Acessibilidade / Reportar erro

Mulheres, mulheres negras e configurações étnico-raciais na Escola Normal de Caetité, Bahia (1898-1943)

Resumo

Este texto apresenta uma leitura acerca da presença das mulheres na Escola Normal de Caetité, Bahia- Brasil (1898-1943), em um esforço de romper com narrativas, em legislações e currículos escolares, que as descrevem como professoras submissas, executoras de tarefas prescritas por homens. Ao retomar documentos do Arquivo Público Municipal, da Escola Normal de Caetité e de professoras aposentadas em um percurso histórico-discursivo situado nos estudos de gênero, que envolveu leituras de exemplares do Jornal A Penna e de fotografias, o texto problematiza políticas de silenciamento em duas temporalidades, a dos documentos do período 1898-1943 e a dos arquivos que organizam as narrativas da Escola Normal no tempo presente, para fazer aparecer experiências de protagonismo de mulheres no magistério. Tal período marca o início da formação de professores na referida cidade e estende-se até o fim das atividades do Jornal A Penna, uma das fontes deste estudo. As cenas educacionais que os documentos dos arquivos fazem aparecer permitem afirmar que a Escola Normal emergiu sexista, classista e racista como sintoma de um Estado constituído nesses mesmos matizes. Existir como mulher e como mulher negra significou resistir às diversas opressões. Conclui-se argumentando que modos criativos das mulheres da Escola Normal de Caetité contribuíram para resistir às políticas de silenciamento do alto sertão da Bahia a partir da segunda metade do século XX e devem aparecer nos acervos dos arquivos locais como condição de possibilidade para produções textuais que sustentem protagonismos marcados por experiências generificadas e racializadas.

Formação de professoras; Gênero; Políticas de silenciamento; Raça

Abstract

This text presents a reading about the presence of women in the Escola Normal de Caetité, Bahia, Brazil (1898-1943) in an effort to break with narratives, in school legislation and curricula, which describe them as submissive teachers, executing tasks prescribed by men. When resuming documents from the Municipal Public Archive, from the Escola Normal de Caetité and from retired teachers in a historical-discursive path located in gender studies, which involved reading copies of the Jornal A Penna and of photographs, the text problematizes policies of silencing in two temporalities, that of the documents of the period 1898-1943 and that of the archives that organize the narratives of the Normal School in the present time, to bring out experiences of protagonism of women in the teaching profession. This period marks the beginning of teacher training in Caetité and extends till the end of the activities of Jornal A Penna, one of the sources of this study. The educational scenes that the documents in the archives reveal allow us to affirm that the Escola Normal emerged sexist, classist and racist as a symptom of a State constituted in these same nuances. To exist as a woman and as a black woman meant resisting different oppressions. It concludes by arguing that the creative ways of the women of the Escola Normal de Caetité contributed to resist the silencing policies of the Upper Sertão region of Bahia from the second half of the 20th century and should appear in the local archives as a condition of possibility for textual productions sustaining forms of protagonism marked by gendered and racialized experiences.

Teacher training; Gender; Silencing policies; Race

Introdução

Por que os homens ocupam um lugar de destaque nos discursos sobre o ensino, sobretudo de ciências e matemática, enquanto os registros fotográficos que materializam a docência no alto sertão da Bahia mostram as mulheres como protagonistas dos eventos educacionais? Pensamos que a invisibilização das mulheres como sujeitos históricos no magistério e nas narrativas de formação de professores/as é uma estratégia política de silenciamento/apagamento corporificada em instituições que possibilitam condições de produção de padrões de estruturas históricas masculinas.

O surgimento e a consolidação da Escola Normal na Bahia estão diretamente imbricados à necessidade de formar professores/as para ofertar educação escolar em níveis mais basais do sistema de ensino estadual, o emergente magistério primário do Brasil oitocentista. Ele remete ao Império, mais especificamente ao ano de 1836, quando o presidente da Província da Bahia, Francisco de Souza Paraíso, Senador do Império, sancionou a Lei Nº 37 que criou a Escola Normal como instituição direcionada à formação de homens, ainda que nela estivesse prevista a educação de moças em arranjos curriculares que as enredavam em atividades como desenho e prendas domésticas (ROCHA, 2008ROCHA, Lúcia Maria da Franca. A escola normal na província da Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 5., 2008, Aracaju. O ensino e a pesquisa em história da educação. v. 1. Aracaju: UFSE: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1-19.). Tendo à frente da política nacional o visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Souza, esse cenário estava relacionado ao processo de formação de Estado Imperial, monárquico, centralizado no Rio de Janeiro e fundado na escravidão, e pelas formulações de um pensamento conservador brasileiro (FERREIRA, 2009FERREIRA, Gabriela N. Visconde do Uruguay: teoria e prática do Estado brasileiro. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 18-31.). Posteriormente, surgiu o debate das reformas políticas e sociais, especificamente na década de 1860 (CARVALHO, 2009CARVALHO, José Murilo de. O radicalismo político no Segundo Reinado. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. p. 32-45.), e as teorias introduzidas no Brasil a partir de 1870, tais como o positivismo, o darwinismo e o evolucionismo, que balizaram os modos de interpretar a sociedade e seus indivíduos e ofereceram condições de produção que possibilitaram o surgimento das diferentes teorias raciais (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia da Letras, 1993.). Assim, situamos o surgimento da Escola Normal no Brasil – Niterói (1835), Bahia (1836), Ceará (1845) e São Paulo (1846) (MARTINS, 2009MARTINS, Angela Maria Souza. Breves reflexões sobre as primeiras escolas normais no contexto educacional brasileiro, no século XIX. Revista Histedbr, Campinas, v. 9, n. 35, p. 173-182, 2009.) – e a sua consolidação, na segunda metade do século XIX, em uma mesma matriz narrativa da consolidação do Estado Imperial centralizador, do conservadorismo e do radicalismo das reformas políticas e sociais após 1860, que desembocaram no republicanismo.

