Open-access Democratização do ensino: vicissitudes da idéia no ensino paulista

HOMENAGEM

Democratização do ensino: vicissitudes da idéia no ensino paulista*

José Mario Pires Azanha

Universidade de São Paulo

RESUMO

Partindo do reconhecimento de que o termo "democracia" pode prestaras a todo tipo de propaganda ideológica, há muita dificuldade em esclarecer a noção derivada de ensino democrático. Para contornar esse obstáculo, o A. distingue entre a propaganda e a ação democratizadora, atendo-se ao exame da segunda. Neste sentido analisa alguns esforços de democratização do ensino no Estado de São Paulo, através dos seguintes episódios: Reforma Sampaio Dória (1920); expansão da matrícula no ensino ginasial (1967-1969) e tentativa de renovação pedagógica proposta pelos Ginásios Vocacionais. Nessa análise procura também distinguir entre a idéia de democratização do ensino como prática de liberdade e como expansão de oportunidades a todos, procurando mostrar como no primeiro sentido pode haver uma degradação, em termos pedagógicos, da idéia de democracia política.

Palavras-chave: Democratização do ensino — Ensino secundário.

I.

Num estudo de Gerth e Wright Mjlls, publicado pela primeira vez em 1953, eles afirmam que "a palavra Democracia, em especial quando usada na moderna competição propagandística, passou, literalmente, a significar todas as coisas, para todos os homens".1 Esta observação que na sua contundência parece dissuadir qualquer tentativa de clarificação do termo, reflete contudo uma característica da situação histórica que vivemos, na qual o prestígio da posição democrática é tão grande que o termo "democracia" e seus derivados se transformaram em elemento indispensável a qualquer esforço ideológico de persuasão político-social. Aliás, esse quadro já se havia revelado claramente num simpósio promovido pela UNESCO em 1948 e no qual se discutiram os "conflitos ideológicos acerca da democracia".2 Nesse simpósio, aos especialistas convidados — expoentes nas suas respectivas áreas — foi apresentado um elenco de tópicos e questões que na sua variedade e formulação ensejou o aparecimento das profundas e irredutíveis divergências dos autores consultados. Mas, não obstante as diferenças radicais de posição acerca do significado de "democracia" e de suas implicações políticas, sociais e econômicas, houve um ponto que foi a premissa fundamental de todas as posições: a valorização do ideal democrático. É claro que, muitas vezes, a teologia de um soava como demonologia para outro, mas todos concordaram na "aceitação da democracia como a mais alta forma de organização política e social" e com a tese de que "a participação do povo e os interesses do povo são elementos essenciais para o bom governo e para as relações que fazem possível o bom governo".3 É essa unanimidade na superfície e essa divergência profunda acerca do significado de "democracia" que tomam muito difícil o esclarecimento da noção derivada de "ensino democrático". Contudo uma das conclusões do inventário analítico do simpósio, encomendado pela UNESCO a Naess e Rokkan,4 fornece um itinerário possível para essa tarefa. Nesse inventário, os autores cautelosamente se abstiveram de um balanço que se assemelhasse a uma tentativa de procurar pontos de consenso nas opiniões expressas, mas, pelo contrário, reconhecendo as inconciliáveis divergências, buscaram compreender as suas razões. Nesses termos, na conclusão referida, disseram eles:

"...o significado geral de 'democracia' é tão claro e livre de ambigüidade quanto a linguagem corrente permite; é a expressão de um ideal, um modelo, e um desígnio, um reflexo de aspirações humanas. As disputas ideológicas não se levantam deste significado geral e do tipo ideal de relações humanas que ele expressa; as disputas dizem respeito às condições que levam ao progresso até este ideal, aos meios pelos quais ele pode ser alcançado, à ordem das providências a serem tomadas no seu desenvolvimento. Como conseqüência, as atuais controvérsias ideológicas não se concentram no significado de 'democracia', mas nas teorias sobre as condições de seu desenvolvimento e os meios de sua realização".5

Neste trecho, fica muito claro como é ilusória a unanimidade das alegações democráticas e como, em conseqüência, a simples profissão de fé democrática não divide os homens. As formulações abstratas do ideal democrático são opacas e assépticas. Prestam-se a todos os usos, servindo a todas as ideologias. É nos esforços de realização histórica desse ideal que as raízes das posições e das divergências se revelam.

Partindo desse reconhecimento, delineia-se um caminho possível para tentar clarificar a noção derivada de ensino democrático. É além da zoada dos manifestos, das proclamações e dos slogans — que afinal não divide os "democratas da educação" — que é preciso escrutinar o que os divide: a ação democratizadora.

