Resumo
Este artigo discute o comportamento político dos empresários industriais brasileiros durante o Governo Dilma Rousseff (2011-16), a partir de dois estudos de caso de importantes setores: Construção Civil e Autopeças. Fundamentado na hipótese de que houve um deslocamento político do empresariado industrial desde o apoio em 2011 até a conformação de uma “unidade burguesa antidesenvolvimentista” em oposição ao governo, realizamos entrevistas semiestruturadas, levantamento de dados e de posicionamentos públicos. A análise corrobora a hipótese de deslocamento político no período, e aponta como uma das explicações o acirramento dos conflitos distributivos entre capital e trabalho, expresso nas declarações empresariais e nos aumentos da participação das remunerações no valor adicionado bruto e do número de greves.
Palavras-chave: Comportamento político; Lulismo; Classes sociais; Crise política
Abstract
This article discusses the political behavior of Brazilian industrial entrepreneurs during Rousseff’s Government (2011-16), based on two case studies of important sectors: Civil Construction and auto parts industry. Following the hypothesis that there was a political displacement from the industrial entrepreneurs support in 2011, towards the shaping of an “anti-development bourgeois unity” in opposition to the government, we conducted semi-structured interviews and data collection. The analysis confirms the hypotheses of the industrials political displacement in the period, and points as one of the explanations the intensification of distributive conflicts between capital and labor, expressed in the businesspeople statements and in the increase of the wage-share in the Gross Value Added (GVA) and of the number of strikes.
Keywords: Political behavior; Lulism; Social Classes; Political Crisis
Introdução
Desde meados dos anos 2010, o Brasil passa por uma profunda crise política, econômica e social, que teve entre suas principais expressões a queda do Governo Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores - 2011-2016). Após um início promissor, com altas taxas de aprovação popular, a sucessora de Lula sofreu a interrupção de seu mandato por um processo que combinou a corrosão de suas bases parlamentares de sustentação, atuação política de amplos setores do Sistema de Justiça e das Forças Armadas, e mobilizações de rua que congregaram diferentes setores da sociedade e organizações como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A mesma entidade empresarial que liderou o processo de deposição do governo em 2015-2016, alguns anos antes, em 2011, assinara com as centrais sindicais o documento base do programa macroeconômico de Dilma - Brasil do diálogo, da produção e do emprego. Como explicar esse processo de mudança de posição política do empresariado industrial brasileiro, desde um apoio inicial ao ensaio desenvolvimentista de Dilma até a composição de uma unidade burguesa antidesenvolvimentista a favor do impeachment e de uma agenda neoliberal ortodoxa de redução de direitos e arrocho fiscal (Singer, 2018)?
Para contribuir com a compreensão da crise e da mudança nas relações de hegemonia do País nos anos 2010, propomos aqui uma análise do comportamento político do empresariado industrial brasileiro. O artigo enfoca a hipótese de deslocamento político a partir de dois estudos de caso, realizados nos últimos anos com setores da burguesia industrial contemplados por medidas governamentais no período: Construção Civil em Habitação e Autopeças. Os setores foram selecionados por serem dois dos mais importantes da indústria brasileira, em termos de participação no nível de emprego e no valor adicionado bruto nacional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação da construção civil no Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 foi de 3,7%, o que corresponde a 17,7% de toda a indústria. Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) apontam que, das 644 mil vagas de emprego formal criadas em 2019, 71,1 mil foram na construção civil. O setor de autopeças, por seu turno, em 2017, ainda segundo o IBGE, teve participação de 3,4% no valor adicionado bruto e de 2,8% no emprego da indústria de transformação. O setor é um dos mais tecnológicos do parque industrial brasileiro.
Cabe ressaltar que existem diferentes interpretações sobre as bases de classe dos governos federais liderados pelo Partidos dos Trabalhadores (PT). Na acepção de Singer (2012, 2015, 2018), a cena política brasileira no período é caracterizada pelas disputas entre duas coalizões: a rentista, liderada pelo capital financeiro e composta pela classe média tradicional; e a produtivista, protagonizada por empresários industriais e integrada pelo proletariado organizado em sindicatos e o subproletariado. Nos governos Lula (2003-2010), houve um “modelo de arbitragem entre as classes fundamentais” (Singer, 2012, p. 19), com a busca de equilíbrio entre os interesses das variadas frações de classe. Seu sucesso dependia de que nenhum dos polos tivesse “força para impor os próprios desígnios” (Singer, 2012, p. 144). Disso resultou um reformismo fraco, um ciclo lento de redução da pobreza e da desigualdade que evitava a “radicalização” da luta política (Singer, 2012).
Sua sucessora, em lugar de prosseguir com tal projeto de lenta integração, opta por acelerá-lo, “deslocando o lulismo para um pouco mais perto do reformismo forte, embora dentro dos limites da transformação pelo alto” (Singer, 2018, p. 12). Ao herdar de Lula amplo apoio eleitoral, Dilma deu consecução ao ensaio desenvolvimentista, que teve sua principal expressão na Nova Matriz Econômica, um conjunto de medidas que atendiam a demandas históricas da indústria e enfrentavam interesses do capital financeiro. A realização desse programa, no entanto, levou a uma profunda crise do lulismo, à queda de Dilma e ao avanço de um contrarreformismo forte que, em meio a uma prolongada instabilidade política, corrói a institucionalidade voltada à efetivação de direitos e à proteção social (Singer, 2018).
A disputa entre diferentes frações das classes dominantes durante os governos Lula e Dilma também está no centro da análise que se contrapõe à frente neodesenvolvimentista, composta pela grande burguesia interna, proletariado e classes populares em apoio aos governos, frente a aliança opositora composta pela burguesia associada ao capital financeiro internacional e pelas classes médias tradicionais. “O projeto econômico que expressa essa relação de representação política entre os governos Lula e a grande burguesia interna é o projeto que poderíamos denominar neodesenvolvimentista” (Boito Jr, 2012, p. 67-68). Os interesses divergentes entre força hegemônica - grande burguesia interna - e força principal - movimentos operário e popular - no interior da frente gerou “conflitos e instabilidades”, que remontam a interesses por vezes antagônicos. Também houve conflitos “no próprio interior da grande burguesia interna”, como as divergências que opõem interesses da “grande indústria ao sistema bancário nacional”, frações unidas em torno da defesa da “participação dos grupos brasileiros na economia”, porém em posição antagônica no que se refere à política de juros (Boito Jr, 2012, p. 99-100).
Uma leitura alternativa do período é apresentada por Carvalho (2018), que descreve o comportamento dos industriais durante o governo Dilma como reação pragmática ao que consideravam uma gestão incompetente. A presidenta teria adotado uma agenda equivocada em um cenário internacional adverso - estímulo aos investimentos privados por subsídios e desonerações, por exemplo - políticas de alto custo para o Estado e baixa efetividade para a indústria, sobretudo entre os setores mais avançados (Carvalho, 2018). A autora entende que os principais pilares do crescimento econômico dos governos Lula (2003-2010) foram abandonados no mandato de Dilma, de modo que a posição dos industriais deve ser analisada como decorrência do impacto econômico da política adotada (Carvalho, 2018), não por motivações políticas, como em Singer (2015).
