Resumo:
Neste artigo, busca-se analisar a produção do sujeito político feminista no contexto da cidade de Porto Alegre, a partir das trajetórias de personagens que fizeram parte de um momento político: o “racha” da Marcha das Vadias, em 2014. Trata-se de um estudo qualitativo, para o qual foram realizadas sete entrevistas etnográficas, com ênfase na narrativa biográfica. As trajetórias analisadas, partindo das experiências, apontam para identificações com os feminismos de forma plural, sendo possível compreender de que modo a identidade política feminista se intersecciona com marcadores sociais da diferença como classe social, raça, geração e identidade de gênero. Esse estudo possibilita a visibilização de um conflito potente para a construção e pluralidade dos feminismos contemporâneos.
Palavras-chave:
feminismos; marcadores sociais da diferença; trajetórias; experiência; interseccionalidades
Abstract:
The aim of this study was to analyses the formation of the political subject of feminism in Porto Alegre city, through life paths of the characters that made part of a political moment: the breakdown of the 2014 SlutWalk. This was a qualitative study in which seven ethnographic interviews were made with emphasis in the biographic narrative. The analyzed life paths, which come from experience, indicated recognition with feminisms in a plural way. It was possible to understand which way the political feminist identity intersect with social markers of difference, such as social class, race, generation and gender identity. This study could give visibility to a conflict that is powerful to the construction and plurality of contemporary feminisms.
Keywords:
Feminisms; Social Markers of Difference; Life Paths; Experiences; Intersectionalities
Introdução: Marcha das Vadias enquanto um cenário dos feminismos contemporâneos
A Marcha das Vadias (Slutwalk) teve início em janeiro de 2011, na cidade de Toronto, Canadá, quando, após diversos casos de estupro, um policial responsável por orientar a comunidade sobre segurança “aconselhou” as mulheres a não se vestirem como sluts (vadias, em inglês), a fim de evitar que fossem estupradas. A partir desse posicionamento, a Slutwalk foi organizada por universitárias que propuseram a marcha contra a culpabilização das vítimas de estupro, a criminalização da sexualidade feminina e, ainda, a favor da liberdade das mulheres na escolha do quê e como se vestir, conforme apontam Mariana Passos Dutra e Tiago de Garcia Nunes (2015DUTRA, Mariana Passos; NUNES, Tiago de Garcia. “A Marcha das Vadias como redes de movimentos e significados”. Revista Prolegómenos Derechos y Valores, Bogotá, v. XVIII, n. 36, p. 153-168, 2015.). No Brasil, a primeira marcha ocorreu na cidade de São Paulo, no dia 4 de junho de 2011, reunindo cerca de 300 pessoas, com o lema central inspirado no fato ocorrido no Canadá (Raphael SASSAKI, 2011SASSAKI, Raphael. Marcha das Vadias leva 300 pessoas a av. Paulista, “Cotidiano”, Folha de S. Paulo, 04/06/2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/925522-marcha-das-vadias-leva-300-pessoas-para-a-av-paulista.shtml.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/9...
). Em Porto Alegre, a primeira edição foi também em 2011.
Ainda que com uma reivindicação específica, o movimento da Marcha das Vadias não pode ser analisado isoladamente, descolado de um momento político global em que emergiram manifestações, em diferentes lugares do mundo, com características que se aproximam. Uma delas foi a Primavera Árabe, que a partir de janeiro de 2011, na Tunísia, Egito, no norte da África e em outros países do oriente médio, inaugurou uma onda de protestos que foi responsável por derrubar três ditaduras existentes há décadas na região, fazendo o uso, de forma constante, das redes sociais para a divulgação dos fatos, como afirma Gustavo Chaves Lopes (2013LOPES, Gustavo Chaves. “As redes sociais e os novos fluxos de agendamento: uma análise da cobertura da Al Jazeera sobre a Primavera Árabe”. Palabra Clave, Chia, v. 16, n. 3, dez. 2013.). Anos mais tarde, em 2013, no Brasil, destaca-se a emergência das “Jornadas de Junho”, organizadas em torno da luta contra o aumento das passagens de ônibus. Tais jornadas, para Cassio Brancaleone e Daniel DE Bem (2014BRANCALEONE, Cassio; DE BEM, Daniel. As rebeliões da tarifa e as jornadas de junho no Brasil. Porto Alegre: Deriva, 2014.), caracterizaram-se por não apresentarem, necessariamente, ligação com organizações e partidos políticos, pela ausência da identificação de líderes, pela maciça participação de pessoas, e, ainda, pelo uso das redes sociais.
Neste artigo, a análise recai sobre a Marcha das Vadias de Porto Alegre, a qual aconteceu anualmente na cidade, desde 2011 até 2015. Em cada edição diferentes pautas foram discutidas, todas tendo como foco os feminismos, sendo que todas seguiram rota única por locais centrais na cidade. No dia 27 de abril de 2014, nos Arcos da Redenção, aconteceu sua quarta edição, a qual se desenvolveu a partir de dois trajetos distintos, demarcando uma ruptura no movimento. Tal ruptura se constituiu como um fato político, no qual foram visibilizadas algumas das disputas que remetem a tensões presentes no cenário feminista contemporâneo na cidade. O momento do “racha” é tomado, aqui, como instante paradigmático de um momento político que deflagra uma série de conflitos, identidades e identificações. Neste artigo, que se trata de um recorte de uma pesquisa maior,1 1 Trata-se da dissertação de mestrado “Marcha das Vadias: Entre tensões, dissidências e rupturas dos feminismos contemporâneos”, da autora Daniela Dalbosco Dell’Aglio (2016), sendo a segunda autora a orientadora deste trabalho. serão apresentadas as trajetórias de algumas das personagens envolvidas nessa cena. Para isso, foram realizadas sete entrevistas, a partir das quais analisamos a produção do sujeito político feminista, discutindo como suas identificações feministas se articulam a suas experiências ao longo das trajetórias de vida e a marcadores sociais da diferença.2 2 Entende-se que os marcadores da diferença não são variáveis independentes, mas se enfeixam de maneira que um eixo de diferenciação constitui o outro ao mesmo tempo em que é constituído pelos demais. Esse pensamento está atravessado ao que podemos chamar de “feminismo das diferenças”, vertente teórica que surge nos Estados Unidos ao longo dos anos 1980 como uma crítica ao feminismo vigente, conforme proposto por Larissa PELÚCIO (2011).
