Open-access Feminismos Transnacionais: saberes e estéticas pós/descoloniais

Transnational Feminisms: Knowledge and Aesthetic Post/Decolonial

Disseminado por territórios diversos e disperso para além de fronteiras geográficas e políticas, o feminismo assume, na contemporaneidade, feição marcadamente plural, transnacional, profundamente implicada nos movimentos e fluxos de pessoas e nas redes de saberes e práticas construídas como formas de resistência e sobrevivência aos assaltos dos poderosos do mundo. Tal percepção dos rumos atuais do feminismo implica perceber o quanto o movimento tem se reinventado e se fortalecido através de percursos que cruzam os espaços globais em sentidos que superam a tradição Norte-Sul, redesenhando-se em rotas Sul-Sul, Sul-Norte, e também em novas e imprevistas configurações e sentidos. Como sugere Sandra G. Almeida (2011),

partindo das espacialidades contemporâneas como categorias imperiosas na atualidade devido às novas contingências geopolíticas, pode-se mapear, sob uma perspectiva de gênero, as representações e construções das mulheres nesses novos espaços geopolíticos, culturais e socioeconômicos (p. 247).

Podemos afirmar que a grande contribuição feminista ao pensamento contemporâneo tem sido, por um lado, a desconstrução dos paradigmas etnocêntricos do sistema moderno-colonial-patriarcal (Maria LUGONES, 2008, p. 16) em que fomos formados, e, por outro lado, a proposição de sistemas outros de saber-poder que descortinam possibilidades de novos agenciamentos políticos e de construção de epistemologias heterodoxas e não hegemônicas.

Buscando interpretar as muitas formas (em linguagens e narrativas diversas, literárias, visuais, pictóricas, performáticas, fílmicas, musicais etc.) através das quais mulheres de diferentes lugares têm construído intervenções feministas, a presente Seção Temática que organizamos tendo por base o Simpósio que teve lugar no Fazendo Gênero 11/ 13º Mundos de Mulheres - realizado em agosto de 2017, na Universidade Federal de Santa Catarina - propõe a discussão de práticas estéticas e políticas que se somam para compor este amplo mosaico de discursos, os quais têm vindo a constituir uma das mais significativas contribuições para a construção de epistemologias em perspectiva pós e descolonial.

Realizada a discussão no Simpósio, percebemos que estávamos diante de um singular encontro de leituras do contemporâneo que nos ofereciam um incomum conjunto de reflexões, as quais, através de abordagens muito diversas, partilhavam preocupações e projetos para o feminismo. Foi então que decidimos que esse encontro, tão produtivo, merecia ser compartilhado com um número maior de leitoras/es, através da Revista Estudos Feministas. No contexto deste debate, pretendemos construir um largo painel das principais práticas, tendências, preocupações e proposições envolvidas nos trabalhos feministas em diferentes linguagens estéticas a partir de diferentes lugares e de diferentes posições subjetivas e políticas.

A seguir, esboçamos alguns comentários iniciais sobre os artigos que compõem esta Seção Temática.

Caroline Betemps, no texto “Feminismos transnacionais descoloniais. Algumas questões em torno da colonialidade nos feminismos”, afirma que os feminismos latino-americanos encarnaram desde meados dos anos 90 uma discussão sobre suas possibilidades de ação que questionava o fato de que muitos projetos feitos por feministas ocidentais fossem levados a cabo com uma noção subjacente de ‘cidadania universal’ para as ‘mulheres do terceiro mundo’. Contudo, segundo a autora, apesar do predomínio deste feminismo hegemônico, outras reflexões e alinhamentos divergentes surgiram nos últimos anos, transformando-se estes numa produção crescente de conhecimento teórico local, bem como de contranarrativas produzidas por grupos feministas anti- ou descoloniais, de luta antirracista e anticapitalista. A questão que a autora coloca é quanto ao modo de estabelecer um debate equitativo entre os diferentes feminismos norte-sul, seus diálogos e fricções, sem reproduzir a violência colonial, mas antes construindo um diálogo efetivo capaz de evitar a repetição da colonialidade.