É por isso que no desenvolvimento deste trabalho distinguiremos, com relação ao ensino em São Paulo, entre a propaganda da educação democrática e providências no plano da ação. A primeira só interessará incidentalmente na medida em que estiver vinculada de modo direto com algum episódio político ou administrativo que diga respeito ao tema tratado. Com isso não subestimamos a importância de seu eventual estudo, mas apenas a consideramos evanescente como elemento explicativo das medidas democratizadoras do ensino ocorridas neste século. Aliás, o discurso pedagógico neste período foi sempre de tom monótono e abstratamente democrático; não se prestando, pois, corno tal, para diferenciar entre tendências autenticamente democráticas e outras em que os slogans da democracia, pela sua aceitação universal, serviam a outros propósitos.

A quem examina, mesmo superficialmente, as vicissitudes dos esforços de democratização do ensino em São Paulo, neste século, ressaltam dentre outros os seguintes episódios: Reforma Sampaio Dória (1920), Manifesto dos Pioneiros (1932), luta pela escola pública (1948-1961), expansão da matrícula no ensino ginasial (1967-1969) e esparsas tentativas de renovação pedagógica (Ginásios Vocacionais, por exemplo). Cada um desses eventos representou a seu modo um esforço no sentido da democratização do ensino. Situa-se, no entanto, fora do escopo deste trabalho o exame da importância relativa dessas iniciativas no desenvolvimento da educação no Estado, porque o nosso objetivo é mais modesto do que qualquer intenção historiadora. Queremos apenas por em relevo que essas diferentes contribuições representaram distintos compromissos, tácitos ou não, com a idéia de democratização do ensino. Mas, conforme já anunciamos anteriormente, vamos reter para análise apenas os episódios diretamente envolvidos numa ação, tentando nesses casos deslindar o entendimento de "democracia" implicado por essa ação. Com essa restrição, limitaremos os comentários a aspectos da Reforma Sampaio Dória, da expansão das matrículas no cicio ginasial e da renovação pedagógica dos Ginásios Vocacionais. Numa primeira aproximação e sem maior esforço, constata-se que os três casos exemplificam uma ou outra de duas maneiras básicas de compreender a democratização do ensino: 1) como política de ampliação radical das oportunidades educativas (é o caso da Reforma Sampaio Dória e da expansão das matrículas no ciclo ginasial) e 2) como prática pedagógica (é o caso dos Ginásios Vocacionais). Aparentemente, essas distintas maneiras de conceber a democratização do ensino se completam e não poderiam ou, principalmente, não devem ser associadas. Há mesmo autores cujas referências ao assunto levam a pensar que se trata apenas dos aspectos quantitativo e qualitativo de um único e básico processo.6 Aliás, essa é uma idéia muito difundida e de trânsito fácil entre os que tratam de educação; contudo, o assunto não nos parece tão simples, o a ele voltaremos após uma breve descrição e comentário de cada uma das iniciativas em foco.

II.

Reforma Sampaio Dória: Quando Sampaio Dória assumiu a Diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo, em 1920, a situação do ensino primário era altamente deficitária.7 Esse quadro que vinha se agravando ano a ano, nessa altura exigia que se duplicasse a rede de escolas para que fosse possível absorver a população escolarizável. Convivendo com essa grave necessidade, havia a completa incapacidade financeira para enfrentá-la. Sampaio Dória que, já em 1918, em carta aberta a Oscar Thompson (então Diretor da Instrução Pública) analisara a situação e apontara soluções, ao ser empossado no cargo, em 1920, demonstrou plena consciência da sua significação política:

Sempre que penso na realização prática dos princípios democráticos, uma dúvida, uma quase descrença, me assalta o espírito, diante do espetáculo doloroso da ignorância popular. Como organizar-se, por si mesmo, politicamente, um povo que não sabe ler, não sabe escrever, não sabe contar? Se o povo não souber o que quer, como há de querer o que deve? Governos populares, sem cultura, viverão morrendo da sua própria incultura.

Eis por que me interessou, sempre, a solução prática do problema do analfabetismo. A instrução, primaria e obrigatória, a todos, por toda parte, é ideal que seduz...8

Urgia, pois, erradicar o analfabetismo. Era uma exigência democrático-nacionalista. Mas, não havia recursos para isso. Embora o problema fosse e agravado por deficiências pedagógicas, não era, evidentemente, uma questão teórica de política educacional num sentido amplo. E o reformador — não obstante educador — escapou à sedução das soluções simplistamente pedagógicas e acuidade para os termos políticos em que a situação se apresentava:

Sabe-se que sem igualdade, não há justiça. A desigualdade com que o Estado matéria de ensino elementar, tem tratado aos seus filhos, é uma injustiça. E como sem justiça, não há democracia digna, a sustentação do systema actual seria democrática.