Já Martins e Rugitsky (2021) sustentam que a crise brasileira dos anos 2010 esteve relacionada com uma compressão cíclica dos lucros - profit squeeze - entre os anos 2009 e 2014, após a longa expansão iniciada em 2003. Considerado “raridade” na periferia do capitalismo, esse fenômeno pode “ajudar a interpretar a profundidade do colapso que se seguiu”, com consequências políticas e econômicas profundas (Martins; Rugitsky, 2021, p. 11). No entender dos autores, a compressão dos lucros agravou o conflito distributivo e pressionou para baixo os investimentos, dinâmica contraposta pela reivindicação de políticas de austeridade pelas classes dominantes. No final de 2014, a pressão surtiu efeito e Dilma mudou a política econômica, com “contração abrupta dos gastos públicos”, que resultou em “grande queda da atividade econômica” (Martins; Rugitsky, 2021, p. 18). Em linha com tal interpretação, Serrano e Summa (2018) afirmam que, entre 2004 e 2014, houve acirramento do conflito distributivo pela tendência “de os salários reais crescerem continuamente acima do crescimento da produtividade” (Serrano; Summa, 2018, p. 176).
Em diálogo com essas diferentes formulações, este artigo debate se houve mudança de posição política de empresários industriais de dois setores específicos em relação ao governo Dilma ao longo dos anos 2011-2016 e as motivações. Por que o lulismo entrou em crise, após índices recordes de popularidade e a avaliação, pelos industriais, de que o Plano Brasil Maior era “um bom início” (Valor, 2011a)? Neste artigo, buscamos compreender se, e como, a intensificação dos conflitos entre capital e trabalho contribuiu para uma possível mudança de posição política empresarial durante os governos Dilma.
Para isso, expomos alguns dos principais resultados de pesquisas realizadas nas áreas da Construção Civil - subsetor de habitação - e Autopeças, conduzidas em diálogo permanente. A escolha dos casos se fundamentou na importância de ambos na indústria brasileira, conforme exposto acima, e na adoção de políticas específicas de estímulo aos setores pelo governo Dilma, o que será exposto abaixo. Trata-se de um estudo qualitativo, que compreendeu revisão bibliográfica e análise documental sobre a atuação e posicionamento do empresariado, com levantamento de publicações de agências e associações de classe, além de imprensa tradicional e especializada. Foram também conduzidas, entre 2019 e início de 2020, 17 entrevistas semiestruturadas e em profundidade, com empresários da Construção Civil (11) e Autopeças (6), com o objetivo de construir uma descrição sobre suas visões de mundo e posicionamentos políticos. A isso se somaram pesquisas em bases de dados oficiais, como o Sistema de Contas Nacionais do IBGE. Portanto, foram mobilizadas fontes primárias e secundárias, com análise de material por triangulação de informações obtidas por diferentes fontes (Seawright, 2016), em abordagem diacrônica e adoção dos critérios de plausabilidade e pertinência em contraste com o contexto histórico analisado e literatura disponível (Laperrière, 2008).
Para definir os posicionamentos políticos, buscamos analisar “as características do comportamento social dos industriais e a ‘mentalidade empresarial’ existente”, conformadas em condições específicas “que estruturam as possibilidades de ação e dão sentido aos projetos de realização econômica” (Cardoso, 1972, p. 47). Entendemos que, para avançar na análise dos anos 2010, é fundamental discutir as formas como os industriais atuaram, se seus posicionamentos correspondem à hipótese de deslocamento político, e de que modo seu comportamento contribuiu com a intensificação da crise política no país.
Construção civil e Autopeças no ensaio desenvolvimentista
O ensaio desenvolvimentista do primeiro mandato de Dilma contemplou os setores de Autopeças e Construção Civil com medidas específicas, construídas em diálogo com empresários e associações de classe. Neste tópico, vamos expô-las, para em seguida apresentar os resultados econômicos das medidas e os posicionamentos empresariais em relação ao governo, identificados ao longo dos anos por pesquisa documental e entrevistas.
Na construção civil, o conjunto de medidas adotadas nos governos Lula e Dilma engloba a redução de juros para o financiamento habitacional, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), principal política específica para o setor, com R$ 34 bilhões em subsídios já em 2009, primeiro ano de execução (Fix, 2011, p. 140). A alocação de recursos do Tesouro Nacional para financiamento imobiliário, novidade histórica, ampliou o crescente orçamento na habitação. Houve aumento de recursos destinados pela Poupança, de R$ 2,2 bilhões em 2003 para R$ 92 bilhões em 2013, e pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), de R$ 3,4 bilhões em 2003 para R$ 57,8 bilhões em 2013 (Klintowitz, 2015, p. 238). O crescimento do número de Unidades Habitacionais (UH) financiadas pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH) no governo Lula também é expressivo: em 2002, foram 25 mil UH, o que correspondeu a R$ 1,4 bilhão. Em 2008, antes da criação do MCMV, atingiu 280 mil UH, um total de R$ 25 bilhões (Royer, 2009).
Nessa época, a Casa Civil já era comandada por Dilma, que, no contexto de crise econômica internacional, assumiu posição mais destacada na gestão das políticas econômicas em atuação conjunta com os ministérios da Fazenda e Planejamento, Orçamento e Gestão (Loureiro; Santos & Gomide, 2011, p. 70). Sob o comando de Dilma, a Casa Civil estabeleceu uma relação mais próxima com a Construção. Em março de 2009, a então ministra reuniu grandes empresas do setor, “tais como Cyrela, Rossi, MRV, WTorre, Rodobens”, para discutir a criação do novo programa para a área, ainda sem o nome de MCMV. “Já se falava na construção de 1 milhão de casas”. Com o aumento da capacidade ociosa das empresas em contexto de crise, “um novo programa habitacional” era visto “de forma muito favorável pelo empresariado da construção civil que nele encontraria meios de escoar as unidades já em produção e garantir o retorno aos investimentos” (Loureiro; Macário & Guerra, 2015, p. 1539).
Com o MCMV, houve novo aumento significativo do volume de recursos investidos e de unidades contratadas. No Plano Plurianual (PPA) de 2012-15, “dos 26% dos recursos do Orçamento Geral da União alocados para infraestrutura, 32,6% foram destinados à habitação, o que equivale ao montante de R$ 389,7 bilhões” (Klintowitz, 2015, p. 238). Ressalta-se que o MCMV emergiu “como um programa definido pelo Ministério da Fazenda que estabeleceu as normas de sua regulamentação, a partir de negociações com o empresariado conduzidas pelo secretário executivo, Nelson Barbosa, e executado pela Casa Civil” (Loureiro; Macário & Guerra, 2015, p. 1541).
No primeiro ano de governo Dilma, foi lançada a segunda fase do programa, com o anúncio de R$ 72 bilhões em subsídios. No final de 2011, também houve elevação do teto de incidência de 1% do Regime Especial de Tributação (RET) para os imóveis, que passou de R$ 75 mil para R$ 85 mil, beneficiando a comercialização para baixa renda. “Em 2014, mais de R$ 240 bilhões já haviam sido investidos na construção de cerca de 2 milhões de unidades; outros 2 milhões de contratos já haviam sido assinados” (Kopper, 2016, p. 186).
Na indústria de autopeças, por sua vez, pode-se dizer que o primeiro ano de mandato de Dilma se inicia com dificuldades. Apesar do aumento no faturamento desde 2009, o setor enfrentava déficits crescentes na balança comercial (Automotive, 2011b), com intensificação da concorrência externa, principalmente da China. As fabricantes de autopeças são classificadas, de acordo com sua posição na cadeia de produção automotiva, em três níveis. O tier 1, ou sistemista, é responsável pelo fornecimento de sistemas automotivos completos. São empresas de alta tecnologia e diretamente ligadas às montadoras. Os tiers 2 e 3 produzem, respectivamente, conjuntos (como discos de freio e amortecedores), peças isoladas e materiais (Barros; Castro & Vaz, 2015). As empresas dos níveis 2 e 3, majoritariamente de pequeno e médio porte, eram as mais afetadas pelo crescimento das importações, tendo em vista seu menor grau de tecnologia e produtividade e a maior fragilidade às oscilações nos preços de matérias-primas. Na cadeia automotiva, o pequeno e o médio empresariado estão sob pressão constante, pois têm muitas dificuldades em repassar elevações de custos aos preços dos produtos vendidos às sistemistas e montadoras. Tal condição torna as empresas pequenas e médias mais sensíveis ao conflito distributivo, de modo que a elevação real dos salários pode implicar perdas consideráveis na lucratividade.
