Resumo:
A ascensão de lideranças autoritárias de extrema direita nas democracias contemporâneas catalisou processos de retrocesso democrático com profundas e diversas implicações políticas. Uma das dimensões menos exploradas desse fenômeno é o impacto das ações desses líderes políticos no funcionamento das burocracias públicas. Nesse sentido, a questão que orienta nossa análise é: como se dá a dinâmica entre controle político e reações burocráticas em contextos de retrocesso democrático? A análise se baseia em 165 entrevistas com burocratas de médio escalão entre dezembro de 2020 e julho de 2021 em 15 organizações diferentes das áreas social, econômica, ambiental e de planejamento do governo federal brasileiro durante o governo Bolsonaro. Os achados sugerem que o controle político e a reação burocrática estabelecem uma dinâmica que envolve interações e um processo de aprendizagem ao longo do tempo.
Palavras-chave: reação burocrática; opressão política; autoritarismo; retrocesso democrático; burocracia
Abstract:
The rise of far-right authoritarian leaders in contemporary democracies has catalyzed processes of democratic backsliding, with profound and diverse political implications. One of the least explored dimensions of this phenomenon is the impact of the actions of these political leaders on the functioning of government bureaucracies. The question that guides our analysis is: how does the dynamic between political control and bureaucratic reaction take place in contexts of democratic backsliding? The analysis is based on 165 interviews with mid-level bureaucrats between December 2020 and July 2021 in 15 different social, economic, environmental and planning organizations of the Brazilian federal government during the Bolsonaro government. The findings suggest that political control and bureaucratic reaction is a dynamic relationship that involves interactions and learning over time.
Keywords: bureaucratic reaction; political oppression; authoritarianism; democratic backsliding; bureaucracy
Resumen:
El ascenso de líderes autoritarios de extrema derecha en las democracias contemporáneas ha catalizado procesos de retroceso democrático con profundas y diversas implicaciones políticas. Una de las dimensiones menos exploradas de ese fenómeno es el impacto de las acciones de esos líderes políticos en el funcionamiento de las burocracias públicas. En ese sentido, la pregunta que guía nuestro análisis es: ¿cómo se da la dinámica entre el control político y las reacciones burocráticas en contextos de retroceso democrática? El análisis se basa en 165 entrevistas con burócratas de nivel medio entre diciembre de 2020 y julio de 2021 en 15 órganos públicos diferentes de las áreas social, económica, ambiental y de planificación del gobierno federal brasileño durante el gobierno Bolsonaro. Los hallazgos sugieren que el control político y la reacción burocrática es una dinámica que implica interacciones y un proceso de aprendizaje a lo largo del tiempo.
Palabras clave: reacción burocrática; opresión política; autoritarismo; retroceso democrático; burocracia
Introdução
O conflito entre políticos e burocratas tem sido amplamente discutido pela literatura acadêmica ao longo do último século (WEBER, 1954; ABERBACH; PUTNAM; ROCKMAN, 1981). Essa discussão, em geral, analisa as diferentes formas de controle político sobre a burocracia ou as práticas e comportamentos de burocratas em contextos democráticos (HIRSCHMAN, 1970; BREHM; GATES, 1999; LIPSKY, 2010; GOFEN, 2014; TUMMERS et al., 2015; COOPER, 2018). Mais recentemente, estudiosos se debruçaram sobre esse fenômeno em contextos de fragilidade institucional e retrocesso democrático (BAUER; BECKER, 2020; MOYNIHAN, 2021; BAUER et al., 2021; PETERS; PIERRE, 2020). Pesquisas mostram que, sob essas condições, políticos desenvolvem diferentes estratégias para conquistar a lealdade dos burocratas (HAJNAL; BODA, 2021; HAJNAL; CSENGŐDI, 2014), marginalizá-los (BAUER; BECKER, 2020), ou empoderá-los (PETERS; PIERRE, 2020).
Apesar do avanço na compreensão das formas de controle político e ações burocráticas, essas pesquisas normalmente não analisam a problemática a partir de uma perspectiva relacional entre políticos e burocratas. Conceitos como esquivamento (shirking), sabotagem, saída (exit), vocalização (voice) e guerrilha, entre outros, apresentam-se nesta literatura como decisões unilaterais tomadas por burocratas para atingir seus objetivos individuais ou coletivos (GUEDES-NETO; PETERS, 2021; BREHM; GATES, 1999; GOLDEN, 1992; OLSSON, 2016; INGBER, 2018; O’LEARY, 2017).
No entanto, consideramos que as ações dos burocratas podem ser reações às formas de controle político e vice-versa. Assim, há ainda uma lacuna teórica no que se refere a como acontece esse processo relacional e dinâmico. O artigo visa contribuir com a literatura que investiga a administração pública sob contextos de retrocesso democrático (BAUER et al., 2021), analisando a dimensão relacional e de aprendizagem por trás dos mecanismos de controle político e reações burocráticas.
Abordamos empiricamente esta problemática pelo exame do caso do Brasil sob o governo Bolsonaro, sendo considerado um contexto em que o controle político revela facetas autoritárias (PECI, 2021), com o objetivo de desmontar instituições e políticas públicas (CARDOSO JR. et al., 2022). A questão que orienta nossa análise é: como a relação dinâmica entre controle político e reações burocráticas se dá em contextos de retrocesso democrático?
As análises foram construídas a partir de entrevistas com 165 servidores federais de diferentes órgãos governamentais. A partir das entrevistas, levantamos quais são os instrumentos de controle político e quais são as formas de reação utilizadas pela burocracia. Analisamos também como se deu o processo dinâmico, relacional e de aprendizagem entre as formas de controle e as reações. Os achados mostram que há um processo de aprendizado ao longo do tempo por ambas as partes ‒ políticos e burocratas ‒ que se baseia na seleção de tipos de estratégias, considerando a capacidade de um gerar danos ao outro.
O artigo está organizado em quatro seções além da introdução e da conclusão. Na primeira seção, revisamos a literatura sobre burocracia em contextos de retrocesso democrático. Em seguida, apresentamos o contexto e os métodos da pesquisa. Nas duas seções seguintes, apresentamos os achados da pesquisa e os analisamos à luz da literatura.
A burocracia no contexto de retrocesso democrático
O papel da burocracia nas democracias contemporâneas, as tensões entre a ação política e a burocrática, bem como a identificação das principais transformações sofridas pela administração pública, estão cada vez mais presentes no debate público (ROCKMAN, 2020; BAUER; BECKER, 2020). A literatura costuma analisar as tensões e conflitos entre políticos e burocratas observando as práticas dos burocratas e as diferentes formas de comportamento frente às políticas que devem implementar e às organizações a que pertencem (HIRSCHMAN, 1970; BREHM; GATES, 1999; LIPSKY, 2010; GOFEN, 2014; TUMMERS et al., 2015; COOPER, 2018). Embora essas diversas contribuições tenham avançado na compreensão das ações e comportamentos burocráticos, grande parte dessa literatura descontextualiza o comportamento do ambiente político. Além disso, tratam as ações dos burocratas como decisões unilaterais para atingir seus objetivos individuais ou coletivos.
A relação entre políticos e burocratas é complexa e multifacetada (PETERS, 1979), e a tentativa de controlar politicamente a burocracia faz parte da dinâmica democrática. Nessa interação, os políticos podem tentar ganhar lealdade (BAUER; BECKER, 2020), enquadrando ou marginalizando a burocracia (BAUER et al., 2021), enquanto os burocratas podem tentar reagir e resistir, usando diferentes ferramentas e estratégias (O’LEARY, 2017).