Dizer que é preferível favorecer, com mais algumas noções, a um terço da população escolar, e, como conseqüência, negar tudo aos outros, é heresia democrática e necedade. O governo estaria pronto a aceitar este ponto de vista, se, primeiro demonstrassem que é justo, e, depois, que dois anos de escola não valem nada.9

Nessas condições, um dos pontos centrais da reforma foi a reorganização do ensino primário, de tal forma que a obrigatoriedade escolar não mais começava aos 7, mas aos 9 anos; os programas foram concentrados e o ensino primário, reduzido para dois anos. Com essas medidas — pensava-se — o ensino primário poderia num curto período estender-se a todos e, portanto, democratizado. Não havia dois caminhos: ou o privilégio de alguns — a "heresia democrática ou o mínimo "para todos os que se acharem em condições idênticas, como é da essência pura da democracia".10

O que já vimos é bastante; porque fugiria ao propósito deste trabalho comentário mais amplo das inúmeras medidas introduzidas ou preconizadas pela Reforma Sampaio Dória. O que interessa já foi resultado: a compreensão que ela revelou de que não se democratiza uma instituição pública como a escola sem que ela alcance a todos. Esta trivialidade do credo democrático em educação, tão facilmente aceita no plano teórico, parece que causa repugnância na prática, porque exaspera a sensibilidade pedagógica dos especialistas preocupados com a qualidade do ensino. Assim foi no caso de Sampaio Dória, cuja reorganização e redução do ensino primário provocou duras críticas e protestos, não apenas na época (e que acabaram por levar à sua revogação), mas também ao longo dos anos da parte dos estudiosos que a analisaram. Dentre estes últimos, talvez valha a pena destacar a figura de Anísio Teixeira - um incansável propagandista do ideal democrático em educação — mas que não obstante isso, várias vezes se referiu à reforma paulista de 1920, sempre para criticá-la, como por exemplo, nas seguintes paragens:

A reforma reduziu o curso primário, em primeira tentativa, a dois anos e, finalmente, em face de críticas e protestos, a quatro anos de estudos nas cidades e três anos na zona rural.

Era a chamada democratização do ensino, que passou a ser concebida como a sua diluição e o encurtamento dos cursos. Longe iam as idéias dos primórdios da república, em que se sonhava um sistema escolar, estendido a todos, mas com os mesmos padrões da educação anterior de poucos.11

Assim, Anísio Teixeira, mas também outros educadores têm visto com repulsa a redução do ensino primário na reforma de 20, ainda que a justificativa fosse estendê-lo a todos. A ampliação das oportunidades sempre foi na consciência dos educadores tão condicionada por exigências pedagógicas — ditadas talvez pelo horror da massificação — que a sua efe-tivação fica inevitavelmente postergada a um futuro incerto. Só a superação de preconceitos técnicos permite situar a maciça ampliação de oportunidades na sua autêntica dimensão que é política. Foi o caso de Sampaio Dória, como observou J. Nagle:

o reformador não era um 'técnico' em assuntos educacionais, era, antes de tudo, um pensador voltado para problemas de natureza extra-escolar; contudo, a partir daí, começava a incursão dos 'especialistas' — daí por diante cada vez mais acentuada — que tentavam destruir uma obra eminentemente política com o emprego de argumentos pedagógicos 'puros', entremeados de freqüentes ilustrações do que se dizia e do que se executava nos 'países mais cultos' do mundo.12

Expansão do ensino ginasial em 1968-70: Na Administração Ulhoa Cintra (1967-1970), a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo formulou e executou uma política de expansão maciça do ensino ginasial. Este cicio de ensino — com o primário já praticamente universalizado — tinha se transformado no ponto de estrangulamento do sistema escolar. Quase 50 anos após Sampaio Dória a exigência democratizadora do ensino havia se deslocado do primário para o ginásio. Contudo, os exames de admissão a esse nível, obrigatórios por lei federal, haviam se transformado numa barreira quase intransponível para a grande massa de egressos do primário. Estes exames, diante da avalancha de candidatos, eram elaborados pelas próprias escolas com extremo rigor, de modo a evitar o impasse de candidatos aprovados e sem matrícula. Diante disso e tendo fixado o propósito da expansão maciça de vagas, a Secretaria unificou a preparação das provas e reduziu as suas exigências. Os exames de admissão, assim unificados e facilitados, deixar de ser a barreira tradicional e a grande maioria dos candidatos foi aprovada.13

Obviamente, essa política de expansão de matrículas alterou profundamente o quadro anterior, obrigando entre outras coisas a urna intensiva ocupação do espaço escolar. Mas, o grande problema da Administração não foi a localização dos novos alunos; isso era possível e acabou sendo feito. O problema maior consistiu na resistência de grande parcela do magistério secundário que encontrou ampla ressonância no pensamento pedagógico da época. Raros foram os que tomaram posição na defesa da política de ampliação das vagas, embora todos, como sempre, defendessem a democratização do ensino.14 A alegação de combate, já tantas vezes enunciada,15 era sempre a mesma: o rebaixamento da qualidade do ensino. A velha idéia de Sampaio Dória de uma "escola aligeirada" como preço da democratização, sempre causou repulsa aos defensores do ideal democrático.

