Machado de Assis é um escritor que dispensa apresentações, pois está nas “dobras da memória”1, graças à potência de muitas de suas obras, que se tornaram clássicas. Sonia Netto Salomão declara: “Machado de Assis é parte do cânone ocidental, hoje” (p. 9). Destaquei o advérbio “hoje” porque a inserção de Machado no cânone ocidental acontece tardiamente. Contudo, essa situação foi sendo revertida paulatinamente e se deu no final do século XX e início do século XXI quando, por exemplo, Machado passa a figurar na lista de Harold Bloom dos 100 autores mais criativos da história da literatura.2 Apesar disso, ao ser indagado sobre a influência literária de Machado de Assis para além das fronteiras lusófonas, o crítico Kenneth David Jackson diz que “está tendo mais impacto, mas avança devagar”, pois falta “a difusão da nova crítica, falta incorporar Machado no cânone da literatura comparada, falta de maneira geral ler Machado”.3
Mesmo assim, esse “mestre da ficção” tem sido revisitado de diferentes formas, porque, além da reedição constante das suas obras, soma uma enorme bibliografia crítica em português (de Roberto Schwarz a Marta de Senna, de Lúcia Granja a Hélio de Seixas Guimarães) e, cada vez mais, em outras línguas. Tem sido lido e traduzido por importantes estudiosos estrangeiros como John Gledson (além das traduções realizadas para o inglês, destacamos Por um novo Machado de Assis, de 2006)4 e Kenneth David Jackson (que organizou a Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, na qual incluiu 10 contos do autor e publicou em 2015, Machado de Assis: A Literary Life).
Ademais, as traduções e retraduções têm sido ampliadas em quantidade e qualidade. Para citar algumas das traduções mais recentes e ficando apenas nas “línguas-culturas centrais” (CASANOVA, 2002, 2021), temos Várias Histórias para o francês (Histoires diverses, traduzido por Saulo Neiva, publicado em 2015 e reeditado em 2017); Memórias Póstumas de Brás Cubas em italiano, realizada por Daniele Petruccioli, em 2020, ou a tradução desse mesmo livro para o inglês, como a de Flora Thomson-DeVeaux, publicada nos Estados Unidos, em 2020, esgotando rapidamente. Isso parece confirmar certa “machadomania”, mas apontando para a vitalidade dos estudos machadianos.
Ainda na diversificada bibliografia crítica e na esteira da vitalidade dos estudos machadianos, em 2016 foram publicados, entre outros, dois livros sobre Machado, ambos vencedores do Prêmio Jabuti 2017. Um deles pertence à categoria “Romance”, intitulado Machado, de Silviano Santiago, e o outro à categoria “Teoria/Crítica, Dicionários e Gramáticas”, Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura, da professora e pesquisadora da Universidade de Roma La Sapienza, Sonia Netto Salomão.
Neste último livro, objeto desta resenha, Sonia Netto Salomão propõe “itinerários de leitura, divididos em três eixos que, embora independentes, se entrecruzam pelas três vias propostas” (p. 13) e têm um ponto em comum, conforme relatado pela própria autora, a “busca extraordinária de um modelo por parte de Machado de Assis ao longo do seu trajeto literário” (p. 9). Os itinerários propostos por Sonia Netto Salomão se intitulam: 1) “A um crítico”; 2) “Machado lúdico: os percursos da ironia”; 3) “Machado de Assis e a Itália”. Esses itinerários se desdobram em outros tantos como veremos a seguir.
Na Introdução, “Por um cânone machadiano”, Sonia Netto Salomão apresenta de forma mais alargada o livro, dando o tom da discussão, mostrando claramente o seu percurso, as suas hipóteses, o(s) seu(s) método(s) de análise, as suas bases teóricas, desvelando as possibilidades interpretativas e também mostrando os múltiplos caminhos que podem ser trilhados. Um percurso necessário, pois Machado de Assis é um autor complexo que criou procedimentos, nutriu-se da literatura de diferentes autores nacionais e estrangeiros, incorporando modelos e formas, com imensa originalidade. Machado criou uma síntese própria, realizando “a antropofagia ante literam”, como destacado na parte 2.2.2, colocando a sua literatura no in-between, como será demonstrado ao longo do livro e esmiuçado no segundo itinerário. Ou seja, Machado não apenas dialoga com os seus precursores, mas se volta para o futuro, antecipando de maneira original procedimentos literários e discussões que estarão no cerne da modernidade e pós-modernidade.