Em estudos sobre o papel da burocracia e sua relação com os líderes políticos em contextos democráticos, observamos várias formas possíveis de ações políticas para controlar a burocracia e os efeitos dessas ações nos governos (LEWIS, 2009; BERSCH; LOPEZ; TAYLOR, 2022). Por exemplo, políticos tentam obter o controle por meio de nomeações e estes esforços têm efeitos no funcionamento dos governos. Mas esses políticos também têm um conjunto de ferramentas e de mecanismos de controle ex-ante e ex-post que vão desde a (re)estruturação da organização até procedimentos de monitoramento (STRØM 2000; MCCUBBINS; NOLL; WEINGAST, 1987; MCCUBBINS; NOLL; WEINGAST, 1989; DOHERTY; LEWIS; LIMBOCKER, 2019; EATON, 2003; WOOD; WATERMAN, 1991).
Por outro lado, os estudiosos também mostraram várias maneiras pelas quais os burocratas procuram reagir ao controle político. Parte dessa literatura, por exemplo, visa compreender quais recursos estão à disposição dos burocratas para lidar com a deterioração do desempenho organizacional, como práticas de vocalização, lealdade, negligência de atividades e saída da organização (HIRSCHMAN, 1970). Nessa perspectiva, Brehm e Gates (1999) analisam como os burocratas reagem às ações de comando usando a abordagem principal-agente. Em uma reação individual ao comando, os burocratas podem aceitar o trabalho, fugir ou sabotar (working, shirking, sabotagem, respectivamente).
Outros estudiosos observaram especificamente a ação política dos burocratas, principalmente quando há divergência entre os valores ‒ ou conteúdos de política pública ‒ defendidos por eles e os solicitados ou apoiados pelos políticos (GOFEN, 2014). O’Leary (2017) analisou como o comportamento de alguns burocratas varia. Esse comportamento vai desde atuar contribuindo para a organização, em consonância com as diretrizes superiores, até atuar como “sabotadores institucionais”, agindo sem o conhecimento de chefias e contrariando suas ordens. O conceito de “guerrilla government” descreve essas pessoas que sabotam ordens políticas com as quais discordam. Mais recentemente, ao analisar a reação dos burocratas ao controle dos políticos, pesquisas mostraram como esses burocratas desenvolvem resistência (INGBER, 2018) ou ações subversivas (OLSSON, 2016). Esses estudos, no entanto, analisaram contextos democráticos, em que tanto o controle quanto a reação se davam por meio das regras oficiais.
Nos últimos anos, a literatura tem apontado diferentes formas de retrocesso democrático ao redor do mundo que, diferentemente de experiências anteriores, não são construídas por meio de golpes militares ou rupturas violentas (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018; BAUER; BECKER, 2020; BAUER et al., 2021). Os novos desafios à democracia são mais sutis e, portanto, menos aparentes (BAUER; BECKER, 2020). Além disso, muitas vezes são produzidos dentro dos governos, liderados por políticos autoritários (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018) que promovem o desmonte institucional após assumir democraticamente o poder (YESILKAGIT, 2018; PETERS; PIERRE, 2019; BAUER et al. al., 2021).
A emergência de contextos de retrocesso democrático obriga-nos a olhar a relação entre burocratas e políticos a partir de outra perspectiva. Essa relação pode não ser caracterizada pela atuação funcional das instituições democráticas e do estado de direito (BAUER; BECKER, 2020; ROCKMAN, 2019). Um referencial teórico para um melhor entendimento do comportamento burocrático em retrocesso democrático ou baixa efetividade institucional permite aprofundar a dimensão relacional e o processo de aprendizagem estabelecido na dinâmica entre o exercício do controle político sobre a burocracia e suas reações.
Ao buscar impor novas institucionalidades ou romper com as práticas democráticas existentes, esses políticos encontram múltiplas formas de resistência da sociedade, da imprensa, da academia e do governo (OLSSON, 2016; INGBER, 2018). A administração pública, em geral, e os burocratas, especificamente, podem atuar como barreiras à implementação de desmontes, dada sua natureza legalista e de continuidade institucional (DU GAY, 2020). Vários autores têm argumentado que eliminar o pluralismo da burocracia estatal se torna um projeto político para esses governantes (BAUER; BECKER, 2020). Isso fica ainda mais evidente se reconhecermos que os burocratas são uma pedra angular da democracia (DU GAY, 2020) e um elemento fundamental da vida democrática (LEHMBRUCH, 1991; NABATCHI, 2010).
Em governos autoritários, as dinâmicas de controle e resistência assumem contornos diversos. Os políticos podem tentar tirar vantagem da burocracia ou atacá-la (BAUER et al., 2021). Quando os políticos confiam na burocracia e reconhecem seu valor e competência, eles podem buscar ganhar sua lealdade capacitando, capturando ou usando burocratas a seu favor (HAJNAL; CSENGŐDI, 2014; PETERS; PIERRE, 2020; BAUER; BECKER, 2020). Por outro lado, quando os burocratas se tornam barreiras aos projetos autoritários, os governantes podem tentar atacá-los ou expurgá-los (BAUER et al., 2021; BAUER; BECKER, 2020) para eliminar a dissidência (STOKER, 2021). Esse processo pode diminuir a capacidade da burocracia de colocar barreiras aos políticos, aumentando as chances de controle político e desmantelamento burocrático (PIERRE et al., 2021). Consequentemente, políticos podem ser eficazes em seu ataque, gerando acordo, comprometimento e lealdade dos burocratas (BAUER et al., 2021; JAHAN; SHAHAN, 2012; YANG; PANDEY, 2007; GILAD; ALON-BARKAT, 2018; HAMEDUDDIN; LEE, 2021). Mas as ações dos políticos também podem resultar em diferentes formas de resistência e reações por parte desses burocratas (PETERS; PIERRE, 2020; GUEDES-NETO; PETERS, 2021).
Em contextos de retrocesso democrático, leis, regulações e demais dispositivos institucionais também influenciam a relação entre políticos e burocratas (PIERRE et al., 2021). Tais instituições oferecem tanto constrangimentos quanto oportunidades à agência dos atores. Os recursos institucionais não só informam como subsidiam as ações de políticos e burocratas, que, por sua vez, mobilizam-nas conforme seus objetivos/projetos (ABERS, 2020). Em especial, determinados instrumentos de política que organizam os processos burocráticos e a gestão pública influenciam sobremaneira a dinâmica e as tensões entre políticos e burocratas, em contextos de retrocesso democrático (CAPANO; HOWLETT, 2020). Esse é o caso, por exemplo, de processos administrativos e do uso de sistemas eletrônicos de informação na tramitação de processos.
Embora estudiosos tenham descrito diversas tentativas de atores políticos em controlar a burocracia, bem como as reações do serviço público a esse controle, ainda há uma lacuna nos debates acadêmicos em identificar de forma relacional as estratégias desenvolvidas tanto por políticos quanto por burocratas em contextos de retrocesso democrático. Consideramos que é central posicionar tais estratégias em uma discussão sistemática, analisando-as de forma relacional. Este esforço é relevante tanto para fins acadêmicos quanto para informar a administração pública sobre os riscos e possibilidades de recuperação desse processo de retrocesso democrático. Pretendemos contribuir para esta agenda com um extenso estudo de caso empírico, que descrevemos e analisamos a seguir.
Contexto e métodos
Para analisar as dinâmicas entre políticos ‒ com suas tentativas de controle ‒ e burocratas reagindo às opressões dos superiores, nossa estratégia consistiu em um estudo de caso do Brasil sob o governo Bolsonaro. A escolha do caso parte do critério de caso crucial (GERRING, 2008), considerando as características do regime político e suas implicações para as relações entre políticos e burocratas.