Sujeito dos feminismos em disputa
Partimos do entendimento teórico-político de que feminismo existe sempre no plural, portanto, feminismos. Para a feminista latino-americana Sônia Alvarez (1998ALVAREZ, Sônia. Feminismos Latino-Americanos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 265, jan. 1998.), o feminismo pode ser entendido não como um movimento unificado, mas sim como um campo discursivo de ação que, por ser amplo e heterogêneo, não se limitaria a grupos ou organizações que se nominam feministas. Devido a isso, podemos supor que o feminismo está marcado por multiplicidades e diversidades internas, o que pode gerar questionamentos, dissidências, tensões e rupturas. É possível observar esses conflitos tanto teoricamente, nas disputas epistemológicas, quanto nas disputas do cotidiano da prática política. Aqui, não se parte da concepção de que o feminismo constitui um bloco monolítico e homogêneo. A partir dessa premissa, os conflitos, como apontado por Marta Cabrera e Liliana Vargas (2014CABRERA, Marta; VARGAS, Liliana. “Transfeminismo, decolonialidad y el asunto del conocimiento: inflexiones de los feminismos disidentes contemporáneos”. Universitas Humanística, Bogotá, v. 78, p. 19-37, jan. 2014. ), podem dar evidência às multiplicidades de projetos e às perguntas que respondem às tensões políticas e complexidades teóricas, abrindo novas dimensões, em um processo sempre inacabado, portanto, de definições sobre os feminismos.
Em alguns contextos, tais disputas podem ser vistas enquanto uma oposição ou como uma contradição que ainda não se resolveu. Aqui, contudo, é tomada enquanto um paradoxo, no qual as próprias disputas são tidas como parte do processo do que estamos chamando de feminismos contemporâneos. Donna Haraway (2000HARAWAY, Donna. “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari e TADEU, Tomaz (Orgs.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 33-118.) indica o quanto esse procedimento denota certa ironia relacionada com a tensão de manter juntas coisas incompatíveis, uma vez que todas as diferentes perspectivas, localizadas em suas particularidades contextuais, seriam necessárias e verdadeiras. A autora pontua que um motivo para certas disputas nas práticas políticas é a prerrogativa de que existiria a necessidade de uma unidade entre as pessoas que estão tentando resistir. Nesse caso, uma unidade do sujeito do feminismo. Ao longo da história feminista tradicionalmente registrada por “ondas”, houve tentativas de construir um sujeito universal, uma identidade que representaria o que é o feminismo, a quem ele serve e representa.
A perspectiva interseccional, de acordo com Avtar Brah e Ann Phoenix (2004BRAH, Avtar; PHOENIX, Ann. “Ain’t I A Woman? Revisiting Intersectionality”. Journal of International Women’s Studies, v. 5, n. 3, p. 75-86, 2004.), propõe que sejam considerados os efeitos variados nos quais os múltiplos eixos de diferenciação se articulam em contextos historicamente específicos. Dessa forma, o significado de “mulher”, dentro do debate da interseccionalidade, deve levar em conta fatores econômicos, políticos, culturais, físicos, subjetivos e de experiência. Parte-se do pressuposto de que a busca de uma unidade no “ser mulher” no feminismo acaba por excluir corpos desviantes de um padrão instituído culturalmente, ou seja, os corpos não normativos, bem como acaba por produzir apagamentos em relação a possíveis violências dentro do próprio campo do “ser mulher” em função de outras violências que as mulheres podem sofrer, como aquelas relacionadas ao sexo, à classe, à raça, à pobreza, entre outros marcadores bastante imbricados nas violências do Estado.
Judith Butler (1998BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 11, p. 11-42, jan. 1998.) se propõe a problematizar a unidade do sujeito político do feminismo, o que, segundo a autora, não equivaleria a “acabar com o sujeito”, tampouco jogar fora os conceitos do feminismo. Para ela, ao contrário, “a desconstrução não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas” (BUTLER, 1998BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 11, p. 11-42, jan. 1998.). Sujeito, portanto, a partir dessas tensões e complexidades, é importante ser compreendido, como sugerido por Claudia de Lima Costa (2002COSTA, Claudia de Lima. “O sujeito no feminismo: revisitando os debates”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 19, p. 59-90, 2002.), enquanto um interdiscurso entre autores e personagens que interagem com as práticas discursivas e suas diferentes localizações. Lugares esses que também, para a autora (COSTA, 2002COSTA, Claudia de Lima. “O sujeito no feminismo: revisitando os debates”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 19, p. 59-90, 2002.), são construídos por meio de narrativas e desejos, o que reforça a necessidade de pensarmos as trajetórias e histórias de vida dos sujeitos do feminismo, como propusemos neste artigo. A disputa do sujeito do feminismo, que é colocada aqui, acaba evidenciando, portanto, os feminismos no plural e, ainda, aparece enquanto um motivo para as “tretas” dos feminismos contemporâneos, como pode ser observado no “racha” da Marcha das Vadias de Porto Alegre no ano de 2014, acontecimento de onde parte este estudo.
