Resumos
O texto objetiva analisar o processo de empoderamento e o exercício da autoadvocacia na vida de pessoas com deficiência como condições que influenciam o reconhecimento da identidade de gênero e das questões de sexualidade. O argumento central defendido é o de que a visão comum sobre as pessoas com deficiência está relacionada geralmente ao rótulo incapacitante da deficiência, acarretando a invisibilidade da sexualidade e o não reconhecimento do ser homem/mulher com deficiência. Este relato de pesquisa adota a metodologia de história oral e contribui para o campo de investigação sobre deficiências, gênero e sexualidade a partir da visibilidade da história de vida de uma mulher com deficiência. Analisa-se a história de uma jovem com deficiência intelectual, evidenciando-se a superação do rótulo incapacitante como condição fundamental para que ela se reconheça como uma mulher sexuada, com a capacidade de tomar decisões e viver seus desejos. A jovem apresenta indícios de seu empoderamento em quatro dimensões fundamentais: família, educação, trabalho e vida social, revelando que a deficiência não a impossibilita de sair, namorar, ter amigos, ter uma ocupação remunerada, isto é, ser uma mulher empoderada.
Educação Especial; Gênero; Sexualidade; Deficiência; Empoderamento
This paper aims to analyze the process of empowerment and the exercise of self advocacy in the lives of people with disabilities as conditions that influence the recognition of gender identity and sexuality issues. The central argument defends that the common view of people with disabilities is generally related to a debilitating label of disability, resulting in invisibility of sexuality and the non-recognition of being a man / woman with disabilities. This research report adopts the methodology of oral history and contributes to the field of research on disability, gender and sexuality from the visibility of the life history of a woman with disabilities. This text analyzes the history of a young woman with intellectual disabilities, showing the process of overcoming crippling labels as a key to enabling recognition of herself as a sexual being, capability of making decisions and living her own desires. The young woman showed evidence of empowerment in four main dimensions: family, education, work and social life, revealing that disability does not preclude going out, dating, having friends, having a paid job, and being an empowered woman.
Special Education; Gender; Sexuality; Disability; Empowerment
RELATO DE PESQUISA
Entrelace entre gênero, sexualidade e deficiência: uma história feminina de rupturas e empoderamento1
Interlace between gender, sexuality and disability: a history of women's break with the past and empowerment
Taísa Caldas DantasI; Jackeline Susann Souza SilvaII; Maria Eulina Pessoa de CarvalhoIII
IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, PB, Brasil. taisa.cd@gmail.com
IIMestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, PB, Brasil. jackeline-susann@hotmail.com
IIIPHD em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, PB, Brasil. mepcarv@terra.com.br
RESUMO
O texto objetiva analisar o processo de empoderamento e o exercício da autoadvocacia na vida de pessoas com deficiência como condições que influenciam o reconhecimento da identidade de gênero e das questões de sexualidade. O argumento central defendido é o de que a visão comum sobre as pessoas com deficiência está relacionada geralmente ao rótulo incapacitante da deficiência, acarretando a invisibilidade da sexualidade e o não reconhecimento do ser homem/mulher com deficiência. Este relato de pesquisa adota a metodologia de história oral e contribui para o campo de investigação sobre deficiências, gênero e sexualidade a partir da visibilidade da história de vida de uma mulher com deficiência. Analisa-se a história de uma jovem com deficiência intelectual, evidenciando-se a superação do rótulo incapacitante como condição fundamental para que ela se reconheça como uma mulher sexuada, com a capacidade de tomar decisões e viver seus desejos. A jovem apresenta indícios de seu empoderamento em quatro dimensões fundamentais: família, educação, trabalho e vida social, revelando que a deficiência não a impossibilita de sair, namorar, ter amigos, ter uma ocupação remunerada, isto é, ser uma mulher empoderada.
Palavras-Chave: Educação Especial. Gênero. Sexualidade. Deficiência. Empoderamento.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the process of empowerment and the exercise of self advocacy in the lives of people with disabilities as conditions that influence the recognition of gender identity and sexuality issues. The central argument defends that the common view of people with disabilities is generally related to a debilitating label of disability, resulting in invisibility of sexuality and the non-recognition of being a man / woman with disabilities. This research report adopts the methodology of oral history and contributes to the field of research on disability, gender and sexuality from the visibility of the life history of a woman with disabilities. This text analyzes the history of a young woman with intellectual disabilities, showing the process of overcoming crippling labels as a key to enabling recognition of herself as a sexual being, capability of making decisions and living her own desires. The young woman showed evidence of empowerment in four main dimensions: family, education, work and social life, revealing that disability does not preclude going out, dating, having friends, having a paid job, and being an empowered woman.
Keywords: Special Education. Gender. Sexuality. Disability. Empowerment.
1 INTRODUÇÃO
Este estudo tem como foco o processo de empoderamento e o exercício da autoadvocacia na vida de pessoas com deficiência como condições que influenciam o reconhecimento da identidade de gênero e das questões de sexualidade. O argumento central aqui defendido é o de que a visão comum sobre tais pessoas está geralmente relacionada ao rótulo incapacitante da deficiência, acarretando a invisibilidade da sexualidade e o não reconhecimento do ser homem/mulher com deficiência.