Mensurar o declínio democrático não é tarefa simples, especialmente porque não existe apenas um conceito de democracia. Por esse motivo, existem diversos índices que mensuram, a partir de diferentes indicadores, quão democrática é uma nação (JEE; LUEDERS; MYRICK, 2021). Para este artigo, optamos por utilizar como base o V-Dem, índice que consideramos mais adequado por trazer um conjunto abrangente de indicadores, englobando variáveis como a mídia e o judiciário (COPPEDGE et al., 2022). De acordo com o Democracy Report 2022, publicado pelo V-Dem Institute, o Brasil se encontra em processo de “autocratização”: o índice de democracia brasileiro em 2011 era de quase 0.8 e, dez anos depois, em 2021, caiu para aproximadamente 0.5, posicionando o Brasil entre os dez principais países em processo de “autocratização” (BOESE et al., 2022). Fatos como a defesa de remoção de juízes do Supremo Tribunal Federal e constantes críticas ao sistema eleitoral são alguns dos motivos para a queda do índice democrático brasileiro. Além do V-Dem, várias pesquisas têm demonstrado um processo de enfraquecimento da democracia e de crise institucional no Brasil que tem, como uma de suas facetas, o ataque à burocracia e aos servidores públicos (ver, por exemplo, PETERS; PIERRE, 2022; MILHORANCE, 2022; CARDOSO JR. et al., 2022). É por essas razões que consideramos o contexto brasileiro propício para analisar a relação entre políticos e burocratas, em um cenário de crise da democracia.
Desde 2019, com o início do mandato de Bolsonaro, o presidente e seus nomeados políticos de alto escalão estabeleceram uma relação contenciosa com a burocracia pública ‒ em diferentes organizações estatais e variados setores de política pública. Essa interação conflituosa se reflete em diversas tentativas presidenciais de desmontar instituições e políticas públicas (PECI, 2021). Por essa razão, nós consideramos o caso brasileiro como crucial para o estudo da relação de políticos e burocratas em contexto de retrocesso democrático.
A seleção da amostra para pesquisa de campo seguiu a estratégia de amostragem propositiva não-probabilística (MERRIAM; TISDELL, 2015; PATTON, 2015), contemplando diferentes organizações e áreas de política pública no governo federal brasileiro ‒ como, por exemplo, planejamento, desenvolvimento social e econômico, saúde, agricultura, meio ambiente, entre outras, totalizando 15 organizações. A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas com 165 burocratas de médio escalão do governo federal brasileiro.
Neste artigo, focamos em apenas um fenômeno observado pela literatura: casos em que burocratas reagem às opressões dos políticos, e estes tentam atacá-los ou expurgá-los da organização. Ou seja, não estamos analisando o fenômeno da lealdade burocrática. Assim, a amostra de entrevistados é direcionada apenas àqueles servidores que se sentem atacados pelo governo e se colocam na posição de defender o estado de direito e a missão institucional de suas organizações, ou seja, as leis e os princípios constitucionais. Não estamos, portanto, analisando os servidores que estão em disputas de natureza mais corporativa (como briga por salários, por exemplo). Embora a escolha por entrevistar apenas servidores que se colocam na defesa do estado de direito possa sugerir um enviesamento do estudo, a escolha é proposital, pois buscamos compreender este fenômeno dentro da lógica do conflito entre políticos e burocratas.
Assim, inicialmente, para cada uma das organizações estudadas, nós entrevistamos um burocrata-chave já conhecido por nossa equipe de pesquisa ou buscamos contato com sindicatos ou associações de servidores para possíveis indicações de entrevistados. A partir dessas entrevistas iniciais, nós conduzimos a amostragem “por bola de neve”. Essa estratégia foi adotada considerando que os burocratas não se sentiriam confortáveis em conceder as entrevistas sem referências prévias. Em relação a isso, outros estudos mostram que a amostragem “por bola de neve” é uma estratégia efetiva na condução de entrevistas que abordam temas sensíveis (COHEN, 2018; COHEN; ARIELI, 2011) ‒ como é o caso de contextos de retrocesso democrático, especialmente em relação às interações entre políticos e burocratas.
Para garantir diversidade na amostra, nós pedimos aos entrevistados que indicassem servidores considerando critérios específicos, como: servidores que se opõem ao governo Bolsonaro e que defendem o estado de direito e a missão institucional de sua organização (legalidade, princípios constitucionais e garantia de direitos), desenvolvendo estratégias de reação neste processo de defesa. Nesse percurso, também fomos abordados por burocratas que pediram para ser entrevistados(a), então decidimos incluí-los na amostra. Assim, ao final, a amostra de 165 burocratas consistiu em um conjunto de funcionários públicos trabalhando em diferentes setores de políticas públicas, com distintos graus de experiência, especialização, idade e profissão. Destacamos que nos abstivemos propositalmente de apresentar maiores detalhes sobre a amostra no intuito de preservar a identidade das pessoas que participaram da pesquisa. A não-identificação dos locais de trabalho foi requisito que condicionou a condução e gravação de áudio das conversas. Não obstante, a fim de trazer maior transparência sobre nossa amostra, identificamos a área de política pública à qual cada entrevistado se vinculava ao tempo da pesquisa, conforme Tabela 1 abaixo. Não pretendemos neste artigo explorar as diferenças entre os setores de políticas públicas.
O roteiro de entrevista abordou tópicos como a trajetória do burocrata, sua percepção sobre as tentativas de controle de políticos sobre a burocracia e as tentativas de reação dos servidores às opressões enfrentadas. Todos os respondentes concordaram em participar voluntariamente do estudo desde que suas identidades permanecessem anônimas. Quase todos os entrevistados concordaram com que gravássemos as entrevistas ‒ uma pequena parcela solicitou que apenas fizéssemos anotações durante a entrevista (sem gravação de áudio). As entrevistas foram conduzidas virtualmente entre dezembro de 2020 e maio de 2022 pelo Zoom ou ligações telefônicas ‒ considerando as restrições impostas pela pandemia de Covid-19. As entrevistas tiveram duração entre 45 e 180 minutos.
Após a conclusão das entrevistas, elas foram transcritas e analisadas por meio do uso do software Dedoose. Realizamos um processo de codificação temática seguindo três etapas, como proposto por Braun e Clarke (2022). Na primeira etapa, chamada de familiarização, todo material foi lido por todos os autores para permitir uma aproximação ao campo. A partir desta leitura, os autores se reuniram e optaram por trabalhar com dois macrocódigos iniciais: estratégias de controle político e estratégias de reação da burocracia. Dado que estamos abordando uma ideia de controle político que ocorre em momentos de retrocesso democrático, optamos por nomear controle político como opressão. Todas as entrevistas foram codificadas com estes dois macrocódigos (cada entrevistador codificou suas próprias entrevistas).
Numa segunda etapa, decidimos gerar subcódigos dentro dos macrocódigos buscando propor uma tipologia de formas de opressão e reação a partir do material das entrevistas. Nesta etapa, os códigos foram gerados indutivamente e, a cada novo código criado, os autores discutiam sua pertinência e adoção para as demais entrevistas. Nesta etapa, encontramos 4 estratégias de opressão e 4 de reação.