Marcadores sociais enquanto operadores da experiência
Partimos do conceito de experiência de Joan Scott (1999SCOTT, Joan W. “Experiência: tornando-se visível”. In: SILVA, Alcione Leite et al. Falas de Gênero. Florianópolis: Mulheres, 1999. p. 21-55.) para a análise das narrativas das pessoas entrevistadas. Nessa perspectiva, as noções de sujeito, de origem e de causa são tomadas a partir do seu atravessamento por categorias que perpassam a experiência (como homossexual/heterossexual, homem/mulher, negro/branco), em que operam muito mais do que identificá-las como fixas e imutáveis, uma vez que a essas categorias se atravessam noções epistemológicas. Por isso, neste trabalho, essas categorias são tidas como operadores da experiência, que, enquanto tais, atribuem sentidos relacionais e políticos.
Segundo Judith Butler (2010BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.), a identidade não constitui uma essência. Ela remete a um trabalho permanente de (re)construção discursiva através do qual o próprio sujeito se compõe. É, portanto, através de uma reiteração de atos que se constitui o sujeito e, consequentemente, os marcadores que chamamos de identitários. Dessa forma, para a autora, não há identidade por trás das expressões, não há um “ser” anterior ao fazer. Butler (2010) utiliza, então, o conceito de performatividade, que remete a um ato sem um ator, contestando a noção de sujeito como preexistente. Se partirmos, portanto, do pressuposto de que a identidade está atrelada a noções de experiência, que essas categorias atravessam identidades, podemos entender que elas posicionam sujeitos e produzem suas experiências, mais do que os definem. “Não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência” (SCOTT, 1999SCOTT, Joan W. “Experiência: tornando-se visível”. In: SILVA, Alcione Leite et al. Falas de Gênero. Florianópolis: Mulheres, 1999. p. 21-55.). Com isso, Scott (1999SCOTT, Joan W. “Experiência: tornando-se visível”. In: SILVA, Alcione Leite et al. Falas de Gênero. Florianópolis: Mulheres, 1999. p. 21-55.) mostra que a experiência não está na base da explicação, mas é aquilo que deve ser explicado.
Além das articulações entre os marcadores da diferença como raça, sexo e geração, analisaremos neste artigo a forma como o “pertencimento feminista” foi sendo produzido enquanto uma identidade. Assim, o modo como as pessoas nomeiam a sua afinidade feminista, atravessada às suas interseccionalidades e trajetórias de vida, será o fio condutor para pensar como a experiência complexifica a construção do pertencimento político.
Entre a pesquisa e a ação política: aspectos metodológicos
Trata-se de um estudo qualitativo, de orientação etnográfica, em um contexto de movimentos sociais feministas. Com o objetivo de se aproximar do campo, a primeira autora inseriu-se de forma ativa e militante em reuniões e eventos organizados pela Marcha das Vadias da cidade de Porto Alegre, no próprio dia da Marcha e, ainda, em eventos organizados por diferentes movimentos feministas. A partir do contato com algumas pessoas consideradas “chave” no evento disparador da pesquisa, foram realizadas com elas entrevistas etnográficas com ênfase na narrativa biográfica.
A narrativa biográfica foi a escolha metodológica utilizada, articulando a perspectiva etnográfica do fazer-pesquisa e do fazer-militante: fazer-militante, caracterizada como registros de alteridade pela antropóloga Suely Kofes (2015KOFES, Suely. “Narrativas biográficas: que tipo de antropologia isso pode ser?”. In: KOFES, Suely; MANICA, Daniela (Orgs.). Vida & grafias: narrativas antropológicas, entre biografia e etnografia. Rio de Janeiro: Lamparina & FAPERJ, 2015. p. 20-39.). Pierre Bourdieu (1996BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. (Orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 183-191.) sugere que devemos considerar a trajetória de vida enquanto uma produção narrativa, na qual o sujeito tende a atribuir uma linearidade, coerência e unidirecionalidade à sua história no momento da fala, construindo a narrativa em um momento único e particular. Buscamos entender as trajetórias de vida das pessoas entrevistadas não como verdades a serem desveladas, mas como produções situadas no tempo e no espaço, circunscritas pelos diversos marcadores sociais que atravessam a sua experiência e pelo contexto etnográfico em que ocorreu a entrevista. Tais narrativas sobre as trajetórias fornecem, ainda, elementos para a compreensão do cenário político feminista jovem em Porto Alegre.
As entrevistas foram realizadas com pessoas que fizeram parte da Marcha das Vadias de 2014 (tanto organizando e/ou participando do ato) e que decidiram participar da pesquisa de forma voluntária, depois de informadas sobre os objetivos das mesmas. Questões éticas em relação ao sigilo e à confidencialidade dos dados levaram à mudança do nome das pessoas entrevistadas, porém, é importante ressaltar que muitas delas são figuras politicamente públicas, que podem vir a ser reconhecidas por outras que fazem parte dessa mesma rede.3 3 O projeto de pesquisa foi submetido ao sistema do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP - CAAE: 47033115.3.0000.5334) e aprovado.
Foram realizadas sete entrevistas, com hora marcada, em diferentes locais da cidade, escolhidos pelas pessoas entrevistadas: local de trabalho, bares, cafés e residências. Cada pessoa entrevistada relatou se identificar com uma nomenclatura de feminismo diferente. Não se teve o objetivo de apresentar uma “amostra” do feminismo, mas, sim, apontar que essas sete entrevistas, em sua diversidade, apontam para alguns efeitos das reflexões em relação à disputa do sujeito do feminismo feita ao longo do percurso. Dessa forma, essas sete pessoas são uma seleção, sendo ela obviamente parcial, uma vez que muitas outras análises sobre a Marcha das Vadias e sobre as trajetórias feministas poderiam ser feitas.