A concepção simplista sobre a pessoa com deficiência traz como consequência vê-la apenas como "eterna criança" que precisa de cuidados, mesmo quando está na fase adulta, o que gera dependência familiar e o controle das escolhas pessoais, restringindo a sua história de vida à voz de autorização de seus responsáveis. Por outro lado, reconhecer a identidade de gênero e a capacidade de desenvolvimento integral da pessoa com deficiência significa abrir espaços para o protagonismo e empoderamento nas suas escolhas de vida, na sexualidade e na busca por oportunidades educacionais e ocupacionais.
O interesse por esta problemática de estudo em particular surgiu como consequência da nossa participação no grupo de pesquisa da universidade. Durante o período de aproximadamente quatro anos temos a oportunidade de conviver com mulheres e homens com deficiência com os/as quais compartilhamos suas experiências de desafios, empoderamento, sucesso acadêmico e na vida pessoal: elas/eles namoram, estudam, fazem universidade, trabalham, moram sozinhos, viajam.
A interseção entre deficiência e gênero na perspectiva do empoderamento e da autoadvocacia é extremamente complexa e existem poucas pesquisas científicas nos âmbitos nacional e internacional com este foco. Como clarificam Donna M. Mertens et al. (2010), na maioria das pesquisas no campo da deficiência, a questão de gênero raramente é incluída como uma importante dimensão da diversidade. A relevância desta problemática está justamente na ausência de pesquisas científicas que relacionem a literatura sobre deficiência aos estudos feministas contemporâneos.
Conforme levantamento da produção científica nas reuniões anuais da ANPED no GT15: Educação Especial, nos anos de 2000 a 2012, realizado em 1/4/2013, verificou-se que não há trabalhos que explorem o protagonismo de pessoas com deficiência a partir das questões de gênero e sexualidade. Desta forma, é importante abrir esta discussão em eventos científicos da aérea de educação a fim de instigar o interesse de pesquisadores/as brasileiros/as.
Na literatura em língua inglesa encontra-se crítica aos estudos feministas por não incluírem em suas agendas reivindicatórias as questões que envolvem as mulheres com deficiência. Segundo Mertens (2010), as lutas de feministas e mulheres com deficiência divergem, pois enquanto mulheres feministas vêm buscando a legalização do aborto, mulheres com deficiência lutam pelos direitos de responsabilidade por sua vida sexual e de liberdade quanto à maternidade. Há uma tensão entre as mulheres com deficiência e as feministas em relação à permissão jurídica do aborto quando o feto apresenta 'anormalidade'. Em contraposição, a comunidade das pessoas com deficiência assume uma posição identitária de grupo em defesa do direito à vida.
Mertens et al. (2012) apontam que pessoas com deficiência estão vulneráveis ao abuso sexual, e que isto geralmente ocorre entre pessoas próximas, como professores/as, cuidadores/as, intérpretes, pais e parentes. Merecem destaque três pontos que a autora levanta em relação aos abusos sexuais de pessoas com deficiência: 1) A deficiência, muitas vezes, impede que as pessoas com deficiência identifiquem os sinais de abuso; 2) Quando o/a abusador/a é alguém próximo da pessoa com deficiência, ela se sente intimidada para denunciar, pois teme perder a assistência; 3) Quando a pessoa com deficiência fala que foi abusada sexualmente, muitas vezes, as pessoas acham que ela esta enganada ou que interpretou errado.
No Brasil, Ferreira (2008) argumenta acerca da importância do papel da educação no esclarecimento das questões de gênero e sexualidade da pessoa com deficiência. Para a autora, abrir este diálogo significa diminuir as chances de vulnerabilidade e abuso sexual que estas pessoas estão propícias a sofrer. Por outro lado, a expressão do desejo e da sexualidade da pessoa com deficiência ainda constitui tabu. Segundo Denari (2006):
O estereótipo da pessoa deficiente tida como assexuada ou agressiva sexualmente resulta da visão popular que atribui a ela características de incompletude e desvio do padrão considerado normal (...). Vêm-se atribuindo rótulos negativos às pessoas com deficiência qualificando-as como eternas crianças, anjos, feras, homossexuais ou hipersexuais. Diferentemente, há que aceitá-las na sua individualidade, na riqueza da diversidade. Creio que este é um dos caminhos para rompermos com preconceitos infundados (DENARI, 2006, p. 200-203).
Quando mulheres/homens com deficiência assumem sua vida sexual, geralmente as pessoas reagem com surpresa ou medo, uma vez que, principalmente mulheres com deficiência, são vistas como pessoas fragilizadas, sendo julgadas como abusadas sexualmente mesmo quando o sexo é desejado e consentido. Envolver a escola e a comunidade nas questões de gênero e sexualidade das pessoas com deficiência significa quebrar estereótipos e mitos quanto à identidade de homens e mulheres com deficiência e sua vida sexual, assim como esclarecer para a sociedade e para as próprias pessoas com deficiência os sinais de abuso sexual, para a prevenção, identificação, denúncia e busca por punição dos/as acusados/as.
A pesquisa que originou este texto adota a metodologia história oral e pretende contribuir para o campo de investigação sobre deficiências, gênero e sexualidade a partir da visibilidade da história de vida de uma mulher com deficiência intelectual cuja voz revela autoadvocacia e empoderamento como um caminho para a valorização de si, participação social e desenvolvimento da vida afetiva e sexual. Sua história aponta a busca para romper com a dependência familiar e fazer suas próprias escolhas de vida, uma vez que Caroline (nome fictício), mesmo diante dos limites impostos pelos pais, se reconhece como mulher, adulta, com deficiência, empoderada, cheia de sonhos e objetivos a alcançar. Desta forma, sua história serve de inspiração para outras/os mulheres/homens com deficiência que buscam vencer as barreiras à autonomia para o exercício de suas escolhas e desejos.