Em maio de 2011, o Sindipeças entregou ao governo o documento: A indústria de autopeças: pressões de todos os lados (Automotive, 2011c). Nele, a baixa competitividade é identificada como problema central, e seria decorrente dos juros elevados, do aumento dos custos com matéria-prima e energia, da alta carga tributária, dos encargos trabalhistas e do câmbio valorizado. Tais condições pressionavam a rentabilidade, desencorajando novos investimentos e a criação de empregos. As soluções apontadas pelo documento envolviam redução de tributos e encargos sociais, oferta de financiamento competitivo de longo prazo, redução de impostos sobre investimentos e reforço às regras de conteúdo local, com fiscalização mais eficiente. O Sindipeças, como entidade associada à FIESP, participou ainda do documento Brasil do diálogo, da produção e do emprego, construído em aliança com os trabalhadores, representados pelos sindicatos de metalúrgicos de São Paulo, Mogi das Cruzes e do ABC. A coligação também se mostrou presente na defesa de mudanças nas regras de conteúdo local (Valor Econômico, 2011c).
A resposta do governo Dilma veio em agosto, com o Plano Brasil Maior (PBM). A nova política industrial atendia às demandas, com desoneração de tributos federais (IPI e PIS/Cofins) sobre bens de investimento e da folha de pagamentos, substituindo a contribuição patronal ao INSS de 20% da folha pelo recolhimento de 1% sobre o faturamento, e criação do Reintegra, que concedia às empresas restituição parcial ou integral de tributos sobre bens exportados. Além disso, reforçou o conteúdo local dos veículos montados no país, concedendo desconto de 30% no IPI para veículos com índice de nacionalização igual ou superior a 65%. Cabe ressaltar que, até aquele momento, não havia qualquer exigência de localização para além do regime tributário especial de importação e exportação para Argentina, México e Uruguai. Outras medidas, como a redução da taxa de juros, a ampliação do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e a redução dos custos de energia elétrica, com a MP 579, foram igualmente ao encontro dos anseios do setor.
O governo seguiu em interlocução com os empresários e promulgou, em outubro de 2012, o Decreto 7819, criando o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto). Foi estabelecido um novo regime automotivo, para “criar condições para o aumento de competitividade” (Brasil, 2013a). Vigente entre 2013 e 2017, o Inovar-Auto estabelecia crédito de até 30% do IPI sobre ferramentaria, insumos, engenharia industrial, pesquisa e desenvolvimento tecnológico para as montadoras que atendessem a requisitos como: (1) realizar, no país, quantidade mínima de atividades fabris, em pelo menos 80% dos veículos produzidos; (2) realizar investimentos no país em tecnologia, pesquisa e desenvolvimento e capacitação de fornecedores, seguindo um percentual mínimo de receita bruta; (3) atender ao programa de etiquetagem do Inmetro e desenvolver veículos de maior eficiência energética (Brasil, 2012 e 2013b). Segundo Messa (2017), a regra de conteúdo local determinada pelo novo regime correspondia a 66,6% de um automóvel, em 2013, progredindo até 83,3% em 2016. Mais do que isso, o Inovar-Auto veio acompanhado de um novo programa de rastreamento do conteúdo dos veículos montados no país, a fim de fiscalizar o cumprimento das normas para obtenção dos créditos tributários.
A nova regulamentação tributária para o setor teve como consequência a criação de grande reserva de mercado para as fabricantes de autopeças instaladas no país. O protecionismo foi de tamanha proporção que, em 2016, o Brasil foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em processo aberto a pedido do Japão e da União Europeia, sob a alegação de que o Inovar-Auto feria as leis do comércio e afetava as empresas estrangeiras de maneira injusta.
Os resultados econômicos e a intensificação do conflito distributivo
O ensaio desenvolvimentista, apesar de voltado aos interesses dos industriais e formulado em uma lógica de arranjo corporativista, terminou por acirrar as disputas entre empresariado e trabalhadores. Para melhor compreender esse processo, iniciamos a análise a partir dos dados econômicos do período, que apontam para proximidades e diferenças entre os dois setores. Ressalta-se que as medidas econômicas do governo Dilma afetaram de forma distinta a curva de crescimento do valor adicionado da Construção Civil e da Autopeças, setor que enfrentou grandes dificuldades.
Na Construção Civil, observa-se significativo e contínuo crescimento econômico, sobretudo a partir de 2009, ano com variação positiva de 7%. Mesmo nos anos de maior impacto da crise financeira internacional, 2008-09, o valor adicionado aumenta, com curva positiva acentuada até 2013. A tendência de alta somente se inverteu em 2014, com declínio nos anos subsequentes, porém pouco acentuado. Isso indica que as medidas adotadas nos governos Lula e Dilma de estímulo à construção civil, acima descritas, tiveram impacto positivo no setor, com tendência à estabilidade e leve queda a partir de 2014.
Em Autopeças, a trajetória é distinta. O valor adicionado bruto seguiu em alta nos governos Lula (2003-2010), com média de 7,9% de crescimento ao ano. As fabricantes foram bastante impactadas pela crise financeira internacional, sofrendo uma retração próxima de 16% em 2009. A recuperação, no entanto, foi veloz: em 2010 houve expansão de 27%, atingindo valores absolutos superiores àqueles de 2008. A tendência de crescimento se mantém até 2012, quando se inaugura uma queda contínua e acentuada até ao menos 2016, embora tenha havido leve alta de 1,7% em 2013. Destarte, nota-se que, malgrado todos os esforços concentrados no PBM e, especificamente, no Inovar-Auto, o governo Dilma não foi capaz de solucionar o problema da concorrência externa, o que resultou em contração do setor mesmo no momento de crescimento da economia brasileira. Para analistas, sobretudo os alinhados ao novo-desenvolvimentismo, seria necessária uma desvalorização cambial de maior intensidade, a fim de que se atingisse o equilíbrio industrial, tornando as mercadorias brasileiras competitivas em relação às importadas (Bresser-Pereira; Nassif & Feijó, 2016).
Apesar de distinta, a dinâmica dos setores de Autopeças e de Construção Civil se aproxima no que diz respeito à intensificação do conflito distributivo. Em ambos os casos, houve aumento significativo da participação das remunerações no valor adicionado bruto e forte crescimento do número de greves, atingindo recordes históricos em 2013. No caso específico de Autopeças, o crescimento da participação do trabalho nos rendimentos foi mais acentuado - a tal ponto em que, em 2015, as remunerações corresponderam a quase 100% do valor adicionado bruto - agravando a situação de um setor que, como visto, enfrentava dificuldades.
