Resumo
Objetivo Analisar como ocorre o atendimento de pacientes com Acidente Vascular Cerebral isquêmico agudo considerando os fluxos assistenciais e os elementos restritivos e facilitadores do atendimento na Rede de Atenção às Urgências e Emergências.
Métodos Trata-se de estudo fundamentado no referencial metodológico da Grounded Theory. Foram entrevistados 75 profissionais de saúde do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, da Unidade de Pronto Atendimento e do Hospital Referência na cidade de Salvador, Bahia.
Resultados Emergiram 14 categorias e 66 subcategorias que representaram o fenômeno estudado, revelando fatores causais da fragmentação da rede como falta de vaga e de recursos, necessidade de melhoria no protocolo de atendimento, burocratização hospitalar, desconhecimento da população, apesar dos esforços dos profissionais em atender esse paciente. A interação profissional revelou ausência de linguagem única, entraves nas relações profissionais, desconhecimento do papel do outro, dificuldade em regular o paciente e compartilhamento de alguns objetivos na Rede. Consequentemente houve a saída do paciente da Linha de Cuidado, atendimento dos pacientes fora de janela terapêutica, necessidade de imposição da ‘vaga zero’, e um melhor atendimento quando o paciente teve acesso à unidade especializada. Elementos facilitadores dizem respeito também ao compartilhamento de objetivos na rede e ao esforço dos profissionais para atender o paciente em janela.
Conclusão A fragmentação da Rede revela necessidade de intervenções gerenciais no sentido de aprimorar o atendimento, padronizando-o e tornando a assistência integral e equânime.
AVC isquêmico; Enfermagem em emergência; Serviço hospitalar de emergência; Serviços médicos de emergência; Transferência de pacientes; Serviços de atendimento
Resumen
Objetivo Analizar cómo se realiza la asistencia a pacientes con accidente cerebrovascular isquémico agudo considerando los flujos de asistencia y los elementos restrictivos y facilitadores de la atención en la Red de Atención de Urgencias y Emergencias.
Métodos Se trata de un estudio basado en el marco referencial metodológico de la Grounded Theory. Fueron entrevistados 75 profesionales de la salud del Servicio de Atención Móvil de Urgencia, de la Unidad de Pronta Atención y del Hospital Referencia de la ciudad de Salvador, estado de Bahia.
Resultados Surgieron 14 categorías y 66 subcategorías que representan el fenómeno estudiado y revelan factores causales de la fragmentación de la red, como falta de camas y recursos, necesidades de mejora del protocolo de atención, burocracia hospitalaria, desconocimiento de la población, a pesar de los esfuerzos de los profesionales en atender ese paciente. La interacción profesional reveló ausencia de un lenguaje único, trabas en las relaciones profesionales, desconocimiento del papel del otro, dificultades para regular al paciente e intercambio de algunos objetivos de la red. Consecuentemente, se produjo la salida del paciente de la línea de cuidado, la atención a pacientes fuera de la ventana terapéutica, la necesidad de aplicación de la “cama de reserva” y una mejor atención cuando el paciente tuvo acceso a la unidad especializada. Los elementos facilitadores también se refieren a compartir objetivos en la red y al esfuerzo de los profesionales para atender al paciente en ventana.
Conclusión La fragmentación de la red revela la necesidad de intervenciones gerenciales en el sentido de mejorar y estandarizar la atención para que sea completa y ecuánime.
Accidente cerebrovascular isquémico; Enfermería de urgencia; Servicio de urgencia en hospital; Servicios médicos de urgencia; Transferencia de pacientes; Servicios de contestadora
Abstract
Objective To analyze how the care of patients with acute ischemic stroke occurs, considering the care flows and the restrictive and facilitating elements of care in the emergency care network.
Methods This is a study based on the Grounded Theory methodological framework. We interviewed 75 health professionals from the Brazilian Mobile Emergency Care Service, Emergency Care Unit and reference hospital in the city of Salvador, Bahia.