Catarina Isabel Martins, em “Corpos nus de mulheres negras: eixos poéticos e políticos da escrita de mulheres africanas lusófonas”, defende que nos países africanos o poder colonial encontrou nos corpos nus das mulheres negras um instrumento axial para o exercício material e simbólico da apropriação e violência. Neste contexto, segundo a autora, as corporalidades eram “discursivamente construídas para legitimar uma ordem social codificada por gênero e raça”; por sua vez, nos projetos anticoloniais, os corpos nus de mulheres negras continuam a ser utilizados como “um instrumento discursivo fundamental de um poder que agora é negro, mas permanece masculino e patriarcal, e que igualmente os objetifica, domina, expropria, controla e violenta”. A autora propõe-se, assim, a considerar os modos e estratégias identitárias, artísticas e discursivas através dos quais as mulheres negras contestam e resistem a esta “expropriação” dos seus corpos e da cor da sua pele.

No artigo “O racismo, a moda, e a diversificação dos padrões de beleza: o exemplo de Iman, top model Somali dos anos 70/ 80”, Joana Filipa Passos afirma que muito do trabalho desenvolvido por pensadoras feministas dos anos 70 aos anos 90 teve por objetivo denunciar a forma como a sociedade patriarcal não respondia às várias necessidades das mulheres nela inseridas. Segundo a autora, nos anos 90 o debate feminista diversificou-se em termos geopolíticos, incluindo questões de raça, religião e multiculturalismo, promovendo visões alternativas e diferentes modelos de gênero. Focando particularmente o mundo da moda, a autora apresenta um estudo de caso incidindo na carreira internacional de Iman, a modelo Somali que se tornou uma das estrelas da casa Yves Saint Laurent nos anos 70/80, como “uma história de superação de padrões racistas na moda”, evidenciando a sua estratégia de visibilização da raça e a promoção de um discurso alternativo e resiliente face aos padrões hegemônicos do mundo da moda no tocante a padrões de beleza ocidentais.

Larissa Lisboa Souza, no artigo “Narrar o trauma nas diásporas: Doenças e suas metáforas nas literaturas de autoria feminina do Zimbábue”, propõe-se a analisar o processo de desterritorialização dos sujeitos africanos que vivenciam a diáspora, com base em três textos de autoria feminina oriundos da República do Zimbábue: Nervous Conditions (DANGAREMBGA, 1988), Zenzele, uma carta para minha filha (MARAIRE, 1996) e Precisamos de Novos Nomes (BULAWAYO, 2014). A sua discussão destas narrativas evidencia o modo como as vivências das personagens femininas destes romances resultaram em traumas, tanto psicológicos quanto físicos, e debate as suas respectivas estratégias de superação.

Leila Harris, em “Desvelando afinidades através das diferenças: saberes e estéticas pós/descoloniais”, sustenta que “o feminismo multicultural é uma prática situada, na qual histórias e comunidades estão mutuamente co-implicadas e constitutivamente relacionadas, abertas a uma iluminação mútua” (SHOHAT, 2004). Ancorando a sua análise em conceitos de “relacionalidade, de posicionamento dos discursos e das interseccionalidades de opressões”, a autora propõe-se a questionar as práticas e estéticas políticas adotadas por mulheres de lugares geográficos e sociais diversos, cuja produção artística promove possibilidades de “novos agenciamentos políticos” e de “epistemologias heterodoxas e não hegemônicas”.

Lízia Carvalho e Nídia Bustillos, em “Comunicadoras Indígenas e Afrodescendentes Latino-Americanas: Sororidade e Identidades”, propõem-se a “relacionar mobilizações e narrativas de comunicadoras indígenas sob o olhar do feminismo decolonial”, focando em particular as ações comunicativas de mulheres indígenas do México e da América Central e o modo como estas “contribuem para que sua participação política se entrelace com os esforços de efetivação dos direitos humanos”. As autoras discutem a utilização de hipermídias e redes sociais pelas mulheres latino-americanas incidindo sobre a importância destes media para a construção e conquista de espaços de empoderamento, mobilização social e política.