Na terceira fase, lemos a tipologia criada e buscamos entender os padrões internos que ajudassem a organizar as estratégias adotadas tanto por políticos como por burocratas. A partir da leitura dos códigos e de discussões entre os autores, optamos por codificar as estratégias a partir de duas variáveis propostas por Lotta, Silveira e Fernandez (2023) que podiam organizar a análise: seu grau de formalidade e a escala da estratégia. As estratégias podem ser formais (ligadas à prática institucional, uso de mecanismos oficiais e legais como o uso de decretos, instruções normativas, procedimentos oficiais, documentos formais, etc.) ou informais (presentes nas interações cotidianas, tais como discursos, mensagens de texto, conversas informais, entre outras). Em relação à escala, as estratégias podem atingir ou podem ser operadas por uma coletividade genérica ‒ uma equipe, um setor ou organização ‒ ou podem ser direcionadas ou operadas para/por indivíduos específicos. O Quadro 1 apresenta essa categorização, que será descrita mais adiante neste artigo.
Cada estratégia foi codificada considerando sua posição no quadrante acima, ou seja, se são estratégias individuais ou coletivas, formais ou informais. Por fim, para garantir consistência no processo de codificação, solicitamos que uma pesquisadora verificasse todas as codificações realizadas pelos autores, a fim de garantir uniformidade nos critérios de codificação. Casos de inconsistência eram discutidos entre o grupo e depois readequados conforme as referências e descrições de cada código.
Formas de opressão política e de reação da burocracia em contexto de retrocesso democrático
As práticas de opressão encontradas pela pesquisa se diferenciam do que foi observado em outros governos, para além do Governo Bolsonaro, em função de três principais fatores ligados à relação estabelecida entre políticos e burocratas:
(i) ‘Garantia de direitos constitucionais’: as estratégias de opressão política operadas no governo Bolsonaro estão relacionadas a ameaças a princípios constitucionais básicos, que até então não tinham sido atacados desde a redemocratização;
(ii) ‘Transparência e accountability’: as práticas de opressão e controle operadas no governo Bolsonaro minam mecanismos de transparência decisória no desenvolvimento de políticas públicas. Além disso, os canais de corregedoria e gestão internos às organizações da administração pública também passaram a ser pressionados, dificultando que burocratas recorressem às instituições de controle interno (até então, consideradas salvaguardas em governos anteriores);
(iii) ‘Legalidade burocrática’: no governo Bolsonaro, inúmeras opressões à burocracia se concretizaram a partir de práticas e dinâmicas políticas fora do jogo democrático, do ponto de vista do uso e aplicação dos instrumentos legais/normativos e administrativos que regem o setor público e que organizam as relações entre políticos e burocratas.
Por estes três principais aspectos, as práticas de opressão política no governo Bolsonaro se diferem das relações ‘políticos-burocratas’ em contextos de normalidade democrática. Mais especificamente, as relações entre servidores públicos e atores políticos em um contexto de retrocesso democrático ‒ como é o caso em estudo ‒ foram fortemente influenciadas por mudanças nas regras do jogo: (i) princípios constitucionais passaram a ser questionados ou atacados, (ii) mecanismos de transparência e accountability foram desmontados; (iii) o arcabouço legal e procedimental da administração pública passou a ser desconsiderado, deslegitimado ou mesmo modificado. Estes três fatores são transversais às diferentes estratégias de opressão política, apresentadas a seguir.
Estratégias de opressão política
Nesta seção, vamos explorar as estratégias de opressão postas em prática por políticos contra burocratas voltadas a alterar ou desmantelar as políticas públicas e/ou instituições. Foram mapeados quatro tipos de estratégias principais, como apresentado no Quadro 1.
O primeiro tipo é a opressão formal e individual. O maior exemplo desse tipo de opressão é a abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra um burocrata sob acusações indevidas, o que gera alto custo financeiro e emocional para eles. Como relata uma das entrevistadas para esta pesquisa: “O maior receio é o processo administrativo. É um instrumento que existe formalmente. Tem a Comissão de Ética dentro do Ministério. A gente sabe que, se tiver interesse, você pode inventar situações que colocam o servidor no limbo. Então, se você está fazendo coisas que desagradem a linha política do Ministério, você corre risco de ser acusado de alguma coisa. [...] tem casos de colegas que foram mandados para o RH e, de lá, a vida vai virar um inferno” (E53).
As exonerações ou mudanças de postos de trabalho também são formas de perseguição individualizada. Neste caso, os burocratas são forçados a abandonar seu cargo e mudar para um novo departamento, cidade, estado ou até país. Em casos graves, a remoção é feita à revelia do burocrata, como narra um dos entrevistados: “Minha amiga era secretária executiva do conselho e foi exonerada de um dia para o outro sem ser avisada. E exonerar a Secretária Executiva do Conselho (uma que o conselho gosta) é declarar guerra. Apesar de ser um cargo indicado pelo Ministro, é um cargo que o conselho ratifica o nome, tradicionalmente” (E106).
Esse tipo de opressão “tem consequências graves na saúde mental do servidor. Tem implicações no trabalho, tanto o fato de a gente ter saído do local [...]. E no local de destino a gente também não é aproveitado, porque a nossa formação não é requisitada lá, tem atividades que não condizem com a nossa formação” (E101).
Em alguns casos, os servidores passam por avaliações negativas e retirada de atribuições por razões arbitrárias, como relata uma das pessoas entrevistadas: “teve uma reunião de equipe, onde houve um linchamento público. Estava toda a equipe, presidente, um dos diretores, e a chefia imediata começou a fazer uma avaliação de cada servidor. Os únicos servidores mal avaliados foram eu e minha colega. [...] Fomos considerados os piores servidores do mundo, fomos escorraçados por toda a equipe. Houve agressões verbais do presidente e por colegas. Depois, houve uma troca de chefia [...] aí começou uma perseguição de colega para colega: tiraram a gente das nossas atribuições” (E101).
Como os trechos das entrevistas sugerem, a opressão individual e formal causa altos custos para os servidores, na medida em que afeta diretamente sua vida funcional e pode ter consequências para sua vida pessoal e sua saúde mental. Além disso, embora esse tipo de opressão seja contra indivíduos, ela tem um efeito multiplicador em termos de criação de um ambiente de medo coletivo, no qual os demais servidores ficam receosos de serem os próximos: “vários PADs foram abertos, sem o menor sentido. Mas aí faz a pessoa ficar sofrendo no processo, cria angústia e incerteza. Ninguém sabe quem é a comissão que vai fazer a apuração [no PAD] e várias injustiças podem acontecer. [...] Sabemos da ameaça porque algumas pessoas participam de reuniões e vazam que vão abrir processos. Fica uma fofoca e burburinho que vai criando medo” (E13).
Nem sempre há uma acusação formal, o que nos leva ao segundo tipo de opressão identificado na pesquisa: a opressão individual e informal. Ela está relacionada a práticas de assédio ou ameaças informais, não explícitas e que não ficam registradas em instrumentos formais da administração pública ‒ embora possam ocorrer rotineiramente. Como relata uma entrevistada, “é bem comum que façam ameaças veladas, [...] em conversas de corredor” (E135).
O assédio não é uma prática exclusiva do governo Bolsonaro, porém pesquisas indicam que esses casos aumentaram e se tornaram mais graves nos últimos anos (CARDOSO JR. et al., 2022). Conforme o relato de um servidor: “Sempre existiu assédio, mas sempre foram casos isolados e casos individuais de assédio moral. Há uma mudança qualitativa e quantitativa [no governo Bolsonaro]. É um fenômeno novo e perturbador associado a uma estratégia consciente [...]. É um projeto, o assédio institucional é um método de governo. E os servidores públicos são a bucha de canhão desse negócio. A burocracia com estabilidade, com missão, representa o alvo a ser destruído para poder viabilizar o desmonte que eles querem” (E107).
