Open-access Construção das masculinidades rurais em Grande sertão: veredas

Building rural masculinities in The Devil to Pay in the Backlands

Construcción de masculinidades rurales en Gran Sertón: veredas

Resumo:

Neste estudo teórico-reflexivo, nos propomos a investigar a construção de versões de masculinidades rurais a partir de uma leitura do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Para tanto, recorremos aos conceitos de masculinidade hegemônica, propostos por Connell, e performatividade, elaborado por Butler. A pesquisa percorre três eixos ordenadores: 1) uma breve exposição sobre as abordagens em masculinidades, resgatando sua gênese nas teorias feministas que inauguraram os estudos de gênero; 2) os processos de generificação na perspectiva da construção da masculinidade rural; 3) uma leitura da relação entre Riobaldo e Diadorim. Destacamos que gênero não se subsome a uma substância, embora reproduza efeitos substanciais, percebidos em distintas versões da masculinidade hegemônica performadas pelo bando de jagunços personificados na epopeia rosiana.

Palavras-chave: masculinidades; gênero; literatura; homossexualidade

Abstract:

This theoretical-reflective study aims to investigate the construction of versions of masculinity from a reading of the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa. For that, we resort to the concepts of hegemonic masculinity, proposed by Connell, and performativity, elaborated by Butler. The research covers three ordering axes: 1) a brief exposition on the approaches to masculinities, rescuing their genesis in the feminist theories that inaugurated gender studies; 2) the processes of genderfication in the perspective of the construction of rural masculinity; 3) the presentation of a reading of the relationship between Riobaldo and Diadorim. We emphasize that gender does not subsume a substance, although it reproduces substantial effects, perceived in different versions of hegemonic masculinity performed by the gang of jagunços personified in the Rosian epic.

Keywords: Masculinity; Gender; Literature; Homosexuality

Resumen:

Este estudio teórico-reflexivo tiene como objetivo investigar la construcción de versiones de masculinidades rurales a partir de la lectura de la novela Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Para ello, recurrimos a los conceptos de masculinidad hegemónica, propuestos por Connell, y de performatividad, elaborados por Butler. La investigación sigue tres ejes de ordenamiento: 1) una breve exposición sobre los abordajes en las masculinidades, rescatando su génesis en las teorías feministas que inauguraron los estudios de género; 2) procesos de generación en la perspectiva de la construcción de la masculinidad rural; 3) presentación de una lectura de la relación entre Riobaldo y Diadorim. Destacamos que el género no subsume una sustancia, aunque reproduce efectos sustanciales, percibidos en diferentes versiones de la masculinidad hegemónica realizada por la banda de jagunços personificada en la épica rosiana.

Palabras clave: masculinidades; género; literatura; homosexualidad

Introdução: Masculinidades e seus avatares

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Sigmund Freud (2006/1905) afirma, em uma nota de rodapé, que as concepções de “masculino” e “feminino” figuram entre as mais complexas da ciência. O autor enumera três visões sobre a masculinidade e a feminilidade: a primeira diz respeito às ideias de atividade e passividade, uma interpretação da polaridade masculino-feminino que Freud alega ser a mais apropriada à psicanálise. A segunda concepção se refere ao sentido biológico, relacionado estritamente às características físicas, anatômicas e fisiológicas que diferenciam o homem da mulher. Já a terceira remete ao sentido sociológico, que o autor afirma derivar da observação pormenorizada do comportamento de homens e mulheres, o que conduz, invariavelmente, à conclusão de que não existem homens “puramente homens” nem mulheres “puramente mulheres”, tanto no sentido psicológico quanto biológico.

É preciso contextualizar esse pensamento em seus contornos epistemológicos e modulá-lo de acordo com seus limites temporais. Por outro lado, encetar reflexões que busquem fundamentar uma discussão psicológica sobre masculinidades tomando como ponto de partida a concepção freudiana faz sentido se admitimos, como afirma Raewyn Connell (2005, p. 8), o pioneirismo do médico austríaco, que rompeu com a maioria das ideias vigentes à sua época sobre masculinidade. Sublinhamos, assim, a importância histórica e o caráter inovador (para a época) e subversivo das ideias freudianas, ao se contraporem a tudo o que o pensamento europeu havia considerado como dado e garantido até então, “gerando uma investigação sobre sua composição tanto possível como necessária” (CONNELL, 2005, p. 8). Basta lembrar o impacto devastador que essas ideias tiveram no meio científico da época, o que por si só atesta seu potencial demolidor.

É fato que a psicanálise, apesar da pluralização de narrativas de suas diversas escolas e sistemas de pensamento, manteve pouco contato com os estudos feministas - e, portanto, com as teorias de gênero - que floresceram entre os anos 1930 e 1960, exceto, talvez, pelos escritos de Simone de Beauvoir. Porém, foi somente após esse período que feministas como Juliet Mitchell e Luce Irigaray passaram a teorizar a feminilidade, e de certa forma também a masculinidade, que comparece no ensino de Lacan (CONNELL, 2005).

A historiadora Joan Scott (1986), comentando as teorizações de gênero de matriz lacaniana, destaca a ênfase que é atribuída à linguagem nesse arcabouço teórico. Inicialmente, a autora critica o que ela considera ser uma “fixação” da psicanálise em estudar as questões concernentes ao sujeito individual e à reificação de que a teoria opera entre masculino/feminino como formas antagônicas. Também enfatiza que, mesmo quando se presta a explorar a construção do sujeito no que diz respeito a gênero, a psicanálise lacaniana o faz de forma universalizante.