Em “Autoria feminina na literatura pós-colonial italiana: um projeto feminista”, Márcia de Almeida investiga a recente produção literária pós-colonial italiana, particularmente aquela que se empenha em representar as experiências de imigrantes oriundos dos países africanos que sofreram ação colonizadora por parte da Itália. Essa literatura, como Márcia de Almeida defende, tem dado espaço ao protagonismo feminino tanto na visibilidade conquistada pelas escritoras como na representação das trajetórias vividas pelas mulheres africanas (ou de origem africana) que vivem, na Itália, os embates de sua condição de imigrantes, além de enfrentarem situações de racismo e outros desafios definidos pelo gênero. Com o intuito de apresentar os projetos literários dessas autoras como estratégias feministas de representação de suas experiências, e também de nos fazer conhecer a demanda de visibilização e representatividade que subjaz a esses projetos, Almeida vai nos trazer sua instigante leitura dos trabalhos de Gabriella Ghermandi, Cristina Ubax Ali Farah e Igiaba Scego.

Márcia Oliveira, no texto “Da palavra ao fio: as tessituras fluidas de Cecília Vicuña”, partindo do livro La Realidade es una línea (1994), da poeta e artista chilena Cecília Vicuña, discute “uma das mais poderosas metáforas que atravessa toda a sua obra visual e poética: a confluência entre fio (objeto) e linha (representação), que urdem um tecido complexo feito de experiências e questionamentos que atravessam geografias e gêneros artísticos”. A autora propõe-se a explorar o modo como a tecelagem, expressão artística privilegiada por Vicuña, e a sua confluência com a palavra, o som e a imagem, se transforma num “lugar de desterritorialização e fluidez” e, simultaneamente, numa prática dissidente de construção de um devir.

Priscilla Figueiredo, em “A narradora descolonial: uma leitura de The Distant Marvels, de Chantel Acevedo”, analisa a questão do narrador à luz da argumentação de Maria Lugones em “Rumo a um feminismo descolonial” (2014), e em contraponto com as teorias formuladas por Walter Benjamin quanto à “morte anunciada” da figura do narrador tal como a conhecemos. Segundo a autora, em The Distant Marvels (2015), a escritora cubana-americana Chantel Acevedo constrói uma protagonista que é a representação literária de um narrador que reúne em si as características benjaminianas e que é, assim, capaz de transmitir experiência. A autora propõe-nos uma leitura deste romance a partir do viés da descolonialidade, indagando acerca das potencialidades da intervenção estética feminista para a construção de novas epistemologias.

Por sua vez, Ana Gabriela Macedo, no ensaio “As narrativas de Mona Hatoum e o efeito de ‘contraponto’: des-emoldurando o doméstico enquanto performatividade e gesto político”, propõe-se a focar aspectos vários da poética visual e narrativa da artista palestina Mona Hatoum, à luz do conceito de “contraponto”, de Edward Said, e da sua interrogação das fronteiras do público e do privado. A desfamiliarização do espaço doméstico e dos objetos supostamente “banais” do quotidiano propostos pela artista na sua obra, as suas narrativas de des-figuração e des-emolduramento performativo são aqui analisadas enquanto metáfora de estranhamento emocional e despaisamento social e político em tempos de exílio e migrações. Em simultâneo, a autora apresenta uma reflexão em torno dos novos desafios que o Feminismo como movimento emancipatório e pensamento crítico resiliente enfrenta hoje, num contexto transnacional.