Se, por um lado, os dispositivos legais indicavam que a Escola Normal da Bahia deveria formar, principalmente, professores (homens, portanto), por outro lado, com o passar dos anos, houve um acentuado declínio da composição masculina nas turmas de concluintes. Pesquisas como a de Rocha (2008)ROCHA, Lúcia Maria da Franca. A escola normal na província da Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 5., 2008, Aracaju. O ensino e a pesquisa em história da educação. v. 1. Aracaju: UFSE: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1-19. e a de Nogueira (2015)NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto Silva. Mulheres baianas nas artes da escrita; tessituras de experiências, memórias e outras histórias (1926-1960). 2015. 300 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. têm apontado que, desde as primeiras turmas, as mulheres representavam a maioria formada nas Escolas Normais de Salvador e Caetité, respectivamente. Dados de matrícula da Escola Normal de Caetité indicam que, até 1903, vinte e duas professoras, em três turmas, foram diplomadas e que, nos anos posteriores, houve uma predominância das mulheres entre os concluintes do curso normal (NOGUEIRA, 2015NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto Silva. Mulheres baianas nas artes da escrita; tessituras de experiências, memórias e outras histórias (1926-1960). 2015. 300 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.).

Inferimos que: padrões de estruturas históricas masculinas, a “supremacia masculina” nos termos de Davis (2016)DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., “dominação masculina” nos termos de Bourdieu (2002)BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ou “capitalismo patriarcal” nos termos de Hirata (2018a) definiram as legislações relacionadas à criação da Escola Normal, estabelecendo a dominação das mulheres na fundação da formação de professores/as na Bahia. Com a necessária naturalidade na exclusão das mulheres, evidenciada pela ausência de justificação e ocultação dos critérios de classificação, tais regulamentações foram elaboradas e sancionadas por homens que ocupavam postos na conjuntura estatal à época. As escolas, seus currículos, livros e demais documentos, certamente, emergiram com as marcas dos seus elaboradores, os homens brancos das classes dominantes que legislaram, geriram e ensinaram nas escolas nascentes na Bahia oitocentista. Todavia, emergiram experiências práticas, nas quais as mulheres tornaram-se a maioria do professorado formado na Escola Normal e, por conseguinte, nos estabelecimentos de ensino primário da capital e das diversas cidades do interior. Inferimos, ainda, que outros elementos participaram dos contornos iniciais da Escola Normal na Bahia, dentre os quais: raça, sexualidade e classe social2 2 - Gênero/sexualidade, raça/etnia e classe social são conceitos trabalhados há algum tempo na pesquisa educacional. Para Joan Scott (2019), gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e uma ferramenta primeira de significar as relações de poder. Consoante com Michel Foucault, ela pondera que o poder social não deve ser entendido como unificado, coerente e centralizado, mas “[...] como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos ‘campos de forças’” (SCOTT, 2019, p. 66). Inspirados em Stengers (2015), ao manejar tais categorias, estamos menos hierarquizando conceitos e as opressões a que se reportam do que nomeando aquilo que faz sentir e pensar no que esses nomes suscitam. Com Audre Lorde (2019a, 2019b), sem deixar de considerar as diferenças de raça entre mulheres, aprendemos a refutar a hierarquia das opressões. E, com Scott (2019), Lorde (2019a, 2019b), Butler (2003, 2014) e Strathern (2009), apropriamos da categoria gênero considerando os sistemas de parentesco (herança antropológica), o mercado de trabalho (a economia), a educação (seus sujeitos, currículos e instituições) e o sistema político para pensar um futuro de paz. Raça, por sua vez, aqui é um conceito tomado como construção que marca as diferenças entre brancos, negros, índios... Segundo Maria Aparecida da Silva Bento (2002, p. 48), “[...] raça é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer, mais do que qualquer outra, a desigualdade humana”. , não como simples a priori, mas como construtos sociais que participam da produção de subjetividades e da estrutura social em contextos práticos de interação dos séculos XIX e XX, marcados pelo regime escravocrata (e pela sua superação) e por chaves interpretativas do darwinismo social.

