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ENSINO FUNCIONAL OU ACADÊMICO EM CIÊNCIAS PARA ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA OU AUTISMO?

FUNCTIONAL OR ACADEMIC EDUCATION IN SCIENCES FOR STUDENTS WITH DISABILITIES OR AUTISM?

RESUMO

Este ensaio teórico teve por objetivo identificar contribuições da organização do conhecimento científico na sistematização do ensino em ciências, para a constituição humana típica e atípica. Isso foi realizado a partir de ponderações entre textos da área de Ensino de Ciências e pressupostos da Teoria Histórico-Cultural. Assim, apresentamos reflexões acerca de discussões que polarizam a educação de pessoas com deficiência ou autismo no direcionamento curricular, em relação às habilidades funcionais e acadêmicas. A partir da análise de limitações, possibilidades e estratégias educacionais para aulas de ciências, concluímos que as habilidades funcionais, que envolvem conhecimentos cotidianos, não podem configurar critério de exclusão curricular de habilidades acadêmicas, do conhecimento científico, para a educação de pessoas com desenvolvimento atípico. Compreendemos que uma educação científica escolar com vias ao desenvolvimento integral é indissociável das habilidades da vida diária.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Inclusão escolar; Conhecimentos científicos

ABSTRACT

This theoretical essay aimed to identify contributions from the organization of scientific knowledge in the systematization of science teaching, for the typical and atypical human constitution. This was carried out based on considerations between texts from the Science Teaching area and assumptions from the Historical-Cultural Theory. Thus, we present reflections on discussions that polarize the education of people with disabilities or autism in terms of curriculum, in relation to functional and academic skills. From the analysis of limitations, possibilities and educational strategies for science classes, we conclude that functional abilities, which involve everyday knowledge, cannot constitute a criterion for curricular exclusion of academic skills, of scientific knowledge, for the education of people with atypical development. We understand that a school scientific education with pathways to integral development is inseparable from daily life skills.

KEYWORDS
Special Education; School inclusion; Scientific knowledge

1 INTRODUÇÃO

Uma mesma experiência em aulas de ciências afeta os participantes de distintas formas, de acordo com a situação social de desenvolvimento de cada um, seu modo de ser, estar e pensar o mundo, em suma, seu processo histórico. Pensar de forma científica, para Vigotski (2012a)Vigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición., corresponde ao estabelecimento de relações complexas com a natureza e a sociedade, uma relação dialética de ação e reflexão para além da aparência, com sucessivas aproximações da essência do mundo. De acordo com Leontiev (1978)Leontiev, A. N. (1978). Actividad, conciencia y personalidad. Ciencias del hombre., trata-se da busca pela máxima fidedignidade na constituição do reflexo subjetivo da realidade objetiva, ou seja, a construção da imagem subjetiva do mundo. O psiquismo é subjetivo porque, nessa relação, o ser não é passivo na apreensão da realidade e deve ser fidedigno, por considerar que o sistema de signos, que organiza os objetos, as ações e os fenômenos, devem ser orientados pelos conceitos.

Compreendendo a complexidade e os desafios de ensinar os conhecimentos das ciências da natureza e a organização do pensar científico, Millar (2003)Millar, R. (2003). Um currículo de ciências voltado para a compreensão de todos. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciência, 5(2), 139-154. https://doi.org/10.1590/1983-21172003050206
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apresenta uma provocação para educadores da área de ciências: Por que ensinar ciências, e por que “para todos”? Aproveitamos sua indagação para especificar e ecoar outras questões que se desdobram nas relações entre a formação humana, a escola e a sociedade: Por que ensinar ciências naturais às pessoas com deficiência ou autismo?

Krupskaya (2017)Krupskaya, N. K. (2017). A construção da pedagogia socialista: escritos selecionados. Expressão popular., uma das principais responsáveis pelo sistema educativo soviético, denunciou a forma de fazer ciência e o acesso aos seus conhecimentos. Segundo a autora, as ciências estão a serviço de um seleto grupo de especialistas e guardam distância de problemas sociais. Para ela, os conhecimentos de uma ciência social devem ser acessíveis e estar em consonância com as necessidades das massas. Assim, “separando o essencial do não essencial, irá desenvolver novos campos das ciências exatas, em cujo desenvolvimento a burguesia não estava interessada, mas o desenvolvimento que interessa ao proletariado interessa a toda humanidade” (p. 98). Da mesma forma que a pauta da ciência muda de acordo com seus objetivos, a educação, como produção humana, é afetada pelos mesmos valores. Ambas se interrelacionam e não podem se isolar da complexidade da vida e dos interesses do povo; desse modo, a “escola deve reagir a vida. [...] é importante apenas que a escola não feche os olhos para a vida [...]” (p. 109). As questões científicas e educacionais devem penetrar em todas as dimensões.

Esta sociedade diversa, composta por pessoas com deficiência, autismo ou qualquer necessidade educativa específica, deve garantir acesso e participação social de todos(as). Para García e Beatón (2004)García, M. T., & Beatón, G. A. (2004). Necessidades educativas especiais: desde o enfoque histórico-cultural. Linear B., “o mais importante de uma sociedade é conseguir um lugar para cada um de seus membros, um lugar no qual se sintam plenos e satisfeitos em poder construir seu presente e futuro” (p. 32). De acordo com os autores, a tarefa da psicologia especial consiste no estudo das alterações psíquicas que ocorrem no desenvolvimento e nas distintas necessidades educativas específicas, considerando-se a influência e/ou o manejo social e as possibilidades educacionais para a superação de dificuldades. Assim, quando são identificados elementos que obstruem aprendizados, a educação geral e as aulas em ciências precisam ter como objetivo central contribuir para a remoção de barreiras, a superação de impedimentos, a fim de propiciar a inclusão e impactar na vida de todos(as). Nesse sentido, apresentaremos algumas pesquisas sobre o desenvolvimento de estudantes com e sem deficiência que iluminam as regularidades gerais e singulares dos processos psíquicos de apropriação dos conceitos em aulas de ciências.

Tivemos como base teórico-metodológica a Teoria Histórico-Cultural (THC), em que o ser humano é estudado em relação à gênese de seu desenvolvimento, à formação social das funções psicológicas culturais e à importância da mediação das ferramentas sociais na constituição da psique. A constituição humana é orientada pelo intricado movimento em unidade das exigências biológicas e sociais na formação da personalidade. São esses os aspectos orientadores deste ensaio e que se consolidam em direção ao nosso objetivo: identificar contribuições da organização dos conhecimentos científicos na sistematização do ensino em ciências para a constituição humana típica e atípica. Para isso, falaremos acerca do desenvolvimento sobre as relações que envolvem a educação em ciências.

2 CIÊNCIA E EDUCAÇÃO CIENTÍFICA

Homens e mulheres transformam, intencionalmente, a natureza e produzem continuamente sua própria existência por meio do trabalho, criando o mundo humano, o mundo da cultura. Para isso, o ser humano “necessita antecipar em ideias os objetivos da ação, o que significa que [ele] representa mentalmente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte)” (Saviani, 2013Saviani, D. (2013). Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Autores Associados., p. 12). A cultura científica tem gênese na história humana, englobando contradições manifestas em distintos processos de produção, de conhecimentos e de instrumentos, a qual “envolve um saber sobre a ciência, seus métodos, sua lógica de funcionamento, suas instituições e suas diferenças em relação a outras formas de conhecimento” (Martins, 2005Martins, A. F. P. (2005). Ensino de ciências: desafios à formação de professores. Educação em Questão, 23(9), 53-65. https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/8342
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, p. 61), mas está para além da perspectiva utilitarista, ou para a compreensão técnica do funcionamento objetal.