Results A total of 14 categories and 66 subcategories emerged that represented the phenomenon studied, revealing causal factors of network fragmentation such as lack of vacancies and resources, need for improvement in the care protocol, hospital bureaucratization, lack of knowledge by the population, despite the efforts of professionals to meet this patient. Professional interaction revealed the absence of a single language, obstacles in professional relationships, lack of knowledge of the other’s role, difficulty in regulating patients and sharing some goals in the network. Consequently, patients left the care line, care for patients outside the therapeutic window, the need to impose a ‘zero vacancy’, and better care when patients had access to specialized unit. Facilitating elements also concern the sharing of goals in the network and the effort of professionals to attend to window patients.
Conclusion The network fragmentation reveals the need for management interventions to improve care, standardizing it and making care comprehensive and equitable.
Ischemic stroke; Emergency nursing; Emergency service, hospital; Emergency medical services; Patient transfer; Answering services
Introdução
O Acidente Vascular Cerebral (AVC) é uma doença incapacitante, de alta morbimortalidade, que atinge cada vez mais pessoas jovens, sendo dividido em isquêmico e hemorrágico, sendo o primeiro mais prevalente.(1) Está intrinsicamente relacionado às comorbidades como hipertensão e diabetes mellitus que são fatores de risco em curva de crescimento na população brasileira.(1) O atendimento inicial para paciente com o AVC isquêmico possui necessidade de ser rápido e preciso, devido especificidade do trombolítico, medicação que só pode ser usada num intervalo de apenas 4,5 horas para pacientes com AVC isquêmico, exigindo alto nível de coordenação entre os serviços.(2)
A Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) possui portas, das mais diversas complexidades, por onde o paciente pode ter acesso ao atendimento. Assim, o paciente adentra a rede através do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sendo que em algumas realidades pode haver entrada também diretamente através das emergências hospitalares.(3) Desta maneira, são imperiosas a eficiência e a eficácia da assistência oferecida em qualquer uma dessas unidades de saúde,(3) sendo que o sucesso está relacionado ao nível de instrução da população, à estrutura da Rede e à interação profissional,(4) que precisam estar alinhadas e articuladas no encaminhamento do paciente através dos serviços de forma eficaz.
Apesar do AVC ser uma doença de cunho agudo, quando não há colaboração intersetorial para a efetividade do atendimento, há implicações relacionadas às sequelas para os pacientes e ao significativo impacto econômico gerado pela dependência do sistema público de saúde.(5) Desta forma, é imprescindível considerar as barreiras de acesso para que os pacientes cheguem aos serviços de saúde.(6)
Ademais, são escassos estudos que avaliem a conexão dos serviços no atendimento em Rede para esses pacientes, sendo mais frequentes estudos que avaliam internamente os serviços de saúde, ou se referem pontualmente a uma medida que tem sido utilizada para melhorar a assistência.
Dessa maneira, urge a necessidade de verificar como se dá o atendimento a esse paciente, tendo em vista que existem várias tecnologias e recursos já sendo utilizados para que haja efetividade na assistência e sucesso no atendimento agudo em um sistema estruturado em rede.(7) Assim, questiona-se: como ocorre o atendimento ao paciente com AVC isquêmico agudo dentro da rede de urgência e emergência no SUS?
Dessa maneira, o objetivo deste estudo foi analisar como ocorre o atendimento de pacientes com Acidente Vascular Cerebral isquêmico agudo considerando os fluxos assistenciais e os elementos restritivos e facilitadores do atendimento na Rede de Atenção às Urgências e Emergências de Salvador, Bahia, Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo fundamentado no referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). A TFD caracteriza-se como um método de análise comparativa que parte de uma investigação empírica para construir uma teoria que favoreça a compreensão da realidade a partir dos significados atribuídos por quem a vivencia. (8)
O estudo foi realizado em unidades de saúde que compõem a RUE e que atendem pacientes com AVC isquêmico agudo, delimitando-se ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), à duas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) situadas em distritos sanitários distintos e extremos da cidade, e ao Hospital de Referência em AVC na cidade de Salvador, Bahia, Brasil.
A coleta de dados foi realizada entre outubro de 2019 e outubro de 2020.
A população do estudo foi composta por profissionais, enfermeiros e médicos dos quatro serviços.