Gênero3 3 - A identidade de gênero não prediz a orientação sexual (BUTLER, 2009; GROSSI, 1998). Em face ao avanço do fascismo no Brasil, com o aumento significativo de pessoas que correlacionam gênero e identidade sexual no espaço público e midiático, a exemplo da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro, avaliamos necessário reafirmar esta já consolidada formulação no campo dos estudos de gênero. Gênero é aqui um fenômeno sócio-histórico-cultural não, necessariamente, permanente sem que isto implique a necessidade de atestado do aparato regulatório da psiquiatria e da psicologia, ainda que, em nossa sociedade, ele assim se apresente, como aparato por meio do qual se manifestam a produção e a normalização do masculino e do feminino (BUTLER, 2014). Nesse sentido, argumentamos que a Escola Normal corporificou as regulações de gênero do período incidindo sobre corpos “masculinos” e “femininos” – e os produzindo –, que, por desdobramento, tornaram-se sujeitos normalistas, “espíritos” aptos a assumirem as classes de primeiras letras da emergente escola sertaneja. Certamente existiam pessoas fora desse binarismo, mas que a ele deviam se assujeitar para ocupar lugares possíveis. Em nossa incursão no campo empírico, identificamos o significante beata (e beato) que, a nosso ver, é uma profícua ferramenta para pensar os corpos e os modos de vida não conformados com o binarismo masculino-feminino. Aqui, mais uma vez com Butler (2014, p. 254), gênero é um aparato para desconstruir e desnaturalizar esse binarismo. “Manter o termo ‘gênero’ em separado de masculinidade e feminilidade é salvaguardar uma perspectiva teórica que permite analisar como o binarismo masculino e feminino esgotou o campo semântico de gênero”. Certamente existiram individualidades não totalmente conformadas com a norma de gênero corporificada pela Escola Normal; estamos falando, mais especificamente, de mulheres, egressas da Escola Normal de Caetité do período 1898-1966, com as quais estabelecemos interlocução e, hoje, com mais de oitenta anos vivem como “beatas”. Uma delas disse em uma entrevista que não se casou para não se submeter aos papéis sociais exercidos pelas suas colegas casadas, de submissão aos maridos. Ou seja, a sua beatice emergiu em nossos diálogos como uma subversão às regulações de gênero da época. , raça, sexualidade e classe social não definem apenas lugares que os sujeitos ocupam na tecitura da vida social, mas são elaborações da tradição mobilizadas em contextos práticos e específicos, como aqueles relacionados aos teóricos que formularam as perspectivas racistas no final do século XIX e na primeira metade do século XX, e, por isso, circulam e orientam a urdidura das experiências sociais. Gênero/sexualidade, raça/etnia e classe social dizem respeito às relações sociais, “[...] são interdependentes e indissociáveis” (HIRATA, 2018a, p. 17). Com isso, fazemos coro com as abordagens que deslocam tais categorias de qualquer essencialismo, representação e/ou naturalização, que, muitas vezes, fazem ressoar paradigmas históricos cujos conteúdos propõem a continuidade entre caraterísticas físicas e morais, o distanciamento entre os diferentes povos e a predominância do grupo no comportamento do indivíduo, para assumi-las como elaborações de sujeitos e grupos sociais em situações concretas de existência dos seus indivíduos. Aqui, em um trabalho para desconstruir os princípios da dominação masculina e/ou do capitalismo patriarcal, almejamos elucidar acontecimentos históricos concernentes à Escola Normal de Caetité para enfrentar as dissimulações dos enredos pautados no silenciamento de mulheres.

No caso do magistério no Brasil oitocentista, a despeito das diversas motivações que orientaram o desinvestimento dos homens na carreira docente, como a desvalorização profissional e a baixa remuneração, lemos esse movimento a partir da ação das mulheres de abertura do mundo do trabalho para não incorrermos em reforçar aspectos negativos relacionados ao feminino e à profissão docente. Nesse ponto, somos inspirados pela leitura de Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, abr. 2016. acerca da relação entre criatividade e o status social de outsider within das mulheres negras. Assim, não negamos a exploração, a objetificação, a opressão e a desvalorização das mulheres no período abordado por este estudo, mas fazemos uma aposta na dimensão criativa das mulheres para existir, resistir e reconfigurar as estruturas sociais opressoras.

Nesse cenário analítico esboçado, este texto é resultado de uma pesquisa que analisou, em arquivos públicos e privados, entre agosto de 2018 e agosto de 2019, o papel ativo de mulheres na Escola Normal de Caetité-Bahia, como estudantes e professoras, a fim de fazer aparecer protagonismos que reinventaram a ordem dos acontecimentos, permitindo a abertura do mundo do trabalho e da vida pública para as mulheres do semiárido baiano no período 1898-19434 4 - Definimos o período 1898-1943 tomando como referência a nossa pausa reflexiva do trabalho nos arquivos. Dessa forma, o ano de 1898 representa o início de funcionamento da primeira Escola Normal de Caetité e o ano de 1943 representa o ano de fechamento do Jornal A Pena, uma das fontes cruciais que permitiram os contornos da pesquisa e deste texto. Ou seja, o recorte diz respeito às condições de produção textual oferecidas pelos documentos analisados. , em um contexto marcado pela hegemonia de homens brancos na prescrição dos currículos escolares. Ao retomar documentos do Arquivo Público de Caetité e arquivos pessoais de egressas da Escola em um empreendimento de cunho histórico-discursivo, o texto busca fazer aparecer experiências de protagonismo que resistem às políticas de silenciamento, que, a nosso ver, é uma faceta da opressão, em duas temporalidades, a dos documentos daquele período e a dos arquivos que organizam as narrativas da Escola Normal no tempo presente, em Caetité, Bahia.