Contestamos qualquer possível alegação dos conhecimentos da ciência, da atividade científica e dos cientistas como neutra ou imparcial. Essa ênfase levou, e por que não dizer ainda leva, pessoas que compõem a cultura científica à ficção e à descaracterização do sujeito social. Parafraseando Marx (1997)Marx, K. (1997). O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Paz e Terra. acerca da história da humanidade, os sujeitos que fazem ciência não a fazem apenas como querem, não a fazem descolada da direção ideológica dominante e das determinações sociais e históricas.

Na concepção e na atuação da ciência, sempre houve diálogos contraditórios. As ideologias, que orientam a produção e o desenvolvimento científico e tecnológico, engendram e influenciam os processos de ensino e aprendizagem - tanto na formação dos(as) professores(as) de ensino em ciências quanto em suas práticas educativas -, e na conformação da sociedade. Nossa concepção sobre o que é (ou deveria ser) a ciência e sua função social mescla-se com as bases teóricas que adotamos para os objetivos da educação científica, com vias reflexiva, crítica, politizada, inclusiva e revolucionária. As compatibilidades e as incompatibilidades entre ciências e ensino em ciências afetam-se mutuamente, muitas das contradições apresentam raiz epistemológica entre os ideais de cientificidade (Nascimento et al., 2012Nascimento, F., Fernandes, H. L., & Mendonça, V. M. (2012). O ensino de ciências no Brasil: história, formação de professores e desafios atuais. Revista HISTEDBR On-line, 10(39), 225-249. https://doi.org/10.1590/1983-21172003050206
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). Assim, ciência e educação científica embricam-se, incorporam-se, opõem-se e transformam-se em um processo dialético, ambas sendo combustível e produto de suas relações. É fundamental o diálogo da ciência e do ensino em ciências ao assumirem seus papéis e estabelecerem um contrato social comum na interpretação da ciência, das ações pedagógicas e do desenvolvimento social.

Os métodos científicos, que derivaram em uma concepção positivista da ciência, em oposição às filosofias metafísicas e teleológicas, abraçaram uma visão neutra e higienista, supervalorizada, idealizada e deturpada do real, pois tal concepção distanciou-se da complexidade dinâmica das determinações sociais e estendeu-se ao ensino. O método científico foi considerado eficaz às aulas de ciências da natureza e, incoerentemente, tem-se mantido e reiterado (Silva & Zanon, 2000Silva, L. H. A., & Zanon, L. B. (2000). A experimentação no ensino de ciências. In R. P. Schnetzler, & R. M. R. Aragão (Orgs.), Ensino de ciências: fundamentos e abordagens (1ª ed., pp. 120-153). Capes/Unimep.). Nem esse ensino asséptico favorece a apropriação de conceitos e de suas relações múltiplas e críticas do real, nem os construtos teóricos da ciência podem ser aprendidos pelos(as) alunos(as) de forma espontaneísta, por descoberta individual sem a orientação do(a) professor(a). Os conceitos científicos são produtos de um longo processo de elaboração e compartilhamento interpessoal, portanto pouco prováveis de serem construídos apenas a partir da observação direta dos fenômenos. Professores(as) precisam apresentar ao(à) estudante os conceitos validados pela comunidade científica, compartilhar novos conhecimentos, ampliar o acervo cultural, negociar significados prévios, criar novas significações e, assim, ter a possibilidade de interpretar as relações da realidade e transformá-la conscientemente (Schnetzler, 2002Schnetzler, R. P. (2002). A pesquisa em ensino de Química no Brasil: conquistas e perspectivas. Química Nova, 25, 14-24. https://doi.org/10.1590/S0100-40422002000800004
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).

São inúmeras as determinações sociais e estruturais que se mantêm, se beneficiam do status quo e impactam diretamente nossas práticas em aulas de ciências. Procurar as causas dos problemas educacionais brasileiros por um recorte que se finda na escola, em seus principais participantes e na organização metodológica e seleção de conteúdos, não revela a totalidade e não modifica a situação. No entanto, o fatalismo também não caminha para uma transformação. O que nos cabe como caminho promissor é tomar consciência das condições sociais e instrumentalizar os(as) estudantes com desenvolvimento típico, e atípico, com conhecimentos científicos para que desenvolvam consciência e uma transformação social.

Assim, defendemos uma base epistemológica que ampare um caminho de mudanças nas concepções de educação e, mais especificamente, no ensino em ciências, que deve estar acompanhada “de melhorias nas condições subjetivas e objetivas de trabalho dos docentes, [...] nos contextos nos quais desenvolvem suas práticas educativas” (Nascimento et al., 2012Nascimento, F., Fernandes, H. L., & Mendonça, V. M. (2012). O ensino de ciências no Brasil: história, formação de professores e desafios atuais. Revista HISTEDBR On-line, 10(39), 225-249. https://doi.org/10.1590/1983-21172003050206
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, p. 245). Nessa perspectiva, de acordo com os autores, desde meados de 1980, a educação brasileira, em seu caráter mais geral, e o ensino em ciências, em sua esfera mais específica, passaram a conhecer e incorporar a Teoria Histórico-Cultural na orientação dos processos educativos com vias à formação de sujeitos conscientes e transformadores de si e do meio.

3 ESTUDOS E A CONSTITUIÇÃO HUMANA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

Desde muito cedo no desenvolvimento ontológico da criança, formam-se os germes que se relacionam com estágios mais tardios da formação dos conceitos científicos, indispensáveis para a constituição das qualidades especificamente humanas. Assim como a brincadeira é a atividade principal da criança e guia seu desenvolvimento na pré-escola, a atividade de estudo é aquela que orienta o desenvolvimento na fase escolar. A sociedade gera exigências de apropriações de conhecimentos, cria necessidades na criança de aprender os códigos sociais (da leitura, da escrita, das artes, da matemática, das ciências) para fazer parte da cultura e conseguir ler um gibi, navegar na internet, cultivar um feijão no algodão, comprar docinhos (Maldaner, 2014Maldaner, O. A. (2014). Formação de professores para um contexto de referência conhecida. In B. K. Nery, & O. A. Maldaner (Orgs.), Formação de professores: compreensões em novos programas e ações (1ª ed., pp. 15-4). Unijuí.). A apropriação desses códigos, especialmente os aprofundamentos no contexto escolar, tem o poder de promover mudanças significativas na consciência. A escola, por meio do ensino intencional, orientado e sistematizado de novos conceitos, de comportamentos e sentimentos, possibilita a reorganização e a consequente transformação do reflexo psíquico da realidade objetiva na consciência (Martins, 2011Martins, L. M. (2011). Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural. In A. C. G. Marsíglia (Org.), Pedagogia histórico-crítica: 30 anos (1ª ed., pp. 43-58). Autores Associados.).

A atividade de estudo complexifica-se a cada ano em que o(a) estudante convive nesse espaço de múltiplas possibilidades de experiências. Na adolescência, o estudo continua sendo fundamental, porém emerge uma atividade especial, denominada “comunicação pessoal”, o estabelecimento de relações pessoais íntimas entre os pares. Ela apresenta como características as relações de companheirismo, a participação em grupos, as experiências novas, as conversas e discussões, que aprofundam a autoconsciência e reestruturam toda a personalidade. O vínculo de amizade “reproduz, por seu conteúdo objetivo, as normas mais gerais das inter-relações existentes entre os adultos na sociedade dada” (Elkonin, 2017Elkonin, D. B. (2017). Sobre o problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância. In A. M. Longarezi, & R. V. Puentes (Orgs.), Ensino desenvolvimental: antologia. Livro 1 (1ª ed., pp. 149-172). EDUFU., p. 167). Nas atividades conjuntas, criam-se novas necessidades, motivos e tarefas, atividades dirigidas ao futuro.