No percurso metodológico da pesquisa, a primeira autora deste trabalho também figura como uma personagem que se envolveu diretamente com o campo. Esse exercício aponta para reflexões sobre o pertencimento ético e a implicação entre a pesquisa e a ação política. Justamente por fazer parte do cenário ativista que é aqui descrito, o lugar da primeira autora enquanto pesquisadora foi constantemente desafiado por implicações e emoções, que, ao longo desse percurso, não foram esquecidas, conforme sinaliza Patricia Hills Collins (1989COLLINS, Patricia Hills. “The social construction of black feminist thought”. Signs, Common Grounds and Crossroads: Race, Ethnicity, and Class in Women’s Lives, v. 14, n. 4, p. 745-773, 1989.) ao discutir o processo de fazer pesquisa implicado. A ênfase no relato de ativista, imbricada ao fenômeno a ser estudado, é também uma escolha política epistemológica, uma vez que se distancia de uma ciência que se propõe a ser neutra, bem como se propõe a escapar do pressuposto de que a produção do conhecimento remete a saberes únicos, universais e alheios à vida política.
Para pensar a respeito do exercício da narrativa, tanto das entrevistas realizadas, como na implicação da relação pesquisadora e militante, partimos dos estudos da teórica Judith Butler (2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.). Em sua pesquisa sobre a teoria do sujeito, por meio dos referenciais psicanalíticos e hegelianos, a autora contribui para que seja possível considerar a noção do “eu” como atravessada por um conjunto de relações em que o “si mesmo” acaba afetado por uma temporalidade social. Butler (2015) faz uso desse raciocínio para refletir a respeito da narrativa, já que um relato de nós mesmos seria uma forma de responsabilizar-se e de assumir nossas ações. Essa questão cria um paradoxo entre não responsabilização das pessoas pelos seus atos e esse “eu” atravessado por diferentes relações. Esse fato acaba sendo um debate ético-político que também se encontra na pesquisa, uma vez que as histórias contadas não buscam definir qualquer verdade sobre o feminismo das personagens, mas, sim, colocar em questão o que é lembrado no momento de uma entrevista, em detrimento de possíveis outros fatos. Por isso, Butler (2015) questiona se essa impossibilidade de fazer um relato de si mesmo fora de uma estrutura de interpelação seria um fracasso ético, uma vez que o que existirá é inevitavelmente uma narrativa ficcional.
Personagens
1 Quem escreve - primeira autora
Para começar, faço referência ao meu local de fala, atravessado a um coletivo feminista ao qual pertenço e à construção de um feminismo com o qual me identifico. Esse coletivo, chamado Putinhas Aborteiras, preocupa-se em debater temáticas sobre questões discutidas pelos feminismos e transformá-las em música. O coletivo se considera anarquista e feminista, de forma a preservar um local político, porém, com um espaço aberto ao questionamento.
A participação ativa dentro desse coletivo me posiciona em um lugar nesse cenário que está sendo analisado. As Putinhas Aborteiras começaram a sua construção na efervescência dos movimentos políticos e sociais de junho de 2013. Os protestos levaram à ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, que deu possibilidade para a criação e construção do que chamamos efetivamente de coletivo. Ao longo do percurso, a participação no Coletivo Putinhas Aborteiras, a visibilidade diante do cenário da cidade e a minha participação na Marcha das Vadias produziram diferentes interpelações. Interpelações, essas, que se atravessam aos conflitos gerados dentro da “treta”, uma vez que o Coletivo vinha questionando ações políticas estatais e institucionais, assim como manifestações políticas que poderiam ser acusadas e entendidas enquanto transfóbicas.
Busco, portanto, reconhecer-me nessa localização do campo de pesquisa, atravessada, ademais, por outros marcadores sociais que me compõem enquanto pesquisadora, acadêmica, ativista, mulher, com 27 anos, branca, cis - categorias que, aqui, não buscam apresentar uma fixidez, mas dialogar com essa posicionalidade de que estamos tratando. Tal reflexão se encontra, como já apontado, ancorada nos pressupostos de Donna Haraway (1995HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 7-41, jan. 1995.) sobre a objetividade da parcialidade. Uma vez que todo saber é localizado e, portanto, parcial, as inquietações e desacomodações acadêmicas aparecem coladas ao cotidiano combativo que, por si só, tem seus imensos desafios.
2 Entre relações livres e materialismo
Jéssica, uma mulher,4 4 Para os outros perfis, usamos a nomenclatura cis ou trans junto à identificação de gênero “mulher” ou “homem”. No caso de Jéssica, devido à corrente teórica com a qual se identifica, preferiu que não fosse utilizado esse termo. Porém, para que esse marcador não passe esquecido em relação aos outros perfis, podemos identificar Jéssica como pessoa que foi designada mulher ao nascer, a partir do que ela mesma se identifica, e continua se identificando e sendo identificada socialmente como tal. branca, bissexual, de 29 anos, tem um histórico em relação à Marcha das Vadias de Porto Alegre bem intenso, uma vez que esteve compondo o grupo de organização da primeira Marcha. A partir disso, passou a participar da comissão organizadora de todas as edições, até a última, de 2015. Jéssica vem de uma família com dificuldades financeiras, com um histórico de violência doméstica geracional. Durante sua adolescência, deparou-se com questões que envolviam o seu pertencimento de “classe”, aproximando-se do movimento estudantil, o que a levou a ingressar em um partido político, a ler uma grande quantidade de teorias e a participar de formações. A partir dessas vivências do movimento estudantil, somadas àquelas em sua família, aos 15 anos, Jéssica saiu de casa e passou a militar de forma mais sistemática.