Percurso de produção de dados

Focamos aqui em uma abordagem da presença ativa de mulheres (e os seus silenciamentos) que estiveram enredadas na Escola Normal de Caetité, Bahia, situada no contexto dos estudos de gênero (LORDE, 2019a, 2019b; NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 259-263.; SCOTT, 2019SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80.; COLLINS, 2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, abr. 2016., 2017COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro e além disso. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175118, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510018.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.
https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4...
; DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.; BUTLER, 2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-220, 2003., 2009BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009., 2014BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jun. 2014.; HIRATA, 2014HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2014., 2018aHIRATA, Helena. Gênero, patriarcado, trabalho e classe. Trabalho Necessário, São Paulo, v. 16, n. 29, p. 14-27, set. 2018a., 2018bHIRATA, Helena. Divisão internacional do trabalho, precarização e desigualdades interseccionais. Revista da ABET, João Pessoa, v. 17, n. 1, p. 7-15, 2018b.; HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, jan. 2009.; bell hooks5 5 - “bell hooks” é o pseudônimo adotado por Gloria Jean Watkins, intelectual, escritora, acadêmica, professora e ativista negra estadunidense. Ela usa este pseudônimo, que é o nome da sua bisavó, em letras minúsculas para assinar seus textos a fim de impedir a sua hiperidentificação com as ideias, o que, para ela, impede a criatividade. , 2008, 2015a, 2015b), entendendo que, como qualquer agrupamento científico, ele é constituído por diversas perspectivas teórico-metodológicas, está sempre em construção e deve resistir a qualquer ação rumo à (desejo de) hegemonia.

O acontecimento discursivo da presença da mulher negra na Escola Normal foi mapeado a partir de: enunciados recolhidos em documentos da referida escola, tais como o Programa de ensino, fotografias, atas, cadernetas, livros memorialísticos etc.; documentos do Arquivo Público Municipal de Caetité, como fotografias e hemeroteca; registros dos encontros com as egressas; bem como documentos de arquivos pessoais das normalistas. Buscamos, na própria tecitura do corpus, as pistas a respeito da existência do sujeito mulher no alto sertão da Bahia.

Ao imbricar por documentos da Escola Normal de Caetité, que compõem o acervo de arquivos locais em uma pesquisa relacionada ao Núcleo Ensino, Discurso e Sociedade (DisSE), elaboramos algumas questões, a saber: como as mulheres são mostradas (ou não) nos acervos relacionados à Escola Normal de Caetité? Em quais regularidades discursivas sobre as relações de gênero do período essas mulheres estavam situadas? Quais pistas deixadas pela imprensa local da época (1898-1943) ajudariam a entender a relação entre Escola Normal e as regulações de gênero? Investimos também em interrogar os arquivos nos quais realizamos o trabalho de campo: como a organização dos seus acervos, no tempo presente, fazem aparecer determinadas narrativas sobre as mulheres e silenciam outras do passado da Escola Normal (1898-1943)?

Entendemos que, dessa forma, poderíamos fazer um movimento de produção textual com potencial para contribuir com mundos por vir, em um movimento para o futuro, nos quais o apagamento/silenciamento/ocultamento das mulheres seja uma política superada, sendo possível partir para políticas de presença que reconheçam as singularidades de todas e todos como necessárias para manutenção da diversidade que sustenta a complexa experiência da existência, inclusive, de sujeitos situados fora dos binarismos masculino-feminino e homem-mulher.

O corpus que ofereceu os contornos deste estudo foi composto por documentos de arquivos públicos e privados: textos do Jornal A Penna e atas, cadernetas, fotografias, cartas e livros memorialísticos relacionados à Escola Normal de Caetité. Entendemos que os acervos dos arquivos são produzidos na tensão entre passado e presente em um duplo movimento: a reprodução e a (re)invenção de enunciados. Eles emergem de materialidades discursivas do passado e do presente que se reatualizam e/ou se antagonizam, o que torna possível problematizar questões estruturantes que atravessam e produzem instituições e currículos escolares.

Exemplares do Jornal A Penna, primeiro jornal do alto sertão da Bahia6 6 - Segundo Estrela (2003, p. 37), uma regionalização deve considerar “sobretudo as percepções e o imaginário dos homens que as habitam”, além dos fatores geográficos, culturais, históricos etc. que lhe são próprios. Para a autora, a utilização do termo, “designa uma vasta área do interior do Brasil, situada na atualidade nos limites de dois Estados diferentes, revela claramente a existência de uma região imaginária na geografia do extremo sudoeste da Bahia [...] a qual tem sua origem na formação territorial do Brasil Colônia”. (ESTRELA, 2003, p. 37). , criado por João Gumes, em 5 de Março de 1897, foram consultados no acervo do Arquivo Público Municipal de Caetité. Ele era organizado pelas seções: editorial, artigos de fundo, editais, coluna social e notas diversas. O jornal teve algumas interrupções e, mesmo com a morte de seu fundador em 1930, funcionou até 1943. Os discursos desse jornal apresentavam as mulheres circunscritas aos papéis que corroboravam uma posição de inferioridade, restringindo-as ao mundo da casa, ao espaço privado. As primeiras reivindicações do movimento feminista para o direito ao voto, ao trabalho fora do lar e à participação feminina na política foram atacadas com descrença e fortes doses de humor (Jornal A Penna, 01/12/1927). Mulheres de estratos sociais elevados eram citadas à sombra dos maridos e as pobres, mulheres negras e moradoras de periferia apareciam nas páginas policiais quando estavam envolvidas em alguma violência ou transgressão às normas prescritas.