Mesmo que esta teoria leve em consideração as relações sociais, relacionando a castração com a proibição e a lei, ela não permite a introdução de uma noção de especificidade e de variabilidade históricas. O falo é o único significante; o processo de construção do sujeito de gênero é, em última instância, previsível, já que é sempre o mesmo [...] Falta uma maneira de conceber a “realidade social” em termos de gênero (SCOTT, 1986, p. 16).

A definição de gênero, segundo Scott (1986), pode ser dividida em duas partes, que não são desconexas, mas que são distinguíveis. A primeira se refere ao caráter constitutivo que o gênero exerce sobre as relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos, e a segunda estabelece que “gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1986, p. 21). Como componente significativo das relações sociais percebidas e baseadas nas diferenças entre os sexos, a categoria gênero comporta quatro elementos conectados entre si: em primeiro lugar, os símbolos culturais perpetuados pela história, como as imagens icônicas do feminino encarnado em figuras como Eva e Maria, que simbolizam a mulher no Ocidente cristão, e que também remetem à pureza e à poluição, entre tantas acepções derivadas. Em segundo lugar, temos a visão normativa e binária do gênero, que enfatiza a antítese homem/mulher, geralmente estimulando a censura a comportamentos culturalmente percebidos como associados ao sexo oposto e que identifica as questões de gênero como produtos de uma época mais do que como resultado de conflitos históricos.

Em terceiro lugar, Scott (1986) inclui a categoria do parentesco, que também constitui o gênero, embora não exclusivamente, e, por último, menciona a identidade subjetiva, na qual articula um pensamento de Maurice Godelier (1981, p. 17):

[...] não é a sexualidade que produz fantasmas na sociedade, mas, sobretudo, a sociedade que fantasmatiza, na sexualidade, o corpo. As diferenças entre os corpos que são ligados ao sexo são constantemente solicitadas para testemunhar as relações e fenômenos sociais que não têm nada a ver com a sexualidade. Não só testemunhar, mas testemunhar a favor, isto é, legitimar.

Adentrando especificamente o campo das masculinidades, encontramos na obra do francês Daniel Welzer-Lang (2001) a exploração do conceito, a partir de sua visão antinaturalista e não essencialista. O autor propõe que as relações entre homens/homens e homens/mulheres geralmente são interpretadas a partir de dois paradigmas: o primeiro diz respeito a uma suposta superioridade natural do homem, gerando uma lacuna intransponível entre homens e mulheres. Já o segundo se refere à visão heterossexuada de mundo, que vê a heterossexualidade como norma e as outras diversas sexualidades e modos de amar como, no máximo, “diferentes”. Ainda que perdurem as discussões acerca do surgimento das violências de gênero e da própria divisão por sexo e gênero, é preciso considerar que a simples divisão entre os dois grupos (ou classes) de sexo em gêneros não implica, necessariamente, uma relação de dominação de um sobre outro.

Welzer-Lang (2001) esboça o conceito de “casa dos homens” para descrever as formas de iniciação dos homens jovens no mundo adulto, por meio da perenização de uma homossociabilidade que difere de acordo com a etapa da vida dos sujeitos. No início, os meninos, aos poucos, vão abandonando o “mundo das mulheres” para se agruparem e realizarem práticas de caráter homossexual, como a comparação dos tamanhos de seus pênis, competições para ver quem consegue lançar o jato de urina mais longe, experiências de masturbação coletiva, entre outros jogos/torneios eróticos que visam medir competências e terçar forças entre pares de iguais. Assim, os meninos adquirem um repertório de habilidades sociais que possibilitam que se posicionem na vida de uma forma generificada, sendo também iniciados para que, no futuro, possam iniciar os mais jovens e, assim, sucessivamente, incorporando o papel de perpetuadores da herança simbólica recebida dos pais na cadeia intergeracional de transmissão do legado. Por outro lado, o autor aponta também que é no “primeiro cômodo” da casa dos homens que os jovens estão mais propícios a sofrerem abusos sexuais por parte de homens mais velhos, o que os leva, no futuro, a reproduzirem e perpetuarem esses agravos e jogos iniciáticos com as gerações mais novas.

Ao abordar as relações sociais de sexo, Welzer-Lang (2001) salienta que esses vínculos operam transversalmente no conjunto social e, portanto, atravessam homens e mulheres:

É então nessa perspectiva que eu propus que se definisse a homofobia como a discriminação contra as pessoas que mostram, ou a quem se atribui, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero. A homofobia engessa as fronteiras do gênero (WELZER-LANG, 2001, p. 465).

Os estudos de Connell adquiriram notoriedade instantânea, notadamente após o delineamento do conceito de “masculinidade hegemônica” desenvolvido a partir de estudos empíricos realizados em escolas australianas, que demonstraram a existência de hierarquias de masculinidade no ambiente educativo e entrelaçaram as questões relacionadas ao gênero com classe (CONNELL; James W. MESSERSCHMIDT, 2013). É preciso, contudo, retomar o significado do conceito de hegemonia em seu uso gramsciano, de tradição marxista, tal como foi utilizado por Connell (2005). A autora afirma que, na análise das relações de classe, a hegemonia diz respeito à sustentação da predominância que uma classe exerce sobre outra em suas relações culturais (de ordem ideológica) dinâmicas.