Jéssica ingressou na universidade e, logo, aos 17 anos, engravidou. Nesse período, ouvindo os conselhos da mãe de que deveria estudar, passou os três anos seguintes cuidando da filha e se dedicando aos estudos. Além de suas tarefas pessoais, percebeu que o movimento social ao qual estava filiada, de maneira geral, não estava preparado para acolher a presença de mães. Ao buscar um emprego, passou a trabalhar em um sindicato, o que fez com que se aproximasse da temática de gênero.
Outro ponto presente em sua militância no feminismo foi a questão da não monogamia. Jéssica se relacionava com pessoas da mesma corrente política da qual participava, o que levou esse grupo a sofrer acusação de estarem fazendo orgia, apontando suas relações como levianas, juvenis e estritamente sexuais. Indignado com a acusação, o grupo construiu um texto que explicitasse suas discussões em relação a não monogamia a partir de uma ótica feminista. Essa construção levou outras pessoas a se identificarem com tal grupo, que não só defendia a questão da não monogamia, mas era também de esquerda, materialista e feminista. Dessa forma, foi criada a Rede Relações Livres, em que a militância feminista de Jéssica se associa de forma direta.
Jéssica, em relação à sua localização nas correntes teóricas do feminismo, primeiramente se autodenomina materialista, o que, segundo ela, localiza-a em um “híbrido” entre o feminismo radical e o feminismo marxista. Para ela, o feminismo marxista é muito economicista, ao mesmo tempo em que tem críticas em relação aos métodos do feminismo radical. Em muitos contextos, prefere se denominar feminista radical, pois entende que o feminismo marxista, por ser tão plural, acaba não tendo uma identidade definida, podendo significar muitas coisas.
3 Resistência universitária e sapatão
Marta, uma mulher cis, branca, lésbica, de 28 anos, é estudante universitária, espaço onde se atravessam muitas das suas vivências feministas, sendo a primeira delas a partir da construção do Coletivo de Mulheres. Marta fez um intercâmbio, em que teve a oportunidade de viajar por países da Europa e ficar hospedada em ocupações anarquistas. Quando retornou ao Brasil, estava se reconfigurando na universidade o até então conhecido coletivo LGBTTT, sobre o qual, naquele momento, estava sendo discutida uma proposta “não identitária”. Marta somou-se ao grupo junto com amigos e colegas, criando, assim, o Coletivo Ovelhas Negras, que tinha também como objetivo participar do ENUDS (Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual), encontro que Marta considera como sendo um fato importante em sua trajetória, devido ao deslumbramento em relação à diversidade de corpos reunidos.
Marta participou ativamente das manifestações das conhecidas enquanto “Jornadas de Junho”, assim como da Ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Nesse mesmo ano, participou da Marcha das Vadias, onde foi a primeira vez em que ficou sem blusa em algum local público. A soma da participação nesses eventos culminou na participação do debate que ocorreu na Marcha das Vadias de 2014 de maneira intensa.
Dentro dos debates das pluralidades nos feminismos, Marta observa que já foi acusada de muitas nomenclaturas, como “pós-moderna” e “liberal”. Apesar de não gostar das “caixinhas”, considera que, por entender o gênero como uma performance, e por não entender a categoria mulher de forma única, ela se posiciona dentro do campo do feminismo interseccional.
4 Para além dos muros universitários
Renata, mulher cis, autodeclarada parda, bissexual, tem 35 anos. É natural de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde viveu até o fim de sua adolescência. Teve conflitos com o seu pai, o qual era envolvido com a política de “direita”, além de ter sofrido agressão física por parte dele. Tinha um comportamento bastante contestador, o que a levou a ser eleita delegada do orçamento participativo, momento em que começou a se envolver com a vida política e partidária. Mudou-se para Porto Alegre com 18 anos, apenas com seu último salário, e foi morar em uma pensão. Em seguida, procurou o PCdoB e, logo depois, passou a ir às reuniões da UBM (União Brasileira de Mulheres).
Uma maneira que o partido encontrou de possibilitar à Renata uma formação foi a partir da participação na UJS (União Juventude Socialista). Encontrou algumas adversidades, pois, em muitos momentos, foi rechaçada por não ter passagem pela academia.
Para Renata, a vida orgânica, a vida de reunião, ato, a vida, portanto, de militante, é o que ela gosta. Como representante da UBM, participa da organização de vários conselhos, fóruns, comitês e também da Marcha das Vadias, na qual tem estado na organização há três anos por acreditar ser uma das portas de entrada de muitas jovens no feminismo, sendo, portanto, uma oportunidade de transmitir a política feminista em que acredita, o feminismo emancipacionista.
5 A autonomia como ética de vida
Bianca é uma mulher branca, cis, de 27 anos. Seu exercício cotidiano pela cidade perpassa diferentes caminhos, ficando difícil definir Bianca enquanto uma única ocupação, seja de educadora social, de estudante, de ativista, de feminista. Além de estar inserida no meio acadêmico, Bianca ocupa um grande tempo de sua vida em seu trabalho e sua militância - que estão relacionadas com questões de saúde mental e com a população em situação de rua. Bianca tem um histórico de mulheres violentadas em sua família, o que a levou a pensar que nenhum homem irá agredi-la de nenhuma forma, assim como luta para que nenhuma mulher tenha que passar por quaisquer situações de violência.
Bianca, depois de ter ingressado na universidade, passou a se envolver com os movimentos sociais. Durante a sua participação ativa, pôde ir percebendo como eram as práticas dos partidos e as disputas de poder internas, o que foram fazendo com que ela se identificasse com espaços e pessoas que têm como prioridade de luta à autonomia. Nesse movimento, foi tendo acesso a autoras feministas e despertando, também, outras questões sociais, como as de gênero. Participou de diversas outras organizações dentro do campo das políticas, inclusive os movimentos contra o aumento das passagens, em 2013.
