um pouco as desvantagens da nossa tardia entrada na arena da competência industrial, mediante certa dose de proteção, moderada, temporária, mas compensadora. (Barbosa, 1891b, p. 129)

A instituição da cobrança do imposto de importação em ouro foi também um dos pontos mais importantes da reforma encabeçada por Rui Barbosa, com o duplo objetivo de suprir as necessidades do tesouro e de limitar as importações. No terreno tributário, a sua principal proposta foi no sentido da ampliação do rol dos tributos diretos, propondo como fontes de novas receitas o imposto de renda e o imposto sobre terrenos incultos na capital da República.

A política levada a cabo por Rui Barbosa à frente do ministério da Fazenda durante o Governo Provisório, especialmente no campo monetário e creditício, foi alvo de muita polêmica. Como observa Bolívar Lamounier (1999), duas visões opostas se confrontam na avaliação do político baiano e de sua atuação no terreno econômico no início da república: de um lado, há trabalhos como os de Taunay e Calógeras que acusam o primeiro ministro da República de irresponsabilidade inflacionista, imitação leviana de políticas estrangeiras (especialmente dos EUA) e de falta de capacidade administrativa, responsabilizando-o pela febre de negócios e de especulação financeira desencadeada nos anos iniciais da República, o conhecido Encilhamento, que desembocou na inflação, na queda do valor da moeda brasileira e numa onda de falências de estabelecimentos bancários e empresas. De outro lado, obras como as de Humberto Bastos, San Tiago Dantas, Aliomar Baleeiro17 e Heitor Ferreira Lima descrevem Rui Barbosa como um desenvolvimentista avant la lettre, ou seja, um homem à frente de seu tempo, defensor da indústria e da soberania nacional sobre a moeda e sobre a economia, ou mesmo um baluarte da burguesia nacional em formação.18

O próprio Rui Barbosa gastaria muita saliva voltando àqueles anos iniciais da República para defender a sua política à frente do ministério. Durante a Campanha Civilista, em 1909, argumentava que a sua política emissionista havia sido responsável, prevendo freios e limites à emissão, dentre os quais a arrecadação do imposto de importação em ouro; seus sucessores, entretanto, teriam descartado todos os freios à emissão de papel inconversível, sendo eles sim responsáveis por quatro quintos das emissões do período de 1890 a 1898 (Barbosa, 1909).

O certo é que a política de Rui Barbosa no início da República procurava marcar uma nova fase na história do Brasil, associando o advento da República à modernização e, mais ainda, a uma ordem social assentada em novos fundamentos.

No relatório como ministro da Fazenda, Rui Barbosa salientava o alcance político e social das medidas destinadas a promover a atividade industrial:

E releva dizê-lo: o desenvolvimento da indústria não é somente, para o Estado, questão econômica: é ao mesmo tempo uma questão política. No regime decaído, todo de exclusivismo e privilégio, a nação, com toda a sua atividade social, pertencia a classes ou famílias dirigentes. Tal sistema não permitia a criação de uma democracia laboriosa e robusta, que pudesse inquietar a bem-aventurança dos posseiros do poder, verdadeira exploração a benefício dos privilegiados. Não se pode ser assim sob o sistema republicano. A República só se consolidará, entre nós, sobre alicerces seguros, quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial, peça necessária no mecanismo do regime, que lhe trará o equilíbrio conveniente. (Barbosa, 1891b, p. 194)

Naquele momento, no pensamento de Rui Barbosa, a industrialização tinha o papel fundamental de criar uma sociedade mais democrática que pudesse sustentar o novo regime republicano, libertando a nação do peso opressor das classes dirigentes enraizadas no país.