A noção de hegemonia propõe uma nova relação entre estrutura e superestrutura e tenta se distanciar da determinação da primeira sobre a segunda, mostrando a centralidade das superestruturas na análise das sociedades avançadas. Nesse contexto, a sociedade civil adquire um papel central, bem como a ideologia, que aparece como constitutiva das relações sociais (Ana ALVES, 2010, p. 71).

É no sentido ideológico, portanto, que a masculinidade hegemônica ampara a ideia de superioridade masculina em contraponto à submissão feminina. É fundamental lembrar que a masculinidade que se coloca como hegemônica varia de acordo com o contexto social em que se situa. Portanto, podemos identificar masculinidades negras, brancas, proletárias, de classe média, entre diversas outras versões de masculinidades alternativas. Porém, Connell (2005) aponta para a armadilha que se esconde na simplificação de conceitos, como ocorre na identificação de uma masculinidade negra, uma masculinidade branca, e assim por diante. A masculinidade hegemônica não é um conceito rígido, linear, fixo e imutável. Por conseguinte, deve-se levar em conta que existem masculinidades negras gays, brancas efeminadas, másculas proletárias, crossdressers burguesas, em meio a tantas outras variações decorrentes de combinações de distintos marcadores sociais de diferença e seus múltiplos atravessamentos.

A hegemonia, por sua vez, só se sustenta se houver correspondência entre ideal cultural e o poder institucional, como se torna evidente, por exemplo, nos cargos mais elevados das empresas privadas e no topo da hierarquia militar. Tal correspondência, aponta Connell (2005), fornece um ideal de masculinidade que clama uma postura de autoridade, e não necessariamente de violência, embora esta esteja frequentemente relacionada àquela, devido ao monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado.

Decorridas duas décadas da formulação do conceito de masculinidade hegemônica, Connell e Messerschmidt (2013) compilaram, na literatura, um apanhado de críticas que seus escritos receberam, entre elas a de que tal noção essencializa o caráter masculino e lhe atribui uma identidade delimitada, coesa e una, ignorando as contradições, fraturas e fluidez dos sujeitos. Além disso, a masculinidade hegemônica é um ideal construído o qual nenhum homem é capaz de atingir em sua totalidade. Connell (2005) demonstra que, na medida em que a hierarquização das masculinidades se desenvolve, essa impossibilidade torna-se evidente em razão de não existir um único sujeito que consiga se adequar a todas as nuances de modelos preestabelecidos ou que consiga superar todas as limitações impostas, seja pela natureza ou pela sociedade. No máximo, alguns homens ensaiam a tentativa de corresponderem a um determinado modelo, sem, no entanto, alcançá-lo. Além disso, o modelo hegemônico continuará sendo uma idealização, um artifício, mera construção e, portanto, impossível de ser alcançado.

No artigo de 2013, no qual revisitam e reformulam criticamente seus estudos inaugurais, Connell e Messerschmidt admitem que certas características da teoria haviam se tornado anacrônicas e, portanto, deveriam ser descartadas. Nessa direção, reconhecem que se tratava, inicialmente, de

[...] um modelo muito simples das relações sociais em torno das masculinidades hegemônicas. A formulação em Gender and power se esforçou em localizar todas as masculinidades (e todas as feminilidades) em termos de um padrão único de poder, a “dominação global” dos homens sobre as mulheres (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 263).

Em sua instigante autocrítica, os autores reconhecem que não apenas o conceito essencialista de masculinidade deveria ser revisto, como também “a abordagem dos traços para compreender o gênero necessita ser completamente transcendida” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 264). Isso significa que não só os atributos correspondentes aos ideais de masculinidade devem ser levados em conta de forma contextualizada, como é necessário fazer uma utilização crítica do conceito de masculinidade hegemônica, lançando mão de problematizações que retomem as contradições e atravessamentos próprios dos processos de subjetivação, a fim de escapar de armadilhas essencialistas.

Pelas frestas das masculinidades rurais

Hugh Campbell e Michael Mayerfeld Bell (2009) afirmam que há uma diferença sutil entre estudar o masculino no rural e o rural no masculino. O primeiro diz respeito às formas como a masculinidade é entendida e construída em contextos rurais, de modo a associar o trabalhador rural a uma figura máscula/masculina, o que invisibiliza o trabalho de mulheres em produções agrícolas, por exemplo. Já o rural no masculino se refere à noção de que ideias pertencentes ao campo semântico próprio dos ambientes rurais são parte constitutiva do que se entende por masculinidade, inclusive em contextos urbanos. Imagens frequentemente reiteradas, como a que associa a figura do lenhador ao “homem de verdade”, ao “macho” por excelência por supostamente encarnar um ideal de virilidade que remete à força física e à rusticidade da vida no campo, ainda estão presentes no imaginário popular. O vaqueiro e o sertanejo, figuras emblemáticas ligadas a terra, assim como o guarda que defende o campo, ainda são entidades arquetípicas que impregnam a constituição da masculinidade no plano simbólico.