Situando a reflexão

Yannoulas (2011)YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, Brasilia, DF, v. 11, n. 22, p. 271-292, jul./dez. 2011., ao se debruçar sobre estudos que abordam o feminino no magistério do ensino fundamental no período 1870-1930, argumentou pela distinção científica e política entre “feminilização” e “feminização”. Para ela, a “feminilização” está ligada ao impacto do feminino em uma profissão por meio dos indicadores estatísticos e de um significado qualitativo, que seria a “feminização”. Em seus termos, a “feminização” remete a:

[...] uma compreensão mais ampla e sofisticada dos processos de incorporação de mulheres em uma determinada profissão ou ocupação, porque além de descrever a entrada delas no campo profissional ou ocupacional, tenta explicar as razões que permitiram essa entrada. (YANNOULAS, 2011YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, Brasilia, DF, v. 11, n. 22, p. 271-292, jul./dez. 2011., p. 283).

A exemplo do trabalho antropológico de mulheres como Margaret Mead, Ruth Benedict e Marilyn Strathern, que impactaram qualitativamente a antropologia, criando aberturas para questões de pesquisas ou recolocando as mesmas questões já postas pelos homens em outros enfoques, os estudos de mulheres ou, mais especificamente, os estudos de gênero, portanto a feminização da pesquisa e seus modos de produção textual, permitem aqui abordar protagonismos de mulheres, retirando-as do silêncio e colocando-as em circulação, em tramas discursivas sobre o magistério. E, entendemos, feminização do magistério, no período recortado por este texto (1898-1943), em contextos práticos de atuação profissional das egressas da Escola Normal de Caetité, permitiu a abertura das escolas nascentes para questões silenciadas pelo discurso oficial da época.

No trabalho de campo, encontramos professoras que indicaram que muitas dessas questões circularam nos diálogos e práticas corporais das alunas, das professoras e das interações alunas-professoras. Uma delas, egressa da Escola Normal de Caetité, relatou, ao nos receber para consultar seu arquivo, que, no recreio, as meninas retiravam as meias-calças, peças obrigatórias do uniforme escolar, para “fazer bolas” e praticar esportes “proibidos”, como futebol. Essa egressa, que na ocasião do nosso encontro tinha mais de oitenta anos, organizou desfiles cívicos com alunas vestidas de maiô quando se tornou professora, nas décadas de 1940 e 1950. Ela mostrou fotografias de desfiles cívicos destacando as alunas de maiô e disse: “vocês pensam que nós não transgredíamos? Vejam a foto, era um escândalo na época”.

Argumentamos que a feminização do magistério a partir da Escola Normal impactou a ordem das coisas e abriu possibilidades com as quais foram elaboradas práticas de ensino no sertão baiano como estratégia de resistência aos muitos silenciamentos que enredavam as escolas e seus sujeitos.

No surgimento da Escola Normal e durante boa parte do século XX, em muitas localidades do Estado da Bahia, as mulheres já exerciam a docência na condição de professoras leigas. Conta-se que algumas dessas aulas aconteciam em locais improvisados e com a colaboração de alunas e alunos que levavam as próprias cadeiras, ou sentavam-se no chão, para aprender as primeiras letras. Egressas da Escola Normal relataram que bastava saber “assinar o próprio nome” para assumir o posto de professora, trabalho muitas vezes exercido sem remuneração ou “pago” com doações e presentes pelos familiares dos alunos. No caso específico de Minas Gerais, no século XIX, Veiga (2008)VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, p. 502-516, dez. 2008. identificou que professores/as ofereciam as aulas em casa devido à ausência de prédios destinados à instrução e que as experiências relacionadas à discriminação e ao preconceito da escola imperial ainda eram consideráveis no surgimento da república, o que levou à depuração de alunos/as em testes e seriação como formas de organização escolar, com a finalidade de selecionar crianças de “boa procedência” para o magistério deixar de ser “indigente”. No século XX, diferente da escola interétnica do século anterior, passaram a ser recrutados os indivíduos oriundos de classes mais favorecidas, aqueles que podiam comprar fardamento, frequentar as aulas (sem precisar evadir para trabalhar) e se deslocar até as escolas em condições precárias de estradas e transportes.

Os investimentos em educação no Estado da Bahia, no final do século XIX, sob a ótica da modernização e civilização que se desenvolvia na Europa e com vistas a ofertar a escolarização aos baianos, buscaram impactar esse cenário da formação docente e, por conseguinte, ampliar a oferta da educação primária.

A Escola Normal de Caetité - Bahia, Brasil

Caetité teve a sua primeira Escola Normal fundada pela Lei de 1895 e inaugurada em 1898. O curso durava quatro anos. A população de Caetité, segundo o Jornal A Penna, se mostrou muito contente com a criação da referida escola, o primeiro estabelecimento de ensino para a formação de professores/as no alto sertão da Bahia:

Só por meio destas escolas poderemos contar em futuro próximo com professores que, nascidos entre nós, conhecedores do nosso meio, das nossos condições de vida, que são menos apertadas do que as da capital e dos centros de população mais densa, preferirão exercer a nobre e digna profissão de burilar inteligências nestas altas regiões a submeterem-se à vivenda em meios a que não estão acostumados. (JORNAL A PENNA. Caetité-BA. 04/02/1926).