Finalizando a série de artigos, Simone Pereira Schmidt, em texto intitulado “Mulheres, negritude e a construção de uma modernidade transnacional”, propõe uma reflexão sobre projetos estéticos que apontam para a perspectiva de feminismos transnacionais, a partir de formas criativas contemporâneas de releitura e ressignificação do conceito de negritude. Escolhendo analisar particularmente a obra poética da moçambicana Noémia de Sousa, e da cantora e compositora brasileira Luedji Luna, a autora busca investigar as possibilidades de um diálogo entre vozes poéticas situadas em tempos e lugares diversos, mas potencialmente capazes de criar redes que traduzem e põem em contato “experiências diversas do que significava - ou do que significa ainda hoje - ser mulher e negra”. Com esse intuito, Simone Schmidt busca, em suas próprias palavras, “compor quadros, ensaiar algumas breves cenas daquilo que considera o gesto revolucionário de se pôr em contato, de dialogar com o outro e, em especial, com a outra”.

Por fim, não poderíamos deixar de manifestar nossa profunda gratidão ao empenho generoso e altamente profissional com que Geovana Quinalha de Oliveira se prontificou a colaborar na preparação dos textos para esta Seção Temática.

Diante de um conjunto de textos rico e diverso como este que nos apresentam as autoras, abordando, a partir de diferentes perspectivas, as questões implicadas e as demandas propostas pelos feminismos contemporâneos, nos resta apenas desejar que sua leitura seja, para todas e todos, tão proveitosa como foi, para nós, a sua discussão.

Referências

  • ALMEIDA, Sandra G. “Exílios e diásporas: cartografias de gênero na contemporaneidade”. In: RIAL, Carmen et al (org.). Diásporas, mobilidades e migrações Florianópolis: Mulheres, 2011. p. 239-256.
  • LUGONES, Maria. “Colonialidad y género: hacia un feminismo descolonial”. In: MIGNOLO, Walter (org.). Género y descolonialidad Buenos Aires: Del Sino, 2008. p. 13-54.

Notas de autor

Simone Pereira Schmidt

Doutorado em Teoria Literária pela PUC-RS

Fez Pós-Doutoramento em Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa (2005) e em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na UFF (2012). Professora Associada da UFSC, exerce docência e orientação no Curso de Letras-Português e no Programa de Pós-Graduação em Literaturas da UFSC. É pesquisadora do CNPq vinculada ao Literatual/UFSC (Núcleo de Pesquisa em Literatura Atual - Estudos Feministas e Pós-Coloniais de Narrativas da Contemporaneidade), ao IEG/UFSC (Instituto de Estudos de Gênero), ao GT “A Mulher na Literatura”, da ANPOLL, e ao Grupo de Pesquisa “Perspectivas pós-coloniais: literaturas e culturas em língua portuguesa” (UFF-CNPq). Atua nas áreas de estudos feministas e pós-coloniais, desenvolvendo pesquisa sobre “Escritoras africanas e a construção de um pensamento ao Sul”.

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Ana Gabriela Vilela Pereira de Macedo

Doutoramento em Literatura Inglesa pela Universidade do Minho

Professora Catedrática da Universidade do Minho. Ph.D. pela Universidade de Sussex (UK). Coordenadora do Programa Doutoral “Modernidades Comparadas. Literaturas, Artes e Culturas”. Coordenadora do grupo de pesquisa em “Género, Artes e Estudos Pós-Coloniais” (GAPS) do Centro de Estudos Humanísticos da UMinho. Áreas de investigação: Literatura Comparada, poéticas visuais e interartes, estudos feministas e de género. Projecto atual: Framing/Unframing, Resisting. Ways of ‘seeing differently’. Women and Gender in Contemporary art and literature.

Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas

Campus de Gualtar

4710-057 - Braga - Portugal

00351-253601100

gcii@reitoria.uminho.pt

gabrielam@ilch.uminho.pt

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista

SCHMIDT, Simone Pereira; MACEDO, Ana Gabriela. “Feminismos Transnacionais: saberes e estéticas pós/descoloniais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 1, e58959, 2019.

Contribuição de autoria

Ana Gabriela Vilela Pereira de Macedo - Elaboração do manuscrito, revisão e aprovação da versão final do trabalho.

Simone Pereira Schmidt - Elaboração do manuscrito, revisão e aprovação da versão final do trabalho.

Financiamento

Não se aplica

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa

Não se aplica

Conflito de interesses

Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2018
  • Aceito
    07 Set 2018
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