2 RELACIONANDO OS CONCEITOS DE GÊNERO, SEXUALIDADE, EMPODERAMENTO E AUTOADVOCACIA
A história mostra que o grupo social das pessoas com deficiência tem sofrido constantes processos de exclusão e desempoderamento, impossibilitando-as de desfrutar de direitos humanos básicos, como o direito à sexualidade, à educação, à cultura, ao lazer (AINSCOW, 1993). Nesse contexto, experiências de maus-tratos, perseguição e opressão, silenciamento e mutilamento também marcam a história do processo de vulnerabilização do sexo feminino desde a antiguidade (FLORES; MORAIS, 2003), colocando meninas e mulheres com deficiências em duplo estado de vulnerabilidade ou perigo. A mulher com deficiência apresenta "[...] múltiplas vulnerabilidades, as quais são constituídas por duas condições principais: a de ser mulher e de ser uma pessoa com deficiência" (FARIAS, 2011, p.18). A ênfase na deficiência anula as características pessoais e cognitivas, intensificando seu processo de exclusão e reforçando sua "identidade de invisibilidade [...] ou de visibilidade de sua 'incapacidade'" (SOARES, 2010, p. 22).
Conforme a literatura inglesa, a combinação dos estereótipos de mulheres e de pessoas com deficiência leva a uma dupla discriminação, a qual é refletida em casa, na escola, no lugar de trabalho e em toda sociedade (WEHMEYER; ROUSSO, 2001). Desta maneira, os movimentos de luta de pessoas com deficiência compartilham uma profunda relação com os direitos buscados pela bandeira feminista, uma vez que ambos os campos de estudo possuem metas semelhantes no que diz respeito à eliminação de exploração e opressão dos seus grupos (WATSON et al., 2004).
O conceito de gênero, como categoria ontológica, considera as diferenças e as desigualdades atribuídas ao homem e à mulher, que ganham sentido através de sistemas simbólicos culturais que designam masculinidade e feminilidade como um conjunto de qualidades opostas e hierárquicas no marco do androcentrismo (a visão do homem como o centro e a norma para os seres humanos) e do patriarcado (sexismo sistêmico institucionalizado, que implica subordinação e opressão da mulher) (CARVALHO; ANDRADE; MENEZES, 2010; HOOKS, 2000). Os estudos feministas problematizam a noção de naturalidade do sexo, fundada na visão biológica, e buscam compreender as relações de poder que estão imbricadas nos papéis, identidades e estereótipos de gênero. Segundo Maria Cruz (2012):
Gênero compreende as diferenças construídas entre homens e as mulheres, os papéis assumidos na sociedade e as relações hierárquicas, de opressão, submissão, subordinação, ou seja, de poder, estabelecidas entre eles [...] assim a abordagem de gênero não é um conceito fixo, tampouco unânime, está em constante mutação de acordo com as regras de convívio social de cada cultura (CRUZ, 2012, p. 49).
Assim, as relações de gênero de dominação masculina e interligadas com a sexualidade estabelecem normas arbitrárias para homens e mulheres na definição de seus comportamentos, no modo de relacionar-se, de demonstrar afetividade e liberdade sexual (exemplo: mulher ser frágil e homem ser forte), suas roupas, seu modo de se relacionar e de demonstrar afetividade e viver a sexualidade (LOURO, 2011). Para a autora, esses papéis são aprendidos em diversas instituições sociais como família, escola, igreja, etc. Nesse caso, homens e mulheres se reconhecem nessas representações e passam a julgar o que é adequado ou não para um comportamento masculino ou feminino.
As relações de gênero são fortemente marcadas nas mulheres com deficiência, pois, devido ao histórico processo de infantilização e dependência familiar em que estão submersas, as características de fragilidade feminina são intensificadas. Assim, elas são superprotegidas pela família em razão de violência e abuso sexual; e, frequentemente, são vistas como incapazes de exercer os papéis que são atribuídos às mulheres sem deficiência, tais como constituir família, cuidar dos filhos e das atividades domésticas. No entanto, consideramos que ser homem e mulher com deficiência depende de contextos históricos diferenciados, relações étnico-raciais, socioeconômicas, fazendo com que as identidades não sejam fixas (HALL, 1992) e eles/elas assumam diferentes papéis.
A sexualidade não pode ser compreendida sob a ótica apenas dos componentes naturais, devendo ser compreendida principalmente através dos processos inconscientes e culturais, uma vez que está relacionada com a subjetividade das palavras, imagens e rituais, como também com a expressão do corpo (WEEKS, 1993). Segundo Foucault (1988), a sexualidade pode ser compreendida como uma invenção social, pois parte de múltiplos discursos que regulamentam, normatizam e produzem verdades. Esses discursos criam estereótipos em relação à sexualidade das pessoas com deficiência. De acordo com Denari (2006, p. 200):
O estereótipo da pessoa deficiente tida como assexuada ou agressiva sexualmente resulta da visão popular que atribui a ela características de incompletude e desvio do padrão considerado normal [...]. Vêm-se atribuindo rótulos negativos às pessoas com deficiência qualificando-as como eternas crianças, anjos, feras, homossexuais ou hipersexuais.
