Open-access “Tudo é sempre de muito!”: produção de saúde entre travestis e transexuais

“Always Too Much of Everything!”: Health Production among Transvestities and Transsexuals

Resumo:

Este estudo investigou como travestis e transexuais negociam com os espaços institucionalizados de saúde e quais práticas compreendem como produtoras de saúde. Foram realizadas entrevistas com duas travestis e duas transexuais na cidade de Fortaleza, abordando questões sobre local, forma e dificuldades do atendimento quando ficam doentes, suas práticas de mudança corporal, entre outras. As informações obtidas foram discutidas a partir de uma perspectiva foucaultiana e de uma teoria crítica sobre o gênero. Observamos que a saúde entre as participantes está associada à construção de um corpo feminino belo, mesmo quando implica recusa às prescrições médicas e risco pessoal. Concluímos que a demanda por saúde de travestis e transexuais afasta-se das práticas de assistência propostas pelo Estado, que tem adotado uma noção binária de sexo/gênero para pautar suas ações.

Palavras-chave: Saúde; Corpo; Gênero; Travestis; Transexuais

Abstract:

This study aimed to know how transvestites and transsexuals negotiate with institutionalized spaces of health and the practices they understand as promoting their health. Interviews with two transvestites and two transsexuals were conducted in the city of Fortaleza (Ceará, Brazil), addressing themes like local, form and difficulties of receiving medical care when ill, practices of corporal transformation among others. The information was discussed from a Foucauldian perspective and a critical theory of gender. We observed that the participants production of health is generally associated with the construction of a beautiful female body, even when it implies refusing medical prescription and personal risk. We conclude that transvestites and transsexuals’ main demands for health move away from practices of medical care offered by State agencies which have adopted a binary notion of sex/gender in their actions.

Key words: Health; Body; Gender; Travestites; Transsexuals

Introdução

A saúde é um direito recente da população brasileira, que só foi garantido na Constituição Federal de 1988, como resultado da luta de diversos grupos sociais. Até então, o sistema público de saúde atendia apenas àqueles que contribuíam para a Previdência Social; os que não tinham dinheiro dependiam da caridade e filantropia. A saúde foi institucionalizada no Brasil como dever do Estado e direito fundamental da população brasileira apenas com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Oficializado o SUS pelo Congresso Nacional através da aprovação da Lei Orgânica da Saúde em 1990, a saúde, entendida como “condições de bem-estar físico, mental e social”, passou a ser acessível para todos os brasileiros sem discriminação (BRASIL, 2006). É objetivo do SUS oferecer “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas” (BRASIL, 1990, art. 5º).

Para alcançar o seu objetivo, o SUS é orientado por algumas diretrizes e princípios que norteiam as ações e os serviços de saúde em território nacional. Três são os princípios doutrinários do SUS: universalidade, equidade e integralidade. A universalidade garante atenção à saúde a qualquer cidadão; a equidade assegura que todos sejam atendidos de forma igual, sem privilégios ou preconceitos, mas respeitando as diferenças e necessidades de cada um, de acordo com a complexidade do caso; por último, o princípio da integralidade é o reconhecimento de que a atenção em saúde deve abranger ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, com acesso a todos os níveis de complexidade do SUS (BRASIL, 2009).

Apesar de a saúde ser um direito universal e orientado por tais diretrizes, algumas pesquisas assinalam um processo de exclusão e desigualdade no atendimento de determinados grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade, como, por exemplo, a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT) (María de la Luz Sevilla GONZÁLEZ, Nelson Eduardo Álvarez LINCONA, 2006; Valéria Ferreira ROMANO, 2007; Adalberto CAMPO-ARIAS, Edwin HERAZO, 2008; CAMPO-ARIAS, HERAZO e Zuleima COGOLLO, 2010). Nesse sentido, tornou-se necessário construir novas políticas públicas para assegurar tal direito. No caso da política de saúde construída pelo governo brasileiro em associação com o movimento LGBT, a Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (BRASIL, 2010a) tem como proposta assegurar o direito à saúde aos sujeitos que resistem de algum modo aos padrões normativos de identidade de gênero e orientação sexual. O combate ao preconceito e à discriminação é temática constante nesse documento, podendo ser observado em suas finalidades e diretrizes. Um exemplo da centralidade do combate ao preconceito pode ser visualizado no objetivo geral desta política (BRASIL, 2010a), que propõe:

promover a saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, contribuindo para a redução das desigualdades e para a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equânime (p. 16).

Tatiana LIONÇO (2008) assinala que a dificuldade do acesso dessas populações à atenção em saúde é atravessada, principalmente, pelo preconceito sofrido nos serviços e, menos, por demandas específicas e intrínsecas desses sujeitos. A autora tem observado que, mesmo com a implantação de políticas públicas, essas populações historicamente excluídas não têm acessado devidamente os serviços públicos de saúde. Transexuais e travestis são identificados entre os grupos que mais sofrem preconceito por subverterem a heterossexualidade compulsória, como também os padrões de masculinidade e feminilidade vigentes. Estudos apontam que o preconceito dos profissionais da saúde tem prejudicado o atendimento adequado dessa população (GONZÁLEZ e LINCONA, 2006; ROMANO, 2007; Michelle R. CARDOSO e Luís Felipe FERRO, 2012).1

A partir desse panorama, nosso estudo objetivou conhecer como essa população busca atendimento em saúde, como faz uso de tais equipamentos e cuidados disponíveis, como produz saúde e como administra essas questões em seu cotidiano. Nosso trabalho centrou-se nas seguintes questões: Quais práticas são desenvolvidas por travestis e transexuais para promover sua saúde? Como negociam com os espaços institucionalizados de saúde oferecidos pelo SUS? Como manejam os discursos dominantes sobre saúde e doença? Nesse sentido, ficamos atentos tanto aos discursos hegemônicos sobre saúde, pautados no saber biomédico, quanto às fissuras desses discursos, promovidas diariamente por travestis e transexuais no uso desses equipamentos.