Os dados referentes à relação entre capital e trabalho na composição do valor adicionado bruto reforçam as diferenças entre os setores aqui analisados. A Construção Civil observa ascensão constante das remunerações, com reversão apenas em 2014. Em 2003, a participação das remunerações no PIB do setor era de 32,94%, número que se elevou para 44,34% em 2014, voltando a cair em 2015 e 2016, mas ainda em patamar muito superior ao verificado no início do século. Ainda que a participação do capital siga predominante, a variação positiva das remunerações é reforçada como hipótese explicativa da mudança de posição empresarial, pois apesar do impacto positivo das medidas adotadas no valor adicionado bruto do setor, parte do crescimento econômico foi absorvido por ganhos do trabalho, não do capital, o que pode ter elevado a insatisfação empresarial. Como será argumentado adiante, mesmo diante de resposta econômica positiva da Construção às medidas dos governos Lula e Dilma, o fortalecimento político-econômico das classes trabalhadoras no período pode ter dado base material para uma mudança de posição política empresarial.
No caso da indústria de Autopeças, as trajetórias de crescimento econômico e a relação entre capital e trabalho no valor adicionado são erráticas, indicando maior influência de fatores exógenos, não decorrentes da política macroeconômica do país, na dinâmica do setor. É importante notar que, no período entre 1996-2016, a balança comercial de Autopeças só foi positiva no primeiro mandato Lula (2003-2006). O cenário externo, associado à política cambial, parece ter efeitos mais intensos no setor nos anos 2010. De acordo com o anuário da Anfavea, a produção de veículos teve queda em 2012, o que foi acompanhado por aumento do déficit da balança comercial. Em 2013, a produção de veículos volta a subir, mas a balança comercial permanece em déficit, com valores semelhantes aos do ano anterior. O setor de Autopeças acompanha tais tendências, com queda no faturamento em 2012 e recuperação em 2013, e seguidos déficits de balança comercial desde 2009. Apesar dos esforços de Dilma em desvalorizar o câmbio como parte da política de estímulo à indústria, o cenário era de alta liquidez monetária internacional e de guerra cambial, o que impactou diretamente o setor, sobretudo pela maior presença de produtos chineses. O documento Desempenho do Setor de Autopeças 2017, produzido pelo Sindipeças, mostra que as importações no setor cresceram de US$ 6,9 bilhões em 2006 para US$ 13,1 bi em 2015. Em 2006, a China representava 3,3% do total de importações na comparação entre os países de origem, um total de US$ 228,2 milhões. Em 2015, a participação chinesa já era de 10,4%, ou US$ 1.37 bilhões, atrás apenas dos EUA (Sindipeças, 2017).
Os fatores externos ganham predominância no desempenho da indústria de Autopeças e surgem como importantes hipóteses explicativas do deslocamento político empresarial, que serão discutidas em mais detalhes em artigos futuros. No entanto, ressalta-se que justamente nesse cenário o impacto da participação das remunerações no valor adicionado bruto pode ter sido ainda mais intenso na Autopeças. Depreende-se dos dados que as políticas adotadas, apesar de visarem atender aos industriais, terminaram por proteger o trabalho, com poucas contrapartidas de ganho ao capital. Isso explica a trajetória inversamente proporcional entre PIB do setor e participação das remunerações entre os anos de 2012 e 2015: ao mesmo tempo em que o valor adicionado bruto cai, aumenta a participação das remunerações em sua composição. Isso reforça a intensificação dos conflitos distributivos como uma das hipóteses explicativas de mudança de posição empresarial.
O número de greves no período também indica essa tendência. De acordo com o Dieese, em 2013 houve o maior número de greves na história recente do país, concentradas no setor metalúrgico, mas também observadas na Construção Civil, setor com padrão histórico de organização sindical inferior ao de Autopeças. Apesar de não estarem disponíveis os dados de 2014 e 2015, a evolução dos números aponta a tendência de alta até 2013 e queda a partir de 2014, acompanhando as curvas de crescimento e desaceleração econômicos do país. Há aumento bastante significativo das greves na Construção Civil entre 2004 e 2013, quando, com 128 greves, atingiu-se a máxima no período analisado. O ano é também de alta na participação das remunerações no valor adicionado bruto do setor, e de estabilidade no crescimento total do PIB setorial.
A tendência em ambos é semelhante. No entanto, na metalurgia, o número de greves está em alta mais acentuada em números absolutos, com crescimento abrupto em 2012 e 2013, enquanto na construção civil isso é observado em 2011 e 2013. Assim, o fortalecimento da organização e atuação sindical expresso pelo aumento no número de greves pode explicar o crescimento significativo da participação das remunerações na relação capital-trabalho mesmo em contexto de dificuldades econômicas do setor de autopeças, o que reitera a hipótese de intensificação dos conflitos distributivos no período.
Apesar das políticas de estímulo à Autopeças, as medidas foram insuficientes em um cenário externo desfavorável e ainda se combinaram a um contexto interno de pleno emprego e elevação salarial que favorecia a posição das classes trabalhadoras. O aumento exponencial do número de greves se dá em um momento em que a indústria perdia competitividade externa, expressa pelo aumento do déficit da balança comercial, e iniciava um ciclo de queda no valor adicionado bruto combinado com aumento da participação das remunerações em sua composição. Como veremos a seguir, tal dinâmica encontra ressonância na visão dos empresários sobre o período, pois estes veem uma relação de representação de classe entre os governos liderados pelo PT e os trabalhadores, e apontam a recuperação da posição anterior do capital em relação ao trabalho como forma de enfrentar uma dupla crise, de quedas de lucro e competitividade.
Do apoio à oposição: o deslocamento político empresarial
A política econômica do início do Governo Dilma foi elogiada pelos empresários dos dois setores analisados, pela atenção às demandas e interlocução permanente na sua elaboração e execução. A partir de 2014-15, houve um progressivo deslocamento, demonstrado pela participação ativa dos empresários na oposição ao governo, concordância com o impeachment, e defesa de uma nova agenda macroeconômica, de ortodoxia fiscal e redução de direitos trabalhistas e sociais.
No primeiro ano de governo, com o lançamento da segunda etapa do MCMV em junho de 2011, o tom empresarial na Construção Civil é favorável e otimista. No dia seguinte ao anúncio, Rubens Menin, fundador e presidente da MRV, Eduardo Gorayeb, da Rodobens, e Roberto Senna, da Direcional, posicionaram-se em defesa da medida. “Fomos atendidos no que pedimos”, sintetizou Menin (Valor Econômico, 2011b). O ano foi de diminuição das contratações de unidades habitacionais na comparação com 2010 (queda de 718.823 para 508.199), mas os empresários relativizaram o fato, pois o primeiro ano de governo era de ajustes. Também foi elogiada pelo setor a elevação do teto de incidência do Regime Especial de Tributação (RET). Em 5 de dezembro de 2011, Rubens Menin declarou estar “muito otimista” com a mudança na RET (Valor Econômico, 2011d). Dias depois, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (CBIC) comemorava o aumento dos financiamentos imobiliários, que alcançaram R$ 110 bilhões em 2011, impulsionados pelo MCMV. Na mesma reportagem, a MRV afirmou ter multiplicado seu tamanho em 20 vezes na comparação com 2005 (Valor Econômico, 2011e).
Outro aspecto que chama atenção nos primeiros anos de governo Dilma é a preocupação das construtoras em se adequar à legislação trabalhista. Com o aumento das greves e da fiscalização trabalhista, que paralisavam obras pelo país, o presidente da CBIC, Paulo Simão, afirmou que as empresas seriam mais rigorosas na contratação de terceirizadas. Também houve a articulação de uma comissão tripartite para acompanhar o setor e ampliar o diálogo entre empresas, trabalhadores e governo (Valor Econômico, 2011f).