De acordo com Vigotski (2012b)Vigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición., a adolescência apresenta uma distinção marcante em relação à infância, às formas culturais de pensamento. As modificações de comportamento não são resultado de um aumento quantitativo de nexos associativos de conteúdos, e também não são meras continuidades, são processos e produtos de atividade e desenvolvimento cultural não fortuito. Na transição para essa etapa, a aquisição de novos mecanismos de conduta interliga-se à unidade indissolúvel de forma e conteúdo de operações intelectuais, e às novas matizes e especificações de desenvolvimento - uma autêntica revolução da personalidade. As ações do adolescente são mais conscientes do que as de uma criança, governada por suas emoções. A chave da psicologia do adolescente, que lhe permite compreender a sua realidade e a dos outros, está no novo movimento qualitativo do pensamento - a transição para o pensar por conceitos.

4 O INGRESSO NOS PORTÕES DOS CONCEITOS CIENTÍFICOS

O desenvolvimento do sistema psíquico é um processo dialeticamente contraditório, único e integral, que não transcorre somente de forma evolutiva, mas marcado também por interrupções, incorporações, negações e superações ao longo de novas formações na constituição da personalidade (Vigotski, 2012aVigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición.). O autor concebeu que a lei geral do desenvolvimento apresenta um caráter mediado e dinâmico em que as funções internas foram, em algum momento, funções externas - relações entre as pessoas, os objetos e os fenômenos -, e ambas se afetam mutuamente. No curso ontológico do desenvolvimento estrutural e hierarquicamente complexo, as funções intrapsíquicas culturais (percepção, atenção voluntária, memória lógica, pensamento conceitual etc.) são as formas fundamentais da atividade consciente de organização da conduta humana (escrever, ler, estudar, dançar etc.). Essas funções delineiam-se com o apoio dos instrumentos mediadores externos, signos sociais que, conforme se internalizam, se condensam e se convertem em habilidades (Vigotski, 2012aVigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición.).

A forma como cada um se relaciona consigo mesmo é resultado de conversão, e modificação, de inúmeras formas de como os outros se relacionam com aquele sujeito por meio dos signos, ferramentas materiais e imateriais que já estão no mundo. O compartilhamento sígnico ocorre pela palavra, e cada uma delas carrega a generalização de um grupo ou classe de objeto que permite nexos e ligações para operar na realidade. Em princípio, a palavra “é sempre um meio de relação social, um meio de influência sobre os demais e somente depois se transforma em meio de influência sobre si mesmo” (Vigotski, 2012aVigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición., p. 146).

Diferentes possibilidades ao longo da vida levam a distintas formas de estruturação psíquica que culminam nos conceitos científicos e dependem de toda uma história de experiências, significações e relações sociais. Acerca da formação das palavras em ação desde a mais tenra infância, Lago e Mattos (2021)Lago, L., & Mattos, C. R. (2021). Bridging concept and activity: a dialectical synthesis proposal. Cultural-Historical Psychology, 17(2), 29-36. https://doi.org/10.17759/chp.2021170203
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apresentam uma situação esboçada por Pyotr I. Zinchenko. Suponham a atividade de uma mãe amamentando sua criança enquanto gentilmente a acaricia e pronuncia palavras: à medida que satisfaz as necessidades biológicas da criança, ela também a alimenta com emoções e significações do mundo. Vigotski (2007)Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue. indica a proximidade entre a palavra, o significado, a generalização e o conceito; em termos psicológicos, o conceito é um ato de generalização e conduz ao controle da conduta, pois a consciência significa generalizar e, por sua vez, esta significa a formação do sistema conceitual.

Vejamos o exemplo da palavra “molécula” quando a usamos na sala de aula. Não estamos relacionando o vocábulo a um tipo específico, como, por exemplo, à molécula do dióxido de carbono ou do ácido sulfúrico, mas nos referindo ao conceito que generaliza o conjunto possível e se articula com inúmeros outros significados. No caso, em síntese, uma molécula representa unidades de átomos formadas por meio de ligações químicas direcionais. Para Vigotski (2007)Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue., a generalização “é um extraordinário ato verbal do pensamento, que reflete a realidade de modo completamente diferente de como o fazem as sensações e percepções imediatas” (p. 18). Em síntese, o movimento processual de aprendizagem de um conceito envolve múltiplos aspectos: externos, internos, expressivos (linguísticos ou não), biológicos - em relação à cultura.

Com base em pesquisas, Vigotski (2007)Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue. explica que as formações intelectuais na infância se assemelham aos conceitos científicos apenas em sua aparência. Em termos funcionais, uma criança comunica-se e soluciona problemas como um adulto, mas há uma diferença genética no modo que compreende o conceito e organiza seu pensamento. De acordo com Luria (1981)Luria, A. R. (1981). Fundamentos de neuropsicologia. Editora da USP., as crianças menores pensam por meio de imagens apoiadas na percepção e na memória, isto é, pensam por recordação. À medida que desenvolvem o pensamento abstrato, convertem essas funções “em formas complexas de análise e sínteses lógicas, e a pessoa na verdade começa a perceber ou recordar por meio da reflexão” (p. 18).

A criança está imersa em relações com a comunidade como, por exemplo, conhece a água em seus diversos estados físicos, pode até memorizar o signo de sua fórmula química, H2O, ainda mais em nosso tempo, com tanta informação disponível. Contudo, passará por um longo processo até a formação do conceito genérico de molécula, sendo afetada não apenas pela compreensão de novos conteúdos, mas também pela elaboração de novas formas de raciocínio e generalização. À medida que a criança transita em novas situações, ela passa a ser mais ativa na comunidade; e, ao ingressar em outros círculos sociais, defronta-se com problemas novos. As respostas e as condutas que estabeleceu na infância são insuficientes, sua realidade social exige uma maior complexificação de pensamento e habilidades. Precisa dos conceitos para compreender suas determinações, desenvolver sua consciência social, sua concepção do mundo sociopolítico e sua plena autodeterminação. Assim, criam-se novos caminhos, necessidades e motivações que orientam sua existência. Portanto, “é apenas com a formação de conceitos que se consegue o desenvolvimento intensivo da autopercepção, auto-observação, de conhecimento profundo da realidade interior, do mundo das próprias vivências” (Vigotski, 2012bVigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición., p. 71).

Assim, na essência, as funções psicológicas que constituem a base de formação psíquica dos conceitos científicos desenvolvem-se com as atividades de estudo, em condições específicas da cultura, e complexificam-se na adolescência (Vigotski, 2007Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue.). Contudo, acompanhamos as dificuldades de transformação dos estudos - individuais e coletivos - em aulas de ciências em atividade principal, devido às contradições das necessidades e dos interesses na contemporaneidade, as complicações na tomada de consciência dos motivos de estudo, em especial quando a pessoa apresenta alguma necessidade específica de aprendizagem.