Bianca uniu-se, também, na construção da Marcha das Vadias, da qual participou desde a segunda edição. Sua participação na construção da Marcha foi turbulenta, uma vez que sempre defendeu a autonomia e a não cooptação de partidos políticos no processo. Bianca se identifica, assim, com o anarcafeminismo, tendo sido acusada de “autonomista”, em tom pejorativo, por outras pessoas que compunham movimentos em comum a ela, entre eles o espaço de organização da Marcha das Vadias. Entende que a acusação remete à sua insistência em fazer presente os princípios anarquistas dentro da luta feminista, como a autonomia, a horizontalidade e a ação direta.
6 A experiência de ser mulher negra em um contexto branco
Anita, mulher negra, cis, de 25 anos, faz faculdade de Psicologia na Universidade Federal, onde acredita que sua presença ainda se configura como uma resistência por ser uma mulher negra e moradora da periferia. Em sua adolescência participou de um grupo fomentado por uma ONG feminista, sendo o primeiro contato de Anita com a temática do feminismo num sentido mais “teórico”. Depois, quando ingressou na universidade, passou a participar de um grupo de meninas que conversavam também sobre questões relacionadas ao feminismo, e foi percebendo várias questões machistas que apareciam dentro e fora da universidade. Nesse momento, criou uma página no facebook chamada “A Mulher Negra e o Feminismo”, a partir da observação de que os grupos feministas são compostos majoritariamente por mulheres brancas. Quando criou a página, passou a escrever para o site “Blogueiras Negras” (blogueirasnegras.org) e conseguiu todo o aporte de mulheres de outras localidades. Ao mesmo tempo, entende que o feminismo não necessariamente tem relação com essas questões teóricas, mas, também, com a vivência cotidiana. Para ela, uma mãe periférica que cuida de seus filhos sozinha é feminista, como pôde vivenciar em sua trajetória dentro de casa, com seu pai não contribuindo com os cuidados domésticos da mesma forma que sua mãe.
Anita participou da Marcha das Vadias pela primeira vez em 2012 e relata ter se sentido “em um mar de mulheres brancas”, não se identificando com muitas das questões colocadas. Esse assunto foi levado ao coletivo de negros e de negras da universidade, onde pôde sentir que os companheiros tratavam diferentemente as mulheres. Dessa forma, um grupo de pessoas negras se organizou para fazer uma intervenção na Marcha das Vadias de 2014, questionando o quanto se sofria machismo dentro do coletivo e o quanto elas sofriam racismo dentro do movimento feminista.
Anita considera que o seu feminismo é o feminismo negro por se reconhecer a partir da identidade da negritude. Também, às vezes, recorre ao termo feminismo interseccional, uma vez que acredita em um feminismo em que sejam bem-vindas todas as mulheres e em que os diferentes recortes possam ser pensados e visibilizados.
7 Masculinidades nos feminismos
Marcos é um homem trans, branco, gay, de 28 anos, que percebe o feminismo como uma porta de entrada para repensar as próprias normas de gênero que atravessavam o seu corpo. Teve seu primeiro contato com questões de gênero e o termo feminismo em uma disciplina da universidade, aproximadamente pelo ano de 2010. Em 2012, Marcos foi com a sua irmã e amigos na Marcha das Vadias e acredita ter sido esse seu primeiro contato com o movimento. Era um momento de pré-transição, uma vez que Marcos ainda estava vivendo e sendo reconhecido enquanto mulher. Nessa Marcha houve um fato que marcou a sua trajetória, que foi o ato de tirar a camisa em público. Hoje, para ele, tirar a camisa em público compõe outro significado e é atravessado por outras regras de gênero diferentemente de quando ele era reconhecido socialmente enquanto mulher. Marcos entende que essas experiências, tanto de tirar a camisa em público, quanto em ter participado da Marcha das Vadias pela primeira vez, quanto a se envolver com o movimento feminista, fizeram parte do caminho que percorreu para poder se assumir como homem.
A partir dessa experiência, passou também a procurar espaços políticos anarquistas e libertários. Participou de alguns movimentos políticos, como as manifestações contra o aumento das passagens. Como uma atividade política e coletiva, Marcos fomentou oficinas de defesa pessoal em relação às questões de gênero, inclusive em uma das edições da Marcha das Vadias. Além dessas participações, também, dentro da universidade, passou a buscar mais espaços que se relacionavam com essa temática. Assim, na academia, acabou seguindo essa direção, fazendo parte de um grupo de pesquisa que discute gênero, sexualidade e raça.
Marcos se considera uma pessoa feminista, uma vez que apoia os valores de igualdade de gênero. Entende que, pelas questões trans serem prioridade em sua militância, se coloca publicamente enquanto transfeminista e se aproxima também do feminismo interseccional. Ao mesmo tempo, entende que, por estar circulando, atualmente, em espaços mais masculinos, sobretudo relacionados ao ativismo de homens trans, acaba não estando tão presente em certos espaços feministas. Percebendo que esse é um espaço de protagonismo de mulheres e, por ele não ser mulher, acredita que não tem tanto com o que contribuir, considerando-se, por isso, mais um apoiador do feminismo do que um protagonista.
8 A violência machista como disparador de revolta
Carol tem 27 anos, é estudante de administração, mulher, branca, heterossexual e cis. Carol foi criada apenas por sua mãe, a qual se separou de seu pai quanto ela tinha aproximadamente dois anos. Carol aponta que sua mãe foi mãe solteira, assim como Carol é hoje. Acredita que essas vivências a fortaleceram. Em 2013, após um intercâmbio e de ter morado em São Paulo um tempo com o pai de sua filha, voltou para Porto Alegre e acompanhou toda a movimentação contra o aumento das passagens e foi quando começou a se inserir nos movimentos sociais. Antes de voltar, havia passado por um momento pesado, uma vez que havia se divorciado do pai da sua filha, passado por processos da Lei Maria da Penha, por tentativa de sequestro de sua filha e por corte de pensão. Considera que chegou ao fundo do poço. A inserção nos protestos, em alguns grupos políticos e também a participação da Ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre foram contribuindo para que Carol pensasse questões políticas mais ativamente.