Posteriormente, Rui Barbosa mudou de perspectiva e abraçou princípios econômicos mais liberais, como durante a Campanha Civilista, quando, na sua plataforma, defendia a revisão das tarifas aduaneiras, “num critério energicamente liberal” (Barbosa, 1910, p. 71). No entanto, muito tempo depois de sua gestão no ministério, o político baiano continuava a apostar na democracia do trabalho industrial como uma peça importante da república sonhada por ele. Em conferência proferida durante sua campanha presidencial de 1919, denominada A questão social e política no Brasil, o político baiano dirigia-se aos operários brasileiros: O Brasil sois vós. A questão social - termo associado por Alberto Torres aos conflitos promovidos pela plebe urbana - dizia respeito para Rui Barbosa à exploração do trabalho pelo capital e à defesa de reformas destinadas a completar a emancipação do trabalho iniciada com a abolição da escravidão. Na conferência, Rui Barbosa demonstrava um conhecimento acurado das condições sociais dos trabalhadores, dentro e fora das fábricas.19

Rui Barbosa e Alberto Torres: aproximações

Se até agora a ênfase deste texto recaiu sobre as diferentes visões do Brasil sustentadas por Alberto Torres e Rui Barbosa, procuramos nesta última seção fazer uma comparação mais direta entre os pensamentos dos dois, explorando algumas convergências possíveis.

Partindo da leitura clássica de Oliveira Vianna em Instituições Políticas Brasileiras, podemos pensar em Rui Barbosa e em Alberto Torres como representantes de tradições antagônicas. Discípulo do segundo, Oliveira Vianna vai eleger o primeiro como representante maior do que chama de idealismo constitucional. A Rui imputa toda uma carga de idealismo e de descompasso com a realidade: representante maior do bacharelismo desconectado da realidade nacional, o jurista baiano seria aquele que, por intermédio da lei, formataria um novo país de cima para baixo. Partidário do liberalismo importado, sem vinculação com a realidade nacional, a atuação de Rui teria sido pautada pela incompreensão da dinâmica da sociedade brasileira. ra acusado, por Oliveira Vianna, de marginalismo jurídico.20 Quanto a Alberto Torres, a despeito das divergências em relação ao discípulo, era visto por este como sendo um idealista orgânico, representante de uma corrente realista, já que enfrentava as condições econômicas e sociais do país sem a lente do liberalismo estrangeiro e pensava em arranjos institucionais adequados ao Brasil. Era um adepto - praticamente precursor, junto com Sílvio Romero e Euclides da Cunha - da metodologia objetiva, partindo dos dados da realidade para se pensar em instituições.

De alguma maneira, a leitura de Oliveira Vianna acabou pautando boa parte das interpretações posteriores. Como representante do constitucionalismo liberal, Rui Barbosa ganhou o rótulo de bacharelesco e caiu no ostracismo a partir dos anos 1930. Caminho inverso teve Alberto Torres, que se tornou o mestre de toda uma geração justamente a partir dos mesmos anos 1930: é de 1932 a fundação da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, por exemplo, com ligações inclusive com o movimento integralista.21 No entanto, acreditamos que a oposição e a categorização de Rui e Alberto Torres conforme Oliveira Vianna e outros intelectuais estabelecem pode ser repensada.

Para começar, se há idealismo em Rui, há também em Alberto Torres. Ambos construíram projetos constitucionais ou de reforma constitucional. A crença no poder transformador das leis não era privilégio dos liberais constitucionais como Rui. Críticos desse mesmo arranjo liberal também eram idealistas e acreditavam no poder transformador da lei, apenas propunham soluções diferentes. Para Alberto Torres, como para Rui Barbosa, o direito era uma via fundamental de mudança do país.

Por outro lado, há realismo nas análises de Rui acerca da situação nacional e do descompasso entre as instituições e as condições socioeconômicas do país, assim como em Alberto Torres. O ponto em questão, que gostaríamos de salientar, é que parte das análises centradas na contraposição entre idealistas e realistas acaba servindo para reforçar a autoimagem de um grupo que se vê como portador único das soluções para o país; no caso, aqueles que acreditam que a tradição liberal sempre foi desconectada e inadaptada ao país.22

O próprio Oliveira Vianna nos fornece pistas para problematizar a dicotomia Rui idealista x Torres realista. De fato, Vianna reconhecia em Rui Barbosa um traço de realismo que o levou, por exemplo, a defender um federalismo moderado e comedido, lutando contra a construção de instituições ultrafederalistas. A sua defesa ferrenha pelos direitos civis da população contra os abusos do poder eram também, observava ele, prova de sua sensibilidade às reais necessidades do país. Além disso, o autor de Instituições Políticas Brasileiras enxergava na trajetória de Rui uma visão crescentemente realista:

No espírito de Rui, é fácil ver que se estava, imperceptivelmente, preparando uma revolução adaptativa às condições da nossa realidade cultural: -- e a sua plataforma presidencial de 1910 contém provas expressas desta evolução, bem como os seus discursos de propaganda na segunda campanha presidencial de 1918. Nestes, as referências que faz à “questão social” mostram que ele já começara a entrever as primeiras luzes anunciadoras destas novas disciplinas jurídicas, inexistentes ou informes na época anterior, da sua formação mental: o Direito do Trabalho e o Direito Corporativo -- um e outro somente proclamados e reconhecidos, na universalidade dos seus princípios, pelo Tratado de Versalhes de 1919. (Vianna, 1999, p. 381)23

Ao mesmo tempo, é interessante observar as críticas de Vianna ao seu mestre Alberto Torres, que justamente relativizam o seu propalado realismo. A despeito de uma série de identificações, Oliveira Vianna olhava de certa maneira desconfiado para o republicano histórico Torres e, embora reconhecesse seu brilho e sagacidade na análise da realidade brasileira, acreditava que o fluminense ainda estava preso a um esquema mental oriundo da Revolução Francesa, sendo pouco sociólogo e mais filósofo - além de, mais concretamente, manter-se fiel ao arranjo federativo republicano, frisar a importância da existência de um Poder Coordenador (que Oliveira Vianna via como sendo idealizado em excesso) e negar a importância do fator raça para se entender o povo e a nação. (Vianna, 1999).

Pensando em termos mais concretos, é possível levantar outros pontos de aproximação entre Rui e Alberto Torres, vários dos quais põem em xeque a oposição entre um Rui Barbosa liberal e um Alberto Torres autoritário. O primeiro, mais óbvio, seria justamente a trajetória liberal dos dois autores. Tanto Rui quanto Alberto Torres foram ligados ao Partido Liberal no Império e ao movimento abolicionista. De gerações diferentes, frequentaram o curso de direito, tornaram-se bacharéis e, fundamentalmente, opunham-se ao esquema saquarema de ordenamento social e político. Alberto Torres, antes de Rui, abandonou o Partido Liberal e entrou para o Partido Republicano, aliando-se ao grupo moderado, de Quintino Bocaiúva. A conversão tardia de Rui, entretanto, não o impediu de endossar o movimento pela queda da monarquia e integrar já o Governo Provisório.

De modo mais substantivo, vale observar que o pensamento de Alberto Torres tinha uma base liberal que permaneceu ao longo de sua trajetória - visível, por exemplo, no seu projeto de revisão constitucional. Defendia o habeas corpus, a igualdade de todos perante a lei, a garantia das liberdades civis e políticas. Era defensor da separação dos poderes, insistindo na importância da manutenção da independência do Judiciário e, também, da prevenção contra o excessivo fortalecimento do Poder Executivo (Fernandes, 2010, p. 113).

No terreno das instituições políticas, tanto Torres quanto Rui advogam, ainda no Império, a necessidade de se implantar a federação no país. Só a federação poderia manter o país unido e responder às transformações por que passava o Brasil. Nenhum dos dois abandona essa defesa, mas ambos desenvolvem críticas, ao longo da primeira década do século XX, ao excesso de descentralização e ao estadualismo que resultou do arranjo de 1891. Um dos pontos centrais - a questão da dualidade da justiça - vai ser enfatizado pelos dois: Rui propõe a unidade judiciária na Campanha Civilista e Torres, após a experiência tanto no Executivo estadual quanto no Supremo Tribunal não cansa de mostrar como a dualidade causava o caos pelo Brasil afora, impedindo a aplicação da lei e a manutenção da ordem. As decepções com os rumos da República levaram nossos dois personagens a se colocar no campo dos revisionistas, defendendo projetos de reforma institucional. Os projetos divergiam sem dúvida, mas um ponto em comum entre eles era a defesa de uma centralização maior do governo e uma correção de rota no federalismo brasileiro.