Posicionamento ético e metodológico

O estudo foi realizado entre os anos de 2012 e 2014 na cidade de Fortaleza, Ceará, e começou por um mapeamento dos serviços de saúde acessados por travestis e transexuais a partir de indicações de profissionais que trabalhavam na coordenadoria de saúde da cidade. Os relatos apresentados nesta pesquisa basearam-se em conversas informais com travestis e transexuais usuárias de um ambulatório especializado em saúde sexual na cidade de Fortaleza, e entrevistas semiestruturadas com duas travestis e duas transexuais. Ao longo dessa pesquisa, tivemos a oportunidade de dialogar apenas com travestis e transexuais que se identificavam com o gênero feminino, isto é, pessoas que foram designadas, no seu nascimento, como homens, mas que produzem transformações corporais e performáticas classificadas como femininas na nossa sociedade.

Compreendemos as complexidades das classificações identitárias e as limitações do emprego das múltiplas categorias vigentes para nomear os gêneros não normativos, tais como trans, transexual, transgênero, travesti, queer, mulher e homem trans, entre outros, que muitas vezes são coletivamente designados como trans, para designar todas as pessoas que reivindicam uma identidade ou expressão de gênero diferente daquela atribuída por ocasião do seu nascimento (Simone ÁVILA, Miriam Pillar GROSSI, 2010; Bruno César BARBOSA, 2010). O campo discursivo em torno das identidades travestis e transexuais, em especial no Brasil,2 é historicamente minado por tensões e disputas que vêm alterando ou ressignificando esses termos, e, mesmo, criando novas categorias de inteligibilidade e manifestação política (Marília dos Santos AMARAL, Talita Caetano SILVA, Karla de Oliveira CRUZ, Maria Juracy Filgueiras TONELI, 2014; BARBOSA, 2010). De qualquer modo, especialistas, ativistas e pessoas que se identificam com essas categorias dão sinais de que essas designações são interligadas com fronteiras fluidas e deslizantes. Como afirma Bruno Cesar Barbosa (2010), a autoidentificação no campo do gênero exibe a “coexistência de múltiplas posições de sujeito, que são acionadas situacionalmente” (p. 4).

De forma ampla e não matizada, a distinção entre as duas categorias - que remonta às convenções médico-psiquiátricas da década de 1950 - baseia-se no entendimento de que as transexuais, ao se identificarem interiormente como mulheres, desejam alcançar uma coerência gênero-sexo mediante a cirurgia de transgenitalização (ou “mudança de sexo”), enquanto tal desejo não faz parte da subjetividade travesti, cujo gênero é ambíguo. Como mostram as entrevistas com esses segmentos no cotidiano e em contextos de ativismo, essa distinção é bem mais complexa.3 Aqui, buscamos respeitar a autonomeação das participantes de nosso estudo, com todas as ambivalências que mostraram ao longo das conversas, que ecoam outros estudos com esses segmentos.

O primeiro contato que tivemos com uma das nossas informantes foi no seminário “Saúde mental, homofobia, lesbofobia e transfobia institucional”, organizado em 2013 por uma Organização Não Governamental (ONG) promotora de ações voltadas para o público LGBT de Fortaleza e que possui, entre suas lideranças, uma travesti, P., que se disponibilizou a participar da pesquisa. Utilizando a técnica “bola de neve” (snow ball), solicitamos que P. indicasse outras travestis e transexuais que pudessem contribuir com o nosso estudo. A partir dessas indicações, realizamos entrevistas com duas travestis (L. e P.) e duas transexuais (R. e I.) em espaços escolhidos por elas, como residência, local de trabalho e faculdade. Recorremos a essa ferramenta de pesquisa para ajudar, principalmente, nos momentos iniciais, quando estávamos com dificuldades de encontrar pessoas disponíveis para participar do estudo. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas.

As quatro participantes entrevistadas nasceram e moram na cidade de Fortaleza (Ceará). Todas trabalham: L. (26 anos) é cabeleireira e maquiadora; P. (24 anos) é educadora de uma ONG; R. (22 anos) é modelo e I. (20 anos) trabalha como secretária numa repartição pública. Todas possuem ensino médio completo e R. faz faculdade. Dentre elas, apenas P. se identifica como negra e explica que este autorreconhecimento só veio a partir da sua militância na ONG.

As falas das participantes entrevistadas ajudaram a identificar quais espaços de saúde elas utilizavam e suas estratégias de uso e negociação nesses serviços. As informações das entrevistas nos levaram a um hospital público, que é referência no estado, para o atendimento de casos graves de transtornos mentais e onde existe um ambulatório exclusivo para o acompanhamento de pessoas que desejam realizar o processo transexualizador. Esse serviço é recente e apresenta uma equipe composta por ginecologista, endocrinologista, psiquiatra e psicólogo. Os profissionais realizam diagnóstico, laudo, prescrição de psicofármacos e hormônios, além de psicoterapia. Os procedimentos cirúrgicos, como implante de próteses de silicone ou a cirurgia de transgenitalização não são oferecidos, mas existe um projeto para a construção de um centro de referência para transexualidade nesse hospital. Foram realizadas, no total, cinco visitas a esse ambulatório, onde conversamos informalmente com algumas travestis e transexuais em atendimento que se disponibilizaram a participar da pesquisa. Esse material foi registrado no diário de campo.