5 DIÁLOGOS: UMA APRENDIZAGEM CIENTÍFICA QUE ANTECIPE O DESENVOLVIMENTO

Historicamente, a humanidade estruturou-se com ferramentas materiais e simbólicas destinadas para um tipo de desenvolvimento psicofisiológico hegemônico. Para Vigotski (2012c)Vigotski, L. S. (2012c). Obras Escogidas V: fundamentos de defectología. Machado Grupo de Distribuición., nos casos em que há interrupções no imbricamento entre as dimensões biológicas e culturais, modificam-se os modos de desenvolvimento. Independentemente das características biológicas, as questões orgânicas por si só não determinam um desenvolvimento com deficiência, mas, sim, as determinações que venham a incidir em uma desconformidade da posição social do sujeito. Para a compensação de interrupções, cabe a criação social de novas formas de mediações, porém, quando a sociedade se exime de uma reorganização estrutural, tolhem-se possibilidades da humanização dos indivíduos em suas máximas possibilidades. Essas questões englobam todas as dimensões culturais, incluindo-se os de ciências.

Para Millar (2003)Millar, R. (2003). Um currículo de ciências voltado para a compreensão de todos. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciência, 5(2), 139-154. https://doi.org/10.1590/1983-21172003050206
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, os currículos de ciências na Educação Básica estão inadequados tanto em formar uma minoria, como futuros cientistas, quanto em gerar necessidades e motivos em uma maioria, na orientação de estudos para a compreensão científica dos fenômenos e objetos. Para o autor, a formação de uma cultura científica, ou seja, um currículo de ciências voltado para todos(as), envolve um currículo não tão saturado, mas com conhecimentos fundamentais. Neles, o desafio deve ser a ênfase nos modos de conhecer tecnologias e fenômenos em processos contextualizados a partir da realidade. Ele defende um ensino de ciências mais próximo do pensar científico, das formulações lógicas, das práticas das ciências e menos caricaturizado com modos idealizados dos cientistas. O autor também destaca os conhecimentos escolares objetivados, a conscientização em torno dos cenários que envolvem a ciência e a tecnologia na sociedade, em prol de uma justiça social. Essas ponderações nos levam a reflexões que permeiam os objetivos do ensino de ciências: Quem adota decisões e cria políticas públicas de ciência e tecnologia? Quais são os grupos excluídos e os que se beneficiam dessas decisões? Quais são as vozes silenciadas nesses processos?

Percebemos, assim como Vigotski (2012a)Vigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición., que os currículos escolares voltados às pessoas que apresentam desenvolvimento atípico ainda estão marcados pela caracterização das ações que ela ainda não executa, “temos sempre presente o ‘negativo’ de sua personalidade” (p. 141) em comparação com as pessoas com a conduta típica. No entanto, o negativo nada revela sobre as peculiaridades positivas que as diferenciam, ou sobre suas potencialidades à expansão de seu desenvolvimento. É um equívoco limitar o desenvolvimento de uma pessoa com deficiência apenas à enfermidade, focar exclusivamente na “pequenez do defeito, os gramas de enfermidade [...] e não nos atentarmos aos quilos de saúde acumulados em cada organismo” (Vigotski, 2012cVigotski, L. S. (2012c). Obras Escogidas V: fundamentos de defectología. Machado Grupo de Distribuición., p. 78), sem captar as vultosas dimensões de vida. A escola não deve se adaptar às dificuldades da pessoa com deficiência ao ponto de aprofundar rupturas com o ambiente comum e, assim, isolar essas pessoas. Não pode criar um ambiente artificial asséptico como um hospital, “um microcosmo estreito e fechado em que tudo está adaptado ao defeito” (p. 84). Nesse tipo de ambiente, a ênfase está no reforço do defeito, e não na superação de dificuldades em um local real e vivo das múltiplas relações sociais - a natureza escolar de separatismo “é antissocial e educa à antissociabilidade” (p. 84).

Em pleno século XXI ainda acompanhamos a defesa de currículos funcionais em detrimento de conhecimentos escolares para pessoas com deficiências - em especial, aquelas que precisam de maior suporte nos processos de comunicação e de aprendizagem dos conceitos científicos, como é o caso de pessoas com deficiência intelectual, e algumas pessoas no espectro do autismo. É fundamental que se supere situações de segregação em que toda a vida escolar de pessoas com deficiência ocorre apartada da convivência comum. Ademais, nessas instituições, há aquelas que organizam a proposta pedagógica pautadas em metodologias clínicas de premissas behavioristas. Circunstância semelhante a essa foi vivenciada por um professor-pesquisador e discutida no artigo de Novaes e Freitas (2020)Novaes, D., & Freitas, A. P. (2020). Objetivos educacionais para alunos com transtorno do espectro autista: a atividade de ensino em Vasily Vasilovich Davidov. Sensos-e, 7(2), 116-126. https://doi.org/10.34630/sensose.v7i2.3685
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. Esse profissional adotava perspectivas comportamentais na instituição em que trabalhava e, tão logo se apropriou dos constructos da THC e da Teoria da Atividade, percebeu como a abordagem que utilizara era descontextualizada da dinâmica da vida e a denominou de “trabalho prescrito: a prática de ensino infrutífera” (p. 122).

Nessa defesa, Stepanha (2017)Stepanha, K. A. O. (2017). A apropriação docente do conceito de autismo e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: uma análise na perspectiva da psicologia histórico-cultural [Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual do Oeste do Paraná]. Sistema de Bibliotecas da Unioeste. https://tede.unioeste.br/handle/tede/3363
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, estudiosa sobre o autismo na THC, alerta sobre a condução mecânica e inflexível de programas de premissas behavioristas, focadas no estabelecimento de respostas específicas, automatizadas e sem reflexão, poder “provocar, nos sujeitos com TEA, uma crise, por não conseguirem selecionar uma resposta entre as já elaboradas, ao estarem diante de novas situações” (p. 54). Reproduções metodológicas que não priorizam o desenvolvimento da consciência e a integralidade dos sujeitos também “não levam o aluno ao desenvolvimento pleno das funções psicológicas superiores. Em consequência, muitos autistas acabam por desenvolver um atraso cognitivo” (p. 146). Sugerimos uma reflexão crítica sobre qualquer proposta desconectada e apartada da vida, distante da forma que almejamos a educação de qualquer criança, com ou sem deficiência, autista ou não.

Mesmo em escolas regulares, alguns ambientes ditos inclusivos, percebe-se uma dificuldade de compreender que a inclusão deve englobar também os conhecimentos das ciências. Por exemplo, Ayres et al. (2011)Ayres, K. M., Lowrey, K. A., Douglas, K. H., & Sievers, C. (2011). I can identify Saturn but I can’t brush my teeth: what happens when the curricular focus for students with severe disabilities shifts. Education and Training in Autism and Developmental Disabilities, 46(1), 11-21. http://www.jstor.org/stable/23880027
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defendem que a aprendizagem das habilidades acadêmicas representa um custo muito elevado para a vida de pessoas com severe disabilities4 4 A expressão severe disabilities é encontrada em artigos internacionais. Optamos por mantê-la na língua original, mesmo sendo de fácil tradução, por não concordarmos em qualificar dessa forma singularidades de pessoas com deficiência ou no espectro autista que precisam de maior suporte nos processos de aprendizagem e comunicação. , e não ajudam em sua independência e trabalho na vida adulta. Apoiam-se em um relato de um pai sobre uma criança com deficiência intelectual: “meu filho pode identificar Saturno, mas ele ainda não pode pedir um lanche ou mesmo limpar a bunda” (p. 12); por isso, defendem o currículo individualizado de habilidades funcionais (vida em comunidade, domésticas e de autoajuda) como substituto do currículo geral da escola com os padrões estabelecidos nacionalmente. Segundo os autores, os dados identificam tecnologia instrucional para ensinar habilidades funcionais, porém as escolas perdem muito tempo com “o ensino de outras habilidades que não apresentam ligação direta com a independência” (p. 16).