Porém, passado o impacto dos exames facilitados e da matrícula onde fosse possível, a resistência do magistério assumiu a forma de uma "profecia auto-realizadora".16 Fundado na convicção de uma inevitável queda da qualidade do ensino, o professorado não procurou se ajustar à nova realidade da clientela escolar e insistiu na manutenção de exigências intra-curso que anulariam pela reprovação maciça o esforço de abertura escolar. Nem se alegue que isso seria a evidência empírica da queda do nível de ensino. Ao contrário, nível de ensino não é variável abstrata, e reprovação em massa é sempre índice de defasagem entre critérios de exigência e reais condições de ensino-aprendizagem. Ao expandir as matrículas, a Administração estava executando uma política de educação num sentido amplo, que não poderia nem deveria ser aferida didaticamente como se fosse uma simples questão interna da escola. O pressuposto dessa política era de que a democratização do ensino era incompatível com as exigências estritas de admissão; conseqüentemente, era também incompatível com a permanência das anteriores exigências internas. Consciente disso, a Administração, para contornar a iminência da reprovação maciça, instituiu um sistema de pontos por alunos aprovados que pesava na recontratação dos professores.

Essa medida, embora tenha produzido os resultados visados, repercutiu intensamente e reviveu as críticas à política de ampliação de matrículas. Uma dessas críticas é bem significativa porque exemplifica o que já dissemos a respeito da discrepância entre a pregação democrática e a ação democratizadora em educação:

Os preceitos constitucionais não existem, todos eles, meramente para consagrar situações de fato. Muitos deles (é o próprio das 'constituições-programa', como são as nossas desde 1934) indicam uma meta, um ideal a atingir. A obrigatoriedade escolar é um desses casos. É claro que, quanto mais rapidamente transformamos o preceito em fato, garantindo às crianças oito anos de escolaridade efetiva, mais fiéis estaremos sendo aos propósitos democráticos que inspiram a nossa concepção da vida e da sociedade. Mas é claro, também, que garantir matrículas em escolas que, a rigor, não chegam realmente a existir e que pouco podem ensinar — a ponto de seus professores serem convidados a participar de provas que não vão além da 'simulação — não é dar provas de autêntica fidelidade à democracia e aos ideais inerentes à tarefa educativa.17

A renovação dos Ginásios Vocacionais: Os ginásios vocacionais representaram um dos, poucos esforços sistemáticos de renovação do ensino público paulista. A maior parte dos aspectos desse esforço ainda não foi suficientemente estudada, de modo que não é possível no momento um ajuizamento global da iniciativa. No entanto, para os nosso propósitos, é dispensável essa visão mais ampla porque o que interessa é focalizar essas instituições escolares como tentativas de democratização do ensino. Nessas condições, tentaremos colher sucintamente o que foi apresentado à guisa de filosofia da educação do projeto.

O ensino vocacional foi desenvolvido, desde 1962 até 1968, por seis unidades ginasiais instaladas na Capital e em cidades do interior. Não havia entre essas unidades nenhuma diferença básica de orientação. Por força de um estatuto legal próprio gozaram de uma ampla e privilegiada autonomia didática, administrativa e financeira. Foi possível assim um trabalho não viável na rede comum de escolas. Essa oportunidade foi intensamente aproveitada e as atividades desenvolvidas orientaram-se sempre num sentido de renovação metodológica e curricular com confessadas intenções democratizadoras. Para o nosso propósito — que não é propriamente o exame técnico-pedagógico das metodologias praticadas — mais importa o modo pelo qual essas intenções foram explicitadas e que constituiu o fundamento do projeto.