Os assuntos dessas conversas informais, no ambulatório do hospital, eram diversos, mas, geralmente, estavam relacionados à vivência da sexualidade: a escolha do nome feminino, a dificuldade para encontrar emprego fora da prostituição, dicas sobre o uso de hormônio, exames indicados pelos médicos. Surgiam, também, temas sobre paquera, se os usuários dos outros ambulatórios eram bonitos, se os médicos e residentes eram gays ou “pegáveis”, o modo de se vestir das mulheres que trabalhavam no hospital, quem eram os profissionais mais gentis ou mal-educados. O ambiente no qual a conversa ocorria influenciava bastante os assuntos que emergiam e como se desenrolavam os diálogos, pois a passagem dos funcionários do hospital não só provocava comentários como, algumas vezes, levava as participantes a silenciar ou baixar o tom de voz.

Como mostra Vera MENEGON (2014), a investigação com conversas do cotidiano deixa o pesquisador atento a outros tipos de elementos envolvidos na produção dos enunciados, como o contexto, que passa a ser um componente importante da conversa. O fato de as conversas não estarem presas a um rígido roteiro de perguntas oferecia maior liberdade para a abordagem de conteúdos diversos, como, também, uma informalidade e descompromisso para as participantes, permitindo maior flexibilização dos posicionamentos. Mesmo as conversas acontecendo sempre no espaço do hospital, elas se modificavam se saíssem dos corredores e se aproximassem da recepção ou dos consultórios médicos.4 O recorte temporal também variava; às vezes, as conversas eram fugazes, quando algumas participantes iam logo embora após a consulta com o médico; outras eram mais demoradas, como nas situações em que contavam as novidades para uma colega que faltou às últimas consultas. O perfil das interlocutoras era diversificado em relação à idade e condição social, pois em cada encontro apareciam usuárias diferentes.

As entrevistas e as conversas informais foram guiadas pela mesma postura ética e metodológica, que se propunha a compreender a construção da pesquisa como estranhamentos sucessivos sobre o tema, um processo sempre aberto ao novo, mesmo que este novo nos parecesse familiar. A análise foi realizada a partir dos objetivos mencionados anteriormente e as informações obtidas foram discutidas à luz de perspectivas teóricas-críticas.

Tendo como referência os estudos de Michel FOUCAULT (1995; 1996; 1997; 2008), partimos de um posicionamento crítico e ético, que propõe questionar categorias naturalizadas socialmente, tornando a pesquisa “um convite a examinar essas convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e historicamente localizadas” (Mary Jane SPINK, 2004, p. 32). Nesse sentido, buscamos observar tanto acontecimentos cristalizados e normalizados, como também fissuras e resistências que borram as fronteiras da regularidade. Essa abordagem metodológica ganha destaque nessa pesquisa por permitir analisar tanto os discursos hegemônicos da biomedicina, como também outras formas de entendimento e práticas de saúde por parte de nossas participantes.

A negociação entre os discursos oficiais sobre saúde e os produzidos pelas travestis e transexuais é o nosso principal foco, pois, na medida em que determinados discursos são instituídos como verdade, eles geram poder, já que o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta” (FOUCAULT, 1996, p. 10). Abaixo, apresentamos como as nossas entrevistadas constroem o objeto saúde e se constroem como sujeitos sexuais singulares por meio da apresentação de alguns trechos de suas falas. Estes, por sua vez, são discutidos a partir de um olhar foucaultiano e de uma teoria crítica sobre o gênero.

Corpo saudável, corpo feminino

As concepções sobre saúde variam, abrangendo desde a noção de ausência de doença até a de bem-estar biopsicossocial, instituída pela Organização Mundial da Saúde (1946). Porém, ao conversar com as nossas entrevistadas, observamos que o sentido de saúde emergente convergia para o processo de construção de um corpo ‘feminino’, mesmo que essa tarefa exigisse a adoção de procedimentos e substâncias consideradas prejudiciais pela medicina. Com efeito, os consensos médicos e farmacológicos determinam que a aplicação de silicone industrial e o uso de hormônios sem o acompanhamento médico são nocivos e fontes de adoecimento. Para as travestis e transexuais ouvidas há um processo de ressignificação: valer-se dessas estratégias de feminilização corporal é um modo de se produzir como um sujeito saudável. É a transformação desse corpo que as nossas entrevistadas almejam quando se discute saúde e o que buscam quando procuram esses serviços.