Ainda no campo institucional, a defesa do presidencialismo como forma de governo era também um ponto que aproximava os dois autores. Esse seria, aliás, mais um aspecto lembrado por Oliveira Vianna ao elogiar o político baiano.

A necessidade da atuação do Estado na formação da nação e no controle do facciosismo das oligarquias também era afirmada, embora com ênfases diferentes, por ambos os autores. As convicções liberais de Rui não o impediam de reivindicar a presença estatal. Em arenas como educação e infraestrutura (especialmente no desenvolvimento de linhas férreas e do sistema de comunicação), por exemplo, defendia explicitamente a ação do Estado. Como observa Cristina Buarque de Hollanda, Rui Barbosa, notadamente no seu entendimento da representação política, em vários momentos revelava uma visão descolada do liberalismo liberal clássico:

Legado à história como genuíno representante do liberalismo brasileiro e não raro feito objeto de ironia pela pouca afinidade com as questões específicas do país, Rui Barbosa tem uma fala híbrida que conjuga o tema liberal dos procedimentos à expectativa de pedagogia cívica depositada no Estado. A visão liberal do político baiano não prescindiu, portanto, da ação organizadora sediada no Estado e nos homens públicos. À diferença da doutrina do livre curso às forças sociais, a presença estatal foi mobilizada como importante contrapeso ao espírito faccioso das partes. (Hollanda, 2009, p. 100)

Outro ponto que, de alguma forma, aproxima Alberto Torres e Rui Barbosa é a preocupação com o elemento nacional. Como militantes abolicionistas, ambos acreditavam que era responsabilidade do Estado aprofundar a reforma que havia sido iniciada com a abolição. A república precisava sustentar-se em outras bases sociais, mais igualitárias e integradoras, opostas ao modelo excludente sobre o qual repousara o Império. Enquanto Rui desde o início do novo regime político apostou na democracia do trabalho industrial, Torres idealizou uma sociedade de pequenos proprietários.

No entanto, na prática, ambos enxergavam o abandono do trabalhador brasileiro pela república e, com ele, o surgimento da questão social, que precisava ser equacionada. Se a abordagem da questão social por Rui o levou em certo momento a dialogar com o socialismo, ao centrar o discurso nas condições de trabalho dos operários urbanos, a ênfase de Alberto Torres na defesa da vocação agrícola do país fez com que atentasse para as condições do trabalho no campo e visse o ambiente urbano, bem como a questão social, como artificialismos e importações alheios aos problemas nacionais. Era o mundo rural que deveria ser alvo de atenção por parte do Estado, já que era a base da formação da sociedade. A utopia agrarista de Torres na formação da sociedade de pequenos proprietários acabou levando justamente o chamado realista a empreender uma análise mais distanciada da realidade. O idealista Rui, por sua vez, observava as transformações e a urbanização do país com olhos agudos e, mais ainda, buscava entender a formação de uma sociedade nacional com base ainda predominantemente no campo. Na citada conferência A questão social e política no Brasil, dirigida ao operariado industrial, Rui chama a atenção para a necessidade da reforma da legislação trabalhista e da sua extensão ao trabalhador rural que, desde a abolição, estava jogado às traças:

O trabalho da criação e da lavoura, [são] os dois únicos ramos de trabalho atualmente nacionais, os dois sós, em absoluto, nacionais, os dois, onde assenta a nossa riqueza toda, a nossa existência mesma, e sem os quais a nossa própria indústria não poderia subsistir. (Barbosa, 1999, p. 391, acréscimo nosso)

Na mesma conferência, Rui aproxima-se do agrarista Torres em relação ao diagnóstico do campo e à crítica à ação dos governos republicanos. Num trecho que poderia ser encontrado em qualquer uma das obras de Torres, afirma, a respeito da legislação que não contemplou o trabalhador rural:

[...] porque o legislador, enleado no gozo das cidades, absorto na vida urbana, deslembrando-se de que o Brasil é principalmente o campo, o sertão, a fazenda, a pradaria, a mata, a serra, o gado, o plantio, a colheita, o amanho dos produtos agrícolas, excluiu dos benefícios da lei sobre acidentes do trabalho, o operariado rural. (Barbosa, 1999, p. 393)