Em meio a essas figurações e imagens telúricas, as vidas e experiências dos homens rurais ultrapassam o âmbito individual e passam a ser automaticamente associadas ao que se entende por “homem de verdade”, em um contexto de naturalização e até mesmo de essencialização (CAMPBELL; BELL, 2009). O rural no masculino, portanto, passa a ser uma dimensão constitutiva do entendimento daquilo que se refere às masculinidades, sejam elas rurais ou urbanas, pois expõe características e traços socialmente reforçados e nos ajuda a historicizar e demonstrar de que modo o homem foi compreendido como tal no decorrer de inúmeras e complexas dinâmicas histórico-sociais.

A iniciação sexual masculina na zona rural frequentemente era marcada pelo intercurso com animais, o que, no discurso biomédico, ganha um status psicopatológico: zoofilia. No sul do Brasil, há uma expressão típica para designar essa prática: é comum ouvir dizer que um adolescente “barranqueou” égua, referindo-se ao ato de manter intercurso sexual com uma potranca após imobilizá-la em um barranco. Essa proximidade com a natureza reforça o caráter brutal e animalesco que costuma ser associado no imaginário coletivo ao exercício da sexualidade masculina. O rural representa o contato com o ambiente natural, agreste, rústico, primitivo, tosco, espaço não habitado, isto é, tudo o que resiste à civilização e conserva o caráter rudimentar dos instintos.

O fardo irrevogável do passado colonial

Em um apanhado histórico acerca das masculinidades rurais no Brasil Colônia e Império, entre os séculos XVI e XIX, Eduardo Schnoor (2016) nos apresenta à antiga expressão “riscar o chão”, que significava demarcar um limite, até no sentido literal. No entanto, ultrapassar esse limite, essa marca que imprime um contorno (à semelhança do “risco” do bordado), pode dar início a um conflito ou duelo, vistos como atividades estritamente masculinas. O tornar-se homem, nesse Brasil de outrora, estava repleto de passagens (ou ultrapassagens), como nos lembra Gilberto Freyre (2019) ao mencionar que o menino passava a ser entendido como homem quando era “carimbado” pela sífilis, uma doença venérea altamente contagiosa. Ele poderia inclusive ser ridicularizado por não exibir manchas no corpo em decorrência da infecção sexualmente transmissível.

Não é de surpreender essa associação entre o tornar-se homem e o engajamento em práticas sexuais de risco, pois, como salienta Schnoor (2016, p. 96):

[...] sobre a sua masculinidade não podia pairar a menor dúvida, pois era uma sociedade em que o pai informava não o nascimento de um menino, mas que havia nascido um macho. Uma sociedade em que as mães de meninos com muito orgulho diziam “prendam suas frangas que meu galo está solto”. Uma sociedade em que o homossexualismo [sic] era um anátema. Ter filho adamado era inimaginável. Caso ocorresse este “problema” em uma família de posses, ele era mandado para o Rio de Janeiro. Melhor ainda à Europa, bem longe. Quantas importantes famílias do Brasil não tiveram seus tios solteirões morando principalmente em Paris?

Atualmente, a masculinidade, por ainda sustentar um modelo de virilidade baseado na busca de apreciação e aceitação pelos pares e no reforço de uma presumida invulnerabilidade, baseada em um certo ideal heterossexual, produz riscos à saúde e à vida do homem em sua busca incessante de “ser homem” (CONNELL, 2005) sem poder, é claro, atingir plenamente essas expectativas, por serem inalcançáveis. Andréia Burille et al. (2018, p. 444), em estudo sobre a subjetividade de homens rurais com problemas cardiovasculares, apontam que seus resultados possibilitaram verificar “o potencial de influência das subjetividades masculinas a partir da demarcação de fragilidade ou de afirmação da masculinidade na interação com o cuidado em saúde”. A referida pesquisa desvendou ações cotidianas que são inteiramente balizadas pelo modelo normativo de masculinidade. Essas ações podem acentuar “condições de adoecimento no cenário da vida rural por sua configuração geográfica, funcional e de reprodução social” (BURILLE et al., 2018, p. 444). Tais achados, segundo os autores, devem ser compreendidos para além de uma discussão abstrata, dadas as implicações evidentes para o campo da saúde.

Nas veredas com Diadorim: narrador artesão, tecedor de viagens

Grande sertão: veredas, do escritor mineiro João Guimarães Rosa, é um romance épico lançado no ano de 1956 e que, instantaneamente, passou a figurar entre os clássicos da língua portuguesa, sendo considerado por Antônio Cândido (2002) como o primeiro romance metafísico entre as grandes obras da literatura brasileira. Ao apresentar a jornada épica do jagunço Riobaldo, o autor nos faz refletir sobre a natureza desse relato autobiográfico. Ele é o narrador que conta sua história a um interlocutor desconhecido, o qual se revela um ouvidor paciente e atento, que não se manifesta ao longo de toda a narrativa. Como nos lembra Afonso Cardoso (1998), o pensador alemão Walter Benjamin (2012), que deixou contribuições marcantes no campo da filosofia e da crítica literária, estabeleceu em seus estudos as características típicas do narrador clássico, que figura entre as possibilidades de narrativas escritas. Em sua obra Magia e técnica, arte e política, Benjamin (2012) apontou diversos atributos da narração clássica que podem ser encontrados no narrador de Grande sertão: veredas.