[Pesquisadora] Do que você sente falta no serviço de saúde? [R.] Começa pelo tratamento desde a hora que você entra, eles te aceitarem, eles te tratarem pelo nome social, usando o gênero feminino, já começa por aí. Segundo passo, ter um ambulatório especializado, oferecendo tratamento específico para transexualidade tanto feminino como masculino [...] não precisa ser vários, a gente precisa de um núcleo que atenda o Ceará inteiro. Vai ser meio burocrático, mas já é uma conquista, porque é uma realidade que existem transexuais e é preciso atendê-las. A saúde em si precisa agregar a gente, nós temos direito à saúde. É preciso ter um ambulatório para te informar sobre o uso de hormônio, se tá fazendo efeito, se não tá. Porque tem isso, muitas com o sonho de ficar com o corpo mais feminino rápido acabam superdosando, acabam tendo um excesso de hormônio feminino no corpo. A gente precisa de um médico que acompanhe, que passe exames, que faça consultas periodicamente.

A mudança corporal que as travestis e transexuais buscam não é qualquer uma; elas estão constantemente à procura de técnicas que as tornem mais femininas e, a partir dessa feminilidade, mais belas e saudáveis. Como esse processo não é facilmente realizado pelo SUS, estando condicionado ao diagnóstico de transexualidade, muitas buscam clínicas particulares para fazer implante de silicone ou a indicação de amigas sobre o uso de hormônios. Essas transformações não têm fim; como sublinha Larissa PELÚCIO (2007), é um processo que nunca se encerra, o que torna o corpo travesti e transexual sempre inacabado. Todas as participantes já tinham realizado várias intervenções corporais e, quando perguntadas sobre o desejo de novos procedimentos estéticos, sempre respondiam afirmativamente.

A produção de um corpo feminino, neste sentido, é, em parte, uma tentativa de adquirir inteligibilidade numa sociedade baseada no padrão binário masculino/feminino, onde o ambíguo apresentado pelas travestis e transexuais - isto é, o corpo com constantes intervenções feminilizantes - é difícil de compreender, se tornar inteligível. De fato, a norma sexual binária prescreve como homens e mulheres devem se comportar, quem desejar e em quais partes do corpo sentir prazer, numa operação de controle e docilização dos corpos masculinos e femininos. Obedecer de modo coerente a tais regras sexuais permite que alcancemos inteligibilidade social como verdadeiros sujeitos. O gênero possibilita que sejamos reconhecidos como humanos em nossa sociedade. Precisamos, para isso, responder a determinada linearidade instituída e naturalizada entre sexo, gênero, práticas sexuais e desejos (Judith BUTLER, 2010).

Como lembra Butler, o gênero humaniza e é a partir dele que ganhamos o status de humanos, porém os que não correspondem à lógica da normalidade de gênero são posicionados no domínio do desumanizado, do abjeto. É o caso de travestis e transexuais que têm o seu modo de existência negado por subverterem tal norma. O sistema compulsório de gênero é punitivo na medida em que coage e violenta aqueles que não desempenham corretamente o seu gênero. A forma lógica e correta de seguir a norma de gênero é agir a partir da matriz heterossexual e corresponder à expectativa construída pelo binarismo homem/mulher. Nossas entrevistadas se recusam a se construir a partir do padrão de masculinidade que lhes foi designado no nascimento; por meio de inúmeras técnicas, elas tentam atingir o padrão de corpo feminino normatizado, empenhando-se em reduzir a ambiguidade. Os gêneros incoerentes, que escapam à matriz heteronormativa, são interditados e proibidos. Os que falham se tornam alvo de constantes regulações, como a patologização desses indivíduos. Os corpos das mulheres transexuais e das travestis provocam desconforto na medida em que rompem com as convenções, revelando a ambiguidade: vestígio de barba recém-tirada, pomo de Adão, mãos e pés grandes, contrastando com o silicone nos seios e quadril, formas arredondadas pelo uso do hormônio, cabelos longos, decotes. É a quebra da linearidade que se expõe. Os olhares incessantes dos outros são uma forma sutil de violência, uma busca por coerência.

Cuidar da saúde é prioritariamente transformar esse corpo em corpo belo e feminino, que poderá ser admirado e olhado. Numerosas são as tecnologias utilizadas para alcançar o almejado corpo feminino, desde o uso de hormônio até cirurgias plásticas. Entre as travestis e transexuais entrevistadas, L. e P. tinham colocado prótese de silicone nos seios, e, entre as usuárias com quem conversamos no ambulatório, quase todas já fizeram ou pretendem fazer cirurgia plástica. A mais comentada é a de implantes nos seios, mesmo sendo um procedimento que envolve alto custo financeiro, com o qual a maioria não tem condição de arcar:

[P.] É muito caro ser travesti, é muito caro. Você tem que abrir mão de um monte de coisa para tentar ficar bonita. Tentar! Eu acho que a prioridade inicial é a autoafirmação própria... Se esse sistema de saúde não permite isso, não permite nem as minhas consultas rotineiras e essa transformação do corpo é algo tão emergencial. É a sua transformação, que é algo prioritário. Na vida da travesti a mudança desse corpo é algo prioritário, algo que você nega, seu biológico masculino... Essas questões todas você nega. A prioridade inicial é esse processo de transformação desse corpo. Por que é esse corpo que vai dizer quem ela é. Minha mãe às vezes diz, “P., qualquer dia você fica toda torta com tanta cirurgia”, mas eu só fiz duas que eu lembre (risos) [grifos nossos].