Os discursos estereotipados sobre a sexualidade das pessoas com deficiência impedem que vivenciem seus desejos e sejam protagonistas de suas escolhas. Por outro lado, o processo de empoderamento contribui para romper com as representações sociais negativas a seu respeito. Silva (2009) argumenta que o empoderamento é oposto à vulnerabilidade, ou seja, quanto mais empoderada está uma pessoa, menos vulnerável ela estará. Deste modo, pessoas com deficiência empoderadas estão menos vulneráveis a formas de abuso e limitações:
Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência de sua habilidade e competência para produzir, criar e gerir (SILVA, 2009, p. 22).
O empoderamento constitui um processo tanto coletivo quanto individual, no desenvolvimento de potencialidades, visando tornar a pessoa capaz de direcionar a sua vida de acordo com seus desejos. O conceito de empoderamento introduz uma importante compreensão para a promoção da democracia e atenuação da vulnerabilidade de mulheres/homens com deficiência, pois oportuniza o fortalecimento delas enquanto seres humanos que conhecem o valor que tem. Deste modo, a pessoa com deficiência empoderada se ver como um sujeito capaz de fazer escolhas na sua vida e responsabilizar-se por suas decisões.
Interligado à proposta filosófica, científica e social do empoderamento, o movimento de autoadvocacia também surge com o objetivo de romper com o ciclo de desempoderamento que circunda a vida das pessoas com deficiência e "revelar a possibilidade de qualquer indivíduo ser advogado de si mesmo" (SOARES, 2010, p. 15).
A autoadvocacia configura-se como um termo multifacetado, podendo ser ao mesmo tempo uma filosofia, um movimento político e um programa de suporte psicoeducacional (GLAT, 2004). Esse movimento se fundamenta no princípio de que o próprio indivíduo, tenha ele a deficiência que tiver, tem o direito e o dever de participar de decisões sobre a sua pessoa (GARNER; SANDOW, 1995). Dentro da autoadvocacia, o protagonismo juvenil emerge como uma importante ferramenta para oportunizar o desenvolvimento da autonomia e participação social.
Ao incorporar o termo protagonismo juvenil à educação, Costa (2000) considera que o ato educativo está diretamente relacionado com a ideia de participação social, a qual deriva de ações criativas que visam combater problemas existentes na escola, na sociedade ou em qualquer espaço em que o jovem esteja inserido. O protagonismo é valioso para o exercício da autoadvocacia, pois, ao proporcionar a inserção de jovens na resolução de problemas da comunidade, contribui para romper com o isolamento social determinado para homens e mulheres com deficiência.
No caso de pessoas com deficiência, o empoderamento via exercício da autoadvocacia ajuda a promover o protagonismo e a romper com a condição de fragilidade, de forma que essas pessoas saem do estado de tutela, de dependência e tornam-se sujeitos ativos, que lutam por mais autonomia e autodeterminação (KLEBA; WENDAUSEN, 2009). Afirmar que por meio do empoderamento homens e mulheres com deficiência saem do estado de tutela significa que deixam de ser assistidas/os e, a partir daí, assumem o controle de suas ações, inclusive o direito de escolha de vida laboral, pessoal e sexual, conforme vemos na história de Caroline.
3 SER MULHER COM DEFICIÊNCIA: A HISTÓRIA DE EMPODERAMENTO DE CAROLINE
A metodologia da história oral, na modalidade história de vida, oportuniza o conhecimento da vida dos sujeitos no presente em uma relação dinâmica entre história e memória, oferecendo subsídios para a análise de identidades individuais e coletivas (PAULILO, 1999). Tal metodologia possibilitou conhecer de forma aprofundada a vida de Caroline, além de aspectos que perpassam a vida daqueles que compõem o seu grupo social, a partir de entrevista semiestruturada (com quatro blocos e 75 questões fechadas e abertas) realizada em sua casa no estado de São Paulo. A conversa aconteceu em dois dias e durou aproximadamente quatro horas. Além da entrevista, observou-se o cotidiano da vida de Caroline através de visita à loja onde ela trabalha, participação nas reuniões na Associação que ela frequenta (cuja missão é fortalecer o protagonismo das pessoas com deficiência intelectual em prol da diversidade) e em momentos de lazer e diversão com seus/as colegas.
A partir da história de Caroline analisamos o processo de empoderamento e o exercício da autoadvocacia na vida de pessoas com deficiência como condições que influenciam o reconhecimento da identidade de gênero e das questões de sexualidade; ao mesmo tempo, analisamos como ela incorporou o protagonismo à sua vida e, ao exercê-lo, como ela se reconhece como uma mulher com deficiência capaz de direcionar sua vida. Para tanto, guiamos a análise segundo quatro dimensões fundamentais de sua história de vida: 1) família; 2) educação; 3) trabalho e 4) vida social.
4 DIMENSÃO FAMÍLIA
Caroline nasceu na cidade de São Paulo, tem 32 anos e possui deficiência intelectual. É de classe socioeconômica privilegiada, seu pai é político e empresário, e sua mãe é diretora da Associação mencionada. Seus pais são separados e ela mora com a mãe. Caroline é a caçula de sua família e, mesmo tendo nascido com deficiência, os pais a estimularam a criar autonomia e não permitiram que o 'rótulo' de deficiente tivesse um efeito negativo em sua vida.