No final desse ano, de 2013, Carol conheceu uma menina, tornaram-se amigas e passaram a militar juntas. Hoje, Carol considera que era uma militância “verde”, uma vez que pautavam o feminismo, porém sem recortes como de raça e de classe. Criaram um coletivo e fizeram uma ação chamada de “Biquinaço”, que aconteceu em um parque da cidade com o objetivo de questionar os padrões de beleza. Quando outras feministas perceberem que Carol era envolvida e organizada, a chamaram para começar a construir a organização da Marcha das Vadias de 2014. Durante a organização da Marcha de 2014, começou um debate a respeito de diferentes nomenclaturas, como: “feminismo radical”, “feminismo liberal’, “transativismo”, “transfeminismo”. Essa discussão a levou a escolher um “lado”. Passou, então, a se organizar em grupos que se nomeavam feminista radical. Carol sente-se muito alinhada com a teoria radical, pois entende que essa vertente lhe proporciona muitas respostas ao que viveu em sua vida.
Discussão: tensões interseccionais às experiências
A edição de 2014 da Marcha das Vadias em Porto Alegre, a qual é o disparador para este trabalho, caracterizou-se, entre outros elementos, pelo “racha” que se materializou em sua divisão em dois trajetos. Anteriormente ao evento da Marcha, houve alguns conflitos durante a sua organização, incluindo a direção que a Marcha das Vadias daquele ano tomaria. Sabia-se, portanto, que um grupo iria em direção à delegacia da mulher e que, lá, entregaria uma carta de reivindicações em relação às mudanças de políticas públicas; enquanto outro grupo tomaria outro caminho, questionando muitas das práticas tomadas pelo primeiro grupo, envolvendo a institucionalização das demandas feministas e o enfoque das pautas em mulheres cis.
A partir da leitura das trajetórias das personagens que envolveram o cenário do “racha”, a Marcha das Vadias de 2014 em Porto Alegre, podemos refletir sobre como a experiência desses sujeitos se relaciona com a construção da identidade política referente aos feminismos e como se interseccionam com os marcadores sociais da diferença. Não se busca aqui apresentar uma relação de causa e efeito dentro dessa complexidade, que é a produção da subjetividade desses sujeitos, mas, sim, refletir sobre como foram se construindo e tecendo caminhos possíveis de identificações e identidades.
Pensar a interseccionalidade e a diferença como ferramentas de análise, como sugere Larissa Pelúcio (2011PELÚCIO, Larissa. “Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à aids”. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, mar. 2011.), fornece elementos que, além de descritivos, podem nos ajudar a articular os níveis micro e macrossocial a fim de se pensar quais são os processos que marcam certos indivíduos e grupos como distintos, e como, a partir da experiência, os sujeitos se constituem subjetivamente. As diferentes experiências expressam “lugar de formação do sujeito” (BRAH, 2006BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 26, p. 329-376, jun. 2006.) - isso, pois, como salientado pelas diferentes personagens, a questão da raça, da classe e da cisnormatividade acaba sendo uma regra que define um lugar de onde falam essas pessoas. Esses marcadores acabam hierarquizando sujeitos e coletividades, sendo possível apontar que a Marcha das Vadias é um movimento majoritariamente branco, cis, universitário e de classe social média-alta, mesmo que existam pontualmente algumas pessoas que fujam dessa norma.
Nesse cenário, as diferenças relacionadas às questões raciais aparecem fortemente, tanto que esse marcador foi evidenciado na performance realizada pelo coletivo de mulheres negras na Marcha de 2014, que buscou justamente alertar quanto ao racismo que existe dentro dos movimentos feministas. Dentro da experiência de raça trazida por Anita, ela pôde vivenciar, no decorrer da sua trajetória, o feminismo que acontece dentro do espaço de casa, como sua mãe cuidando de diversos filhos, enquanto seu pai estava ausente dessas atividades. Ela entende essa experiência enquanto feminista, mesmo não havendo esse nome, uma vez que a mulher deve ser duplamente forte para lidar com a situação social que é colocada. Para Cláudia Pons Cardoso (2013CARDOSO, Cláudia Pons. A construção da identidade feminista negra: experiência de mulheres negras brasileiras. In: FAZENDO GÊNERO 10, Florianópolis, UFSC. Anais do Fazendo Gênero 10 - Desafios Atuais dos Feminismos, 2013.), tomar as experiências vividas de opressão é uma potente forma de construir práticas de resistência para enfrentar questões como o racismo e o sexismo, o que contribui para a construção da identidade de feminista negra.
Ainda, dentre os marcadores sociais que estão presentes nos caminhos traçados pelas personagens apresentadas, podemos pensar como determinada identidade em relação a “correntes” feministas alcança determinada classe social, geração, ocupação. Dentre as pessoas que se consideram feministas interseccionais, podemos perceber que algumas ocupam um lugar acadêmico, como Marta, Anita e Marcos. Isso pode ser relacionado com o fato de que a questão teórica da interseccionalidade está mais presente nas universidades do que num campo de saber comum e acessível - explicitando um privilégio desse acesso. Ainda, com a questão de classe, uma vez que Marta e Marcos se consideram privilegiados nesse sentido. As teorias marxistas aparecem mais próximas de quem teve ou tem histórico com partidos políticos, como Renata e Jéssica.