No corpo das travestis e transexuais, o “biológico” masculino negado dá espaço ao “artificial” feminino, ambos fabricados em uma rede de forças que separa sexo e gênero, masculino e feminino, natural e artificial, mulher biológica e travesti e transexual. O binarismo de sexo é percebido como pré-discursivo, um destino marcado pela biologia, e essa naturalização do sexo supõe que as marcas corporais por si mesmas determinam o duplo macho/fêmea. Os corpos des-(re)-feitos das travestis e transexuais incitam o questionamento sobre a naturalização do sexo. Seios, bunda, pênis e vagina, com o avanço da tecnologia, são construídos, hoje, mediante cirurgias e aplicação de silicone. Com isso, a pretensa natureza do sexo é ressignificada e modificada. Questionar que o sexo é uma construção tanto quanto o gênero não é negar a materialidade do corpo. Esse não é um quadro em branco no qual os símbolos da sociedade irão simplesmente se inscrever (BUTLER, 2010). O gênero produzido culturalmente não constrói marcas no corpo que está passivamente à sua espera. Quando afirmamos que o sexo não é natural, compreendemos que este é uma interpretação política e cultural do corpo.

O corpo é uma produção histórica, cultural e política, sempre em mudança. Portanto, não possui uma natureza transcendental ou universal, mas é uma materialidade provisória, mutável. Ele está sujeito as mais diversas transformações produzidas por diferentes tecnologias: jurídica, política, cultural, médica etc. “O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural” (David LE BRETON, 2006, p. 26). Ele é plástico e relacional, pode ser feito e desfeito através do uso de hormônios, cirurgias, treino de voz e outras estratégias. Pelos somem ou surgem, seios aparecem ou são retirados, clitóris que crescem, pênis que se transformam em vagina; uma série de modificações corporais pode ser realizada e ressignificada. A experiência das travestis e transexuais mostra como o sexo é artificial, podendo ser moldado através de diferentes tecnologias.

Silicone industrial: modelando o corpo

[Pesquisadora] Fora o hormônio, que você fez mais em relação ao teu corpo? [L.] Eu coloquei silicone na perna, silicone industrial mesmo. É injetável, elas (bombadeiras5) injetam uma agulha, vai furando determinadas partes do corpo. Eu coloquei perna, quadril, bunda. Na época eu já tomava muito hormônio. [Pesquisadora] E você ainda tem vontade de colocar mais? [L.] A gente sempre tem, né? (risos) E a gente quer sempre mudar mais, quer emagrecer... É tanta coisa de uma vez só. [Pesquisadora] E na época em que você fez aplicação do silicone, como foi? [L.] É assim, vai as amigas. Aí você acaba vendo elas... É a fulana de tal e ela (bombadeira) faz um corpo muito bonito. Olha o corpo da fulana! Quem fez? Foi a fulana de tal. Tem toda essa fofoca no meio... Aí a fulana se droga, não é indicado se bombar com ela porque ela se droga... É algo muito rústico, feito em fundo de quintal. Eu fiz na casa dela (da bombadeira), ela é uma trans daqui de Fortaleza. Elas (bombadeiras) têm uma quantidade certa de líquido que elas injetam, não pode ser acima daquilo. Dependendo da parte do corpo que você vai fazer elas têm que amarrar você. No meu amarraram na cintura e na perna. Na cintura para (o silicone) não subir para os pulmões, dizem elas, eu também não sei. Elas furam aqui (mostra a parte de cima da coxa) [grifos nossos].

As bombadeiras fazem, literalmente, os corpos femininos. Aplicando e moldando o silicone, elas dão forma arredondada aos seios, coxa, quadril e rosto para que os corpos ganhem contornos mais femininos. Diferente dos hormônios, esse material produz um efeito imediato que o torna bastante atraente para aquelas em busca de um corpo perfeito, além de não interferir no desempenho sexual, sendo geralmente utilizado por travestis e transexuais que trabalham na prostituição (José Juliano GADELHA, 2009). L. sabe quais os perigos envolvidos no uso do silicone industrial, mas o “corpo pede”. Apesar do medo, é necessário transformar esse corpo. As questões relacionadas à saúde ganham outro sentido. Apesar dos riscos da bombação, L. investiga quem é a bombadeira, se ela usa drogas, pede indicação das amigas mais experientes, observa os corpos já moldados por essa pessoa. Como noutros estudos (Marcos Renato BENEDETTI, 2005), há uma constante troca de informação sobre quem são as pessoas mais competentes e experientes na bombação, assim como os médicos que realizam cirurgia plástica e implantes de próteses de silicone nos seios. As participantes constroem uma rede de confiança na qual cada uma indica e divulga como foi atendida e quais os resultados.

Os relatos de bombação que deu errado são frequentes na literatura (Juliana COELHO, 2009; Francisco Jander de Sousa NOGUEIRA, 2009). Muitas tiveram seus corpos amputados ou, mesmo, faleceram após o silicone industrial escorrer para várias partes do corpo. O trabalho da bombadeira é considerado, pelo Código Penal, uma contravenção pelo “exercício ilegal da medicina artigo 312, exercício do curandeirismo artigo 313 e lesão corporal grave artigo 129” (PELÚCIO, 2007). A aplicação de silicone industrial não é só um problema no âmbito jurídico, mas se tornou, também, uma questão de saúde pública para o Ministério da Saúde. Existe a proposta de definir protocolos clínicos para esses casos nos serviços do SUS, como a realização de exames e uso de técnicas para retirada dessa substância no corpo (BRASIL, 2010a). Algumas campanhas do governo federal e estadual (SANTA CATARINA, 2003; BRASIL, 2010b) foram realizadas com a proposta de reduzir os danos daquelas que fazem o uso de hormônio sem prescrição médica e utilizam silicone industrial. A redução de danos é uma estratégia comum no acompanhamento de usuários de drogas e aponta para uma atuação na saúde que respeite a autonomia dos sujeitos, mesmo que esses decidam realizar práticas que são percebidas socialmente como prejudiciais à saúde. Pelúcio (2007) observa, porém, que as orientações do Ministério da Saúde ressaltando os perigos do silicone industrial não são acompanhadas de políticas que permitam o acesso menos custoso e constrangedor de travestis e transexuais aos serviços de saúde quando buscam a cirurgia para implantar próteses de silicone. A redução de danos funcionaria apenas como mais uma medida paliativa no cuidado da saúde das travestis e transexuais do que uma verdadeira garantia de acesso à saúde.