Neves (2005) afirma que a proposta da autoadvocacia é difícil para inúmeros pais/mães que criam os seus filhos ou filhas como pessoas dependentes. De forma contrária, a história de Caroline revela que o posicionamento de seus familiares em relação a sua vida e escolhas foi um fator chave na construção de seu empoderamento:
Apesar de eu ter deficiência intelectual, meus pais nunca me protegeram muito e sempre me estimularam a ser independente... Eles me apóiam bastante. Eu sou muito amiga dos meus pais, eles sempre respeitam as minhas decisões, me dão abertura para falar tudo o que eu desejo, inclusive quando falo de sexualidade também, eles são super abertos.
A relação de amizade desenvolvida entre Caroline e seus pais mostra o apoio que eles oferecem a ela, assim como o respeito que têm por suas decisões, mesmo quando envolvem assuntos relacionados à sexualidade. Tal posicionamento coaduna-se com os objetivos do movimento de autoadvocacia, o qual visa combater a visão da pessoa com deficiência como alguém que "não tem condições de agir independentemente no dia a dia e que, portanto, necessita de assistência direta de profissionais e proteção da família durante toda sua vida" (GLAT, 2004, p. 2).
Na história de Caroline, um importante reflexo dessa relação respeitosa e voltada para a construção de autonomia foi o fato de seus pais terem permitido que ela morasse longe da família, em uma pequena cidade da Paraíba, na casa de uma amiga, por um período de oito meses, como a jovem menciona em seu depoimento: "Eu passei oito meses longe da minha família. Eu fui trabalhar em uma ONG com as crianças carentes. Eu gostava muito. Eu era útil e sempre aberta".
Este episódio indica a firme reação ao efeito limitador que um rótulo baseado na deficiência acarreta para a pessoa, o qual vem acompanhado de discriminação, preconceito e falta de confiança necessária à autonomização e crescimento na vida adulta. Aqui são pertinentes as seguintes considerações de Foucault (1979): as relações de poder estão inseridas nas múltiplas redes de relações sociais, como família, escola, igreja, e atuam como uma força que coage, controla e disciplina o indivíduo; não existe sujeito a não ser como resultado de um processo de produção cultural e social; sempre que "há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência" (p. 24).
A família, ao receber uma criança com deficiência, não está apenas ciente da realidade das condições e limitações anatômicas da criança, mas mergulha num sistema de representações (WOORDWARD, 2000) sobre o que é ter e ser uma mulher/homem com deficiência na sociedade. Esse sistema regula a vida daqueles/as que cuidam da criança ao longo de seu desenvolvimento cognitivo e psicossocial, direcionando, mais além da definição do corpo, normas de tratamento e convivência.
Ao resistir e romper com as relações de poder e com o sistema de representações que as sustentam, o indivíduo se torna empoderado. No caso de Caroline, ao ter o apoio de seus pais para morar em uma cidade pobre, em condições distintas da vida que tinha, com independência, ela rompe com a visão incapacitante da deficiência e com as representações sociais femininas, mostrando-se uma mulher forte, corajosa, destemida.
A forma como Caroline é tratada por sua família, permitindo que ela expresse seus desejos e realize os seus projetos de vida, ajudou-a a desenvolver uma identidade própria, a qual constitui um dos pilares da autoadvocacia na vida de um indivíduo, como afirmam Glat e Fellows (1999). A construção dessa identidade está relacionada à ressignificação da identidade das pessoas com deficiência, afirmando-as como indivíduos únicos e singulares, e está presente na história de vida de Caroline quando ela reconhece o seu valor humano: "Meus pais me vêem como adulta, me ajudam a alcançar os meus sonhos... Eu sou uma pessoa feliz e tenho muitas qualidades, eu sou divertida, eu brinco com as pessoas". Ademais, tal construção identitária é particularmente significativa por Caroline ser mulher.
5 DIMENSÃO EDUCAÇÃO
A escolarização de Caroline se deu em escola especial, onde estudou por mais de 15 anos, foi alfabetizada, desenvolveu profundas relações de amizade, teve sua primeira experiência de namoro e recebeu o apoio pedagógico que necessitava. O acesso de Caroline a escolas especiais evidencia a relação afetiva restrita a pares também com deficiência. Segundo Louro (2011), as instituições de ensino reforçam e produzem diferenças: "informam o 'lugar' dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas [...] e também permitem que os sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos" (LOURO, 2011, p. 62). Nesse contexto, a identidade de pessoa com deficiência também é reforçada nos arranjos culturais que cada escola (especial ou inclusiva) constrói e que podem favorecer ou não o processo de empoderamento.
No caso de Caroline, verifica-se que ter frequentado apenas a escola especial não possibilitou sua socialização com outros/as colegas sem deficiência, mas, por outro lado, conviver com pessoas que tinham a mesma deficiência por tantos anos possibilitou a emergência de sua identidade de pessoa com deficiência intelectual, como ela própria afirma: "na escola especial eu nunca tive preconceito porque todos eram iguais a mim". A construção dessa identidade foi um fator chave para que ela vivenciasse as suas primeiras experiências relacionadas à sexualidade, quando começou a namorar um de seus amigos na escola. Ao mesmo tempo, sua condição distinta de vida permitiu que ela tivesse outras oportunidades educacionais que se tornaram fundamentais para seu desenvolvimento integral:
Eu saí da escola quando minha mãe fundou [a Associação] (...) participei de diversos grupos, como o Grupo de Cidadania, Orientação Vocacional, Vivendo com Autonomia (...) fiz cursos profissionalizantes, curso de informática. Eu gosto de estudar, mas não penso em fazer faculdade. Eu quero me tornar uma mediadora [da Associação].