A forma com que estipulam limites entre os indivíduos típicos e atípicos é, em geral, e forçosamente artificial, especialmente para aqueles que defendem o desenvolvimento atípico como um modo de conhecer, comunicar-se e ser no mundo (Orsini & Smith, 2010Orsini, M., & Smith, M. (2010). Social movements, knowledge and public policy: the case of autism activism in Canada and the US. Critical Policy Studies, 4(1), 38-57. https://doi.org/10.1080/19460171003714989
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). Courtade et al. (2012)Courtade, G., Spooner, F., Browder, D., & Jimenez, B. (2012). Seven reasons to promote standards-based instruction for students with severe disabilities: a reply to Ayres, Lowrey, Douglas, & Sievers (2011). Education and training in autism and developmental disabilities, 47(1), 3-13. http://www.jstor.org/stable/23880557
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, em avaliação de 40 anos de pesquisa na área de Educação em Ciências nos Estados Unidos, declararam que os(as) alunos(as) com severe disabilities os ensinaram que é possível aprender em escolas públicas regulares, desenvolver habilidades dos contextos coletivos, beneficiar-se da inclusão com seus colegas sem deficiência e participar dos padrões curriculares estabelecidos com as adequações necessárias. No processo de absoluta exclusão até os movimentos de inclusão, iniciaram mudanças das perspectivas de vidas dessas pessoas, “pela primeira vez os educadores falavam sobre ajudar alunos com deficiências graves a se prepararem para a carreira ou faculdade de graduação” (p. 6). De acordo com Courtade et al. (2012)Courtade, G., Spooner, F., Browder, D., & Jimenez, B. (2012). Seven reasons to promote standards-based instruction for students with severe disabilities: a reply to Ayres, Lowrey, Douglas, & Sievers (2011). Education and training in autism and developmental disabilities, 47(1), 3-13. http://www.jstor.org/stable/23880557
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, mesmo que os(as) alunos(as) não ingressem em uma faculdade:

Se o mundo dos alunos com severe disabilities for tão pequeno quanto a viagem de sua casa para a loja de desconto local, restaurante de fast food, o que os educadores ensinaram no passado será suficiente. Em contraste, os alunos com severe disabilities também vivem em um universo, viajam nacional e internacionalmente, encontram pessoas de outras culturas, são impactados por eventos mundiais e se envolvem com o mundo natural. [...]. Ter vocabulário e experiências para comunicar sobre o mundo mais amplo fornece uma base melhor para interações sociais adultas. (p. 6)

Segundo Courtade et al. (2012)Courtade, G., Spooner, F., Browder, D., & Jimenez, B. (2012). Seven reasons to promote standards-based instruction for students with severe disabilities: a reply to Ayres, Lowrey, Douglas, & Sievers (2011). Education and training in autism and developmental disabilities, 47(1), 3-13. http://www.jstor.org/stable/23880557
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, negar às pessoas com severe disabilities a oportunidade da inclusão e do acesso ao currículo comum não é ancorada em argumentos convincentes, por isso posicionaram-se contrários a algumas conclusões de Ayres et al. (2011)Ayres, K. M., Lowrey, K. A., Douglas, K. H., & Sievers, C. (2011). I can identify Saturn but I can’t brush my teeth: what happens when the curricular focus for students with severe disabilities shifts. Education and Training in Autism and Developmental Disabilities, 46(1), 11-21. http://www.jstor.org/stable/23880027
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. Courtade et al. (2012)Courtade, G., Spooner, F., Browder, D., & Jimenez, B. (2012). Seven reasons to promote standards-based instruction for students with severe disabilities: a reply to Ayres, Lowrey, Douglas, & Sievers (2011). Education and training in autism and developmental disabilities, 47(1), 3-13. http://www.jstor.org/stable/23880557
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contra-argumentam acerca da importância dos conhecimentos escolares para pessoas com severe disabilities, são eles: (a) o direito à educação completa; (b) a relevância de um currículo com organização de padrões e objetivos educacionais estaduais; (c) o potencial ainda desconhecido dos(as) estudantes; (d) as habilidades funcionais não são um pré-requisito para habilidades acadêmicas; (e) o currículo baseado em padrões e objetivos não é um substituto para o currículo geral; (f) o currículo individualizado é limitado quando é o único currículo; e (g) os(as) estudantes devem poder criar suas próprias expectativas educacionais.

Realmente, um ensino de conceitos desvinculado da vida não favorece a significação e a atuação no mundo para pessoas com desenvolvimento atípico, mas essa abordagem também em nada contribui no processo de pessoas com desenvolvimento típico. As habilidades funcionais são essenciais à humanidade. Contudo, discordamos radicalmente de Ayres et al. (2011)Ayres, K. M., Lowrey, K. A., Douglas, K. H., & Sievers, C. (2011). I can identify Saturn but I can’t brush my teeth: what happens when the curricular focus for students with severe disabilities shifts. Education and Training in Autism and Developmental Disabilities, 46(1), 11-21. http://www.jstor.org/stable/23880027
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quando enunciam que o aprendizado de conhecimentos escolares não afeta o entendimento das atividades de vida diária e a independência. Não se trata de uma coisa em detrimento da outra, pois o desenvolvimento enriquecido caminha em unidade com ambas as dimensões - conhecimentos cotidianos e científicos -, e o aprendizado de um incide e transforma o outro.

Para compreendermos essa questão e discutir esses conceitos, utilizamos e ancoramo-nos na THC. O conceito científico difere do conceito cotidiano, pois refere-se a relações abstratas que organizam a materialidade e os eventos. Enquanto os conceitos cotidianos surgem do confronto direto das experiências empíricas, e movem-se na inauguração de sua consciência, os conceitos científicos estruturam-se de um modo diferente, pois desenvolvem-se em uma psique com certas compreensões e relações de mundo. Desse modo, não necessariamente a pessoa precisa ver ou vivenciar diretamente, para se apropriar de um novo conceito científico, assim é possível chegar a compreender conceitos de átomos e moléculas.

Lago e Mattos (2021)Lago, L., & Mattos, C. R. (2021). Bridging concept and activity: a dialectical synthesis proposal. Cultural-Historical Psychology, 17(2), 29-36. https://doi.org/10.17759/chp.2021170203
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articulam o sistema de conceitos de Vigotski com a estrutura de atividade de Leontiev, em que a unidade dialética corresponde à indissociabilidade das atividades sistematizadas, nas quais emergem conceitos direcionados a um propósito. Os autores relacionam conceitos científicos com ações conscientes em uma dimensão voluntária, e conceitos cotidianos com operações não conscientes em uma dimensão não voluntária. O movimento de ambos implica a formação do pensamento conceitual como uma atividade em que estar consciente sobre algo se relaciona diretamente aos processos volitivos de estar ciente à reflexão objetiva. Os conceitos científicos não são, exclusivamente, aprendidos na escola, assim como os conceitos cotidianos não estão excluídos do espaço escolar, “[...] certamente, existem aprendizagens não conscientes e não políticas na escola e aprendizagens conscientes e volitivas em casa” (Lago & Mattos, 2021Lago, L., & Mattos, C. R. (2021). Bridging concept and activity: a dialectical synthesis proposal. Cultural-Historical Psychology, 17(2), 29-36. https://doi.org/10.17759/chp.2021170203
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p. 31). Referindo-se à forma com que muitas sociedades são organizadas e à realidade de grande parte da população mundial, o entorno das relações familiares nem sempre apresenta estrutura propícia para aprofundamentos conceituais.