Os materiais das campanhas citadas não foram direcionados para as travestis e transexuais e, sim, para os profissionais da saúde que atendem a esse público (BRASIL, 2010b). Instruindo que não se deve constranger as travestis e transexuais, um dos panfletos, por exemplo, informa que é papel do profissional orientá-las sobre os riscos envolvidos na aplicação do silicone industrial, quais os cuidados básicos necessários nesse tipo de procedimento (higiene, repouso, agulhas e seringas descartáveis etc.) e, depois da aplicação, acompanhar, por meio de exames, possíveis reações à substância. O que se observa é, primariamente, o trabalho de controle das práticas corporais das travestis e transexuais vinculando a sua existência a um risco constante (PELÚCIO, 2007), risco que torna essas pessoas objeto de governo por meio de variadas normas e regulamentações sobre o que é ou não saudável. Esse governo dá-se a partir do modelo biomédico, que opera mediante a antecipação e gestão probabilística do futuro (SPINK, 2011).

As participantes do nosso estudo conhecem os riscos envolvidos na aplicação do silicone, mas isso não impede o seu uso ou o planejamento da aplicação. A escolha e a recusa de certos procedimentos dentro e fora das agências oficiais de saúde mostram a complexidade dos itinerários terapêuticos6 entre travestis e transexuais. Para elas, os seus corpos precisam ganhar contornos femininos, independente da dor, dos riscos, do incômodo, como argumenta a travesti P.:

[P.] Às vezes eu tenho vontade de aplicar silicone, fazer quadril. [Pesquisadora] Mas você já viu alguma aplicação? [P.] Não. Eu vi em um filme uma vez. Mas eu não tenho coragem de acompanhar não, porque aí é que eu não tenho coragem de colocar mesmo. Eu tenho uma amiga que tem oito litros de silicone industrial, distribuídos na bunda, quadril e rosto. [Pesquisadora] Peito também? [P.] Não. Peito é prótese. [Pesquisadora] E qual a aparência? Como ela ficou? [P.] LINDA! Mas ela é um exemplo que deu certo. Quando a conheci ela já tinha quatro (litros de silicone), hoje ela tem oito. A pessoa fica querendo retocar, não ficou muito arredondado e vai aplicando mais. É um vício [grifos nossos].

Não é qualquer feminilidade que as travestis e transexuais buscam; elas desejam ser belas e lindas, alvo de admiração, inspirando-se, muitas vezes, nas celebridades da indústria cultural. É a partir de um modelo idealizado de feminino que elas decidem a quantidade de silicone e onde vão aplicar o produto. Umas buscam seios maiores, outras desejam mais quadril e bumbum e é nesse processo que mulheres diferentes vão sendo esculpidas. O corpo torna-se um lugar de questionamento das normas sexuais, como também de reiteramento de um padrão de feminilidade. A materialidade do gênero/sexo escolhido por elas se produz nas práticas cotidianas. Sem a sua expressão, ele não existe.

Hormônio e automedicação: disputa de saberes

[R.] Nunca fiz cirurgia, isso tudo é só por conta de hormônio. Eu comecei a tomar hormônio tá com cinco meses, vou entrar para o sexto mês agora de terapia hormonal... Eu tomo dois tipos de hormônio, eu tomo o Diane 35,7 que é em comprimido, tomo dois comprimidos por dia. [Pesquisadora] O que você viu de diferente? [R.] Eu vi de diferente, meu seio cresceu muito. Eu tô há um mês sem tomar um comprimido, sem tomar nada. E eu senti que meu seio diminuiu, então são para a gente tomar direto, direto, direto. Eu notei hoje que meu seio tinha diminuído, quando eu fui colocar o sutiã. No começo eu vi muita diferença, o pelo facial, que é chamado de barba, diminuiu muito o crescimento, o pelo em si diminui muito o crescimento, mas não é uma coisa da noite para o dia. Como eu te disse, cada corpo reage de um jeito diferente, o que é bom para mim pode não ser bom para outra trans. Por isso eu fui tomando de pouquinho em pouquinho, para ver ser eu tinha alguma reação, alguma coisa. Graças a Deus eu nunca senti nada com nenhum comprimido que eu tenha tomado até hoje.

O discurso a respeito da importância dos hormônios para produzir um corpo cada vez mais feminino foi um elemento constante na fala das travestis e transexuais ouvidas. Essas substâncias eram referidas como elementos “mágicos”, a “chave da felicidade”, produtores de milagre, pois faziam crescer seios, arredondar quadril, pernas e rosto, diminuir pelos, isto é, produziam marcas corporais que, na nossa sociedade, estão relacionadas ao campo da feminilidade. A regulação desse uso é controlada pelas próprias travestis e transexuais, que, conversando entre si, decidem qual a melhor medicação e a frequência do seu uso. Quando o assunto é hormônio, elas não param de falar, conhecem uma infinidade de marcas, composições, preços, dosagens e finalidades.