Preliminarmente, é preciso assinalar que o Ensino Vocacional não se propôs uma mera experiência pedagógica abstrata e animada por preocupações teóricas. O que o preocupava, era a realização de uma experiência que pudesse ser de valia para a formação do "Homem Brasileiro", em contraposição às tentativas de "transposição de padrões culturais e modelos estrangeiros estranhos à realidade do País".18 Após algumas considerações sumárias sobre a natureza cultural e histórica do Homem e a necessidade de conscientização, o relatório de 1968 conclui:

o momento Histórico brasileiro exige uma democratização da cultura (grifos nossos) para que o nosso Homem possa, através da formação de sua consciência crítica, encontrar sua forma original de fazer o país se desenvolver. É o momento da opção em todos os níveis. Assim, toda experiência, partindo não da doação de fórmulas prontas, mas da descoberta comum, é um dado importante para a planificação do povo brasileiro.19

Essa intenção democratizadora tinha, no seu desdobramento didático, a liberdade do aluno como condições básica de todo o trabalho, pois:

a experiência Vocacional surge com a preocupação de situar o jovem como alguém atuante e inspirada em alguns princípios da Escola Nova, enfocando principalmente o problema da liberdade do educando como agente da própria Educação, do seu próprio desenvolvimento, e do professor como instrumento estimulador e explicitador das situações educativas.20

Dessas passagens e da recusa veemente dos Ginásios Vocacionais de participar dos exames unificados e facilitados de admissão ao ginásio,21 depreende-se que a democratização do ensino era concebida como algo que deveria ocorrer intra-muros no plano pedagógico e não pela ampliação das oportunidades educativas. Pode-se alegar que, preliminarmente — antes da expansão de escolas — pretendiam construir o modelo da escola democrática. É possível; mas isso não invalida o que foi dito: que a democratização poderia ser adiada até que houvesse as condições ideais para realizá-la autenticamente. É interessante observar que esse adiamento reúne a concordância dos democratas de todos os matizes.

Nessas condições, não obstante a preocupação com o povo, os Ginásios Vocacionais conceberam a democratização do ensino como fundada numa prática pedagógica infelizmente reservada a poucos pelo alto custo em que importava.

III.

A idéia de democratização do ensino, como consistindo basicamente numa prática educativa fundada na liberdade do educando, tem sido muito mais atraente para os educadores do que a democratização como extensão de oportunidades a todos. Como já dissemos, esses dois modos de entender democratização do ensino são considerados como ênfase, respectivamente, do aspecto qualitativo ou quantitativo de um mesmo processo. Contudo, essa maneira de situar a questão não nos parece inteiramente adequada; porque tende a obscurecer divergências de posição no esforço de dar conseqüência ao ideal democrático, que nem sempre é mera questão de ênfase, podendo até mesmo, num determinado momento, assumir o caráter de orientações inconciliáveis. É claro que, expandir universalmente as matrículas e instituir uma prática educativa especial, poderiam eventualmente ser conjugados, mas a verdade é que, historicamente, pelo menos no caso de São Paulo, têm se apresentado como opções que se excluem. É o que pretendemos tomar explícito nos comentários que se seguem.

Democratização do ensino como prática da liberdade:

As perturbações e questões provocadas pelas crises de razão e liberdade não podem, naturalmente, ser formuladas como um grande problema, nem podem ser enfrentadas, e muito menos resolvidas, tratando cada uma delas microscopicamente, como uma série de pequenas questões... (W. Milis).

Sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer. Ela pode, certamente, habitar ainda nos corações dos homens como desejo, vontade, esperança ou anelo; mas o coração humano, como todos o sabemos, é um lugar muito sombrio, e qualquer coisa que vá para a sua obscuridade não pode ser chamada adequadamente de um fato demonstrável (H. Arendt).

Democratizar o ensino pela instituição de práticas educativas fundadas na liberdade do educando, tem sido uma proposta sedutora para os educadores: e a sua aceitação ou não é sempre interpretada como uma visão progressista ou retrógrada da educação. Examinemos, porém, alguns dos compromissos ligados a uma pretensa visão progressista. Um deles, embora não essencial mas muito freqüente, é a aspiração de transformar politicamente a sociedade por meio de educação. Isso fica muito claro no caso dos Ginásios Vocacionais, mas não só aí, pois seria até difícil encontrar no que tem sido escrito sobre educação no Brasil exemplos que não reflitam essa orientação. Nem linha, é como se a escola democratizada, formando homens livres, fosse condição para edificar a sociedade democrática — reunião dos homens livres. Esta aspiração — não obstante a simpatia e o entusiasmo que desperta — repousa numa idéia simplista da sociedade política concebida como sendo mero reflexo de características dos indivíduos que a compõem.22 É claro que se assim fosse — se a sociedade democrática apenas realizasse a soma de vontades individuais livres — caberia à escola internamente democratizada o papel de forjadora de uma tal sociedade. Mas, não parece haver fundamento histórico para esse modo de ver, para essa suposta relação de precedência entre democratização do ensino e democracia num sentido político-social. Desde a Antiga Grécia — onde a democratização educacional decorreu da democratização política23 — até nossos dias, a emergência histórica de regimes democráticos nunca foi precedida de esforços democratizantes na esfera do ensino. Ao assinalar esse fato histórico, não pretendemos afirmar que essa relação seja invariável e que, eventualmente, a educação não possa ter um efeito transformador mais amplo. Pretendemos apenas escapar da ingenuidade de supor que "a democracia não pode funcionar sem democratas. E (que) cabe à educação formá-los";24 porque democracia se refere a uma situação política, social e econômica que não se concretiza pela simples associação de indivíduos democráticos.