Para seleção dos participantes nos grupos amostrais, foram considerados os seguintes critérios de inclusão: disponibilidade, ser profissional de saúde dos serviços que compõem a RUE e que atendem AVC agudo (SAMU, UPA, Hospital) ou ser chefia dessas unidades de saúde; além de estar atuando há, no mínimo, um ano na função. Foram excluídas do estudo uma profissional da UPA e uma profissional do hospital que referiram não se sentirem confortáveis em participar.
Os participantes do estudo se constituíram por amostragem teórica, que envolve a formação de grupos amostrais, inicialmente direcionados para o problema de pesquisa,(9) sendo os participantes do primeiro grupo amostral (GA) previamente definidos e os demais grupos desvelados ao longo do processo da pesquisa.(8) A partir da análise dos dados obtidos com o primeiro grupo amostral (SAMU), foram incluídos participantes conforme amostragem teórica, sendo direcionados os grupos amostrais seguintes conforme hipóteses levantadas com os dados dos grupos anteriores. Desta maneira, o primeiro GA foi composto por 31 profissionais do SAMU, sendo 17 enfermeiros e 14 médicos; o segundo grupo por 24 profissionais de duas UPAs, sendo 18 enfermeiros e seis médicos; e, por fim, o terceiro GA foi composto por 20 profissionais de saúde do Hospital Referência, sendo 12 enfermeiros e oito médicos, totalizando 75 profissionais de saúde.
A coleta dos dados foi direcionada a partir de entrevista individual através da pergunta norteadora da pesquisa: “Fale-me sobre o atendimento ao paciente com suspeita de AVC”, permitindo expressão livre sobre o tema. Conforme as respostas dos participantes, foram direcionadas novas perguntas a fim de elucidar ou esclarecer os pontos levantados por estes, com a finalidade de obter entrevista em profundidade.
As entrevistas foram realizadas até saturação teórica dos dados, com a consolidação e articulação das categorias que compõe a teoria substantiva.
Como na TFD, a coleta e análise dos dados se dá de forma concomitante, foram elaborados memorandos após a realização de cada entrevista para auxiliar na análise dos dados. A análise foi realizada em três etapas: codificação aberta, codificação axial e integração(8) aplicadas a partir da transcrição das entrevistas. Inicialmente foi feita a leitura linha a linha, com atribuição de códigos substantivos com características das falas dos participantes (codificação aberta), em seguida, os códigos foram agrupados e elaborados conceitos, delimitando o fenômeno (codificação axial), e, por fim, com a comparação constante dos dados das entrevistas, no desenvolvimento de categorias e subcategorias, delimitou-se a categoria central “Revelando a fragmentação na Rede de Atenção às Urgências e Emergências no atendimento ao paciente com AVC agudo” (integração).
A identificação dos participantes foi feita pela letra “E” de entrevista, seguida pela(s) letra(s) inicial(is) da instituição: “S” de SAMU, ou “UPA” ou “H” de hospital, seguidos pelo número ordinal conforme sequência da entrevista, por exemplo: “ES1”, “EUPA3”, “EH15”.
Para auxiliar o processo de organização dos dados, foi utilizado o software NVIVO®. Para a validação do modelo teórico, houve envio do Instrumento da Validação por e-mail à dois profissionais de saúde de cada um dos tipos de instituição que participaram da pesquisa e à duas especialistas no método, totalizando oito profissionais.
A fim de garantir qualidade na pesquisa qualitativa, adotou-se as diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research – COREQ.(10)
O desenvolvimento deste estudo atendeu normas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, aprovada sob o CAAE nº 17763719.9.0000.5030 e sob o Parecer nº 3.538.900, atendendo às exigências éticas da pesquisa conforme as Resoluções 466/2012(11) e 510/2016(12) do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes confirmaram aceite da sua participação através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A categoria central que emergiu da análise realizada foi intitulada “Revelando a fragmentação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Atendimento ao Paciente com AVC agudo” tendo em vista os elementos restritivos e desconectados para o atendimento, apontados nas categorias de condição, ação-interação e de consequências. O diagrama integrativo abaixo, representa a articulação entre a categoria central e as demais categorias que compõem o paradigma do fenômeno (Figura 1).
O componente ‘condição’ foi representado por cinco categorias e 27 subcategorias, conforme quadro 1.
O componente ‘ação-interação’ foi representado por cinco categorias e 24 subcategorias, conforme quadro 2.