Como revela Costa (2000, p. 23), o protagonismo juvenil, princípio fundamental para o desenvolvimento da autoadvocacia, deve ser desenvolvido através de "espaços e situações propiciadoras de sua participação criativa, construtiva e solidária na construção de problemas reais na escola, na comunidade ou na vida social mais ampla". Na fala destacada de Caroline vemos que o acesso à educação é fundamental para o desenvolvimento de seu protagonismo e ampliação de sua visão de mundo, desenvolvimento da vida afetiva, valores e princípios norteadores de sua vida.
Através das atividades desenvolvidas pela Associação, Caroline teve a oportunidade de conhecer os seus direitos e deveres, adquirir ferramentas para se inserir no mercado de trabalho, proferir palestras em congressos e eventos2, participar de reuniões de governo etc. O contínuo processo vivenciado por ela colocou-a em contato com um universo de oportunidades e ferramentas necessárias para que aprendesse a "determinar suas metas, defender seus interesses [...] e advogar a necessidade de ser ouvida" (NEVES, 2005, p. 40).
A participação de Caroline no Projeto Pipa3 foi fundamental para o empoderamento na sua vida sexual, uma vez que oportunizou o conhecimento de si como pessoa sexuada, do seu corpo, dos métodos de prevenção para não ser abusada ou ter uma gravidez indesejada, e também lhe ensinou a expressar os seus desejos e escolhas sexuais perante os membros de sua família e da sociedade: "através do Projeto Pipa eu aprendi a como ter uma relação sexual, os métodos que pode ter para não engravidar, e ir conversando e trocando algumas ideias com meus pais sobre isso".
Pinto (1998) denomina experiências como esta vivenciada por Caroline de "consciouness-raising", ou seja, a tomada de consciência pelos sujeitos da situação em que vivem e das condições que podem ser transformadas para modificar esse estado, pois ao tomarem consciência os sujeitos conseguem construir estratégias de resistências (FOUCAULT, 1979). O empoderamento permite a resistência às barreiras que historicamente as pessoas com deficiência vivenciaram e, neste caso, Caroline se reconhece como sujeito humano, com desejos sexuais e direito de ter escolhas relativas à vida amorosa e afetiva.
6 DIMENSÃO TRABALHO
A autonomia familiar e as oportunidades educacionais tornaram-se decisivas no ingresso de Caroline no mercado de trabalho. Entretanto, as escolhas profissionais ou ocupacionais estão envolvidas no véu das representações sociais de gênero (CARVALHO s/d). A condição de ser mulher com deficiência influencia a escolha laboral. No caso de Caroline, que realiza trabalho de arrumação de roupas em uma loja, evidencia-se uma ocupação manual tipicamente feminina:
Eu já trabalho há muito tempo. O meu primeiro emprego foi no Banco Central, onde eu trabalhei por cinco anos. Eu gostava muito e fiz vários amigos. Hoje eu trabalho em uma loja grande no Shopping Center. Eu não fico na parte do dinheiro, só das roupas porque eu sei dobrar... Neste trabalho as pessoas não possuem discriminação comigo, eu sou tratada muito bem, eu já fiz amigos.
De acordo com Bourdieu (1999), na definição de cargos incluem-se conotações de gênero que são definidas a partir de atributos considerados naturais para homens e mulheres. Enquanto para os homens são determinantes atitudes como a agressividade, a segurança, a autoridade, as mulheres aprendem na família e na escola tendências afetivas subordinadas aos cuidados dos homens. É relevante apontar que essas regulações de cargos femininos e masculinos ocorrem tanto via atributos sociais, como através do processo de autorregulação, no qual homens e mulheres se reconhecem como dotados de 'aptidões' para assumirem diferentes ocupações. Na fala destacada, Caroline reconhece a sua aptidão para a função que desempenha na loja.
Segundo Caroline, seus pais ficaram felizes quando ela começou a trabalhar, pois mesmo ela sendo uma pessoa de classe econômica privilegiada, a independência através da empregabilidade significa diminuir o assistencialismo e promover o empoderamento da pessoa com deficiência: "Eu gosto de trabalhar porque assim eu também posso receber o salário e ter mais independência dos meus pais". Para ela, o trabalho se constitui como direito à cidadania e significa cotidianamente desenvolver suas potencialidades. Merece destaque na fala de Caroline o fato dela enxergar no trabalho um lugar onde é possível romper com o preconceito e fazer amizades com pessoas sem deficiência.
Na empregabilidade de Caroline, a Associação de que faz parte assume uma função essencial na sua adaptação, pois desenvolve um trabalho de conscientização com os funcionários e clientes, através de palestras e visitas ao ambiente de trabalho. Tal aspecto reflete a importância de grupos de autoadvocacia no processo de empoderamento das pessoas com deficiência, pois a autoadvocacia não depende apenas do próprio sujeito que quer ser empoderado, mas também das pessoas que estão à sua volta na mudança de valores e atitudes (NEVES, 2005). Nesse contexto, as pessoas passam a reconhecê-la, além da deficiência, como uma mulher que precisa conquistar espaços produtivos e tomar decisões na vida.