Entre as características do narrador clássico, podemos destacar a pouca distinção em relação às histórias orais proferidas anonimamente, a presença de conselhos em forma de sugestão, a ênfase na experiência em detrimento das explicações abstratas e teorizações, a utilização de representantes, como o viajante que vem de longe e o camponês sedentário. O narrador clássico elabora uma história que dispensa verificação, ao mesmo tempo que fornece recursos para que se busque sondar o sentido da vida. “Em tempo. O narrador clássico que reúne tais características é classificado por Benjamin como narrador artesão e narrador de viagens” (CARDOSO, 1998, p. 134). Guimarães Rosa (2019) adotou o narrador clássico como forma de sugerir a quem lê o relato, sem imposição ou tirania, um mergulho das narrativas na vida do leitor, e até na vida de quem as narra. Quem lê o relato do narrador artesão “constrói sua visão de mundo, associando ou relacionando[-o] à sua estrutura mental e à sua própria vivência e experiência” (CARDOSO, 1998, p. 136).

Por meio dessa construção de mundo, Guimarães Rosa tangencia temas sensíveis e particulares, como o sertão, a vida sertaneja e os jagunços oriundos dos estados de Minais Gerais, Bahia e Goiás. Para Cândido (2002), porém, é justamente por meio dessas particularidades que o autor alcança o universal.

[...] tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, - para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo (CÂNDIDO, 2002, p. 122).

É nessa universalidade de temas que podemos localizar a discussão sobre as masculinidades contidas no enquadramento épico do romance, centrado em um ambiente supratemporal que fez com que a filha única do personagem Joca Ramiro, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins (ou Diadorim), viesse a se tornar Reinaldo, jagunço travestido de homem que se junta ao bando chefiado por Riobaldo na tentativa de consumar a vingança pela morte do pai. O pai de Diadorim fora assassinado à socapa por Ricardão e Hermógenes, até então seus fiéis seguidores.

Desde o momento em que conhece Diadorim - a quem se refere, nesses primórdios do relacionamento, como “o menino”, tratamento que será mantido até o final da narrativa, Riobaldo evoca uma fala afetuosa, que prenuncia, de certo modo, o crescente enlevo apaixonado pela personagem que se estabelecerá ao longo da narrativa. “Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino, mocinho, pouco menos do que eu” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p. 80). E, na página seguinte: “O menino tinha me dado a mão para descer o barranco” [...] (p. 81). Diadorim é retratada, ao longo do romance, como representando o branco-e-preto, bem-e-mal, dia-e-noite, ambiguidade que, conforme se perceberá no desenrolar da trama, se estenderá ao gênero.

O caráter ambíguo, reticente, dubitativo, emerge diversas vezes na voz de Riobaldo quando, no uso de sua função de narrador da história, indaga a existência do demônio diante de seu interlocutor atento e interessado. Como argumenta Willi Bolle (2001), Grande sertão: veredas pode ser entendido como uma reescrita (evidentemente, com ressalvas) d’Os sertões, cultuado clássico de Euclides da Cunha, na medida em que essas obras seminais do século XX delineiam um retrato do ethos brasileiro a partir de um cerne duro que é a vida do povo sertanejo. A obra-prima euclidiana buscou representar o povo por meio da celebração de atributos masculinos que marginalizam o feminino, reificando o masculino misógino. “À exaltação euclidiana das qualidades guerreiras, Guimarães Rosa responde de forma irônica e provocativa com a representação de um amor homossexual” (BOLLIE, 2001, p. 91).

Em uma possível referência ao Fausto, de Goethe, Guimarães Rosa (2019) introduz o pacto com o demônio, celebrado pelo jagunço nas Veredas-Mortas, embora Riobaldo nada tenha visto de sobrenatural nesse acontecimento e sofra o tempo todo com a dúvida de sua efetuação. Fincado na incerteza de Riobaldo, Cândido (2002, p. 136) indaga:

Mas por que o demônio em tudo isso? Porque nada encarnaria as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão. A amizade ambígua por Diadorim aparece como primeiro e decisivo elemento que desloca o narrador do seu centro de gravidade. Levado a ele (ou a ela) por um instinto poderoso que reluta em confessar a si próprio, e ao mesmo tempo tolhido pela aparência masculina, - Riobaldo tergiversa e admite na personalidade um fator de desnorteio, que facilita a eclosão de sentimentos e comportamentos estranhos, cuja possibilidade se insinua pela narrativa e o vão lentamente preparando para as ações excepcionais, ao obliterar as fronteiras entre o lícito e ilícito.

A aura de ambiguidade que circunda Diadorim, e que é parte da pele constitutiva da personagem, sugere que “há algo que se mostra e algo que se oculta e as duas coisas acontecem ao mesmo tempo” (Márcia TIBURI, 2013, p. 194). É nesse sentido que sua morte trágica “absolve” o desejo homossexual de Riobaldo - mesmo que não admitido explicitamente com essa conotação pelo narrador. Wilberth Salgueiro e Yasmin Zandomenico (2019) retomam o caráter machista da jagunçagem, ressaltando que virilidade e valentia - duas características culturalmente atribuídas ao masculino - são tidas como posturas fundamentais para assegurar a sobrevivência no sertão profundo. Nesse contexto, o feminino, equiparado ao frágil e indefeso, é claramente rejeitado (até mesmo por Diadorim) por ser entendido como sinal de fraqueza. Assim, face à paixão excruciante que passa a nutrir por Diadorim, Riobaldo se encontra mergulhado em um inevitável conflito entre o ideal de macho jagunço e o “desejo desviante” que o faz ser cativo (SALGUEIRO; ZANDOMENICO, 2019, p. 206).

Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins é instruída pelo pai desde cedo a atender ao modelo de masculinidade, que lhe é imposto como condição de sobrevivência. O caráter compulsório e intimidador com que se dá a transmissão de pai para filha dos valores tradicionais relacionados ao gênero fica explícito na destreza que Reinaldo/Diadorim adquire no manuseio das facas. Torna-se, ao final, o modelo de jagunço que nem mesmo Riobaldo conseguiu alcançar, o que o transforma em objeto de veneração, que é um outro modo de afeição. O exercício desse tipo de masculinidade pode ser lido a partir de uma proposição analítica de Pierre Bourdieu (2014) em A dominação masculina, na qual o sociólogo explicita a naturalização da visão masculina por meio da reprodução de um discurso biologizante que, no entanto, é socialmente construído, com suas múltiplas ressonâncias simbólicas.

[...] ele [o trabalho de construção simbólica] se completa e se realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível tudo o que caracteriza pertencer ao outro gênero (BOURDIEU, 2014, p. 33).

Durante seu percurso de desenvolvimento, Diadorim se esmera em corresponder às prescrições do modelo que lhe foi transmitido por herança paterna. A modelagem do gênero seleciona e autentica determinadas performances, enquanto invalida outras. Como guerreiro, Diadorim expõe-se a riscos que o conduzem à morte prematura. O final do romance coincide com o momento de máxima tensão, que faz Riobaldo experimentar um misto de horror e ternura, que o leva ao estremecimento como um raio de luz refratado em seu olhar, ao se aproximar do corpo já desprovido de vida do amado. Atordoado, ele se inclina sobre o cadáver nu, antes de receber o golpe fatal que faz todo o seu corpo tremer.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: - “Meu amor!...” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p. 429).

Essa passagem, de rara beleza, traduz a confusão emocional que abala Riobaldo no momento culminante em que se vê confrontado com duas revelações dilacerantes: a visão insuportável da morte do ser amado coincide com a aparição do fato de que o “jagunço” fora esculpido sobre um corpo de mulher. Corpo sexuado e generificado. Mais do que nunca, erotismo e morte caminhavam entrelaçados. Chocado, mais pelo que seus olhos expunham de seu desejo secreto, entre fascínio e repulsa, Riobaldo enfrenta algo que tinha que se tornar visível. Esse paradoxo escancara o absurdo do enigma revelado no ato da morte, abrindo uma clareira que dá lugar à perplexidade diante do inexplicável: “eu não sabia por que nome chamar” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p. 429), balbucia Riobaldo diante da epifania.

Grande sertão: devires nas derivas do desejo

Neste estudo, nosso interesse se volta para o impacto estético produzido pela figura enigmática de Diadorim em Riobaldo. Como aponta Roberto Schwarz (1981), Diadorim é percebida por Riobaldo como Diadorim e não como Deodorina. Em outras palavras, “torna-se vítima da aparência” de jagunço (SCHWARZ, 1981, p. 48).

Diadorim é metaforizada como uma “neblina”: “Diadorim é a minha neblina” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p. 21), diz Riobaldo. Essa frase enigmática é destacada por Adélia Bezerra de Meneses (2010) naquilo que ela parece evocar: uma metáfora potente do corpo psíquico de Diadorim, branco, etéreo, diáfano, evanescente, inconspurcado, virginal. Cunhamos a expressão “corpo psíquico” para designar o estereótipo de uma constituição corporal de Diadorim construída no imaginário de Riobaldo. Não por acaso, Riobaldo hesita; o ímpeto do desejo o arrasta a uma margem e a água não retorna a seu curso sossegado. Não há remanso, a pulsão não conhece repouso.

Ao afirmar, em seu arrebatamento silencioso, que Diadorim é a sua neblina, estamos diante de uma formulação que é uma modulação e, ao mesmo tempo, reitera o caráter ambíguo (no que diz respeito ao gênero) da palavra, utilizada no diminutivo: Diadorim. Como nota Meneses (2010, p. 66), o sufixo -im é ambíguo no que diz respeito ao gênero: “Sendo im uma desinência que, embora acene com um diminutivo (por sinal muito mineiro), não revela o sexo”. Além disso, a autora chama a atenção para a sonoridade singular do nome do amado.

No nível da sonoridade, essa metáfora ressoa os sons fundamentais do nome amado e nos envolve em um determinado ritmo, que se concretiza em uma imagem, uma figura. Uma metáfora com tal apelo visual não faria luzir, sensível, a ideia? (MENESES, 2010, p. 65).

Vale lembrar que o pacto mefistofélico firmado por Riobaldo nos confins das Veredas-Mortas o aproxima da soberba de Lúcifer - Luciferus era o anjo “portador da luz” dos antigos romanos (da junção do étimo latino lux - luz e ferus - carregar). A palavra em latim é derivada de um termo grego que, em sua origem, designava a estrela d’alva ou estrela da manhã. Com o advento do cristianismo, este termo passou a ser associado, na concepção popular, a Satã, o anjo do mal, que era o mais belo e fulgurante dos anjos antes de amargar a queda. Assim, primordialmente, Lúcifer (aquele que carrega a luz) não era um nome que se referia ao anjo que teria desafiado a Deus.