Essa suposição nos leva de volta a um ponto, em que já tocamos de passagem, mas que vale a pena retomar: a prática da liberdade dentro da escola como condição suficiente para a formação de personalidades aptas à prática da liberdade política. Esta idéia, além da simplificação de conceber o social como soma de indivíduos, desconhece a natureza diversa da liberdade como um atributo da vontade e da liberdade como um fato político. Quanto a isso, é bom lembrar que na Antiguidade, igualdade e liberdade não significavam propriamente dons pessoais, mas condições políticas. Segundo Arendt:

eles (os antigos) entenderam por liberdade algo completamente diferente da vontade livre ou o pensamento que os filósofos haviam conhecido e discutido desde Agostinho. Sua liberdade pública não era um foro íntimo no qual os homens podiam escapar das pressões do mundo, nem era tampouco o liberum arbitrium que permite à vontade escolher entre diversas alternativas. Para eles, a liberdade só podia existir no público; era uma realidade tangível e secular, algo que havia sido criado pelos homens para seu próprio gozo, não um dom ou uma capacidade, era um espaço público.25

É com a tradição cristã, quando já a liberdade política desaparecia da vida pública e se refugiava numa interioridade, que vem a ser admitida essa estranha idéia — desconhecida dos antigos, 26 segundo a qual "é possível ser escravo no mundo e ainda assim ser livre".27

Embora a pedagogia libertária não pretenda isso, pode porém contribuir nessa direção ao deslocar, enfaticamente, a democratização do ensino do plano de criação de um espaço público de participação social para o plano individual da formação da vontade livre. Imaginar que a vivência da liberdade no âmbito da escola capacite para o exercício da liberdade na vida pública é, de certo modo, deixar-se embair por um simulacro pedagógico da idéia de democracia. A liberdade na vida escolar, por ilimitada que seja, ocorre num contorno institucional que, pela sua própria natureza e finalidade, é inapto para reproduzir as condições da vida política. A liberdade do aluno, ainda que subrepticiamente, é condicionada e dirigida por objetivos educacionais; no fundo é um faz-de-conta pedagógico, mesmo quando politicamente motivado. O jogo de forças e de interesses que move a vida política são irreproduzíveis no ambiente escolar. O que pode unir ou desunir as crianças na escola não é a mesma coisa que associa ou separa os homens na situação política. Ao se pretender democratizar internamente a escola talvez apenas se consiga uma degradação do significado político de democracia nesse seu transporte abusivo da esfera social para a sala de aula. Nem mesmo há qualquer garantia de que a prática da liberdade na escola contribua para a formação de vontades livres e autônomas. Pelo contrário, já se formulou a hipótese de que a permissividade acaba gerando atitudes conformistas, pois quando no ambiente escolar as crianças ficam entregues ao seu próprio governo, organizam-se grupos que exigem dos seus membros um estrito conformismo, não o "conformismo racional que é necessário para qualquer vida social, mas aquele que é irracional e emocional".28 Essa situação de pretenso autogovemo, em que as manifestações e decisões da maioria ao pedagogicarnente estimuladas como se constituíssem condição suficiente e essencial do procedimento democrático (com esquecimento de que a emergência do totalitarismo, neste século, quase sempre contou com o entusiasmo fanático de multidões esmagadoras), pode talvez dar segurança aos inseguros, mas também pode ser educativamente desastrosa para os espíritos independentes capazes de formar a sua própria opinião contra a opinião unânime.

Democratização do ensino como expansão de oportunidades:

O sistema da livre educação até qualquer grau para todo aquele que queira, é o único sistema compatível com os princípios da liberdade, e o único que dá uma razoável esperança de permitir uma completa realização do talento" (B.Russell).

"Uma vez que fosse admitido o dever de obrigar à educação universal, acabariam as dificuldades a respeito do que o Estado deva ensinar, e de como deva ser esse ensino, o que hoje converte a questão num mero campo de batalha para as seitas e partidos, fazendo que o tempo que deveria ser gasto em educar se desperdice em ques-tionar sobre educação (S. Mill).