O trabalho remunerado constitui uma dimensão fundamental no empoderamento de Caroline, pois lhe permite desenvolver-se de forma integral e reconhecer um direito que as mulheres conquistaram há pouco tempo. No contexto das desigualdades no mercado de trabalho, mulheres com deficiência precisam superar barreiras em razão da dupla condição: ser mulher e ter uma deficiência. No caso específico de Caroline, suas experiências laborais fortalecem sua autoestima e a fazem reconhecer-se como uma mulher independente.
7 DIMENSÃO VIDA SOCIAL
Além de trabalhar todas as tardes e frequentar a Associação, Caroline pratica exercícios físicos e tem uma vida social agitada. No tempo livre, ela gosta de ficar lendo, escrevendo poesias e de sair com os amigos através do grupo de lazer De lá pra cá, formado somente por pessoas com deficiência intelectual:
Junto com o grupo eu saio para vários lugares com os meus amigos e namorado e a gente joga boliche todas as quartas-feiras, eu adoro. Depois tem show, tem barzinhos, balada mesmo pra poder dançar, pra poder namorar, ficar junto aproveitando, pra poder conversar com os amigos, trocar umas ideias. Tem viagens também. Eu organizo as viagens.
Caroline gosta muito de sair com seus colegas para programas que envolvem diversão, fala que adora viajar a passeio e a trabalho para dar palestras. A voz de Caroline reflete uma pessoa com deficiência que passou por um processo de empoderamento, na medida em que ela demonstra o protagonismo de sua vida, oportunizando sua participação social e sua inserção em espaços que resultam em sentido para a vida social, na perspectiva da coletividade e no combate ao isolamento (SOARES, 2010).
No que se refere à vida afetiva e sexual, Caroline revela que começou a namorar aos 15 anos e já teve vários namorados, todos com deficiência intelectual. Ela conheceu seu atual namorado atual na Associação: "Para poder sair com meu namorado, eu o convido para sair com o grupo de lazer De lá pra cá, pois eu tenho saudade dele e ele também tem saudade". Ela afirma que está preparada para ter relações sexuais, mas que seus pais ainda não deixam:
Eu já estou preparada, mas pelos meus pais não e eu quero mostrar isso para eles, como eu sou capaz e como eu tenho capacidade. Meus pais estão sempre abertos, daí a gente vai conversando. Isso foi através do Projeto Pipa. No futuro eu quero casar, mas pra ter filhos não é fácil, porque vai dar trabalho. Não é que eu tenha medo de ter um filho assim, mas é que precisa ter os cuidados, eu não vou poder mais sair com os amigos e eu não quero fazer isso. É preciso ter outras responsabilidades com o filho, de dar de mamar, de dar banho, de dar jantar.
Mesmo na condição de mulher autoadvogada, Caroline precisa enfrentar as barreiras que os estereótipos limitantes trazem para a vida sexual da pessoa com deficiência, uma vez que seus pais ainda se preocupam com o fato dela querer iniciar a vida sexual, mesmo na condição de mulher-adulta. A restrição de seus pais pode ser explicada a partir de dois pressupostos: 1) na sociedade patriarcal/machista as mulheres não têm tanta liberdade sexual como os homens e, muitas vezes, só podem ter vida sexual ativa quando casam; 2) mulheres com deficiência são vistas como pessoas fragilizadas e o fato de fazerem escolhas para iniciar a vida sexual ainda constitui um tabu. Nesse contexto, a família controla o exercício da sexualidade da filha por medo de abuso sexual, gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis (MERTENS, 2010; FERREIRA, 2008).
Lembrando Foucault (1988), os múltiplos discursos que regulamentam e produzem verdades sobre a sexualidade são culturalmente construídos e, no caso de Caroline, a impedem de decidir sobre sua vida sexual. Ao mesmo tempo, sua fala revela a responsabilidade quanto à sexualidade, uma vez que ela opta em não ser mãe, na atual fase de sua vida, em razão de ter que cuidar do/a filho/a e não poder sair com a mesma frequência com os/a amigos/as e namorado. Nas palavras de Park, Monteiro e Kappel (2005), autoadvocacia significa fazer escolhas e também arcar com as suas consequências e Caroline indica a apropriação deste conhecimento na medida em que ela faz uma escolha consciente.
Caroline se considera uma mulher feliz, com muitas qualidades, divertida, e que respeita as pessoas: "Eu me considero uma autoadvogada porque os meus pais dão uma força para mim, eles têm orgulho de mim. Quando eu quero eu faço". Ela é capaz de fazer suas escolhas ocupacionais e pessoais e representa a quebra de estereótipos, mito de incapacidade e infantilização. A sua vida revela o empoderamento e exercício da autoadvocacia, uma vez que ela se mostra capaz de advogar em razão de seus próprios direitos e interesses, sem a intervenção de terceiros.