Nesse sentido, Sonia Netto Salomão afirma: “Não resta dúvida que Machado confrontou-se com diversos modelos do cânone ocidental e realizou uma síntese original a partir de processos mistos de rejeição, desconstrução, adaptação, tradução ou fusão” (p. 9). Contudo, o objetivo do livro, segundo a autora, “não foi [...] realizar uma pesquisa exaustiva dos modelos com os quais se confrontou o escritor carioca, mas, sim, desvelar os mecanismos de construção da sua obra em diálogo com diversos contextos: da literatura clássica à moderna, da música ao teatro, do jornalismo à política. Diálogo que se estendeu ao leitor-crítico e ao próprio autor que se observa enquanto escreve os seus textos” (p. 9). Esse objetivo também se desdobra em “chamar a atenção do leitor para as raízes ocidentais da narrativa machadiana, mostrando, ao mesmo tempo, o quanto há de brasileiro na sua prosa” (p. 351).
O primeiro capítulo, intitulado “A um crítico”, é subdividido em quatro partes: “O senão do Livro”, “A aventura da mimesis nos romances machadianos”, “Os cronotopos machadianos” e “Cânone contra cânone: d’O cortiço ao Quincas Borba”. A autora identifica algumas chaves de leitura, apresentando “a máquina crítica inerente ao tecido narrativo machadiano” (p. 13), mas adverte: “Não se trata nem das ideias críticas de Machado nem, tampouco, de Machado como crítico, apenas” e prossegue “busca-se examinar as estratégias críticas que o escritor nos apresenta [...] e como Machado revelou os seus modelos” (p. 13). Assim, Sonia Netto Salomão analisa textos e paratextos, com especial destaque para Memórias Póstumas de Brás Cubas, que parece ter “sido escrito para um crítico” (p. 21), no qual é possível buscar “a chave para a compreensão da chamada segunda fase da obra machadiana (p. 21). Nessa primeira parte do livro, conforme esclarece a autora em uma entrevista, o interesse é “o de analisar o método de trabalho de Machado. Compreender como a análise crítica se somava ao ludismo dos seus textos; perceber por que Machado era tão particular e, ao mesmo tempo, universal, e porque ele desafiava o crítico ou a crítica, com aquela estratégia do jogador que envolve o seu parceiro de jogo, principalmente quando blefa”5. E foi disso que nasceu o título do livro, ou seja, “[...] da compreensão que Machado enfrentou vários modelos canônicos, dialogando com eles, num processo de aceitação, rejeição, reescritura, e assim por diante. Ele mesmo se define um ‘ruminante’ e, desse modo, não há como não perceber um processo antropofágico, como o detectado pelos modernistas brasileiros, e que, no fim, identifica a nossa cultura pós-colonial”.6
O segundo capítulo, “Machado lúdico: os percursos da ironia”, é subdividido em três partes: “Ironia, jogo e dialética na narrativa machadiana”, “O alienista e o riso de Demócrito” e “Os jogos metalinguísticos: a língua literária de Machado de Assis”. Como sugere o título, o elemento-chave é a ironia “como construção, mas também como dia(l)ética” (p. 13), no qual a autora busca verificar “como o tecido retórico da ironia na narrativa machadiana é indissociável do próprio gênero ou modelo romanesco e da sua expressão linguística” (p. 13). São dois aspectos que devem ser considerados ao analisar a ironia na prosa machadiana: “a ironia como função retórica e enquanto postura ético-filosófica do autor-narrador” (p. 150). A partir dessas questões, Sonia Netto Salomão cria o seu percurso analítico, mesclando teorias e conceitos sobre ironia e indicando de que modo aparece em alguns textos de Machado de Assis. E é ainda nessa parte que são mais bem explicitados alguns procedimentos machadianos na construção de uma literatura no in-between (p. 240)
No terceiro capítulo, “Machado de Assis e a Itália”, que é subdividido em três partes, “A Itália através de filtros literários: Stendhal e outros”, “Machado e os italianos do Rio de Janeiro: a editoria, o teatro dramático e a ópera” e “Tradução e recepção de Machado de Assis na Itália”, a autora realiza uma “reconstrução - ainda parcial - da relação de Machado de Assis com a cultura italiana” (p. 14). Essa reconstrução é repleta de elementos que atestam a rica relação de Machado com diferentes aspectos da cultura italiana. Ela está presente desde a literatura (de Dante a Leopardi) à música (especialmente a ópera), quer pelo uso das fontes, modelos literários e outros, sem deixar de evidenciar que “muito do que Machado aprendeu sobre a Itália o fez através do olhar histórico, cultural e anedótico de Stendhal, nos eruditos volumes que o escritor francês dedicou à terra de Dante” (p. 221). Ou seja, Machado lê a Itália indiretamente, tendo a França como um intermediário literário. O que não causa estranheza, tendo em vista o papel da França na bolsa de valores literários, conforme exposto por Pascale Casanova em A República Mundial das Letras (2002).