A despeito das divergências e, principalmente, das interpretações e apropriações posteriores, Rui Barbosa e Alberto Torres tiveram em comum em suas trajetórias políticas e intelectuais a defesa do federalismo e as lutas abolicionistas, mas também, num momento posterior, a crítica aos arranjos institucionais e ao funcionamento da república no Brasil. Ambos, cada qual à sua maneira, apontavam para o descompasso entre a estrutura legal e a realidade do país, defendendo reformas constitucionais que pudessem contribuir para a superação da dicotomia país legal x país real, apontada por muitos de seus contemporâneos. No terreno socioeconômico, ambos também defenderam propostas de reformas que de diferentes formas desafiavam o status quo.

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  • 1
    Vale notar que a proposta de Gildo Marçal Brandão não é o recurso às linhagens como categorias classificatórias, e sim como instrumentos analíticos que, pode-se dizer, convidam a fazer o tipo de exercício que pretendemos desenvolver neste texto.
  • 2
    Nem sempre essas referências são fáceis de encontrar. Muitos autores do período não tinham o costume de citar suas fontes. Sobretudo no caso de Alberto Torres é mais difícil rastrear suas fontes.
  • 3
    O que não é novidade. Basta lembrarmos dos debates acerca da escravidão e de sua compatibilidade com o ideário liberal. Tanto a defesa quanto a crítica à instituição foram ancoradas na teoria liberal. (Bosi, 1993; Carvalho, 1999).
  • 4
    O Poder Coordenador teria uma composição complexa, que se desdobraria em todos os níveis de governo, da União, onde seria formado o Conselho Nacional, órgão vitalício de 20 membros, até o quarteirão, onde haveria um preposto da União. Caberia a esse poder atuar na verificação de poderes dos senadores e deputados federais e na apuração das eleições de presidente e vice-presidente, autorizar o presidente a intervir nos estados, arbitrar conflitos entre os poderes federais, estaduais e municipais, velar pela igualdade dos cidadãos perante a lei, verificar a constitucionalidade dos atos dos governantes, dentre muitas outras atribuições. (Fernandes, 2010).
  • 5
    Entre outros problemas, houve uma tentativa malograda da Assembleia Legislativa de votar o impeachment do presidente, já que seu projeto de instalação do Imposto Territorial Rural - previsto desde a Lei de Terras de 1850 - gerou manifestações contrárias e incisivas por parte da lavoura decadente do estado (Fernandes, 1997).
  • 6
    A recuperação de Alberto Torres pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), notadamente por Guerreiro Ramos, pode ser entendida em parte por conta desta questão. O tema da inadequação institucional formulado por Torres de alguma maneira contribui para a crítica de Ramos, que usa o conceito de formalismo para entender o descolamento entre as instituições importadas e a realidade brasileira. A velha polêmica país real x país legal.
  • 7
    Quintino Bocaiúva foi um dos artífices da República brasileira. No entanto, em entrevista concedida ao jornal A Imprensa, em 1911, o velho chefe republicano destilou sua decepção com o regime que ajudou a construir e acusou o excesso de descentralização, que levou a república a se tornar expressão das oligarquias estaduais. O próprio edifício federativo havia ruído, o que se tinha no país agora era uma confederação, com o presidente da República sendo apenas um refém de interesses particularistas (Bocaiúva, 1986).
  • 8
    Como observa José Murilo de Carvalho, Rui Barbosa fez uma forte campanha na imprensa e dentro do Partido Liberal durante o ano de 1889 pela instituição do federalismo no Brasil. Um mês antes da Proclamação da República, advertia: “Ou a monarquia faz a federação, ou o federalismo faz a República” (Carvalho, 1999, p. 173). O chefe do último gabinete monarquista, o Visconde de Ouro Preto, acusou Rui de ter contribuído decisivamente para a queda da monarquia com seus artigos inflamados no jornal Diário de Notícias.
  • 9