Diadorim nasceu no corpo socialmente lido como feminino, mas se identificava com o gênero masculino. Moldou seu corpo sob medida, performando à perfeição os signos culturalmente identificados e convencionados como próprios do homem. A invenção do corpo desvela e denuncia que o desejo sempre nos escapa, está sempre deslocado, extraviado e à deriva. Um rio que corre em fluxos, ora por um curso subterrâneo, ora aflorando por veias abertas em jatos cantantes: veredas.

Desse modo, as artimanhas do desejo são dispostas magistralmente por Guimarães Rosa na narrativa ficcional, através do tensionamento permanente entre o que é da ordem da escuridão, do mistério, e o que é da ordem da luz, do que se desvela e se dá a conhecer. Vale a pena vasculhar a raiz etimológica da palavra Diadorim, no que ela enseja, ambiguamente, de divino e diabólico, de sagrado e profano, de princípio feminino e masculino.

Se Deodorina, de Deodora ou Teodora, etimologicamente vem do lat. Deo (a Deus) + o grego doron (“dom”), inequivocamente significando “dom a Deus” (ou “A Deus dada”, como verbalizou a mulher do Hermógenes), Diadorim remete a Deus e ao Diabo, à Luz e às trevas, ao Diabo e à Nossa Senhora, à dor e ao adorar. Sendo im uma desinência que, embora acene com um diminutivo (por sinal, muito mineiro), não revela o sexo, Diadorim pode ser homem ou mulher. Ambíguo, contraditório, Diadorim provoca em Riobaldo os movimentos contrários de uma poderosa atração e de recusa; de perplexidade (MENESES, 2010, p. 40).

Segundo Judith Butler (2015), o gênero não pode ser entendido sem levar em conta o contexto de classe, político, racial, regional e geracional, afinal, ele não se apresenta de forma linear e consistente em diferentes momentos históricos, mas é fruto das interseccionalidades discursivamente construídas em cada época. Nessa perspectiva, o gênero não é substancial, mas nem por isso é um conjunto de atributos inconsistentes ou irregulares: ele engendra um “efeito” substantivo gerado pelas normas reguladoras de coerência de gênero. Se retirarmos a historicidade da sexualidade, suprimimos todas as estratégias de poder que trabalharam visando estabelecer a diferença dos sexos como verdade preponderante dos sujeitos (Berenice BENTO, 2012).

Ao construir um espaço ficcional que evoca o Sertão mineiro do final da República Velha, Guimarães Rosa desenha um retrato mítico-ficcional de um Brasil arcaico cuja estrutura social e fundiária resiste a ser incorporada na agenda da modernidade republicana. Vista dessa perspectiva, a construção de Diadorim como personagem que não se conforma nem se confina ao binarismo ou às normas de gênero vigentes amplifica a potência transgressora da obra. Diadorim é a flor do desejo em sua expressão sensível, nascida na carnalidade, no chão bruto. Ao realizar uma leitura de Grande sertão: veredas a partir da filosofia de Butler, Rosane Correa, Daniele Fortuna e Fabiana Farias (2019) sugeriram uma transição de gênero de Diadorim, a partir da “performatividade masculina” que ultrapassa essencialismos, isto é, que está para além de sua genitália. A morte prematura de Diadorim serve não apenas para “redimir” o desejo dissidente de Riobaldo, mas também para explicitar as “normas que asseguram o funcionamento da hegemonia heterossexual a partir da revitalização das identidades” (CORREA et al., 2019, p. 133). E é justamente por portar uma estética de caráter ambíguo que Diadorim evoca no narrador sentimentos que ameaçam desestabilizar sua ordem interna e solapar as bases de seu equilíbrio emocional, o que encontra no leitor uma possibilidade de assimilação, pois até ele vê Diadorim em modo evanescente, como “neblina” (Nabil ALI, 2016).

Para Ali (2016), a ambiguidade do corpo de Diadorim está no lugar do objeto estético que desafia as regras instauradas, ameaçando a ordem estabelecida. Objeto que desassossega o espectador ou leitor, por seu caráter de difícil assimilação. Há uma ruptura entre a personagem Diadorim sensível e a Diadorim simbólica, que se confundem na fala do narrador. Segundo Meneses (2010), em diversas passagens da narrativa de Riobaldo o corpo de Diadorim surge, por um lado, como contemplação do belo e, por outro, como arrependimento ou sentimento de culpa. Em outros termos, na tessitura fina do que é contado pelo narrador ao leitor, o corpo psíquico e físico de Diadorim é tecido em conformidade com a profundidade represada (o “baldo”), com seus breus sendo progressivamente iluminados pelas lembranças do jagunço sobrevivente.