Por exemplo, o conceito de água é aprendido nas relações iniciais da criança, de forma não consciente e assistemática - um conceito cotidiano. Uma pessoa pode compreender a água, apropriadamente, em sua conceituação cotidiana estabelecida nas interações com o fenômeno e suas relações próximas. No entanto, pode apresentar dificuldades com a compreensão científica desse conceito, ir além das impressões imediatas da aparência, pois requer um mergulho na essência de seu significado e de seus múltiplos sentidos. Por exemplo, conseguir explicar por que a água em sua forma sólida flutua em seu líquido em vez de afundar, ou por que a água do mar não é potável, ou por que alguns povos morrem de sede enquanto sua casa possui água em abundância. Dificilmente as famílias possuem condições materiais, e imateriais, para sistematizar o ensino conceitual dos pormenores sobre a água nas relações entre química, física, biologia, sociologia, geografia, entre outros saberes.

Esta é a responsabilidade social da escola: organizar intencionalmente, em uma hierarquia conceitual, as intricadas mediações conscientes, como, no caso, a água nas questões bioquímicas e sociais, sua influência nas crises políticas entre países e as discussões acerca da poluição de recursos naturais. As aulas em ciências estão voltadas não apenas ao cotidiano visível, mas às relações históricas e às interações moleculares. Ainda que os dois modos de formação de conceitos tenham processos distintos, eles estão, interna e profundamente, ligados. O conceito científico refere-se a uma série de atos do pensamento que captam o reflexo objetivo da realidade, em um sistema de complexas relações, em que a multiplicidade de determinações é sintetizada na palavra, e inclui intricadas mediações no movimento do pensamento do geral e, também, do particular (Vigotski, 2012bVigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición.).

A formação do pensamento conceitual apresenta um caráter processual; assim sendo, seria equivocado supor que o(a) adolescente passa a uma transição imediata, ou que todo o pensamento sobre a realidade está impregnado por conceitos científicos (Vigotski, 2007Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue.). Como já reiteramos, a complexidade dos fenômenos da realidade só pode ser adequadamente representada por conceitos. Envolve abstrair os nexos causais que explicam o real, relacionando uma rede de conceitos pelo pensamento lógico. Ao contrário de concepções dualísticas, o pensamento abstrato revela sua base material, pois reflete “com a maior profundidade e verdade, da forma mais completa e diversificada, a realidade que enfrenta o adolescente” (Vigotski, 2012bVigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición., p. 70). O movimento do pensamento do(a) adolescente não rompe suas ligações com a base concreta da qual se origina; ele se estrutura na fusão entre as relações abstratas e concretas do pensamento. Os conceitos científicos, enriquecidos com mediações acerca do objeto, elevam a contemplação objetiva da realidade a patamares mais complexos. Dessa forma, as abstrações caminham em conjunto com as experiências acumuladas, e, então, ocorre o movimento complexo de progressivas abstrações e depurações na conceituação.

Em nossas vivências, podemos observar, assim como nos estudos de Vigotski (2012b)Vigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición., que as formas básicas de pensamento conceitual emergem de relações assistemáticas estabelecidas entre os(as) estudantes e os objetos e fenômenos da realidade que envolvem os conhecimentos das ciências. Ao questionarmos o que é uma molécula, os(as) estudantes, por ainda desconhecerem o conceito científico, citam exemplos de moléculas e substâncias que já conhecem, algumas vezes também confundem com átomos de elementos químicos isolados. Por exemplo, citam a água (H2O), mas também o hidrogênio (H), o oxigênio (O), muitas vezes referindo-se ao gás hidrogênio (H2) e ao gás oxigênio (O2) sem, às vezes, compreender a diferenciação. Trata-se de um longo processo até que os(as) alunos(as) se apropriem de conceitos da ciência, os organizem em sistemas conceituais - relações hierárquicas nos processos de generalização -, e consigam estabelecer mediações entre os conhecimentos, transições entre o concreto e o abstrato na explicação dos fenômenos.

Mesmo pessoas com desenvolvimento típico não dependem de pré-requisitos, de conhecimentos cotidianos específicos, como amarrar os sapatos, lavar a louça, fazer sua própria refeição, realizar compras no mercado ou administrar dinheiro, para terem direito de acesso aos conhecimentos científicos. Ninguém é absolutamente independente e apropriado de todas as habilidades criadas pela humanidade. Todos dependem uns dos outros, em distintas proporções e dimensões. As habilidades funcionais - que envolvem conhecimentos cotidianos - não podem configurar critério de exclusão curricular - dos conhecimentos científicos. Quando o ensino em ciências objetiva o desenvolvimento integral, as habilidades da vida diária estão incorporadas, por exemplo, ao: fazer uma horta, acompanhar o plantio e a colheita dos próprios alimentos; manipular e lavar vidrarias em atividades de laboratório, organizar as etapas de uma pesquisa, entre outras (Courtade et al., 2012Courtade, G., Spooner, F., Browder, D., & Jimenez, B. (2012). Seven reasons to promote standards-based instruction for students with severe disabilities: a reply to Ayres, Lowrey, Douglas, & Sievers (2011). Education and training in autism and developmental disabilities, 47(1), 3-13. http://www.jstor.org/stable/23880557
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).

Estudos educacionais no ensino de ciências, em uma perspectiva Histórico-Cultural, têm ampliado a dimensão dos conceitos científicos abordados em uma contextualização crítica, para a formação de estudantes com habilidades investigativas em resolução de problemas reais. Por exemplo, Echeverría et al. (2012)Echeverría, A. R., Costa, L. S. O., & Santos, M. C. dos. (2012). La crisis de los alimentos y el pan: abordaje de los fenómenos químicos y sociales. Educació Química, 12, 4-11. https://doi.org/10.2436/20.2003.02.86
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apresentam uma experiência didático-pedagógica realizada com alunos(as) da educação técnica. A partir dos direcionamentos de Paulo Freire, a proposta estruturou-se em módulos com temas vivenciais, com o objetivo de apresentar os conteúdos da ciência em uma relação dialética entre teoria e prática. O módulo de alimentação apresentou inúmeros recursos e atividades de estudo, entre eles, destacamos: discussões sobre a fome no mundo, desigualdades sociais, crise dos biocombustíveis; compreensão da composição bioquímica e reações químicas que ocorrem na produção do pão; visita a uma panificadora com a apresentação de equipamentos específicos; entrevista com padeiros sobre as condições e as formas de execução do trabalho; produção de pães pelos(as) próprios(as) estudantes com relações conceituais sobre os procedimentos e reações; conversas coletivas sobre o processo, e dúvidas práticas e teóricas e autoanálise sobre as dificuldades. De acordo com as autoras, ao final, os(as) alunos(as) conseguiram relacionar as dimensões macroscópicas e microscópicas dos fenômenos químicos. Entendemos que essa proposta se destaca como uma intervenção no ensino de ciências, com o objetivo de contextualizar os conteúdos de ciências e, dessa forma, “‘conceitualizar’ o contexto” (p. 5), o que pode unir as habilidades acadêmicas e funcionais, independentemente, de estar ou não direcionada à inclusão de pessoas com deficiência. Trabalhos como este enfatizam os pressupostos da THC, visto que os conceitos científicos devem ser ensinados em situação real, nas múltiplas relações que envolvem, ou seja, na atividade viva da realidade. Defendemos ser dessa forma que o conteúdo deve ser apresentado para pessoas com desenvolvimento típico ou atípico.