No quesito literário, Sonia Netto Salomão, entre outras coisas, afirma: “fazia parte da biblioteca de Machado de Assis um acervo razoável de volumes em língua italiana [...]” (p. 236) e, segundo ela, Leopardi e Tasso eram os autores “que mais admirava e os que mais utilizou na construção de sua obra” (p. 236). Sobre Leopardi é o próprio Machado a declarar em 1898 que: “Leopardi é um dos santos da minha igreja, pelos versos, pela filosofia, e pode ser que por alguma afinação moral [...]”. Essa afirmação é utilizada como epígrafe na abertura do terceiro itinerário “A Itália através de filtros literários: Stendhal e outros” (p. 219). Contudo, há outro importante nome da cultura italiana que também não poderia deixar de ser lido e interpretado por Machado. Trata-se de Dante, de quem traduziu um canto do Inferno, e foi segundo Sonia Netto Salomão, “um autor que o escritor carioca muito cultivou ao longo de sua obra, durante pelo menos 40 anos, uma vez que a primeira citação do poeta florentino é de 1864 [...] e a última de 1908 [...]” (p. 220)
Em “À guisa de conclusão”, a autora retoma de forma sucinta os principais pontos de sua análise, evidenciando a estratégia machadiana ao antecipar a “inversão de óptica proposta por Oswald de Andrade” (p. 405) na questão da antropofagia ante literam de Machado, antecipando discussões que serão recorrentes no contexto pós-colonial.
Na breve descrição da obra apresentada acima, podemos dizer que os itinerários machadianos propostos por Sonia Netto Salomão apresentam uma rica análise de aspectos da obra de Machado, que comprovam que o autor se utilizou de maneira antecipada da “antropofagia”, usando os mais diferentes procedimentos (paródia, sátira, pastiche, intertextualidade, plágio, traduções) para a construção da sua obra. Como destaca a autora, Machado “cria e recria; avança e recua, retoma, burila, reescreve” (p. 12), colocando a sua literatura no in-between, sinalizando a sua sólida cultura.
Ademais, este livro se soma à rigorosa crítica machadiana, nacional e internacional, pois Sonia Netto Salomão transita com destreza entre as diferentes obras de Machado, enriquecendo a sua compreensão, dialogando com os pares, propondo e abrindo novos itinerários de pesquisa para os estudiosos desse escritor brasileiro que ainda precisa ser mais e melhor conhecido no país e no exterior, até porque as obras clássicas, como as de Machado de Assis, nunca terminam de dizer aquilo que tinham para dizer.7 Isso é especialmente importante quando se está diante de um escritor cuja obra “configura-se como um palimpsesto, com muitas marcas e rasuras a serem reconstituídas e interpretadas, com vigor e delicadeza; um oximoro de difícil solução” (p. 12). Como evidenciado ao longo do livro, Machado visitava as grandes tradições literárias e selecionava, reescrevia, adaptava, reinventava, enfim estabeleceu as suas afinidades (se)letivas, utilizando-se, conforme demonstrado por Sonia Netto Salomão, de um método “canibalista” avant la lettre, criando uma síntese particular e original, “estabelecendo um diálogo com a tradição passada e futura [...] de uma literatura in between” (p. 16), entre o nacional e o estrangeiro.
Referências
- BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
- CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
- CASANOVA, Pascale. A língua mundial. Tradução e dominação Tradução de Marie-Hélène C. Torres. Florianópolis/Brasília: EDUFSC/EdUNB, 2021.
- CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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COSTA, Walter Carlos; IGOA, Rosario Lazaro. Entrevista com John Gledson. Cadernos de Tradução, v. 36, n. 2, p. 311-329, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-79682016000200311 Acesso em: 05 jan. 2021.
» https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-79682016000200311 -
GUERINI, Andréia. Entrevista com Sonia Netto Salomão. Revista da Anpoll, v. 1, n. 47, p. 148-154, 2018. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1206 Acesso em: 05 jan. 2021.
» https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1206 - COSTA, Cynthia Beatrice; GUERINI, Andréia. Entrevista com Kenneth David Jackson. Revista da Anpoll, v. 1, n. 43, p. 193-203, 2017. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1057. Acesso em: 05 jan. 2021.
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GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Entrevista com John Gledson. Machado de Assis em Linha, v. 13, n. 29, p. 109-122, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212020000100109 Acesso em: 05 jan. 2021.
» https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212020000100109
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1
Italo Calvino diz que “os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 1993, p. 10-11).
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2
BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 686-693.
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3
“Entrevista com Kenneth David Jackson”, realizada por Cynthia Beatrice Costa e Andréia Guerini. Revista da Anpoll, 2017: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1057/919
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4
“Entrevista com John Gledson”, realizada por Walter Carlos Costa e Rosario Lazaro Igoa em Cadernos de Tradução, 2016: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-79682016000200311, & “Entrevista com John Gledson”, realizada por Hélio de Seixas Guimarães, em Machado de Assis em Linha, 2020: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212020000100109
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5
“Entrevista com Sonia Netto Salomão”, realizada por Andréia Guerini, em Revista da Anpoll, 2018: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1206
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6
Idem.
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7
Ver Italo Calvino. Por que ler os clássicos. 1993, p. 11.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Dez 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
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Recebido
15 Jan 2021 -
Aceito
15 Ago 2021