Em 1903, a Escola foi fechada devido a conflitos políticos. A sua reabertura deu-se no ano de 1925, depois de muitas reivindicações da população de Caetité. Assim, a segunda Escola iniciou suas atividades em 21 de abril de 1926, com o ingresso de quatorze candidatos/as, aprovados/as em exame de admissão. Anísio Teixeira, que ocupava o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública do Estado da Bahia, foi o responsável pela recriação da Escola Normal e, posteriormente, pela criação do Instituto Anísio Teixeira na década de 1960.

Durante o século XX, o Estado não estava tão presente no interior do Brasil e a ação das igrejas era relevante nesses lugares. A Igreja Católica, por exemplo, mantinha fortes relações com o ensino local e tutelou instituições escolares, a exemplos do Colégio das Freiras e do Gynasio de Caetite.

Encontramos um documento datado do ano de 1928 da Escola Normal de Caetité, intitulado Programas do Ensino, que descreve as disciplinas que eram ministradas na Escola e os conteúdos de cada uma delas. Para o terceiro ano, especificamente, três professoras figuravam no corpo docente: Esther Borges de Barros, Zulmira Bastos Pitangueira e Irma Pimenta Barros, lecionando Música, Economia Doméstica e Educação Physica, respectivamente. As disciplinas relacionadas às ciências naturais eram: Sciencias Physicas, Hygiene Geral e Agricultura, lecionadas por dois homens; as duas primeiras eram ministradas pelo Dr. Luiz Sena e a terceira pelo Engenheiro Antônio Ramos. O único professor negro da Escola, Alfredo José da Silva7 7 - O percurso de formação e inserção profissional do professor Alfredo José da Silva, já no final do século XIX e início do XX, explicita uma excepcionalidade que nos provocou a tentar compreender a sua distinção e individualização enquanto homem negro, professor e diretor da Escola Normal em outra frente de trabalho que foge ao escopo deste texto. , lecionava a disciplina Português e Literatura. Os percursos dos professores Luiz Sena e Antônio Ramos pelos cursos de medicina e engenharia informam os cortes raciais para acesso às Faculdades de Medicina e Escolas Politécnicas do Brasil Império.

Os/as negros/as escravos/as, por não serem reconhecidos como sujeitos de direito, eram impedidos/as de frequentar escolas, de qualquer nível de ensino, na sociedade escravocrata (ROCHA, 2008ROCHA, Lúcia Maria da Franca. A escola normal na província da Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 5., 2008, Aracaju. O ensino e a pesquisa em história da educação. v. 1. Aracaju: UFSE: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1-19.). As condições sócio-históricas do país eram fortemente marcadas por uma explícita política de silenciamento (ORLANDI, 2007ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Edunicamp, 2007.) que impedia o acesso de negros e negras escravos/as à escolarização; não poderiam ser alunos/as e, por conseguinte, não poderiam ser professores/as nas Escolas Normais. No século XIX, o acesso à escola era negado aos escravos/as e, mesmo nas primeiras décadas do século XX, a escola pública brasileira era frequentada por pessoas das classes média e alta, devido à inserção precoce dos indivíduos das classes populares no mundo trabalho (VEIGA, 2008VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, p. 502-516, dez. 2008.).

As reformas educacionais dos séculos XIX e XX, mesmo sob o signo aparente da universalização, democratização e gratuidade do ensino, não criaram condições efetivas para que negros e negras, outrora escravizados/as, e seus descendentes fossem incluídos no âmbito da escolarização.

Cenas da Escola Normal de Caetité

Ao entrar no Arquivo Público de Caetité, Bahia, em agosto de 2018, deparamo-nos com fotografias de diferentes momentos histórico-políticos locais. Situação semelhante tem acontecido em visitas que os/as pesquisadores/as do Núcleo Ensino, Discurso e Sociedade (DisSE) fazem a professoras de cidades do sertão da Bahia. No Arquivo Público de Caetité e nas residências, as fotografias, na maioria das situações, não são apresentadas em álbuns organizados por períodos. Em uma determinada situação, na casa de uma professora aposentada, as fotografias apareceram em caixas que também armazenavam outros materiais como livros, cadernos e imagens de santos católicos em papel. Nessa residência, uma egressa da Escola, que chamamos aqui de Margarida (nome fictício), apresentou-nos algumas fotografias e descreveu, para os três pesquisadores presentes, os personagens e episódios a elas relacionados. Ao descrever uma das fotografias (Figura 01), Margarida pediu para adivinharmos quem seria ela na cena e, para a sua surpresa, um dos presentes acertou na sua primeira tentativa, mesmo com a distância de mais setenta anos que separavam aquele encontro do registro fotográfico, que, segundo as nossas interlocutoras, era comum à época, todas elas tinham fotografias com as suas turmas. Tal atividade de adivinhação se repetiu em outras situações de interlocução com outras egressas.

Figura 01
– Estudantes da Escola Normal de Caetité, Bahia, na década de 1940

Na fotografia 01, podemos perceber os estudantes da Escola Normal de Caetité, na década de 1940, e a grande presença do público feminino. Essa imagem situa e reafirma o que Yannoulas (2011YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, Brasilia, DF, v. 11, n. 22, p. 271-292, jul./dez. 2011., p. 277) assevera de que “os estudos normalistas e o exercício do magistério pelas mulheres se configuram como uma grande exceção na América Latina: não apenas foi tolerado, mas promovido pelas autoridades públicas.”