Pesquisas revelam que a educação em ciências com vias a uma transformação permite que pessoas com deficiência intelectual possam aprender conceitos e habilidades das ciências e generalizar para outros aspectos de suas vidas. Quando a educação científica caminha neste sentido, com atividades educacionais coletivas em sala de aula, ela permite que estudantes com deficiência aprendam os conceitos das ciências e habilidades essenciais para sua vida (Spooner et al., 2011Spooner, F., Knight, V. F., Browder, D. M., & Jimenez, B. (2011). Evaluating evidence-based practice in teaching science content to students with severe developmental disabilities. Research & practice for persons with severe disabilities, 36(1-2), 62-75. https://doi.org/10.2511/rpsd.36.1-2.62
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). A fim de capturar os aspectos potenciais dos sujeitos, urge modificações na concepção de desenvolvimento atípico e compreensão da complexidade processual e dialética, as metamorfoses “qualitativas de uma forma em outras, o entrelaçamento complexo de processos evolutivos e involutivos, o complexo cruzamento de fatores externos e internos, um complexo processo de superação de dificuldades e de adaptação” (Vigotski, 2012aVigotski, L. S. (2012a). Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribuición., p. 141). Cada modo singular de se expressar relaciona-se intimamente com um modo singular de pensar, mas é preciso fornecer os recursos para que a pessoa pense por si própria.

As funções psíquicas culturais necessárias para o aprendizado de qualquer conteúdo são, em grande parte, as mesmas, tanto para um desenvolvimento típico quanto para um complicado por uma deficiência. As pessoas com deficiência não possuem marcadores que impeçam aprendizados, não estão destinadas a um desenvolvimento inferior, apenas precisam de outras vias de acesso à cultura para desenvolverem-se ao seu modo (Vigotski, 2012cVigotski, L. S. (2012c). Obras Escogidas V: fundamentos de defectología. Machado Grupo de Distribuición.). Para qualquer pessoa, o aprendizado de conceitos reverbera além dos seus limites, interagindo no processo psíquico intricado, contribuindo com o aprendizado de outras informações e com seu desenvolvimento global (Vigotski, 2007Vigotsky, L. S. (2007). Pensamiento y habla. Colihue.). Os conceitos científicos incorporam os conceitos cotidianos e desenvolvem-se em uma nova estrutura, um sistema hierárquico conceitual que se interrelacionam, se transferem e transformam o entendimento interno dos conceitos cotidianos.

Ao longo do processo de escolarização na sociedade contemporânea, o aprendizado dos conhecimentos científicos conduzem a uma revolução no pensamento do(a) adolescente, surgem novas características fundamentais no desenvolvimento, como: ampliação da aquisição e sistematização de conteúdos em extensão e profundidade, em relação ao reflexo da realidade na consciência; influência em todas as outras funções psíquicas a se intelectualizarem, na reestruturação do mecanismo da atividade psíquica; elaboração do pensamento lógico; alterações radicais da conduta; participação ativa na sua comunidade; seleção de simpatias e antipatias; formação do espírito de contradição e dialeticidade; abertura ao mundo da consciência social objetiva, da psicologia de classe e ideologia social; ingresso na sua realidade interior, no mundo das suas próprias vivências; reflexão intensa acerca dos problemas da existência. Os processos de consciência transformam-se em autoconsciência (Vigotski, 2012bVigotski, L. S. (2012b). Obras escogidas IV: problemas de la psicología infantil. Machado Grupo de Distribuición.).

Para toda essa complexidade do desenvolvimento, é crucial a atividade de estudo, como guia do desenvolvimento na fase escolar. Os confrontos com as mudanças das situações de brincadeira para as de estudo, e em seguida para a comunicação pessoal, envolvem rupturas de transição desejáveis para o desenvolvimento. Entretanto, em situações em que não são ofertados os conhecimentos científicos ou, ainda, quando a atividade de estudo é secundarizada, “essas transições ocorrem de forma inexpressiva e pode provocar o atraso no desenvolvimento psíquico e limitações no desenvolvimento da personalidade” (Tolstij, 1989Tolstij, A. (1989). El hombre y la edad. Editorial Progreso., p. 29). Isso ainda ocorre, recorrentemente, com as pessoas com deficiência que são impedidas de se desenvolverem. A situação social que “não oportuniza os elementos necessários para a assimilação de atividades, compromete a aparição de neoformações psicológicas, pois compromete ou impede a passagem para novas atividades mais complexas” (p. 29).

Tosun (2021)Tosun, C. (2021). Bibliometric and content analyses of articles related to science education for special education students. International Journal of Disability: development and education, 69(1), 352-369. https://doi.org/10.1080/1034912X.2021.2016659
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explica que a alfabetização científica de alunos(as) com deficiência apresenta, de uma forma geral, desafios como: compreensão de modelos visuais complexos, manipulação de instrumentos delicados, discussões com conceitos ainda não aprendidos, organização das informações em projetos longos com muitas etapas, interpretação de textos complicados e relações matemáticas. Para a superação das dificuldades, o autor advoga a necessidade primeira de se conhecer as singularidades dos sujeitos. O uso de estratégias como a colaboração entre professores(as), organização dos objetivos educacionais, utilização de diferentes recursos (ensino por investigação com orientação, atividades colaborativas, organizadores gráficos, tutoria por pares).

Smith et al. (2013)Smith, B. R., Spooner. F., Jimenez, B. A., & Browder, D. (2013). Using an early science curriculum to teach science vocabulary and concepts to students with severe developmental disabilities. Education and Treatment of Children, 36(1), 1-31. https://doi.org/10.1353/etc.2013.0002
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defendem a importância do ensino em ciências para pessoas com severe disabilities. Os autores enfatizam que os aprendizados científicos desenvolvem habilidades investigativas, reorganizam o pensamento para questionar e interpretar melhor o mundo que os rodeiam, “fazendo perguntas como ‘por que chove?’ e, em seguida, usando habilidades de investigação para desenvolver passos para uma previsão, experimentar e encontrar respostas para suas perguntas” (p. 4). Smith et al. (2013)Smith, B. R., Spooner. F., Jimenez, B. A., & Browder, D. (2013). Using an early science curriculum to teach science vocabulary and concepts to students with severe developmental disabilities. Education and Treatment of Children, 36(1), 1-31. https://doi.org/10.1353/etc.2013.0002
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investigaram os aprendizados de ciências com um grupo de crianças com múltiplas deficiências, em escola inclusiva dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Segundo os autores, elas apresentavam pouca oralização, comunicavam-se com o apoio de gestos e expressões faciais, e nem sempre apresentavam motivação com as aulas tradicionais. Foram, então, organizadas atividades em pequenos grupos para o ensino de conceitos de ciências, as quais eram iniciadas com breves sugestões de atenção, de acordo com as necessidades, por exemplo, tocar nos braços. Após a intervenção, foi identificado que as crianças se apropriaram do significado dos termos da ciência apresentados em suas relações contextuais.