Uma outra estratégia opressiva é a retirada de tarefas ou a indefinição de tarefas a serem executadas por servidores. Burocratas precisam de leis e procedimentos para proteger e guiar suas decisões e, por isso, a ausência de qualquer definição se torna uma ameaça. Muitos relataram que seus gestores deixaram de solicitar trabalho ou emitir ordens pelas vias formais, desconsiderando o uso de sistemas eletrônicos, que garantem o registro histórico dos processos de trabalho e decisões na administração pública. Muitas vezes, os pedidos das chefias passaram a ser feitos por meios informais, colocando os servidores em situações delicadas e até em posições incoerentes em relação à missão organizacional: “acontece direto de mandarem ordens por Whatsapp, principalmente sobre coisas mais sensíveis” (E160). Essa é uma estratégia de não formalizar pedidos indevidos, ou considerados polêmicos, em relação à agenda política governamental e à missão da organização. Nesses casos, a responsabilidade formal de certas decisões é atribuída aos burocratas que assinam os documentos e executam as ações, sem o respaldo ou o lastro histórico (de registro no sistema eletrônico de informações) dos gestores que ordenaram tais atividades. Esses vários exemplos de opressão individual informal mostram como, apesar de ela gerar efeitos nos servidores, tais efeitos são menores e menos custosos, na medida em que não há impacto direto na vida funcional do servidor. Além disso, essas estratégias permitem um tipo de reação também menos custosa ‒ como simplesmente ignorar os pedidos e ataques.
Com relação ao terceiro tipo do Quadro 1, a opressão coletiva e informal, os dados mostram que por vezes a opressão tem como alvo setores inteiros, organizações e até mesmo ministérios de forma genérica e abrangente. O caso mais comum desse tipo de prática opressiva é o que a literatura denominou de “bashing” (CAILLIER, 2020) e que ocorre quando os políticos criticam publicamente os burocratas, prejudicando a imagem pública dos servidores públicos e de setores de governo.
Como é o caso de um servidor público que relata: “[...] a intenção hoje é queimar [as organizações públicas que produzem dados], acabar com a credibilidade destas organizações. [...] A autoridade máxima do governo nos questionando [é algo que] nos preocupa. Se os números fossem favoráveis, ele usaria com certeza” (E45). Outros exemplos povoaram o noticiário brasileiro nos últimos anos, a exemplo de quando o Ministro da Economia disse que “servidores públicos são parasitas”, ou quando o Presidente da República disse em entrevista que, se pudesse, confinaria os ambientalistas na Amazônia, ou que daria uma “foiçada” no pescoço da FUNAI. Em termos de efeitos dessa forma de ataque, embora ela afete a imagem pública do funcionalismo e a moral dos servidores, ela tem menor efeito prático, na medida em que a opressão é indireta e não se utiliza de instrumentos formais. Os servidores podem optar por simplesmente ignorar o ataque, por exemplo. Ou seja, são estratégias que geram custos e danos relativamente baixos para os servidores, em comparação a outras.
Por fim, a quarta categoria é a de opressão formal e coletiva. Um exemplo dessa atuação opressora foi a publicação da Nota Técnica nº 1556/2020 pela Controladoria Geral da União (CGU), que prevê a possibilidade de responsabilização disciplinar de servidores públicos por conteúdos postados em redes sociais (CGU, 2020).
Outro exemplo desse tipo de opressão é a criação de barreiras de acesso a sistemas de governo (como o Sistema Eletrônico de Informações - SEI) e documentos oficiais. Em muitas organizações, políticos alteraram procedimentos internos, fazendo com que burocratas perdessem seus acessos a processos nos sistemas oficiais, sendo impedidos de deixar seus atos neles registrados. Com isso, eles ficam formalmente impedidos de acompanhar os processos internos de sua organização e se atualizar a respeito de decisões tomadas. Como revela um servidor, “hoje temos processos com restrição de acesso (ao SEI). Processo restrito [em outros governos] era exceção. Agora, eles colocam qualquer coisa e deixam restrito. Tem uma quantidade de coisa listada como “controle interno” que eles não divulgam. [...] Uma das justificativas é que, quando você tem uma portaria que é sensível, se você deixar pública, pode ter interferência e, por causa disso, existe uma justificativa de processo restrito. Só que eles colocaram acesso restrito de forma geral” (E15).
Outra maneira de controle formal e coletivo dá-se por meio da militarização de organizações públicas, com a indicação de militares para ocupação de cargos políticos. Pesquisas recentes mostram um aumento de 193% da ocupação de militares em cargos públicos federais durante a gestão Bolsonaro (SCHMIDT, 2022). Pesquisadores também indicam que a gestão militar é uma das características deste governo, que introduziu a disciplina, autoridade e lealdade como valores oficiais de governo (ANDRADE, 2021). Como um dos nossos entrevistados menciona, “[a] própria militarização é um assédio em si” (E107).
Outro entrevistado relata que “[o] problema que a gente percebe é: sendo militar, não importa o currículo. Ele automaticamente tem um score maior que um servidor. [...] Isso faz com que você crie conflitos porque o militar fala: “‒ Faça que eu tô mandando”. Mas, para o servidor, tem que ter um critério para fazer aquilo. E isso dá muito problema” (E02). Colocar militares em posições de governo é, portanto, uma estratégia utilizada por políticos para oprimir burocratas e garantir a implementação de seus objetivos. Em termos de efeitos, essa estratégia gera mais custos do que a opressão coletiva e informal, na medida em que a formalização tem consequências concretas na vida dos servidores ‒ como a censura, por exemplo. É um tipo de opressão que também requer uma reação mais concertada da burocracia para diminuir os efeitos formais. Assim, é algo que gera mais custos para os servidores do que as estratégias informais.
Estratégias de reação da burocracia
Como mencionado na seção acima, a burocracia federal brasileira tem enfrentado diferentes formas opressivas de controle político. De maneira dialógica, porém, a burocracia tem também desenvolvido diferentes estratégias de reação para enfrentar a opressão, que visam, em linhas gerais, defender as políticas públicas ou instituições que estão sob ameaça e garantir autoproteção ou preservar-se frente ao contexto de opressões.
As estratégias de reação da burocracia também podem ser categorizadas como formais ou informais e individuais ou coletivas. Uma reação é formal quando os servidores recorrem a mecanismos legais ou sistemas governamentais oficiais. Por outro lado, é informal quando não deixa rastros: sabotagem ou denúncias nas mídias sociais, entre outros. Alguns burocratas reagem individualmente, enquanto outras reações acontecem a partir de organizações coletivas, tais como grupos de servidores, associações, sindicatos, etc. (LOTTA et al., 2022a).
Em relação às estratégias (1) individuais e informais, duas principais já são conhecidas na literatura (GUEDES-NETO; PETERS, 2021): a sabotagem e a diminuição/alteração do ritmo de trabalho (shirking). A primeira estratégia pode ser entendida como ações encobertas mobilizadas por burocratas, com o objetivo de minar ou diminuir os efeitos de determinada ação governamental. Há vários relatos de burocratas que afirmam ter feito atividades que se tornaram proibidas e condenadas, sem pedir permissão a seus chefes, até que alguém reclamasse ou reagisse, especialmente no início do governo. Um dos entrevistados conta o seguinte sobre um caso de sabotagem: “Há um amigo nosso que conseguiu fazer isso: a gerente disse que não deveria ajudar [um certo público] naquele programa. Ela escreveu [o contrário], e o gerente assinou o documento sem vê-lo” (E163).