Meneses (2010) chama a atenção para o fato de que, nas tramas narrativas de Guimarães Rosa, nada é unívoco, nada é por acaso. Assim, não se pode dizer, com certo alívio: “isso ou aquilo”. Deus é o Diabo, Diadorim é dom de Deus e também é Diá. No deslizamento dos significantes pelas vertentes da linguagem, a ambiguidade da fantasia grassa e reina soberana. A sexualidade vai permanecer sempre como um resíduo do mistério incontornável, porquanto é da ordem do insondável, campo de batalha subterrâneo, desfiladeiro por onde caminha o passageiro clandestino. O vocábulo “baldo” tem uma outra acepção contraditória: barragem ou parede para represar as águas de um açude, de onde deriva o substantivo “balde”, recipiente. O desejo não oferece trégua nem concede refúgio, o leito do rio não é nada repousante.

Também no plano dos nomes dos dois protagonistas existe uma relação que enlaça simbolicamente seus devires: Riobaldo comporta o significado de falha, vazio, inutilidade. Mas, ao mesmo tempo, abriga, é “aquele que” retém, que represa água no açude, por exemplo, da correnteza de um rio. Em uma determinada passagem, Diadorim comenta a semelhança sonora que existe entre os nomes Riobaldo e Reinaldo. A primeira parte do nome de Reinaldo remete ao verbo grego réo, rei, que significa correr. Assim, nota Meneses (2010), no nível etimológico se verifica um outro acordo entre os nomes: “se Riobaldo é o rio ‘vão’, também pode ser aquele que, como um açude, represa, contém... as águas desse outro rio, que ‘corre bem’” [...] (MENESES, 2010, p. 73).

Considerações finais

Neste estudo, abordamos uma temática (masculinidades rurais) ainda pouco explorada pelos estudos nacionais, apesar de sermos herdeiros de uma sociedade agrária, patriarcal, aristocrática e escravocrata. O delineamento das questões de gênero nos permitiu problematizar o desenvolvimento complexo dos personagens Diadorim e Riobaldo, com seu envolvimento afetivo sublimado. Assim como a narrativa ficcional caudalosa não obedece a uma ordem linear ou cronológica, as artimanhas do desejo sexual por vezes se enunciam na travessia do existir, assemelhando-se à própria geografia errática descrita no livro, ora se mostrando, ora se invisibilizando em suas reentrâncias, veredas, rios e córregos que se capilarizam e abraçam todo o Sertão, isto é, o tempo mítico anterior à palavra e ao desencantamento do mundo. Antes, portanto, que a nomeação - sistema sexo/gênero - habitasse os meandros labirínticos dos corpos, com seus circuitos pulsionais extraviados. A tradição oral, resgatada na forma como a história/estória é contada-e-recontada, torna a vasta fala de Riobaldo viva, densa, pulsante; ora opaca, ora translúcida e até contraditória, fluida como o próprio sujeito em suas correntezas e remansos, derivas e errâncias, devires de indeterminação, porque nunca se sabe com que roupa o desejo vai nos esperar no final da próxima vereda.

Vimos que Diadorim busca refúgio no bando de Riobaldo após perder o pai à traição. Isso torna patente que, no horizonte do desejo, nos encontramos sempre deslocados, seres de transiência, corpos em trânsito rasgando trilhas veredas adentro. Ali, de certa forma, permanecemos estrangeiros, desde a gênese do primeiro gesto compartilhado. Na travessia, temos a vasta fala do narrador, que confronta os limites do irrepresentável, mas com força suficiente para construir significações. No grande sertão: na linguagem há cercas, barreiras e paliçadas de variados calibres a superar, mas as fronteiras são móveis, porosas, e é preciso estar aberto ao imponderável, manter o olhar desembaçado para o inquietante-mundo-em-transformação, cultivar a postura de abertura ao novo e ao impermanente.

A leitura da obra-prima, sob um recorte delimitado pela análise da relação estabelecida pelos personagens Riobaldo e Diadorim, permitiu elucidar que gênero não se substancializa, ainda que reproduza certos efeitos expressivos, percebidos em distintas versões da masculinidade hegemônica performadas pelo bando de jagunços personificados na epopeia rosiana. Dentre as versões gendradas, Diadorim emerge como o símbolo mais elaborado da ambiguidade que cerca o enigma da sexualidade regulada pelo sistema sexo/gênero. O amor homossexual é barrado, pois se constrói à revelia e à socapa, clandestinamente, com o fermento do afeto sob interdito e sem armistício duradouro porque “não há remanso nem lenitivo para o desejo”.

O tensionamento da relação entre os jagunços chega ao seu limite, para se prismatizar no momento culminante da morte em combate de um dos parceiros. O potencial disruptivo do desejo que vinha se insinuando (em 428 das 435 páginas do romance, Diadorim se dá a conhecer como homem, de início Reinaldo) termina com a manutenção do agenciamento heteronormativo. No entanto, convém não esquecer a palavra que o autor escolhe para encerrar o fluxo caudaloso da narrativa: “travessia”, que sugere abertura de possibilidades.

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  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    SANTOS, Manoel Antônio dos; LIMA-SANTOS, André Villela de Souza; ARAÚJO, Jeferson Santos; OLIVEIRA, Wanderlei Abadio de. “Construção das masculinidades rurais em Grande sertão: veredas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e79660, 2023.
  • Financiamento:
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). André Villela Lima-Santos é Bolsista de Mestrado da CAPES, processo número 160741/2021-1. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Manoel Antônio dos Santos e Wanderlei Abadio de Oliveira são Bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, categorias 1A e 2, respectivamente.
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    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2021
  • Revisado
    02 Jan 2022
  • Aceito
    07 Fev 2022
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