Em relação à geração, podemos associá-la ao evento da maternidade, que parece ter um impacto dentre os caminhos tomados pelas feministas, uma vez que as mulheres entrevistadas que já passaram por essa experiência, como Jéssica, Renata e Carol se aproximam de “abordagens” feministas que tratam a mulher como seu corpo considerado “biológico”. Isso pode acontecer já que as teorias marxistas sustentam a ideia da “divisão de tarefas” como uma prática compulsória nas estruturas familiares. Além disso, o aspecto geracional pareceu ter influência para Renata e Jéssica, pois, além de mães, são as duas entrevistadas que mais se aproximam dos trinta anos. Isso pode atravessar a teoria feminista da qual elas se aproximam, uma vez que, como relatado por Jéssica, quando estava na escola, começou a participar de atividades do movimento estudantil que a aproximaram da teoria marxista.
Algumas outras experiências apareceram em comum dentro das entrevistas que não se relacionam necessariamente com alguma “vertente” feminista, mas, sim, com a construção da identidade feminista como um todo. Uma delas foi a participação em outros movimentos sociais, como as “Jornadas de Junho”, movimento contra o aumento das passagens de ônibus, as manifestações contrárias aos cortes de árvore pela prefeitura (Samir OLIVEIRA, 2013OLIVEIRA, Samir. “Manifestantes realizam novo protesto contra corte de árvores em POA”. Sul21, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/manifestantes-realizam-novo-protesto-contra-corte-de-arvores-em-porto-alegre
/. Acesso em: 03/03/2016.
http://www.sul21.com.br/jornal/manifesta...
) e a Ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre em 2013. Marta, Carol, Bianca e Marcos relatam esse envolvimento político como fazendo parte de sua trajetória feminista. Ainda, a experiência de ter participado da Marcha das Vadias nas edições anteriores - para Marta, Anita e Marcos - foi muito significativa, inclusive a vivência de tirar a camisa em público. Também, a experiência de ter tido algum histórico de violência familiar - como relatado por Jéssica, Renata, Bianca e Carol - pode ter disparado uma sensibilidade e proximidades com os feminismos para essas pessoas.
Considerações finais
Compreender esses fatores foi fundamental para pensar como os percursos que foram perpassando a inserção nos movimentos políticos referidos podem dar pistas sobre a localização feminista das personagens. Assim, as diferentes interseccionalidades também localizam as personagens em suas trajetórias. Quem pode viajar para o exterior, quem teve que trabalhar desde cedo, quem ingressou na universidade, quem teve filhos. Essas questões evidenciam como determinados operadores da experiência se interseccionam com os diferentes feminismos que podem ser observados no campo e constroem as disputas em relação ao sujeito do feminismo, ao sujeito da Marcha das Vadias de Porto Alegre.
Podemos concluir que foi possível observar que os diferentes marcadores sociais, tais como raça, classe, pertencimento ou não ao meio universitário, maternidade, geração, transgeneridade contribuem para a formação desse sujeito colocado em disputa, uma vez que tais interseccionalidades marcam trajetórias de vida e lugares muitas vezes invisibilizados. Ainda, experiências envolvendo movimentos políticos se atravessam de forma constante com a participação feminista, fazendo parte da trajetória das pessoas entrevistadas. Podemos pensar que as “tretas” dos feminismos, incluindo o racha da Marcha das Vadias de 2014 de Porto Alegre, fazem parte da construção do movimento que, por ser tão plural, ter tantas identificações, adquire dinamicidade que contribui para sua constante transformação e para a manutenção da pluralidade dos feminismos no contexto feminista jovem da cidade.
Acreditamos, ainda, como uma grande contribuição desse estudo, é na forma de enxergar o conflito. Ao olhar para as pluralidades dos feminismos com empatia, sempre reconhecendo de onde elas vêm e o que podem significar, torna-se possível enxergar o conflito de maneira empática. Com isso, é possível olhar para os sujeitos além de suas perspectivas, podendo compreender os processos ocorridos de maneira mais ética e, ainda, feminista.
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1
Trata-se da dissertação de mestrado “Marcha das Vadias: Entre tensões, dissidências e rupturas dos feminismos contemporâneos”, da autora Daniela Dalbosco Dell’Aglio (2016DELL’AGLIO, Daniela Dalbosco. Marcha das vadias: entre tensões, dissidências e rupturas nos feminismos contemporâneos. 2016. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.), sendo a segunda autora a orientadora deste trabalho.
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2
Entende-se que os marcadores da diferença não são variáveis independentes, mas se enfeixam de maneira que um eixo de diferenciação constitui o outro ao mesmo tempo em que é constituído pelos demais. Esse pensamento está atravessado ao que podemos chamar de “feminismo das diferenças”, vertente teórica que surge nos Estados Unidos ao longo dos anos 1980 como uma crítica ao feminismo vigente, conforme proposto por Larissa PELÚCIO (2011).
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3
O projeto de pesquisa foi submetido ao sistema do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP - CAAE: 47033115.3.0000.5334) e aprovado.
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4
Para os outros perfis, usamos a nomenclatura cis ou trans junto à identificação de gênero “mulher” ou “homem”. No caso de Jéssica, devido à corrente teórica com a qual se identifica, preferiu que não fosse utilizado esse termo. Porém, para que esse marcador não passe esquecido em relação aos outros perfis, podemos identificar Jéssica como pessoa que foi designada mulher ao nascer, a partir do que ela mesma se identifica, e continua se identificando e sendo identificada socialmente como tal.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
DELL’AGLIO, Daniela Dalbosco; MACHADO, Paula Sandrine. “Trajetórias e experiências: o sujeito político feminista sob a perspectiva interseccional”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e48556, 2019. -
Financiamento:
Não se aplica. -
Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica. -
Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Teve aprovação do comitê de ética em Pesquisa (CEP/CONEP - CAAE: 47033115.3.0000.5334). Data: 24 de novembro de 2015
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Set 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
11 Jan 2017 -
Revisado
25 Nov 2017 -
Aceito
21 Dez 2017