O apoio seguiu nos anos subsequentes. O mesmo Paulo Simão se manifestou de forma favorável ao governo diante do anúncio, em agosto de 2012, do novo pacote de concessões na área da infraestrutura (Valor Econômico, 2012a). Em dezembro, houve nova manifestação positiva, pela decisão de incluir as construtoras na lista de setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamento, medida que estimularia contratações. “Saímos de uma ampla negociação com produtos do Minha Casa, Minha Vida - prazos, preços e viabilização de projetos - e agora ganhamos mais um estímulo com a desoneração da folha” (Valor Econômico, 2012b).
No segundo semestre de 2013, no entanto, o tom mudou. Ao Valor, Paulo Simão manifestou preocupação com os impactos das desonerações nas despesas públicas. A expectativa do setor era garantir a terceira fase do programa MCMV2, mesmo em um cenário de ajuste. O temor era de que a situação fiscal do país impactasse negativamente os investimentos, com diminuição no ritmo de contratações de unidades habitacionais. O presidente da CBIC cobrava também maior diálogo. “O ambiente para negócios no Brasil está muito ruim. Nossa intenção é aumentar a interlocução com o governo para simplificar as regras, o que ajudaria a diminuir os custos” (Valor Econômico, 2013).
Um ano depois, logo após a reeleição de Dilma, o setor volta a manifestar preocupação com o cenário econômico. “No começo do ano [2015], haverá mais dificuldade em função dos ajustes que serão feitos, mas há possibilidade de recuperação no segundo semestre. Na soma, o mercado imobiliário ficará estável”, afirmou Renato Ventura, diretor-executivo da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). A baixa expectativa para 2015 está relacionada com os números do setor em 2014: “até setembro [2014], o conjunto dos lançamentos das incorporadoras de capital aberto somou R$ 14,4 bilhões, 11,1% abaixo do acumulado de nove meses de 2013. A queda foi ainda maior se considerado somente o terceiro trimestre, com retração de 30,9%” (Valor Econômico, 2014, acréscimo nosso). No segundo semestre de 2015, o clima já era de bastante pessimismo. Em 28 de setembro, Rubens Menin afirmou que “esta crise de agora pode ser a maior crise da nossa existência” (Valor Econômico, 2015). Apesar da empresa ter alcançado a receita líquida recorde de R$ 1,3 bilhão no segundo trimestre daquele ano, Menin não escondia seus temores em relação ao futuro do país. “Ainda estamos descendo a ladeira. Isso é o que me preocupa. Estamos num túnel e ainda não vimos a luz no fim dele” (Valor Econômico, 2015). Para exemplificar, mencionou a aprovação de um projeto de lei na Câmara dos Deputados que alterava a correção do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A matéria era considerada uma das “pautas-bombas” do então presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha, pois reduziria os recursos dos programas habitacionais. “Quando vimos, o estrago já estava feito. O governo estava sem capacidade de articulação” (Valor Econômico, 2015).
Nas entrevistas por nós realizadas com empresários da construção civil, o tom que era pessimista na imprensa se torna de forte oposição. Foram entrevistados cinco donos de empresas pequenas (denominados P): 20 a 99 funcionários diretos e faturamento anual entre R$ 5 milhões e R$ 20 milhões; três donos de empresas médias (denominados M), 100 a 500 funcionários e faturamento de R$ 20 milhões a R$ 300 milhões; dois empresários de grandes construtoras (denominados G), com mais de 500 funcionários e faturamento acima de R$ 300 milhões; e um presidente de associação empresarial nacional (denominado A). Para definir o porte das empresas, foram adotados critérios do BNDES (faturamento) e do Sebrae/Dieese (número de funcionários). A cada empresário corresponde um número, para diferenciação.
Apenas um empresário se posicionou contra a queda de Dilma, e seis deles declararam ter pessoalmente participado de manifestações a favor do impeachment a partir de 2015. Nenhum participou de atos em 2013. Todas as empresas cresceram de 2003 a 2013, e cinco delas foram criadas após 2010. Dessas, duas realizam obras também no MCMV-Entidades, em parceria com o movimento/associação de moradia. Apesar disso, os donos de tais empresas defenderam a saída de Dilma, atribuindo a ela e ao PT as causas da crise, pela “corrupção”, “aumento de gastos públicos” e “incompetência”. Todos os empresários disseram ter sentido os impactos da crise econômica, com diferenças em relação ao momento: 2013, 2014 e 2015, porém com predomínio no final entre 2014 e início de 2015. A empresa de capital aberto perdeu cerca de 70% de seu valor de mercado na bolsa de 2014 a 2019.
O descumprimento de contratos foi a razão atribuída por alguns dos empresários à mudança de porte de suas construtoras de grande para pequena. “Em 2014, houve atraso dos pagamentos do governo federal […], porque começaram os problemas da época Dilma, fiquei três meses sem receber direito” (P-1). No seu entender, o governo Dilma “foi catastrófico”, pois mudou a política econômica de Meirelles, no governo Lula, “executada à perfeição”. Em 2010 e 11, era preciso mudar a matriz e parar com o expansionismo de gastos. “Ia ser doloroso, mas era necessário, se continua a crescer e sendo levado a sério, o investimento externo viria e teria mais credibilidade. Quando não fez isso, o dinheiro acabou, foi farra de subsídio para todo mundo”, entende P-1, ressaltando que “faltou pulso e honestidade” no governo em diminuir subsídios e contratações. A visão é corroborada por G-2, em razão de Dilma “ter dado ordem para contratação sabendo que não tinha dinheiro, é irresponsabilidade, prejudicou muito” (G-2). Para P-1, a “transparência era zero. No governo Temer, foram transparentes: ‘não tem dinheiro, não tem como assinar, não vamos fazer’”, diz em tom elogioso, apesar da falta de recursos. No entender dos empresários, o governo FHC “preparou um bom futuro para o país”, mas Lula implementou política econômica com base no consumo que “ao longo do tempo” não seria “sustentável” (M-1), em uma conjuntura em que “ninguém estava olhando pelo lado do empresário” (P-1).
Desse modo, nas entrevistas, os empresários reforçaram algumas motivações já presentes em declarações na imprensa, como a preocupação com a evolução da situação fiscal do país e o apoio a medidas de austeridade. As visões de que “não pode gastar o que não tem e de que houve farra de subsídio pra todo mundo” apontam para outras hipóteses explicativas do posicionamento político dos industriais, como a hegemonia do setor financeiro sobre o conjunto das classes dominantes (este tema específico é tratado em outro artigo, em fase de revisão por pares). Mesmo aqueles beneficiados pelo direcionamento de recursos estatais entendem que isso traz prejuízos para o conjunto de uma economia dependente da confiança do mercado.
O conflito distributivo emerge nas falas de empresários em referência ao que consideram uma relação de representação entre governos Lula-Dilma e trabalhadores organizados, o que teria trazido insegurança para o investimento. “Vou querer ter um funcionário nessa época? Quanto custa um funcionário? Qual é o risco de eu ter uma ação trabalhista? No governo Dilma, foi a época que mais teve ação trabalhista, mesmo sem ter razão” (M-2). A relação de representação seria expressa também pelo MCMV. “As entidades estavam com todo o poder na época da Dilma, vi entidade ligar para Brasília e falar: libera meu empreendimento. E na semana seguinte o empreendimento dela estava liberado (risos)” (M-2). Todos os entrevistados apoiaram a reforma trabalhista, pois a legislação até então vigente seria prejudicial à geração de empregos e ao investimento privado. “Já tive caso de estar tudo certo e juiz falar para mim: “não é melhor fazer acordo, não? Empresa é rica”. Vou falar o que para o juiz?” questiona (M-2).