Ao ser reaberta em 1926 em Caetité, a Escola Normal de Caetité propôs o sistema da educação mista, ou seja, uma educação destinada a pessoas de ambos os sexos. Porém, a Escola continuou a separar os rapazes das moças e, quando não se conseguia formar as turmas agrupadas por um único sexo, os rapazes sentavam-se à frente das moças. “A sociedade do século XIX considerava a coeducação como uma questão perigosa do ponto de vista moral” (ROCHA, 2008ROCHA, Lúcia Maria da Franca. A escola normal na província da Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 5., 2008, Aracaju. O ensino e a pesquisa em história da educação. v. 1. Aracaju: UFSE: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1-19., p. 07).

Na Figura 02, referente a uma imagem/quadro comemorativo fixado na sala principal do Arquivo Público de Caetité, temos os/as professores/as da Escola Normal de Caetité e os/as formandos/as do ano de 1929. Podemos ler a composição do quadro em três planos: no primeiro, está a foto das pessoas em formato oval flutuando no centro; no segundo, aparece uma fotografia em plano geral da cidade de Caetité; e, ao fundo, observam-se traços de um pergaminho e uma mulher cercada por duas crianças e um livro. Está organizado em três níveis: no alto, vemos a fotografia de três professores e autoridades. Da esquerda para a direita, temos: professor Alfredo José da Silva (ministrante das disciplinas português e literatura e homenageado da turma), professor Dr. Edgar da Silva T. Pitangueiras (responsável por pedagogia e paraninfo), professor Dr. Antônio da Silva Ramos (professor de agricultura e homenageado da turma), o governador da Bahia Dr. Francisco M. de Góes Calmon e Dr. Anísio Spínola Teixeira, ambos com menção de honra ao mérito. Abaixo, figuram as dez mulheres e um homem concluintes: Brasília Trindade Cardoso, Ena de Castro Mesquita, Eponina Zita dos Santos Gumes, Evangelina Neves Lobão, Dalcy Moreira Silveira, Joaquim da Silveira Souza, Judith Moreira da Cunha, Altamira Anizia de Souza, Maria Julieta de Castro, Bellanisa Lima, Myrtes Uzeda Costa.

Figura 02
– Quadro de formandos de 1929

Face a essas fotografias, evidenciamos com Gregolin (2006)GREGOLIN, Maria do Rosário de Fátima Valencise. AD: descrever-interpretar acontecimentos cuja materialidade funde linguagem e história. In: NAVARRO, Pedro. Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 19-34. sua emergência como um enunciado em sua natureza de acontecimento discursivo produzido por enunciadores em um determinado momento histórico. Para entender esse acontecimento que possibilitou o estabelecimento e a cristalização de sentidos sobre as relações de gênero no período, pensamos o que é mostrado e como isso é feito. Nas palavras de Pêcheux (2002PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002., p. 44), a leitura deve fazer “[…] multiplicar as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim de se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não-ditos no interior do que é dito.” Ou ainda, com Foucault (2007b), por que esse enunciado e não outro em seu lugar?

Na leitura da Figura 02, há um encadeamento entre os três planos marcado pelo desenho ao fundo, fazendo a ligação entre os professores, as/os normalistas e a cidade. Esse desenho, muito mais do que preencher e ornar o quadro, marca uma perspectiva histórica e indica um tipo de estreitamento de laços entre os conjuntos de saberes e poderes, que têm funções difusas na sociedade, mas que atuam sobre os indivíduos de modo direto, apontando o lugar de cada um. Assim, o desenho da mulher acompanhada pelos filhos e o livro aberto constitui um enunciado coeso e pode ser entendido no conjunto de ditos e leis que nomeiam, designam e descrevem quais devem ser as práticas de uma mulher.

Nesse caso, buscamos reafirmar como a composição dos enunciados descritos fabricam e cristalizam sentidos de mulher e feminino em nossa sociedade. Trata-se de uma apresentação visual que coloca em evidência um determinado modelo, a partir do qual as normalistas deveriam se produzir. A mulher é reafirmada como a cuidadora dedicada, quer seja como a professora da escola primária que deverá se encarregar dos alunos como se seus filhos fossem, ou como a zelosa mãe que deverá se ocupar dos cuidados da prole, do marido e dos afazeres domésticos. Podemos somar a essa série de enunciados a imagem sacra de Nossa Senhora de Sant’Ana, padroeira da cidade de Caetité, cuja estátua é central na catedral católica, situada a poucos metros do prédio onde funcionou a Escola Normal. Cultuada no universo católico, ela é mostrada como uma senhora que ensina sua filha Maria com um livro. Isso reforça a produção de sentidos sobre a mulher dedicada aos cuidados da família e dos filhos. Essa é a mulher legitimada pelos discursos em circulação naquela sociedade da primeira metade do século XX, que deixa marcas até os dias atuais.