Todas as travestis e transexuais ouvidas iniciaram o processo de mudança corporal usando hormônio, já que é uma substância de fácil acesso e produz diversos efeitos. “Eu comecei com hormônio, sempre começa com hormônio”, relata L. sobre o primeiro procedimento de feminilização que realizou. O hormônio pode ser de uso oral ou injetável; estes últimos, segundo elas, são os mais procurados por produzirem resultados mais rapidamente. Há também uma combinação de fórmulas, na qual se reúnem, em geral, dois fármacos, um hormônio feminino e um antiandrógeno, às vezes usados de forma alternada ou simultaneamente. Não há uma prescrição única, “vai da loucura de cada uma”, como comenta P., mas a recomendação das travestis e transexuais é que nunca seja em dosagens pequenas:

[L.] A gente tem meio que umas formulazinhas. Cada uma diz uma fórmula, e a gente vai tentando... [Pesquisadora] Era injetável ou comprimido? [L.] Era de todas as formas (risos). Não tem uma coisa meio que certa, não. Umas dizem que a gente tem que tomar umas 5 Perlutan, outras já dizem que a gente tem que tomar 5 comprimidos de anticoncepcional. Tudo é sempre de muito. [Pesquisadora] Nada de um por dia? [L.] Nada de um por dia! (risos) Senão, não serve para nada. Nem negócio de injeção de uma por mês. Tinha uma que dizia uma história de tomar as cinco (injeções) em um dia. Eu nunca tive coragem de fazer. Aí eu tomava uma por semana. [Pesquisadora] Por que você parou? [L.] Assim, depois dessa última vez que eu tomei... Ele não é hormônio, é como se fosse... uma castração química, ele não é hormônio feminino, é o Androcur.8 Então ele tira o seu hormônio masculino, ele diminui a produção de hormônio masculino e você toma o hormônio feminino. Eu parei porque ele é caro, né? Pra você manter, ele é caro. Ele dá muita perturbação na sua cabeça.

As travestis e transexuais entrevistadas negociam com o saber biomédico, forjando itinerários singulares na busca de cuidado e bem-estar, evitando, muitas vezes, os serviços públicos de saúde, precários e hostis, e voltando-se para outros espaços e práticas alternativas (Martha Helena Teixeira de SOUZA; Marcos Claudio SIGNORELLI; Denise Martin COVIELLO; Pedro Paulo Gomes PEREIRA, 2014).9 O saber biomédico regula a presença e as taxas de hormônios instituindo quem pode e como deve administrar essas substâncias para construir corpos femininos. O que se observa, porém, é que há uma disputa entre os saberes dos profissionais da saúde e as experiências particulares que cada uma tem com essa substância. Mesmo quando elas têm a oportunidade de seguir orientações médicas sobre o uso do hormônio, como no caso das usuárias do ambulatório, essas orientações são recusadas e, frequentemente, subvertidas. Os médicos do hospital informam ironicamente que a maioria das usuárias já toma hormônio quando chega ao serviço com a orientação especializada do “Dr. Google”. Entretanto, mesmo após as consultas médicas e apesar do alerta do endocrinologista sobre o perigo da automedicação em alta dosagem e o risco de câncer, elas continuam com as mesmas práticas.

A prescrição médica, apesar de “segura”, é realizada sempre de forma gradual, o que provoca efeitos de forma mais lenta, algo pouco interessante para quem têm urgência em mudar o corpo. I. sempre é consultada por outras usuárias sobre o uso de hormônio por sua experiência e sucesso com a substância. I., que buscou durante muito tempo consultar-se com um endocrinologista que atendesse a transexuais a fim de realizar a terapia hormonal de modo “seguro” e “correto”, admite que hoje não segue mais a prescrição do médico, pois ele não receita dosagens maiores.

A tensão entre os saberes e práticas das travestis e transexuais e os dos profissionais de saúde é patente. Através de substâncias que, antes, eram exclusivas de um corpo e que agora podem ser trocadas, compradas e administradas artificialmente, o sexo/gênero pode ser pirateado (Beatriz PRECIADO, 2008).10 Dolores GALINDO e Ricardo Pimentel MÉLLO (2010) adotam a noção para as práticas que

visam não apenas personalizar o corpo por meio de novos aditivos, mas desterritorializá-lo, não o subordinando às configurações anatômicas que se autodeterminam e às prescrições médicas quanto ao emprego de tecnologias de produção de corpos (p. 243).

O emprego dos hormônios por travestis brasileiras em desobediência aos protocolos médicos é assinalado pelos autores como exemplo.

As entrevistadas pirateiam o gênero, não por produzirem uma versão falsa do feminino, mas por administrarem substâncias (ou regimes de medicação) que lhes são interditadas. Os hormônios, o silicone industrial e uma série de outras substâncias são alguns dos tecnofármacos que estão envolvidos no processo de subjetivação de travestis e transexuais e, consequentemente, no modo como elas compreendem a produção de saúde. As práticas envolvidas na produção de um corpo feminino muitas vezes são construídas pelo saber biomédico como nocivas e perigosas, regulando-as e proibindo-as. Se esse movimento restringe a autonomia e liberdade das travestis e transexuais, posicionando-as sob a tutela dos profissionais da saúde, também lhes oferece tecnofármacos que são usados de forma não convencional, levando-as a borrar as fronteiras do gênero e os modelos canônicos de cuidado.