Com base nessas justificativas, a saída de Dilma foi apoiada pela ampla maioria dos entrevistados, e seis deles disseram ter ido pessoalmente às ruas nos protestos de 2015 e 2016, por entenderem que havia desgaste e incapacidade de governar. Já Michel Temer é elogiado, sobretudo, pela proposta de Reforma Trabalhista. “Apesar de não ser meu preferido, ideologicamente tem algumas coisas que fazem mais sentido”, diz G-1. Para ele, a legislação trabalhista “era antiga”, e a nova proposta aprovada em 2017 produz uma situação de “ganha-ganha” entre empresa e trabalhador. “Para o empresário, a lei estava muito pesada, muita gente operava por fora, na informalidade, então é melhor ter lei mais flexível e que todo mundo se enquadre, do que lei muito rigorosa. Era tão rigorosa que até desincentivava a contratar” (G-1).
No setor de Autopeças, em 2011 o clima em relação ao governo era semelhante ao da Construção Civil. Paulo Butori, então presidente do Sindipeças, estava otimista com a administração que se iniciava, ainda que “com cautela”. Em agosto, destacou a rapidez no anúncio do PBM: “era preciso acenar com uma luz para demonstrar ao mercado que o governo estava atento”. A cautela remontava a um dos fundamentos do programa: “não podemos pensar em aumentar empregos, cujo custo é muito alto, mas em ganhar competitividade fabricando itens de maior valor agregado” (Automotive, 2011a). No ano seguinte, afirmou que a desoneração da folha, luta antiga, permitiria a ampliação de investimentos no parque industrial (Automotive, 2012), melhorando a capacidade, o capital de giro e a competitividade. “O governo está preocupado com a indústria”. Butori confirmou a presença de cinco representantes do Sindipeças no Conselho de Competitividade da Indústria Automobilística, garantindo participação no centro das discussões sobre a indústria automotiva.
A posição favorável seguiu com o lançamento do novo regime automotivo e do programa de rastreamento de componentes, que agradou os empresários. Em 2014, Butori afirmou que a legislação saiu conforme acordado entre entidades e governo, sem “surpresas desagradáveis”. O Inovar-Auto “teve a qualidade de frear esse processo [de importação de automóveis] e as empresas começaram a trazer fábricas para o Brasil”. Ao se referir ao programa de rastreabilidade de componentes, observou que “isso é o resultado que nós colhemos de todo esse processo do Inovar-Auto. Quando nós apertamos, o que saiu de sumo é a rastreabilidade” (Automotive, 2014a, 2014b, acréscimo nosso).
No entanto, em 2015, o tom dos empresários de Autopeças já havia se alterado. O mesmo Paulo Butori passou a criticar o novo regime automotivo, apesar de muitas medidas terem se originado de propostas do próprio Sindipeças. Naquele início de segundo mandato, Butori afirmava que o programa serviu apenas para atrair novas fábricas montadoras ao país, sem qualquer benefício significativo ao setor. Em agosto, o Sindipeças apresentou projeções pouco animadoras. Conselheiro da entidade e presidente da Freudenberg-NOK, George Rugitsky afirmava que “o inverno que entramos será longo”, fundamentado nas quedas de faturamento das empresas (-18%), de investimentos (-52,9%) e do número de postos de trabalho (-15,3%), em comparação com 2014. As causas foram assim sintetizadas: “enquanto os salários tiveram 100% de aumento real (em 10 anos), a produtividade só cresceu 3%. Não somos contra aumento real, mas é preciso que seja acompanhado pela produtividade” (Automotive, 2015).
Em entrevista por nós realizada em 2019, Butori reafirmou a necessidade do impeachment de Dilma para a retomada econômica do país, ainda que não acreditasse que a presidenta fosse corrupta ou desonesta, apenas incompetente, caracterização frequentemente repetida pelos entrevistados. O dirigente do Sindipeças reiterou o fracasso do Inovar-Auto e que os empresários não foram ouvidos pelo governo para a criação das políticas, em contradição com as declarações na imprensa. Com o cenário agravado em 2015, de queda na produção de automóveis, as críticas ao governo e ao ensaio desenvolvimentista se intensificam e o setor passou a compor a frente única burguesa antidesenvolvimentista, a ponto de, em março de 2016, empresários de autopeças defenderem abertamente a queda de Dilma como única solução possível para a retomada de investimentos e do crescimento do país. Ao Valor Econômico, Besaliel Botelho, presidente da Bosch na América Latina, defendeu a deposição: “o Brasil não é essa turma que está aí. O Brasil somos nós”. Nelson Fonseca, presidente da Truck & Bus, apontou que o país poderia sofrer uma rápida fuga de empresas e investidores caso a destituição não se efetivasse. O próprio Butori afirmou ter participado das manifestações a favor do impeachment em 13 de março de 2016, na Avenida Paulista, em São Paulo (Valor Econômico, 2016). Tais posições foram reafirmadas nas entrevistas por nós realizadas.
Ressalta-se que os seis entrevistados do setor defenderam a deposição de Dilma Rousseff e apoiaram as reformas promovidas pelo governo Michel Temer e sua Ponte para o futuro, notadamente a trabalhista e o teto de gastos. Prevalecia a visão de que tais reformas eram inevitáveis, alinhado ao discurso neoliberal do there’s no alternative (não há alternativas). Nota-se ainda uma caracterização comum da presidenta como mandatária incompetente, de difícil trato e incapaz de liderar o país. A crise econômica impactou a todos, ainda que de maneira desigual, e teria como causas fundamentais o suposto descontrole nos gastos públicos, elevando sobremaneira a dívida do Estado, e o excesso de corrupção, que teria esvaziado os cofres públicos. O impeachment, considerado legítimo e necessário, teria sua justificativa não nas supostas pedaladas fiscais, mas no “conjunto da obra” do governo e seu impacto negativo sobre a economia. O governo Dilma, apesar de alguns elementos positivos, como a desoneração da folha de pagamentos e a redução do preço da energia elétrica, teria sido desastroso. Não houve reconhecimento da Nova Matriz Econômica e, especificamente, do Inovar-Auto, como políticas alinhadas aos interesses do setor.
O Lula, por ser um metalúrgico […] , tinha muita experiência sobre o setor de autopeças, conhecia profundamente. Eu acho que não tinha nenhum político que conhecia tanto o setor automobilístico como o Lula […] O segundo mandato dele não foi igual, e aí entrou a Dilma e foi um desastre […] , com falta de experiência. Não vi resultado nenhum na economia, ao contrário, a gente voltou para trás . Pedro Eberhard (relato concedido aos autores).
O Lula, por um tempo, manteve o tripé macroeconômico do Fernando Henrique e, com a crise de 2008, no primeiro instante, eles fizeram política anticíclica, que estava correta. Mas aí migraram pra Nova Matriz, desenvolvimentista e não sei o que lá. Então, aquele começo, aliado ao boom das commodities, foi ótimo! Dali, com a [política] anticíclica, perdeu a mão. George Rugitsky (relato concedido aos autores, acréscimo nosso).
O conflito distributivo e a necessidade de redução do “Custo Brasil” são mencionados em todas as entrevistas. Como afirma Mancuso (2007 ), tal pauta mobiliza o empresariado industrial brasileiro desde a década de 1990. Os empresários não viram nas medidas da Nova Matriz uma tentativa de diminuição dos custos de produção industrial. Segundo Eberhardt, a diferença de preço entre seus produtos e os importados chegaria a quase 70%, muito embora, por vezes, a qualidade do componente estrangeiro fosse inferior. A explicação, segundo os entrevistados, está no altíssimo volume e produtividade dos países asiáticos e nos altos custos de produção interna, que envolvem burocracia, tributação, mão de obra, logística e segurança privada e patrimonial.