Embora a pregação da democratização do ensino seja antiga e constante no pensamento brasileiro, sempre que ocorreu uma maciça extensão das oportunidades educativas os educadores sentiram-se chocados no seu zelo pedagógico. E a argumentação que extravasa esse sentimento, invariavelmente, invoca o rebaixamento da qualidade do ensino como um preço inadmissível à ampliação de vagas. O argumento até parece razoável quando examinado de um ponto de vista pedagógico e com abstração de situações históricas específicas. No entanto, ele repousa sobre dois equívocos que têm uma mesma matriz: a ilegitimidade da perspectiva pedagógica para o exame do assunto. Esta legitimidade se revela, em primeiro lugar, ao se considerar que a extensão das oportunidades educativas é apenas um aspecto do processo pedagógico de democratização do ensino. Se assim fosse, é claro que a ênfase nesse aspecto, em detrimento de outros, seria uma providência parcial e teria uni efeito deteriorante sobre o sistema escolar. O equívoco dessa idéia reside em desconhecer que a extensão de oportunidades é, sobretudo, uma medida política e não uma simples questão técnico-pedagógica. A ampliação de oportunidades decorre de uma intenção política e é nesses termos que deve ser examinada. Aliás, não poderia ser de outra maneira, pois qualquer que seja o significado que se atribua, atualmente, ao termo "democracia", não se poderia limitar a sua aplicação a uma parcela da sociedade como na Antiga Grécia, onde a vida democrática era privilégio de alguns. Não se democratiza o ensino, reservando-o para uns poucos sob pretextos pedagógicos. A democratização da educação é irrealizável intra-muros, na cidadela pedagógica; ela é um processo exterior à escola, que toma a educação como uma variável social e não como simples variável pedagógica.

O outro equívoco a que nos referimos é mais grave, porque é mais sutil. Consiste em supor que o ajuizamento acerca da qualidade do ensino seja feito a partir de considerações exclusivamente pedagógicas, como se o alegado rebaixamento pudesse ser aferido numa perspectiva meramente técnica. Contudo, essa suposição é ilusória e apenas disfarça interesses de uma classe sob uma perspectiva técnico-pedagógica. Esta — ainda que sinceramente invocada e mesmo quando baseada em pesquisas empíricas — apenas obscurece o significado político dos argumentos em jogo. Para constatar isso, é suficiente assinalar que qualidade do ensino não é algo que se defina em termos abstratos e absolutos. Sendo assim, a queda dessa qualidade é relativa a um nível cultural anterior. Mas, que nível? Não, evidentemente, o da grande maioria até então desatendida. Para esta, até mesmo a "escola aligeirada", de que falava Sampaio Dória, representa um acréscimo, uma elevação. É óbvio, pois, que o rebaixamento da qualidade do ensino, decorrente da sua ampliação, somente ocorre por referência a uma classe social privilegiada, porque, "nesta esfera, como em outras, os móveis egoístas de alguns setores da população (as classes conservadores e uma parcela das classes médias) tendem a prevalecer sobre as necessidades essenciais da sociedade brasileira".29 E é nesse esforço para continuar a prevalecer que se lamenta a queda de qualidade de ensino, mistificando, consciente ou inconscientemente, uma questão política em termos pedagógicos.