Considerações finais

A saúde para transexuais e travestis está intimamente ligada às possibilidades de moldar um corpo feminino. Na construção desse corpo, elas percorrem itinerários de cuidado que tendem a contrariar os saberes e tecnologias biomédicas e seus modelos normativos de saúde/doença e homem/mulher. Para contornar os obstáculos à construção dos corpos femininos desejados, obstáculos esses impostos por ações em saúde regidas por uma lógica binária e excludente, travestis e transexuais desenvolvem estratégias para produzir, de forma alternativa, sua saúde, beleza e bem-estar físico e psicológico.

Tais itinerários extrapolam o monopólio da saúde das agências de saúde oficiais, alargando o espectro de conhecimentos, locais e práticas possíveis de saúde. Também questionam e subvertem os direitos que os agentes de saúde têm de regular e interditar medicamentos, procedimentos e outros dispositivos necessários à manutenção e transformação dos seus corpos.

Daí, pensar a saúde entre travestis e transexuais exige que se observem os múltiplos elementos materiais e simbólicos que compõem a rede de cuidados em que se engajam de forma individual e coletiva. Esses elementos definem um campo de possibilidades circunscrito histórica e culturalmente, mas que abre horizontes de escolha e autonomia para esses sujeitos. Sua resistência às normas possibilita a criação de novas corporeidades, subjetividades e sociabilidades. O domínio da abjeção pode se tornar um terreno de potência criativa. Aqueles que foram marcados pela vergonha se apropriam dessa vivência como manifestação política e projeto de vida.

Esta pesquisa sublinha a necessidade de superar a ordem binária que ainda cinde, na prática, as políticas públicas de saúde, malgrado as iniciativas para atender às demandas do público LGBTT. Análises das estratégias, modos de vida e projetos de travestis e transexuais para promover suas modificações corporais - centro de seu prazer e também de sua aflição - podem subsidiar melhorias na organização de serviços de saúde e gestão para esse público e a materialização dos princípios de universalidade, equidade e integralidade do SUS.

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  • 2
    As categorias travestis e transexuais são mais centrais no debate que se trava no Brasil; no fim dos anos 1990, o léxico “transgênero” não foi bem aceito pela militância LGBTT. Apesar das fronteiras maleáveis entre essas duas categorias, o próprio movimento social tem se posicionado a favor da manutenção das diferenças, reivindicando o reconhecimento da identidade travesti pelas políticas públicas, como ocorreu no 16º Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (ENTLAIDS), em 2009 (ÁVILA, 2012).
  • 3
    Como mostram, como exemplos, Barbosa (2010); Fernanda CARDOSO (2009).
  • 4
    Observação semelhante foi feita por Berenice BENTO (2006), ao constatar, em pesquisa com mulheres transexuais, que o ambiente hospitalar vinculava sua figura à equipe médica e levava à atualização das representações sociais de masculino/feminino pelas usuárias. Bento opta, então, por espaços de entrevista alternativos a fim de “notar as fissuras, as contradições entre as idealizações e as performances” (p. 30).
  • 5
    Bombadeiras são, geralmente, travestis mais velhas que fazem aplicação de silicone industrial no corpo de outras travestis para tornar o corpo mais arredondado, mais feminino. O silicone pode ser aplicado em diferentes partes do corpo. Para maiores detalhes, consultar Pelúcio (2007), que descreve todo o processo de bombação que acompanhou durante sua pesquisa de doutorado.
  • 6
    Na literatura socioantropológica, itinerários terapêuticos referem-se aos “processos pelos quais os indivíduos ou grupos sociais escolhem, avaliam e aderem (ou não) a determinadas formas de tratamento” (Paulo César B. ALVES e Iara Maria A. SOUZA, 1999, p. 125).
  • 7
    Diane 35 é um anticoncepcional de uso oral indicado para o tratamento de distúrbios andrógeno-dependentes na mulher, alopecia androgênica (calvície), casos leves de hirsutismo (aumento de pelos) e síndrome do ovário policístico (http://www.medicinanet.com.br/bula). Recentemente, foi alvo de polêmica após a morte de mulheres que utilizavam a medicação e desenvolveram trombose e embolia pulmonar.
  • 8
    O Androcur é um produto hormonal de efeito antiandrogênico, prescrito para homens e mulheres. Nos homens, é indicado para redução do impulso sexual em desvios dessa natureza e tratamento contra carcinoma de próstata inoperável. Nas mulheres, em casos de manifestações graves de androgenização, como hirsutismo ou queda de cabelo patológicos (http://www.medicinanet.com.br/bula).
  • 9
    Os autores mostram como as travestis entrevistadas, além da automedicação e da bombação, também elegem a rede particular, suas casas, os locais de prostituição, as casas de santo e rituais afro-brasileiros como estratégias de saúde, proteção e bem-estar.
  • 10
    A noção de pirataria de gênero (tradução da expressão gender hackers, usada por Preciado) alude a processos de mudança nos usos e circulação de conhecimentos, artefatos e tecnologias referentes ao gênero, cujos direitos de propriedade intelectual e tecnológica passam a ser questionados e recusados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2015
  • Revisado
    15 Ago 2016
  • Aceito
    29 Ago 2016
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