Hoje, com a importação que está aberta no setor de autopeças, a empresa brasileira, ela não consegue crescer. Ela não consegue. Não que eu defenda só a empresa nacional, mas eu acho que o critério que está sendo usado para importação de produtos aqui é um absurdo. E o que entra de produto aqui de autopeças chinês é uma loucura, subfaturados… Você não consegue competir. Pedro Eberhardt (relato concedido aos autores).
Nós temos uma coisa chamada Custo Brasil, que está muito acima e totalmente fora das paredes das fábricas. Você, dentro da sua fábrica, do muro para dentro, você pode ser competitivo: do muro para fora, você perde a competitividade! Nós temos aqui impostos muito mais altos do que nossos competidores lá fora, nós temos encargos sociais. Por exemplo, enquanto um trabalhador… No Brasil, você mais que duplica o salário dele com encargos sociais . Cláudio Sahad (relato concedido aos autores).
Assim, os depoimentos coletados nas entrevistas confluem com a interpretação apresentada acima, relativa aos dados econômicos do setor, pela correlação entre o cenário externo desfavorável e a intensificação do conflito distributivo internamente. Ao mesmo tempo que apontam o déficit comercial em razão da competitividade chinesa, três entrevistados de autopeças relataram que os trabalhadores do setor obtiveram ganhos salariais reais expressivos durante todo o primeiro mandato de Dilma, porque havia pleno emprego e a demanda estava em alta. Prevalecia igualmente a avaliação de que os governos do PT eram representantes dos trabalhadores e sindicatos, o que teria lhes fortalecido significativamente, favorecendo as greves e a “bagunça”.
O sindicato dos trabalhadores daqui é da Força Sindical, que é um sindicato já menos radical, a CUT é mais radical. Agora, eu percebo que, não só no governo Dilma, mas pegando todo o governo do PT como um todo, os sindicatos adquiriram um poder muito grande, muito maior do que eles tinham antes e do que eles passaram a ter depois, o que acabou se refletindo no custo da mão de obra. Por causa do poder que eles [sindicatos] ganharam, eles conseguiram negociar os dissídios, todos os anos, com percentuais de ganho real, coisa com a qual eu não concordo. Eu acho que o dissídio coletivo, ele existe pra você repor poder de compra do salário, entendeu? O dissídio coletivo existe pra isso, não é pra você dar aumento real, o aumento real você dá através de promoção, certo? Você dá um aumento real para o funcionário por merecimento, é meritocracia! E o que eles fizeram? Quer dizer, pela força que eles adquiriram, teve ano que eles conseguiram aumento real de 4% no salário! […] Não teve correspondente na produtividade, lógico que não! Ou seja, saiu da rentabilidade das empresas, diminuiu a competitividade das empresas. […] Foi assim que o Brasil deixou de ser um país de baixo custo! Em dez anos o Brasil… O Brasil era um país de baixo custo salarial . Cláudio Sahad (relato concedido aos autores).
[questionado se os aumentos salariais impactaram a empresa] impacta, sempre impacta, sempre impactou […] Hoje não, hoje a coisa está mais moderada, mas tanto na época do Lula quanto na época de Dilma impactou muito […]. Teve muito [movimentos grevistas] […]. Teve muito, e depois caiu. Mas hoje o pessoal é muito mais sensato, de ambos os lados, tá? Agora também o sindicato teve um problema: o imposto sindical caiu, né? Então isso aí […] Hoje a arrecadação deles é muito menor. […] Então hoje é um problema muito sério pra eles, eles não têm mais aquela força que tinham, entendeu? Mas o sindicato de São Bernardo, hoje, dos metalúrgicos, é o mais sensato do Brasil. […] Amadureceram [os sindicatos] também, né? Amadureceram, o sindicalista amadureceu, e também hoje o problema do desemprego é uma coisa muito séria. Então, não estão com aquela bagunça que havia de greves, não sei o que, aquele negócio todo. Acabou! Pedro Eberhardt (relato concedido aos autores).
O diagnóstico apresentado nas falas dos entrevistados indica não apenas o acirramento do conflito distributivo e o fortalecimento da classe trabalhadora durante os governos do PT, especialmente ao longo do governo Dilma, como também o resultado da política econômica de austeridade e das contrarreformas, iniciadas pela própria presidenta em 2015 e aprofundadas por Michel Temer, no que diz respeito ao enfraquecimento dos trabalhadores e à interrupção do processo de ganhos salariais que vinha ocorrendo desde o primeiro mandato de Lula. Ainda que de maneira lenta e gradual, o lulismo, acelerado por Dilma em seu ensaio desenvolvimentista, parece ter tocado em pontos sensíveis da formação social brasileira, especialmente no que diz respeito à grande massa de trabalhadores na condição de reserva de mão de obra (Singer, 2018).
Cabe assinalar a presença, nos diferentes depoimentos, de um forte discurso ideológico alinhado ao setor financeiro e ao pensamento neoliberal, sobretudo no que diz respeito à necessidade de austeridade e de redução do Estado - neste caso, ao modo da classe média tradicional, a corrupção aparece como uma das possíveis justificativas. Todos os empresários entrevistados da Construção Civil e de Autopeças alimentam a expectativa de que medidas como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e o teto dos gastos, levariam a um novo ciclo de crescimento de longo prazo e estimulado pela diminuição dos custos de produção. Nota-se que a agenda político-econômica dos empresários sofreu significativa mudança em um período relativamente curto de tempo. É ilustrativo, neste caso, que a defesa de uma fiscalização mais rígida das condições de trabalho na construção civil tenha sido substituída por um programa de flexibilização da legislação trabalhista.
Ao mesmo tempo, os empresários entrevistados não reconhecem uma correspondência entre a condução do ensaio desenvolvimentista e seus interesses. Pelo contrário, há uma visão de que os governos petistas representavam os interesses das classes trabalhadoras, que teriam aumentado seu poder no período. Nesse sentido, o realinhamento em torno de uma agenda de redução de direitos se colocou para as classes dominantes como caminho de superação da crise, pelo entendimento comum da necessidade de diminuição dos custos do trabalho para recompor as margens de lucro.
Como já indicado ao longo do texto, os casos possuem dinâmicas político-econômicas distintas, e algumas proximidades no plano do discurso empresarial. A construção civil, em termos econômicos, teve ganhos expressivos decorrentes de políticas governamentais como o MCMV. Os impactos da crise de 2008 foram rapidamente superados e a queda no PIB do setor pós-2014 é leve. Na medida em que houve aumento da participação das remunerações no valor adicionado bruto e o discurso empresarial enfatiza a noção de representação política entre classes trabalhadoras e governos liderados pelo PT, entendemos que o caso confirma a hipótese de intensificação dos conflitos distributivos como uma das motivações do deslocamento político empresarial no período. A ela devemos acrescentar outras hipóteses a serem trabalhadas em artigo específico sobre a construção civil, como o avanço do processo de financeirização da habitação no Brasil nos anos 2000 e possíveis impactos negativos no setor de uma política fiscal expansionista.