A prática de shirking, por sua vez, consiste na redução ou alteração do ritmo e da intensidade do trabalho, para que a política continue a existir, mas sem se comprometer com ela. Em outras palavras, é fazer discretamente o mínimo necessário. O termo “redução de danos” aparece em muitas entrevistas associado ao shirking, estratégia que traz consigo uma postura não-combativa, somada a uma tentativa de fazer o que é possível em políticas públicas específicas, dentro do novo contexto de controle político. Em termos individuais, o shirking também apareceu como uma prática de autocensura realizada por burocratas motivados pelo medo de perseguição e retaliação. Nas palavras de um entrevistado: “Minha estratégia era focar no trabalho técnico da equipe e tentar sair dos holofotes o máximo possível” (E144). Outro diz: “Não me candidatei ou aceitei nenhum cargo neste governo; até me ofereceram cargos em outras áreas, mas temo que não faça sentido para mim, [o fato de] ter compromissos neste governo. E quero ficar o mais abaixo do radar possível” (E105).
A reação individual e informal gera baixo custo para o servidor que a está operando. Como ela demanda apenas a decisão de um indivíduo e não requer formalização, os servidores podem fazê-la sem muito esforço. Por outro lado, essas reações têm potencial de gerar um dano relativamente pequeno para os políticos, na medida em que são informais (e por isso o dano não é alto) e individuais, diminuindo o efeito da reação. Claro que, por exemplo, o vazamento de algumas informações pode repercutir de forma bastante negativa no governo, mas são raros os casos em que isso é feito individualmente.
Também encontramos estratégias de reação (2) informais e coletivas. Mesmo a sabotagem e o shirking são métodos que podem ser mobilizados coletivamente por grupos de burocratas, geralmente aqueles que trabalham em uma mesma organização do Governo Federal ou área de políticas públicas. Um exemplo típico de sabotagem coletiva é a realização de reuniões fora dos edifícios oficiais do governo ou fora das plataformas oficiais utilizadas para o trabalho, a fim de poder lidar com questões e ações condenadas pelo alto escalão. Outro exemplo é o uso de redes ou parcerias informais com atores fora do Estado, tais como organizações internacionais, Ministério Público, ONGs e movimentos sociais, para pressionar o governo ou para realizar “por fora” do Estado aquilo que não pôde ser feito internamente.
O shirking como estratégia coletiva acontece, por exemplo, quando toda uma equipe de servidores decide reduzir o ritmo do trabalho de forma sistemática e organizada, para proteger uma determinada política pública ou instituição. Um dos entrevistados diz: “Não fazemos mais isso [uma atividade específica] para não atrair a atenção. As coisas estão sendo feitas, e temos resultados, mas não queremos dar visibilidade para poder continuar fazendo isso silenciosamente” (E17).
Alguns entrevistados indicaram inclusive o contexto da pandemia e do trabalho remoto como algo que facilitou esse tipo de prática. Muitos servidores mencionaram a realização informal de ações “fora do radar” da alta administração, baseando-se em preceitos da missão organizacional e constitucionais ‒ que dão respaldo à sua atuação. Como ilustra a fala a seguir: “É necessário a gente ter esse lastro. Essa é uma grande estratégia. Nesse momento em que a gente se vê na tentação de recuar pelo medo gerado pelo governo, é necessário sempre estarmos lembrando que o que a gente está fazendo não é errado” (E 24).
Outra estratégia coletiva e informal de reação relatada nas entrevistas é o que a literatura chama de vocalização ‒ voice (HIRSCHMAN, 1970). Isso acontece quando um grupo de burocratas vocaliza publicamente uma discordância ou reclamação em relação às ações do governo através da imprensa, petições ou postagens em redes sociais. Esse tipo de estratégia é frequentemente mobilizado por associações ou sindicatos de funcionários públicos. Como exemplifica um entrevistado: “[O ministro] tinha colocado uma ordem de censura nas organizações ‒ ou seja, todas as organizações têm um departamento de comunicação, mas não podem falar. Então, uma coisa interessante aconteceu: a associação [de carreira] tornou-se o canal através do qual a imprensa tinha acesso à informação. E, com base nisso, começamos a organizar a informação” (E05). As estratégias informais e coletivas demandam um esforço maior de concertação da burocracia ‒ como o custo de conseguir mobilizar esforços coletivos e organizar a reação. No entanto, como esse tipo de estratégia não é formalizado, servidores podem fazer isso sem demandar um esforço maior que os instrumentos institucionais requerem. Ao mesmo tempo, tal estratégia tem potencial de gerar um dano intermediário para os políticos, na medida em que é informal (e por isso o dano não é alto), mas é coletivo, amplificando o efeito das reações.
Foram também encontradas estratégias de reação (3) formais e individuais. Um dos exemplos mais citados é a documentação e o registro formal da discordância com as ações tomadas pelo governo. Normalmente, essa estratégia acontece através do mecanismo de notas ou pareceres técnicos que os funcionários públicos escrevem recomendando ou desaprovando medidas ou iniciativas específicas do governo ou do legislativo. Neste sentido, a ativação do conhecimento técnico por burocratas também tem sido uma das estratégias empregadas. Em contextos onde a assimetria de informação entre a burocracia e o governo é grande, o conhecimento técnico sobre uma determinada área de política pública torna-se um importante recurso de negociação.
Apresentamos aqui dois exemplos de declarações de entrevistados que ilustram esta situação: “Registro por e-mail a divergência para registrar que, na minha percepção, há um problema. Dessa forma, posso me referir a ele mais tarde” (E99). Além disso, “há documentos oficiais, por exemplo, com os quais discordamos. Colocamos nossa posição no texto. Se eles não quiserem aceitá-lo, eles o retiram. Recuso-me a assinar documentos nos quais não acredito ou que são ilegais. Eu escrevo o que está correto e dentro da legislação. E deixo-os enfrentar as consequências do erro. Neste aspecto, sou rude, não só para proteger a sociedade, mas também para proteger a mim mesmo. Esta é a minha maneira de resistir. Se eles retiram o que escrevemos no documento, nós retiramos nossa assinatura. Isto também gera perseguição; às vezes é preciso deixar o setor se você fizer isto” (E125).
Outros servidores também inserem, nos sistemas de informações, declarações técnicas solicitando a manifestação de superiores a respeito de um determinado assunto. Com isso, eles incentivam que as próprias chefias (cargos políticos) registrem no sistema as decisões consideradas ilegítimas (do ponto de vista legal ou processual na administração pública) pelos burocratas: “É pegar a norma e falar “‒ olha, não é assim, é assado”. Ou então você escreve no sistema “‒ peço orientações sobre esse tema que você [o gestor] quer que eu diga [uma posição contrária à missão organizacional]” (E163).
Além disso, muitos entrevistados relataram o abandono (exit) como uma estratégia individual e formal de lidar com o controle político opressivo. Os burocratas deixam suas áreas originais de atuação para trabalhar em organizações mais protegidas e blindadas dentro do Estado ou então para seguir caminhos profissionais fora do serviço público. Um dos casos é relatado da seguinte forma: “Atingi meu limite pessoal de poder trabalhar naquele espaço sem que isso afetasse outras áreas da minha vida. Não vale a pena o sacrifício. Recebi um convite de um colega para ir [trabalhar em outra organização no governo federal]. Ela me disse que era um lugar muito bom, com uma excelente equipe, um lugar mais protegido. E isso era o que eu estava procurando. Eu não suportava mais ser “esfaqueado” porque, como funcionário público, você vai ter uma carreira no governo por 30, 40 anos e tem que cuidar da integridade do serviço público, do trabalho que é feito. Mas as questões que estavam acontecendo no ministério estavam me derrubando, e eu não podia mais ficar lá” (E138).