O componente ‘consequências’ foi representado por quatro categorias e 15 subcategorias, conforme quadro 3.
Discussão
Sendo a Rede a estrutura fundamental ao atendimento do paciente gravemente enfermo, que deveria ocorrer com centralidade nas necessidades sociais, populacionais e individuais, com interações intersetoriais,(13) o fenômeno “Revelando a fragmentação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências ao paciente com AVC agudo”, vai de encontro ao projeto proposto pelo SUS.
Como elementos condicionantes de tal fragmentação, os resultados deste estudo assinalam para a falta de vaga e de recursos para atender o paciente com AVC, pela centralização dos atendimentos no hospital referência que também é referência à inúmeras especialidades, com perfil de pacientes crônicos que apresentam internação prolongada, o que implica em menor rotatividade dos leitos. Assim, observa-se que a superlotação do pronto socorro se origina na superlotação do hospital.(14)
A falta de vaga para trombólise na UAVC, embora menos frequente, revela sinais de insuficiência de leitos na UAVC, tendo em vista o crescente número de pacientes vítimas da doença.(15) Ainda, considerando que, habitualmente, vários fatores interferem na chegada do paciente ao hospital referência em janela,(16) é imprescindível que os que cheguem, tenham o tratamento disponibilizado num menor tempo a fim de obter melhor recuperação dos déficits neurológicos.(17)
Destarte, conforme os dados, habitualmente, a falta de vaga acontece em maior proporção para pacientes fora de janela, mesmo com quadro agudo, tendo seu tratamento e diagnóstico postergados, exame de imagem e avaliação neurológica não realizadas nas primeiras 24 horas do evento. Esse fato entra em contradição com a necessidade de atendimento direcionado e efetivo(1) também para pacientes fora de janela, que necessitam da atenção à nível terciário.
Ademais, profissionais sentem falta da trombectomia, tratamento que tem a possibilidade de ser oferecido num tempo maior, se comparado à trombólise,(15) mas que ainda não é utilizado no hospital referência. No Brasil, esse é um elemento gerencial, que tem disponibilidade restrita no SUS,(18) devido falta de centros de tratamento integral ao AVC e baixa disponibilidade de profissionais neurointervencionistas.(19) No entanto, foi introduzido em outros países da América Latina, sendo apontado como ferramenta que possibilita alta taxa de recanalização, baixo número de complicações e boa recuperação dos pacientes.(20)
Além da necessidade de vagas e recursos, os dados apontam que apesar dos esforços dos profissionais para atender o paciente em janela terapêutica, protocolos e fluxos institucionais também não estão bem estabelecidos dentro da Rede. Dessa maneira, a falta de protocolo se constitui barreira para o atendimento, o que poderia ser solucionada com intervenção de planejamento e gestão. Apesar de existirem protocolos ministeriais, parece haver desconhecimento dessas ferramentas e processos.
Em contrapartida, estudos apontam que quando os protocolos estão bem instituídos, costumam reduzir os tempos de atendimento dos pacientes e sugerem como estratégia viável estabelecer enfermeiros na linha de frente hospitalar, capacitados para reconhecer o paciente com AVC na emergência, por serem esses, muitas vezes, os primeiros profissionais a terem contato com o paciente, sendo a rapidez, a eficácia e o conhecimento científico, fundamentais para o sucesso do atendimento.(21)
Atrelado a isso, a falta de treinamento profissional apontada por profissionais dos quatro serviços investigados impede uma padronização e faz com que haja dificuldade de se obter êxito em protocolos, sendo fundamental que profissionais da ponta de atendimento saibam reconhecer, aplicar escalas específicas e simples para avaliação neurológica, de forma rápida e confiável,(21) entendendo que para esse paciente o tempo é fundamental. Intervenções educativas para aprimorar os conhecimentos técnicos e assistenciais de profissionais de saúde quanto aos protocolos de atendimento inicial, proporciona também espaço para reflexão coletiva e análise da realidade em que estão inseridos.(22)
Ademais, neste contexto, profissionais do SAMU encontram obstrução no fluxo do paciente que impossibilitam, muitas vezes, de encaminhá-lo ao destino mais adequado. No entanto, a organização de fluxos é uma das ações estratégicas propostas para expandir e consolidar a Linha de Cuidado do Acidente Vascular Cerebral no Adulto, visando planejamentos terapêuticos seguros nos diferentes níveis de atenção.(23) A criação de fluxos de atendimento permite aos serviços e aos profissionais situarem-se dentro de uma organização e terem definição de responsabilidades, sabendo para onde e quando encaminhar pacientes na Rede.