8 CONCLUSÕES
Este texto objetivou analisar como o processo de empoderamento e o exercício da autoadvocacia na vida de pessoas com deficiência influenciam o reconhecimento da identidade de gênero e das questões de sexualidade a partir da história de vida de uma mulher-adulta com deficiência intelectual. Apontou-se a representação da mulher com deficiência na sociedade patriarcal, baseada em valores androcêntricos que intensificam as concepções de fragilidade feminina, colocando a mulher com deficiência em situação de dupla desvantagem e vulnerabilidade. Em contraponto, ressaltou-se a necessidade de um processo de empoderamento e conhecimento da autoadvocacia para o reconhecimento da identidade de gênero e dos direitos sexuais (o ser mulher com deficiência) como possibilidade de abrir caminhos para o protagonismo na educação, no trabalho, na vida familiar, afetiva e sexual.
O processo inverso ao protagonismo de pessoas com deficiência é consequência da crença infundada de que pessoas com deficiência são frágeis e incapazes de se posicionar e enfrentar os desafios da vida. Em consonância com o protagonismo juvenil, os ideais da autoadvocacia defendem que é preciso mudar o foco da deficiência para as suas habilidades, ou seja, é imprescindível combater a cultura de incapacitação da pessoa com deficiência e de desvalorização (não reconhecimento) de seu potencial humano-integral de aprendizagem e capacidades para fazer escolhas.
Nesse sentido, verificamos na trajetória de vida de Caroline a superação das visões distorcidas sobre as pessoas com deficiência e do rótulo incapacitante como base para o reconhecimento de ser uma mulher empoderada e com a capacidade de tomar decisões na vida. Para tanto, a análise desenvolvida se baseou em quatro dimensões família, educação, trabalho e vida social as quais são essenciais na trajetória de vida humana.
Na dimensão da família, apontou-se que a forma como Caroline foi criada e a liberdade concedida pelos pais para expressar suas vontades, sonhos e realizar seus projetos de vida, ajudou-a a desenvolver uma identidade própria, a qual constitui um dos pilares do empoderamento, pois permite que ela se enxergue como pessoa singular, além do rótulo denegridor da deficiência. Desta forma, ao construir autoestima e poder pessoal, Caroline passa a reconhecer as suas qualidades e potencialidades enquanto mulher sexuada com desejos próprios.
Na dimensão educacional, o acesso à escola e a projetos com o foco na autoadvocacia é fundamental para o desenvolvimento do protagonismo de pessoas com deficiência, pois promove a conscientização na construção de estratégias de resistência na eliminação de entraves para vivência de desejos sexuais e escolhas relativas à vida amorosa e afetiva. A experiência de Caroline revela sua responsabilidade em assumir o desejo de não querer ser mãe para não ter a sua liberdade comprometida, contrapondo-se ao discurso de verdade que determina a maternidade à mulher em idade adulta. A educação na vida de Caroline possibilitou tornar audível sua voz como pessoa, como sujeito de direito.
No que se refere à inserção no mercado de trabalho, tal dimensão é fundamental no desenvolvimento integral de mulheres com deficiência, pois representa uma conquista recente nas lutas feministas e nos direitos trabalhistas de pessoas com deficiência. No entanto, as escolhas laborais não estão distantes da divisão de gênero e tornam-se ainda mais limitantes quando associadas à deficiência. A função que Caroline exerce no trabalho, de dobrar roupas, revela os papéis atribuídos às mulheres em ocupações ligadas ao cuidado e à organização, diferentemente de homens que geralmente ocupam cargos de liderança e prestígio social. Ao mesmo tempo, o empoderamento de Caroline é revelado, pois na sua posição de classe econômica privilegiada, o salário advindo do trabalho tem um significado de autonomia e independência familiar.
Na última dimensão vida social os dados apontam que pessoas com deficiência empoderadas rompem com o histórico isolamento social e inserem-se em diversos espaços públicos comuns às demais pessoas sem deficiência (shows, barzinhos, shoppings, boates). Foi também possível observar que a autonomia pessoal de Caroline esbarra em barreiras atitudinais e sociais subjetivas, de forma que por trás do discurso de liberdade há uma proteção que não permite, por exemplo, que ela saia sozinha com o namorado e tenha vida sexual ativa, estando sempre monitorada pelos pais ou outras pessoas sem deficiência.
A história de Caroline ilustra que sua condição de mulher-adulta autoadvogada e empoderada representa justamente o rompimento (ainda que contínuo) das visões distorcidas e preconceituosas sobre as pessoas com deficiência. Ela revela que a deficiência não a impossibilita de sair, namorar, ter amigos, se arrumar, viajar, ter uma ocupação remunerada, e se perceber como uma mulher autoadvogada e empoderada, que vivencia o lema "nada sobre nós sem nós".
Conhecer a vida de Caroline, para nós pesquisadoras, foi uma experiência de aprendizagem significativa, uma vez que sua história representa a luta cotidiana de pessoas com deficiência na busca pela efetivação de seus direitos, na participação social e também na quebra de paradigmas que as limitam a espaços segregados, sem que, muitas vezes, elas possam se reconhecer como homens/mulheres e fazer suas escolhas de vida. Reconhecendo o caráter inicial e exploratório desta pesquisa, esperamos contribuir para novas iniciativas investigativas em que as questões de gênero e sexualidade sejam incluídas como importantes dimensões nas análises das questões de deficiência.
Recebido em: 31/03/2014
Reformulado em: 02/12/2014
Aprovado em: 04/12/2014
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jan 2015 -
Data do Fascículo
Dez 2014
Histórico
-
Aceito
04 Dez 2014 -
Recebido
31 Mar 2014 -
Revisado
02 Dez 2014