Este movimento de saída, na maioria das vezes, é visto como uma frustração pelos burocratas, que deixam de trabalhar em projetos e políticas relacionados não só à missão organizacional, mas também à sua missão e projetos de vida, deixando de ocupar posições que correspondem às suas habilidades, experiências, competências e atribuições ao longo de sua trajetória no Estado. Por causa das opressões, o governo federal brasileiro promove um esvaziamento funcional da burocracia pública.
De acordo com um dos entrevistados: “Para mim, é difícil [estar em uma nova organização/setor no governo federal]. Não é algo que eu goste de fazer, que eu sinta vontade de fazer, que eu ame. Claramente não é isso. Mas eu sou funcionário público e tenho que trabalhar. (...) o governo Bolsonaro transformou a administração nisto, as pessoas estão se tornando medíocres” (E136). As estratégias individuais e formais têm um alto custo para os servidores, na medida em que eles agem individualmente (e podem receber retaliação também individual). Com isso, os servidores precisam arcar com o esforço da ação individual e ainda formal, que demanda mais tempo e, inclusive, recursos financeiros. Ela é, portanto, bastante custosa para os servidores individualmente. Ao mesmo tempo, esse tipo de reação causa um dano relativamente baixo para os políticos, na medida em que eles sofrem a consequência de uma ação provinda apenas de um indivíduo ‒ como, por exemplo, quando o servidor decide deixar o governo.
Em relação à quarta e última categoria de estratégias de reação, relativa àquelas que são (4) formais e coletivas, a estratégia que mais apareceu nos dados coletados foi o que chamaremos de voice formal. Ela acontece quando a vocalização do conflito ocorre através de instrumentos estatais formais, na maioria das vezes o Ministério Público ou o sistema judiciário. Além disso, a formalização das reações também envolve a organização de resistência em níveis formais coletivos, como sindicatos, associações, etc. Um entrevistado exemplifica esta situação: “Nós temos tentado fortalecer estas associações. E para colocar a associação, não nossos nomes pessoais, à frente dela. Temos feito cartas de denúncia, articuladas com o Ministério Público, ONGs. Temos tentado nos articular dentro e fora, para proteger nossa agenda, que tem sido destruída” (E24).
Publicações de dossiês e notas técnicas, elaboradas por meio de associações de servidores em parceria com instituições da sociedade civil organizada, também são maneiras de reação coletiva e formal dos burocratas, que identificamos em diferentes setores na administração pública, como ilustra esse relato: “O que nós estamos fazendo em termos de resistência é isso, é a linha de atuação da [nome da associação de servidores], [...] é um trabalho de sistematizar as coisas, a gente fez muitas notas técnicas, notas públicas [...]. E agora tem essa atuação na esfera judicial, a gente está tentando deslanchar isso” (E160). Outro entrevistado diz: “Agora entramos com duas ações judiciais. Uma no STF contra a remoção e a outra é uma ação por danos morais contra as associações e a prefeitura aqui. Depois disso, temos que entrar com uma ação de assédio. Temos inúmeros elementos de assédio em registro” (E101).
As reações coletivas formais também demandam de um grande esforço da burocracia, tanto para se mobilizar coletivamente como para formalizar a reação. A organização de uma ação judicial, por exemplo, demanda mobilização, tempo e recursos financeiros. Ela é, assim, bastante custosa para os servidores. Ao mesmo tempo, ela tem potencial de causar altos danos para os políticos, na medida em que pode inviabilizar sua capacidade de implementação da agenda ‒ quando, por exemplo, o judiciário dá ganho de causa para os servidores.
O Quadro 2 resume os principais achados sobre as práticas de opressão dos políticos e de reação dos burocratas.
O processo de aprendizagem a partir da opressão política e da reação burocrática
Os dados sugerem que há diferentes estratégias de opressão política e de reação burocrática nos contextos de retrocesso democrático. Como apontado originalmente por Bersch e Lotta (2021), as estratégias de opressão e reação variam, considerando sua formalidade (formais ou informais) e a escala da prática (individual ou coletiva). Além disso, tanto políticos como burocratas combinam essas estratégias para aumentar seu controle ou capacidade de reação (LOTTA et al., 2022a). Percebe-se que as escolhas sobre quais estratégias usar não são baseadas em decisões unilaterais. Políticos decidem suas estratégias a partir da interpretação possível sobre a reação burocrática, e vice-versa. Portanto, pode-se notar que a atuação de políticos e burocratas vai ser relacional, ou seja, a reação de um dos grupos vai se dar a partir da ação do outro.
As diferentes estratégias, por sua vez, podem gerar distintos efeitos que variam no grau de dano e nos custos que causam aos oponentes. A análise dos efeitos em termos de danos e custos faz parte da avaliação das estratégias a serem utilizadas. Como apontado na seção anterior, quanto mais informais as estratégias são, menos danos elas causam (LOTTA et al., 2022b). Quando, por exemplo, políticos optam por fazer discursos negativos contra os burocratas na mídia, ou fazem reclamações informais em uma reunião, os efeitos negativos sobre os burocratas são relativamente pequenos, podendo afetar moralmente a burocracia, mas não produzindo efeitos materiais sobre ela. Ao mesmo tempo, quando burocratas usam estratégias informais ‒ como se posicionar na mídia, por exemplo ‒ eles também afetam a imagem governamental, mas não geram efeitos materiais sobre os políticos.
Por outro lado, as estratégias formais geram mais danos e custos. Quando políticos aprovam leis de censura ou processam servidores, por exemplo, essas medidas causam danos maiores aos burocratas e exigem maior custo em sua resposta. E quando burocratas decidem processar formalmente o governo em articulação com Ministério Público ou Supremo Tribunal Federal, estas medidas também causam danos maiores e mais custosos para os políticos. Ou seja, quanto mais formais as estratégias, mais danos elas geram em quem é afetado por elas e mais custosas são suas reações.
Baseado nisso e, considerando que a opressão política e a reação burocrática são processos dinâmicos e relacionais (LOTTA et al., 2022b), os achados sugerem que a escolha sobre quais estratégias usar mudou ao longo do tempo, considerando os aprendizados dos atores sobre os efeitos e custos de suas estratégias, à medida em que interagiam. Analisando os dados de forma dinâmica, é possível perceber que, no primeiro momento do governo Bolsonaro, quando o presidente e seus indicados ainda estavam aprendendo sobre o funcionamento do Estado e da administração pública, as principais estratégias de opressão eram informais e coletivas ‒ especialmente as estratégias de “criticar publicamente os servidores”, por exemplo. Já os burocratas, neste primeiro momento, tinham uma vantagem comparativa por conhecerem o funcionamento da máquina pública e contarem com uma assimetria de conhecimento técnico (expertise) em relação aos novos ocupantes de cargos. Os burocratas, portanto, investiram em práticas individuais ‒ especialmente de sabotagem e modificação do ritmo de trabalho (shirking), que prejudicavam as pautas governamentais de forma silenciosa e escondida, fora do radar da alta administração. Em paralelo, os burocratas também se engajaram em processos mais coletivos de vocalização das críticas, fazendo depoimentos públicos, cartas e abaixo-assinados. Neste primeiro momento, a assimetria de conhecimento deu vantagens aos servidores, que conseguiram impor certas barreiras ao processo de desmantelamento institucional e/ou de políticas públicas, especialmente em áreas que requerem conhecimento especializado (como no caso do Bolsa Família, por exemplo).