Em relação à burocracia hospitalar, existem críticas relacionadas à necessidade de avaliação do paciente no ACCR quando já foi feita uma pré-classificação desse paciente pela equipe do SAMU. A necessidade de passar pelo ACCR neste momento vai de encontro ao Protocolo Estadual de Classificação de Risco, que prevê que o paciente grave deve ser estabilizado, adentrando o hospital por porta de entrada específica, sendo a que a Classificação de Risco pode ser realizada posteriormente.(24)
Dentre as causas de fragmentação na Rede que fogem ao controle dos profissionais de saúde da emergência, a desinformação da população surge na pesquisa como fator limitante ao atendimento. Considerando que o tratamento do AVC só é possível se as pessoas identificarem corretamente os sinais e sintomas e procurarem atendimento médico,(25) o insatisfatório nível de conhecimento dos leigos deve-se, ainda, ao baixo nível educacional, às poucas campanhas educativas e ao reduzido vínculo entre usuários e equipes.(26)
Dados das entrevistas acrescentam que entraves nas relações profissionais se relacionam às condições de trabalho(27) e, notoriamente, acontecem porque profissionais não enxergam o funcionamento da rede e não se enxergam como elementos desta. Quando elementos da rede estão desconectados, há dificuldade na comunicação e desconhecimento dos trabalhadores sobre o funcionamento dos serviços, podendo haver comprometimento na articulação entre estes.(28) Assim, frente à complexidade das relações visualizadas no presente estudo, são necessárias intervenções no que tange a organização e as relações socioprofissionais, a fim de aprimorar a cooperação nas redes.(29)
A pré-notificação, sinalizada pelos profissionais como o contato prévio do serviço pré-hospitalar com o hospital, é um exemplo de elemento facilitador da conexão entre os serviços, podendo encurtar o tempo porta-tomografia e melhorar o cuidado do paciente com AVC agudo.(30) Dessa maneira, nota-se que para que haja colaboração e trabalho em equipe visando a realização de cuidados seguros e de alta qualidade, são necessários efetividade na comunicação, objetivos comuns, reconhecimento do trabalho dos demais, interdependência das ações e atenção centrada no paciente.(31)
Em se tratando de consequências da fragmentação da Rede, o paciente sai da Linha de Cuidado do AVC, através da contrarreferência hospitalar, que impossibilita a continuidade do cuidado no nível terciário. Isso se dá de forma discrepante do objetivo da contrarreferência que é garantir cuidado integral ao paciente, por meio da organização entre os serviços, com mecanismos de pactuação e estabelecimento de fluxo.(28) Nota-se naturalização também no ato da contrarreferência hospitalar quando no hall de justificativa de quem referencia estão: a falta de perfil do paciente ao considerar que quem está fora de janela não precisa ser acolhido no hospital, por julgar que o paciente precisa apenas de uma avaliação neurológica e por considerar que o paciente tem perfil de UPA. No entanto, a Unidade de AVC, localizada no hospital de referência, deve acolher pacientes em quadro agudo, não apenas em janela, mesmo que o quadro seja transitório, independente da gravidade.(32)
Assim, após a contrarreferência, o destino da maior parte desses pacientes é a UPA, que conta com limitações na assistência por não ter sido projetada para ser unidade de internação, muito menos para ser unidade neurológica. Dessa maneira, estas unidades, tidas como retaguarda hospitalar, enfrentam significativas limitações na assistência no aguardo da regulação pela Central Estadual, onde pacientes permanecem internados.(33) Dessa maneira, a “internação” em ambiente pré-hospitalar contrasta com o objetivo da UPA, que tem que encaminhar na rede os pacientes que não tiverem suas queixas resolvidas, com a finalidade da continuidade do cuidado, até 24h.(34) Assim, é imprescindível que haja organização da Rede, para retaguarda adequada, e com um tempo máximo de espera na UPA até encaminhamento ao leito hospitalar.