No setor de Autopeças, também é preciso fazer referência a outras hipóteses explicativas, sobretudo relacionadas ao impacto da expansão da participação da indústria chinesa na economia nacional. Apesar de alinhadas com as demandas dos empresários, as medidas econômicas adotadas não lograram promover crescimento econômico do setor, o que aponta para dificuldades estruturais de promoção da industrialização nacional em contexto de avanço neoliberal no plano internacional. Ainda assim, o aumento significativo do número de greves e da participação das remunerações na composição do valor adicionado bruto no setor, indica que as medidas adotadas fortaleceram a posição político-econômica das classes trabalhadoras no período. Ainda que com uma dinâmica distinta em relação à Construção Civil, é possível dizer que, também na indústria de Autopeças, o conflito distributivo se afirma como uma das hipóteses explicativas do deslocamento político empresarial desde o apoio às medidas iniciais de Dilma até uma oposição ativa. Da mesma forma, trabalhos futuros devem explorar temas como integração da indústria brasileira nas cadeias globais de valor e as diferenças de interesses intrassetor, entre pequenas, médias e grandes empresas, como hipóteses explicativas do comportamento político dos empresários de Autopeças.
Considerações finais
As pesquisas sobre o comportamento político empresarial nos setores da Construção Civil e Autopeças indicam um deslocamento político do empresariado industrial nos anos 2010, desde manifestações públicas favoráveis às medidas econômicas adotadas por Dilma e participação de empresários em sua elaboração e execução, no início da década, em direção à forte oposição, sobretudo no segundo mandato de Dilma, o que embasa a hipótese de formação de uma frente única burguesa antidesenvolvimentista (Singer, 2018). Na imprensa, o tom favorável se desloca para uma abordagem pessimista a partir do final de 2013 e, sobretudo, em 2015. Nas entrevistas, o posicionamento é mais explícito: aquilo que aparece como pessimismo na imprensa é declarado como oposição aberta e defesa do impeachment da presidenta. Além disso, há um explícito alinhamento com um programa econômico de ortodoxia fiscal e redução de direitos.
Com base nos resultados, é possível reafirmar a intensificação dos conflitos distributivos como uma das hipóteses explicativas de tal deslocamento (Martins e Rugitsky, 2021; Singer, 2018; Serrano e Summa, 2018). A política econômica de Dilma promoveu, além de crescimento salarial, o pleno emprego, que pode ter retirado das mãos do empresariado um importante instrumento de controle político-econômico sobre as classes trabalhadoras, qual seja, a ameaça de desemprego (Kalecki, 1943). Com isso, houve aumento do número de greves no país e da participação das remunerações do trabalho na composição do PIB, em cenário de diminuição ou mesmo reversão da curva de crescimento econômico.
Os dados econômicos do período dão fundamentação material às impressões dos empresários de que os governos liderados pelo PT, sobretudo o primeiro mandato de Dilma, fortaleceram a posição das classes trabalhadoras na relação com o capital. Isso está presente na Construção Civil, e é mais acentuado na Autopeças. Os dados também reforçam o argumento de Carvalho (2018) de que medidas adotadas no governo Dilma, como a desoneração, não resultaram em crescimento econômico dos setores pesquisados, de modo que as relações entre economia e política no comportamento político empresarial devem ser investigadas em trabalhos futuros e que contemplem outros setores. Assim, ressalta-se que a ampliação do escopo da pesquisa para a indústria como um todo seria fundamental para o debate das hipóteses aqui levantadas: se houve deslocamento político no período, quais seriam as motivações, e o grau de unidade das variadas frações de classe no processo de impeachment e no período subsequente.
Com base nesta pesquisa, pode-se afirmar que a decorrência inesperada das medidas adotadas por Dilma foi um deslocamento econômico em favor das classes subalternas, ao que correspondeu uma reação das classes dominantes. Isso conformou novas relações de hegemonia, de unidade entre as distintas frações de classe burguesa em favor da deposição do governo. Ao dar consequência a um programa econômico que atendia interesses imediatos das forças empresariais, o governo Dilma produziu como efeito inesperado uma profunda instabilidade política e social, sendo o acirramento do conflito distributivo uma de suas expressões.
Diante da ascensão das classes trabalhadoras, o empresariado tende a priorizar a recuperação de sua posição de controle político-econômico sobre o corpo social. O crescimento e o pleno emprego dependem de condições políticas, da disponibilidade de investir dos detentores do capital, de sua confiança, expressa nas exigências de rendimento e expectativas de lucro, e na avaliação geral sobre a segurança da economia capitalista (Kalecki, 1943). Talvez o lulismo tenha encontrado, por pouco tempo, nossa fórmula da paz, que por cerca de dez anos promoveu crescimento econômico com redução da desigualdade social em um arranjo político conciliatório das forças fundamentais que estruturam a sociedade. Assim como na “Revolução Neoliberal” iniciada nos anos 1970 frente ao Estado de bem-estar europeu, o horizonte de fortalecimento estrutural das classes trabalhadoras (Streeck, 2018) produziu a busca, pelo capital, da retomada do controle sobre o funcionamento de todo o sistema econômico, a ser progressivamente protegido das intervenções sociais, na consecução de uma agenda ininterrupta de redução de direitos dos trabalhadores.
Ao direcionar o olhar para a relação capital-trabalho em dois setores específicos da indústria, também buscamos contribuir com a discussão teórica corrente sobre as relações de classe nos governos do PT e a crise do lulismo, o que igualmente demanda pesquisas futuras. Políticas direcionadas a setores como Construção Civil e Autopeças e as consequências positivas na relação capital-trabalho podem ser expressões daquilo que Singer (2018) categoriza como um deslocamento do lulismo “para um pouco mais perto do reformismo forte” (Singer, 2018, p. 12), o que acirrou os conflitos distributivos entre frações de classe que lhe davam sustentação. A discussão também está presente em Boito Jr. (2012, p. 72), que aponta para a precariedade da unificação de diferentes forças no interior da frente neodesenvolvimentista, em parte decorrente da insatisfação dos movimentos populares e sindical com os “limites desse projeto de desenvolvimento” (Boito Jr, 2012, p. 72). A dinâmica dos dois setores analisados mostra possível aprofundamento do desajuste entre a força hegemônica (nos termos do autor, a grande burguesia interna), e a força principal (movimentos operário e popular), o que levou ao acirramento das disputas em temas como gasto público e reajuste do salário-mínimo.
O comportamento pendular do empresariado (Cardoso, 1972), a fragilidade de sua organização política, a mudança constante dos posicionamentos e a complexidade dos interesses envolvidos tornam fundamental o debate sobre como se formam e quais são as frações das classes dominantes brasileiras. A análise de Singer (2015) privilegia a diferença de interesses entre setores industrial e rentista; a de Boito Jr. (2012) prioriza as diferenças de posição que assumem em relação ao capital estrangeiro. No entanto, outras condições influem na formação de interesses políticos e econômicos dos empresários, tais como o processo de financeirização, o porte das empresas, a transnacionalização da economia e as ideologias e mentalidades prevalentes. Disso decorre a importância de investigações futuras sobre condição e posição de classe das burguesias, e o comportamento dos empresários e de suas entidades representativas no Brasil.
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1
Agradecemos a André Singer pela supervisão da pesquisa que deu origem a este artigo, assim como a Fernando Rugitsky, Cicero Araújo, Armando Boito Júnior, Pedro Paulo Zahluth Bastos e Bruno Höfig que generosamente comentaram a primeira versão deste artigo e muito contribuíram para a discussão aqui apresentada.
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2
O programa foi lançado em 2009, momento considerado fase 1. Em 2011, início do governo Dilma, foi lançada a fase 2, com promessa de construção de 2 milhões de unidades. A fase 3 foi lançada em março de 2016, pouco antes da votação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados.
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3
No caso do setor de Autopeças, autor e entrevistados acordaram expor os nomes das fontes das entrevistas. No caso da Construção Civil, o acordo foi pelo anonimato. Apesar da discrepância no texto, optamos por manter os nomes no setor de Autopeças, pois pode contribuir com a leitura.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jan 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
18 Dez 2020 -
Aceito
06 Nov 2023