A inclusão de alunos(as) com deficiência não depende apenas de estratégias para que se apropriem de conhecimentos intelectuais, mas de uma apropriação cultural que esteja na relação com seus pares. Não é apenas socialização, não é tão somente conhecimento científico, mas o seu movimento nas relações. Boyle et al. (2020)Boyle, S., Rizzo, K. L., & Taylor, J. C. (2020). Reducing language barriers in science for students with special educational need. Asia-Pacific Science Education, 6(2), 364-387. https://doi.org/10.1163/23641177-BJA10006
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enfatizam que o uso desses sistemas deve acontecer de forma inclusiva, ou seja, não apenas pelos(as) alunos(as) com algum impedimento de comunicação, mas pela pluralidade da comunidade escolar, que tem muito a se beneficiar com outras ferramentas nos processos educativos dos discursos científicos. Os conceitos científicos de ciência devem, além de resolver problemas específicos em que foram abordados em sala de aula, também ampliar generalizações de sua realidade, aplicáveis em situações diversas de problemas correlatos em que o sujeito venha a defrontar-se.

Não há espaço em uma educação em ciências no dualismo entre funcional e acadêmico, cotidiano e escolar, afeto e intelecto - fragmentação da vida do ser. Para Spinoza (2017)Spinoza, B. (2017). Ética. Autêntica., mente e corpo são dois atributos de uma única substância, com características singulares, mas compõem-se em uma unidade inseparável - não hierárquica. O próprio corpo é objeto da mente humana, são as ideias de afecção do corpo que delineiam a percepção que temos de nós mesmos, logo, “o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo existe em ato [...] o corpo humano existe tal como o sentimos” (p. 61). Assim, como afirma o autor, o corpo é nosso instrumento ético, a potência do ser manifesta-se em suas relações, quanto mais o corpo for afetado positivamente, mais complexas serão nossas ideias. Na escola, os conhecimentos cotidianos devem imbricar-se aos escolares; assim, as habilidades da vida diária não podem estar desconectadas das acadêmicas. A independência de qualquer pessoa, com ou sem deficiência, não se trata de um gesto motor e repetitivo de, por exemplo, lavar as mãos, mas tomar consciência dos motivos que nos levam a tais ações. Reside aqui a potência dos conhecimentos científicos no processo de conscientização e complexificação do desenvolvimento.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que a educação se dê em todos os espaços, a escola é a instituição responsável por sistematizar e direcionar os aprendizados dos conceitos científicos para a incorporação e a complexificação dos saberes cotidianos. Constitui-se como o espaço fundamental de condução das atividades de estudo, criação de condições e geração do movimento consciente das crianças, dos(as) adolescentes e dos(as) jovens na direção de posicionamentos sociais críticos. Quanto antes a criança apropriar-se de significados mais elaborados de sua realidade, mais rapidamente modificará seu caráter psíquico, reorganizando o lugar que ocupa em suas relações sociais. Gradualmente, ela assumirá novas atividades, funções e obrigações sociais que orientarão o conteúdo de sua vida. Essa defesa vale para o humano, independentemente de um desenvolvimento típico ou atípico. Os conhecimentos científicos são um direito inalienável de todos(as).

A educação é processual, não será com uma única aula ou uma atividade ou um material específico, seja para estudantes com ou sem deficiência, que eles(as) desenvolverão a autonomia e o controle de si mesmos. A educação escolar refere-se a uma unidade complexa de ações que precisam estar alinhadas à perspectiva de desenvolvimento em sua integralidade, com vias à formação da personalidade dos(as) estudantes. Nessa composição, defendemos que o ensino de ciências tem, como responsabilidade, compreender como os conhecimentos científicos se interrelacionam com as funções psíquicas na organização do pensamento criativo, nas atitudes coletivas, na volição, no controle da conduta, nas emoções - no desenvolvimento humano.

Com base nos pressupostos apresentados, defendemos que um ensino estruturado, com mediações significativas dos conceitos científicos, permite toda uma revolução nas formas de pensar e agir em suas atividades da vida diária. A partir dessa perspectiva, torna-se clara a magnitude das ações dos(as) professores(as) e da escola nos processos de aprendizagem, seja do(a) estudante com desenvolvimento típico ou atípico. A escolarização entendida como processual, coletiva e sistemática na formação do sujeito e na organização de suas condutas, apresenta como objetivo atuar no desenvolvimento proximal, ou seja, tudo aquilo que a pessoa ainda precisa de suporte do outro, mas que está na iminência de internalizar e conseguir desenvolver por si próprio, transformando-se em desenvolvimento real.

Tal perspectiva é o eixo desta produção e possibilitou-nos direcionamentos sobre: a organização pedagógica em aulas de ciências na mediação dos sistemas simbólicos entre os sujeitos e o mundo; o papel das trocas coletivas entre os pares típicos e atípicos; os processos de aprendizagem; a apropriação dos conceitos científicos como possibilidade de complexificação individual e de transformação social; a unidade afeto-intelecto na formação dos sujeitos, entre outros aspectos. Nesse sentido, apresentamos, neste texto, alguns exemplos, em destaque a proposta de Echeverría et al. (2012)Echeverría, A. R., Costa, L. S. O., & Santos, M. C. dos. (2012). La crisis de los alimentos y el pan: abordaje de los fenómenos químicos y sociales. Educació Química, 12, 4-11. https://doi.org/10.2436/20.2003.02.86
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. Assim, de acordo com Paoli e Machado (2022Paoli, J., & Machado, P. F. L. (2022). Inclusão em aulas de ciências: possibilidades da educação científica como fator de constituição humana em uma perspectiva histórico-cultural. ACTIO: Docência em Ciências, 7(3), 1-25. http://dx.doi.org/10.3895/actio.v7n3.15392
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, p. 20), um currículo de ciências para todos(as) não se trata de fazer escolhas entre conhecimentos úteis e acadêmicos, mas assumir posicionamentos, possibilitando um ensino de ciências que favoreça “a constituição de uma pessoa mais autônoma, no processo de aprender, torna-a mais autônoma no processo de viver” (Frison et al., 2011Frison, M. D., Del Pino, J. C., & Matos, E. M. C. (2011). Produção curricular articulada à formação inicial de professores de química: implicações na escola de nível médio. Didática sistêmica, 13(2), 42-55. https://periodicos.furg.br/redsis/article/view/2269
https://periodicos.furg.br/redsis/articl...
, p. 52). O horizonte de desenvolvimento está no horizonte das oportunidades de instrução de uma pessoa.

  • 4
    A expressão severe disabilities é encontrada em artigos internacionais. Optamos por mantê-la na língua original, mesmo sendo de fácil tradução, por não concordarmos em qualificar dessa forma singularidades de pessoas com deficiência ou no espectro autista que precisam de maior suporte nos processos de aprendizagem e comunicação.
  • Errata referente ao artigo do v. 30, e0100, 2024, DOI: https://doi.org/10.1590/1980-54702024v30e0100
    TÍTULO: Ensino Funcional ou Acadêmico em Ciências para Estudantes com Deficiência ou Autismo?
    Autores
    Joanna de PAOLI
    Patrícia Fernandes Lootens MACHADO
    Onde se lê na página 10, 2ª linha: “[...] certamente, existem aprendizagens não conscientes e não políticas na escola e aprendizagens conscientes e volitivas em casa” (Lago & Mattos, 2021 p. 31).
    Leia se: “[...] certamente, existem aprendizagens não conscientes e não volitivas na escola e aprendizagens conscientes e volitivas em casa” (Lago & Mattos, 2021 p. 31).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2023
  • Revisado
    11 Set 2023
  • Aceito
    16 Set 2023
  • Corrigido
    16 Out 2024
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