No entanto, ao longo do tempo, o governo aprendeu a operar os procedimentos, usá-los e mudar as formas de atacar a burocracia. Acima de tudo, aprenderam que os instrumentos formais são mais danosos e custosos para os burocratas. Em paralelo, o governo aumentou o processo de militarização da máquina, substituindo os cargos comissionados por membros das forças armadas e da polícia militar, como mostram os dados de Schmidt (2022). Também aprovaram várias regulamentações que diminuíram a autonomia dos burocratas, como o decreto de censura da CGU (CGU, 2020). O governo também aumentou o uso de instrumentos formais de opressão, com a adoção crescente de processos administrativos disciplinares (PAD) contra os servidores e de processos de exoneração, formalizando as práticas de perseguição, que até então eram predominantemente informais.
Para exemplificar este processo ao longo do tempo, apresentamos abaixo os dados do crescimento da aplicação de PAD na área ambiental, que é um instrumento formal e individual.
Os dados sugerem que este processo de aprendizado sobre as estratégias se baseou em uma ampla experimentação. O governo selecionou algumas organizações onde poderia testar certos instrumentos de opressão e, na medida em que eles eram efetivos e dificultavam as reações contrárias, difundiram a adoção desses instrumentos para outras organizações (BERSCH; LOTTA, 2021). Um exemplo claro foi a lei de censura, inicialmente adotada na área ambiental e, por não ter tido uma barreira judicial, foi ampliada para vários órgãos federais até se consolidar no entendimento da CGU. Outro exemplo foi a limitação no acesso ao SEI, primeiramente vivenciada nos órgãos ambientais e depois disseminada pela esplanada. O mesmo aconteceu com a ocupação de cargos comissionados nas áreas-meio por militares, experiência testada primeiramente nos órgãos ambientais e depois difundida por outros setores.
Outra medida que apareceu nos relatos (como medida efetiva para aumento da opressão) foi o uso de determinados casos de opressão individual como casos “exemplares” para o restante da burocracia. Em várias entrevistas foram citados casos que funcionaram como “bodes expiatórios”: servidores que foram duramente atacados pelo governo, sofreram processos de alto custo e dano e que são sempre citados pelo governo como forma de ameaça para os demais servidores. Os “bodes expiatórios” ajudam a disseminar medo entre os servidores e impactam muitas vezes nas capacidades de reação e resistência burocrática, na medida em que os demais servidores podem ter receio de serem os próximos (LOTTA; SILVEIRA; FERNANDEZ, 2023).
A consequência deste processo de aprendizado por meio da atuação relacional entre políticos e burocratas, que envolveu experimentação e difusão de instrumentos formais, representa os maiores efeitos, danos e custos às reações burocráticas. A Figura 1 sistematiza este processo para os políticos e burocratas, a partir dos custos e danos de cada tipo de estratégia ‒ como apresentado na seção anterior. A flecha mostra os danos e custos impostos a partir de cada tipo de estratégia de opressão e reação.
Danos e custos impostos aos políticos por cada tipo de opressão e à burocracia por cada tipo de reação
Em um modelo de análise dinâmico e relacional, burocratas também aprenderam como reagir, baseados na forma como os políticos atuavam. No caso brasileiro, o que vimos no primeiro momento foi que a burocracia foi capaz de impor custos e barreiras para o governo, usando diversos tipos de estratégias, principalmente informais. Como afirmam Brehm e Gates (1999), nessas reações individuais ao comando, os burocratas podem aceitar o trabalho, fugir ou sabotar (working, shirking ou sabotage).
No entanto, na medida em que o governo aprendeu que a aplicação de estratégias formais e individuais maximizavam o efeito sobre burocratas, esses tiveram que aprender a mudar também suas estratégias, a partir de uma perspectiva relacional. Como consequência, os resultados da pesquisa sugerem que houve uma mudança nas formas de reação dos burocratas. Em primeiro lugar, eles aumentaram o uso de estratégias coletivas para se protegerem de repercussões individuais e diminuir os efeitos (danos) individuais das estratégias. Passaram a investir em ações via sindicatos e associações de servidores, por exemplo. Em segundo lugar, aprenderam a formalizar as reações, entrando com ações judiciais ou ações no Ministério Público ou, ainda, com medidas dentro do legislativo, buscando reverter ações do governo e produzir maior dano sobre ele. Aprenderam, portanto, que as reações coletivas e formais impõem mais danos e custos para o governo.
Se as estratégias coletivas e formais de reação impõem mais custos e danos para o governo, elas também são mais custosas para a burocracia. Isso porque estas reações envolvem recursos financeiros, tempo e têm baixa previsão de efetividade. Por essa razão, vimos, em paralelo, o crescimento de um outro tipo de reação burocrática: o abandono e a autocensura. O abandono (exit) é uma estratégia individual e formal de lidar com o controle político opressivo (HIRSCHMAN, 1970). A autocensura é uma reação individual de silenciamento do burocrata. As duas estratégias têm como consequência o apagamento da burocracia. Ou seja, em ambas, os burocratas perdem capacidade de reagir e, portanto, de impor novos danos para os políticos.
Assim, a análise relacional, baseada na interação entre burocratas e políticos, sugere que ambos atores aprenderam como usar diferentes tipos de estratégia, analisando seus custos e danos. No entanto, ao longo do tempo, os custos de reação aumentaram para os burocratas, e alguns deles perderam parte de sua capacidade de reagir, seja silenciando, seja abandonando a resistência ou mesmo a organização à qual pertenciam. Esse processo ajuda a explicar, em parte, a maior capacidade de desmonte institucional do governo ao longo do tempo.
Conclusões
O artigo buscou contribuir com a literatura sobre conflitos entre políticos e burocratas em contextos de retrocesso democrático. Propusemos uma análise dinâmica e relacional dos processos de opressão política e reação burocrática. A partir do estudo do caso do Brasil no período do governo Bolsonaro, encontramos diferentes estratégias de opressão política e de reação burocrática. As estratégias de opressão e reação variam considerando sua formalidade (formais ou informais) e a escala da prática (individual ou coletiva). Além disso, percebe-se que as escolhas pelas estratégias que serão utilizadas baseiam-se na ação de políticos e burocratas em uma perspectiva relacional e dinâmica, ou seja, na interrelação entre esses atores ao longo do tempo.
Portanto, os achados sugerem que a atuação política e a reação burocrática envolvem aprendizagem, à medida que os atores interagem, avaliam e reavaliam os potenciais danos e custos das ações e as respectivas reações. Nesse processo, é possível identificar mudanças nas estratégias de políticos e burocratas ao longo do tempo. No entanto, com o passar do tempo, os custos de reação aumentaram para os burocratas, e alguns deles perderam parte de sua capacidade de reagir, sendo silenciados, abandonando a resistência ou mesmo a organização à qual pertenciam. Esse processo ajuda a explicar, em parte, a maior capacidade de desmonte institucional do governo com o passar do tempo.
A partir da discussão que desenvolvemos sobre controle político e reação burocrática em contextos de retrocesso democrático, nossa pesquisa contribui para o debate da ciência política e da administração pública propondo novas dimensões analíticas para o entendimento das relações entre governos autoritários e administração pública. No entanto, com este estudo, não contemplamos as consequências da dinâmica entre políticos e burocratas para o Estado e a sociedade. Nesse sentido, deixamos em aberto uma agenda de pesquisa que tem a possibilidade de analisar as descontinuidades das políticas públicas e as ameaças ao Estado de direito como consequência da dinâmica apresentada no presente estudo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
18 Jul 2022 -
Aceito
15 Dez 2022