De outra maneira, elementos facilitadores do atendimento são percebidos quando os profissionais sinalizam que os pacientes que tiveram acesso à Unidade de AVC, encontraram melhor atendimento, tendo em vista disponibilidade de leito de referência, equipe multidisciplinar especializada e utilização de abordagem padrão para gerenciar problemas comuns após o AVC(32) incluindo investigação etiológica a fim reduzir as condições clínicas após a admissão e melhorar o resultado após a alta.
Ademais, a categoria do estudo que revela que pacientes são melhor atendidos quando há acesso à UAVC, está intrinsicamente relacionada à falta de vaga como causalidade, pois nota-se o acesso restrito àqueles em janela terapêutica, sendo necessária a ampliação da capacidade dessas unidades para pacientes fora de janela em quadro agudo, para pacientes com Ataque Isquêmico Transitório e para os que apresentam AVC hemorrágico. Conforme a normativa sobre leitos retaguarda, a capacidade deve estar intrinsicamente relacionada aos dados epidemiológicos(24) acompanhando seu crescimento, o que parece não acontecer na realidade investigada, pois a quantidade de leitos está mantida desde a implantação da Unidade.
A dificuldade de acesso a leitos, leva à necessidade da imposição de “vaga zero” por profissionais que trabalham na Central de Regulação das Urgências direcionando pacientes às unidades hospitalares mesmo quando essas não têm leitos disponíveis para atendê-los. Essa é uma prerrogativa exclusiva do médico regulador de urgências, devendo ser utilizada em situações de exceção, quando não há vaga em outro local adequado para o paciente, sendo um recurso essencial para garantir acesso a pacientes com risco de morte ou sofrimento intenso,(35) sendo imposta, muitas vezes, em meio a conflitos.
Isso, muitas vezes pode acontecer pelo permanente investimento e valoração do componente hospitalar, sem políticas públicas voltadas para os demais elementos da RUE, sendo a rede equivocadamente estruturada nos hospitais de referência, como se essa fosse a solução para os problemas dos outros componentes de atenção às urgências.(35)
As limitações do estudo referem-se à circunscrição dos resultados a um contexto específico, podendo haver generalização dos dados em relação às questões pertinentes ao local de estudo, considerando as diferentes configurações que a RUE pode assumir no Brasil. Não foram incluídas análises sobre o atendimento ao paciente com AVC hemorrágico, nem sobre a integralidade do atendimento após a alta hospitalar. No entanto, observa-se avanços significativos na investigação sobre o atendimento ao paciente com AVC na Rede, tendo se dado de forma ampliada, considerando uma melhor visão do processo de encaminhamento do paciente pelos serviços de saúde, enfocando as relações interprofissionais tanto nas instituições quanto entre as instituições. Em todas elas, a enfermagem se constitui maioria e está efetivamente vinculada a todas as etapas do atendimento a este paciente, podendo se beneficiar dos resultados desta pesquisa, no auxílio à implantação de melhorias para o cuidado e para a assistência ao paciente com AVC.
Conclusão
Os achados deste estudo evidenciam a fragmentação entre os serviços no atendimento ao paciente com AVCi agudo na Rede de Atenção às Urgências e Emergências. O fluxo assistencial não está bem estabelecido e os mecanismos de comunicação entre os profissionais podem ser efetivos ou podem encontrar barreiras físicas e conflitos nos serviços e entre os serviços, variando conforme quem esteja prestando o atendimento. Apesar de haver elementos facilitadores para o atendimento, elementos restritivos revelam a necessidade de intervenções gerenciais no sentido de aprimorar o atendimento, padronizando-o e tornando a assistência integral e equânime. Para tal, uma das ferramentas que podem ser utilizadas é a Educação Permanente com enfoque no AVC e no funcionamento adequado da Rede de Atenção às Urgências e Emergências.
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Editado por
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Editor Associado (Avaliação pelos pares): Juliana de Lima Lopes (https://orcid.org/0000-0001-6915-6781) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Fev 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
21 Jan 2022 -
Aceito
20 Jun 2022