    Adalberto Marson (1979) classifica Alberto Torres como um defensor dos interesses da grande lavoura. Acreditamos, entretanto, que seria mais correto entender a defesa da chamada grande lavoura como necessária no momento, mas transitória. Na visão de Torres, o futuro não seria viável se esta estrutura se mantivesse.
  • 10
    Entendida se pensarmos na situação difícil que vivia o estado no final do século XIX e na importância das receitas oriundas do café para o Rio de Janeiro.
  • 11
    O que não quer dizer que não tenha servido de inspiração e guia para conservadores e autoritários da década de 1920. Basta lembrar que Plínio Salgado foi um dos fundadores da Sociedade de Amigos de Alberto Torres, em 1932 e o integralismo fazia uma defesa enfática da vocação agrária do país (Chauí, 1986; Fernandes, 1997).
  • 12
    A utopia agrarista faz sentido se pensarmos principalmente no contexto do Rio de Janeiro. Com as receitas minguando, a grande lavoura em decadência e a proximidade da capital e de seu potencial de atração, o estado poderia encontrar na pequena propriedade e na diversificação agrícola um caminho para sair de uma crise que se arrastava havia mais de uma década.
  • 13
    Segundo Nícia V. Luz (1975), o conceito de indústria natural surgiu no Império para designar aquelas atividades manufatureiras cujas matérias-primas eram produzidas no Brasil.
  • 14
    Tavares Bastos, por exemplo, era um ardoroso defensor da vocação do Brasil como celeiro da Europa.
  • 15
    Bem como de ortodoxos tal qual Murtinho, Ministro da Fazenda à época do Funding Loan e adepto da defesa da indústria natural. Murtinho, como ministro da Fazenda de Campos Sales, não poupou críticas à política heterodoxa de Rui, culpando-o pelo Encilhamento e pela situação inflacionária que herdou.
  • 16
    Já no final de 1890, a fusão do Banco dos Estados Unidos do Brasil com o Banco Nacional do Brasil sob o nome de Banco da República dos Estados Unidos do Brasil representava um passo no sentido da unidade de emissão.
  • 17
    Cristina Buarque de Hollanda e Jorge Chaloub (2017) revisitaram as visões sobre Rui Barbosa de diversos autores e atores políticos da República de 1946; dentre eles, Aliomar Baleeiro, San Tiago Dantas e Carlos Lacerda aparecem como defensores da gestão de Rui no Ministério da Fazenda.
  • 18
    Interpretações, como a de Gustavo Franco (1983), apresentam uma visão intermediária entre os detratores de Rui e os defensores de sua política monetária. Uma boa análise da política de Rui à frente do ministério está também no texto de Salomão e Fonseca (2013), que a classifica como precursora do nacional-desenvolvimentismo.
  • 19
    Era necessário, dizia ele, que a lei interviesse nos conflitos entre capital e trabalho e contivesse a exploração dos trabalhadores. Propunha, nesse sentido, uma reforma que garantisse, dentro outros itens, a equiparação salarial entre homens e mulheres; a limitação das jornadas de trabalho; a limitação do trabalho de menores; a licença maternidade e a indenização por acidentes de trabalho.
  • 20
    “Rui não foi apenas o expoente do ‘marginalismo jurídico’ no Brasil; criou uma escola, foi o mestre divinizado de mais de uma geração: - e é o responsável supremo pela cultura política das gerações republicanas e também por esta metodologia formalista ou dialética, que ainda persiste, tenaz, nas gerações de agora -- já meio contagiadas as ciências sociais e suas lições” (Vianna, 1999, p. 377).
  • 21
    Ver nota 11 deste texto.
  • 22
    Nesse ponto, nosso argumento converge com o de Bolívar Lamounier em Formação de um pensamento autoritário na Primeira República: uma interpretação (1990) e em seu ensaio sobre Rui Barbosa (1999).
  • 23
    De fato, na citada conferência de 1919, Rui Barbosa observava, com aprovação, que a concepção individualista dos direitos humanos vinha sendo relativizada pela extensão dos direitos sociais, e que a esfera do indivíduo deveria ter como limite os interesses da coletividade. O seu liberalismo ganhava aqui uma nova formulação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2021
  • Aceito
    14 Jun 2022
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