  • *
    Publicado originalmente na Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.5, n.1/2, p. 93-108, 1979. A edição manteve os padrões e sistema de referência em nota de rodapé.
  • 1
    . Gerth, H. e Mills, W. Caráter e Estrutura Social, trad. de Z.Dias, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1973, pág. 224.
  • 2
    . McKleon, R. (Ed.) Democracy in a World of Tensions (A Symposium prepared by UNESCO), The University of Chicago Press, 1951.
  • 3
    . lbidem, págs. 522-523.
  • 4
    . Naess, A. e Rokkan, S. Analytical Survey of Agreements and Disagreements, Ibidem, p. 447-512.
  • 5
    . lbidem, p.457.
  • 6
    . Veja-se, por exemplo: Fernandes, F. A democratização do ensino. In: Educação e Sociedade no Brasil. Dominus Editora - EDUSP, São Paulo, 1966; Barros, R.S.M. Massificação e Educação. In: Ensaios sobre Educação, EDUSP - Editoral Grjjalbo Ltda. São Paulo, 1971.
  • 7
    . Veja-se a proposto: Antunha, H. C. G. A instrução pública no Estado de São Paulo: a reforma de 1920. Estudos e Documentos - Faculdade de Educação - USP e Nagle, J. Educação e Sociedade na Primeira República, E. P. U. - EDUSP, São Paulo, 1974, p. 206-207.
  • 8
    . Sampaio Doria, A. de Questões de ensino, v. 1, Monteiro Lou C. Editores, São Paulo, 1923, p. 39-40.
  • 9
    . Ibidem, p. 91-92.
  • 10
    . Ibidem,p. 91.
  • 11
    . Teixeira, A. Educação não é privilégio, Companhia Editora Nacional, 2. edição revista e ampliada, São Paulo, 1968, p. 91-92. Na mesma obra, veja-se ainda p. 93 e 128. Outras referências de igual teor, encontram-se nos livros: A Educação no Brasil (1969, p. 66 e 301) e A Educação é um direito (p. 73 e 74). Na mesma linha de crítica há ainda que mencionar o trabalho de Heladio C. G. Antunha, já referido, p. 236.
  • 12
    . NAGLE, J. – Op. cit., pág. 210-211.
  • 13
    . Segundo dados do Jornal da Tarde (21-1-1970) a matrícula na 1ª série ginasial passou de 128.890 em 1967 para 244.596 em 1968, ano que recebeu a primeira turma de alunos que passaram nos exames unificados.
  • 14
    . Um desses poucos foi Celso de Rui Beisiegel, Estado e Educação Popular, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1974, cap. 1.
  • 15
    . Veja-se, por exemplo, a propósito da extensão como rebaixamento da qualidade: Lambert, J. Os dois Brasis, INEP, Rio de Janeiro, 1959, p. 210-211.
  • 16
    . "a este tipo pertencem as predições (...) que acabam se realizando devido às ações empreendidas pelo fato de se acreditar nelas (as predições)". NAGEL, E. - La estrutura de Ia ciencia. Trad. de Nestor Mígues, Paidés, Buenos Aires, 1968, pág. 423.
  • 17
    . "A crise do ensino secundário oficial", editorial publicado no Jornal O Estado de S. Paulo (19 de dezembro de 1968).
  • 18
    . Planos Pedagógicos e Administrativos dos Ginásios Vocacionais do Estado de São Paulo, Serviço do Ensino Vocacional, 1968, p. 4. Este relatório é o documento oficial enviado pelo SEV ao Conselho Estadual de Educação de São Paulo.
  • 19
    . Ibidem, p. 10.
  • 20
    . Ibidem, p. 9-10.
  • 21
    . Em recusa não foi apenas dos Ginásios Vocacionais, mas também do antigo Colégio de Aplicação da FFCL da USP; aliás, outra das poucas escolas do ensino médio oficial que se propunham a um esforço de renovação pedagógica.
  • 22
    . "Segundo em tradição [a liberal clássica), a sociedade política é (ou deveria ser — pois o liberalismo é igualmente ambíguo a respeito) uma associação de indivíduos independentes que conjugam a vontade e reúnem poderes no Estado com o objetivo de alcançar fins de interesse mútuo". Wolff, R. P. "Beyond Tolerance", in A critique of pure tolerance. Wolff, R. P.; Moore JR., B. e Marcuse, H., Beacon Press, Boston, 1969, p.5.
  • 23
    . "Atenas (...) tornou-se uma verdadeira democracia: seu povo conquistou, por extensão gradual, não só os privilégios, direitos e deveres políticos, mas ainda o acesso a este tipo de vida, de cultura, a este ideal humano do qual somente a aristocracia havia, de início, usufruído (...) Com este ideal, com a cultura que ele anima, é toda a educação aristocrática que agora se estende e se torna a educação - tipo de toda criança grega". Marrou, H. 1. História da Educação na Antigüidade. Trad. de M. L. Casanova, Editora Herder/EDUSP, 2ª reimp., 1971, p. 70-71.
  • 24
    . REeboul, 0. Filosofia da Educação. Trad. de Luis Damasco Pena e J. B. Damasco Penna, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1974, p. 98.
  • 25
    . Arendt, H. Sobre Ia revolución. Trad. de Pedro Bravo, Revista de Ocidente, Madri, 1967, p. 134.
  • 26
    . "É digno de nota que a ideal da liberdade, que impera como nenhum outro da época da Revolução Francesa para cá, não desempenha nenhum papel importante no período clássico do helenismo, muito embora não esteja ausente desta época a idéia de liberdade como tal. É a igualdade em sentido político e jurídico que fundamentalmente aspira a democracia grega (...). É, indubitável que de vez em quando se fala duma constituição livre ou se qualificam como livres os cidadãos do Estado em que essa constituição vigora, mas com isso apenas se quer significar que não são escravos de ninguém". Jaeger, W. Paidéia, Trad. de Artur M. Parreira, Editora Herder, São Paulo, p. 510-511.
  • 27
    . Arendt, H. Entre o passado e o futuro, trad. de Mauro W. B. de Almeida, Editora Perspectiva, São Paulo, p. 195.
  • 28
    . Kerlinger, F. N. "The implications of the permissiveness doctrine in American Education". In: Educational Theory, v. X, abril, 1960, n. 2, p. 127.
  • 29
    . Fernandes, F. Mudanças Sociais no Brasil, Difel, 1974, pág.110.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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