Historicamente, a maternidade é uma característica marcante da existência da mulher e determinante em algumas sociedades. Isso reforça o funcionamento de papéis binários e opostos, em que as práticas são abertamente divididas entre coisas de mulher e coisas de homem. Há a cristalização da tradição no quadro, ainda hoje afixado em parede do Arquivo Público de Caetité, que imprime um caráter de verdade a essa existência da mulher como sendo a única possível.

A partir dos pressupostos de Pêcheux (2002)PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002., assinalamos que, como todo enunciado, seu sentido não é transparente nem óbvio. É produzido na trama de outros enunciados imagéticos e verbais que circulam sobre o lugar do homem e o lugar da mulher na sociedade e no mundo. Nas superfícies de linguagem, é como se o que se vê fosse exatamente o que se vê, numa transparência tranquila e reveladora do que se deve saber sobre o objeto, principalmente na imagem. Contudo, longe de ser evidente, o sentido está no jogo de relações entre enunciados, discursos e verdades em uma época.

Dessa maneira, ao retomar a imagem tradicional da mulher da época, a cuidadora, o quadro articula seu acontecimento discursivo à tradição, se alimentando de e alimentando a ideia de outras formulações que produzem historicamente sentidos em torno do que é ser mulher e a enunciados futuros que irão retomar, para reforçar ou rechaçar sentidos delegados à mulher, ao feminino. Percebemos a emergência e a reafirmação do discurso patriarcal (cisgênero, branco e heterossexual), que diz exatamente qual o papel de cada um e rechaça, veementemente, o questionamento de suas normas.

Pensamos, igualmente, na maneira como as práticas de produzir imagens sobre mulheres nesse período, codificadas como prescrição ou padrão, talvez até como moral, procuraram justificar-se a partir de um corpo com impedimentos de ordem social e natural das coisas. O encadeamento das imagens acima está em uma rede de outros enunciados anteriores e posteriores que constrói o contexto do sentido, possibilitando perceber seu sentido como uma construção contínua e relacional com os enunciados à sua margem (FOUCAULT, 2007a). Vemos, nas fotografias, corpos femininos uniformizados que se agrupam e se homogeneízam, quer seja nos degraus da escada capturadas em ângulo reto frontal (Figura 01), quer seja no conjunto de rostos que registram o êxito na formação (Figura 02). É um cenário de predominância feminina que, por vezes, ao olhar mais cuidadoso pode mostrar um ou outro homem que poderia se dedicar à carreira pública na educação, no jornalismo e/ou na política. O ordenamento dos corpos evidencia a disciplina que seria necessária para alcançar o ideal da “ordem e progresso”, estampado na bandeira brasileira desde 1889, após a Proclamação da República. Tais enunciados são produzidos nas condições de possibilidade daquele momento e fazem reverberar essa imagem de mulher ordenada e disciplinada que escreve a história do corpo feminino, produzindo outras imagens que materializam a docilização do corpo por discursos de poder. Nessa esteira, pensar em ser mulher parece perpassar pela delicadeza e pela fragilidade diante do controle disciplinar.

Ordenar o corpo e as práticas de acordo com as normas da Escola Normal parece fazer parte do senso comum de como ser educado e obediente. Nesse sentido, esses corpos controlados e docilizados veiculam uma espacialização corporal que os distribui na posição correta para si. Na estrutura composicional das fotos, fica latente que cada um sabe seu lugar: seja na escada se aglomerando nos degraus inferiores, sendo emolduradas pela presença dos homens no alto e na lateral esquerda; ou ainda no quadro que registra os mais novos futuros professores das cidades sertanejas.

Assinalamos, ainda, que esses são alguns dos enunciados que ficaram registrados para as gerações futuras acerca da existência da Escola Normal. Excetuando o professor Alfredo, único negro diretor e professor da instituição, temos a materialidade que os homens brancos ocupavam as funções de professores e gestores da escola, mas as mulheres foram quem se interessaram e se formaram como professoras. Consequentemente, o ensino foi protagonizado por mulheres nos níveis mais basais.

Dados do século XXI refletem que, em 2009, as mulheres representavam a maioria entre os profissionais da educação no Brasil, exceto no ensino superior, cuja porcentagem era de 45,7%. Entre outros dados, Rosemberg (2012)ROSEMBERG, Fúlvia. Mulheres educadas e a educação das mulheres. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 333-359. aponta a realidade nordestina com níveis salariais mais baixos – embora essa situação se repita em outras regiões do país – confirmando ainda a predominância de mulheres professoras nas séries iniciais do ensino.

No Departamento de Ciências Humanas, Campus VI, da Universidade do Estado da Bahia, Instituição que sucedeu localmente a Escola Normal de Caetité na promoção da formação docente, ao analisarmos o número atual (em 2019) de professores/as que compõem o seu quadro docente, identificamos: 72 professores, dentre os quais 47 são mulheres e 25 são homens. Com esse dado, pudemos constatar a feminização na docência, visto que as mulheres passaram a ter representação e protagonismo nesse espaço, cinco delas chegando ao posto máximo da gestão, a Direção do Departamento. Com criatividade e protagonismo, reverteram interdições relacionadas aos postos de docência e gestão da formação de professores/as no alto sertão da Bahia.

Considerações finais

Entender como as mulheres interrogaram as suas épocas, aqui o período 1898-1943, e como a elas respondiam com práticas, mesmo sutis ou ocultas, que transgrediam as relações de dominação, nos ajudaria a compreender e resistir às imposições do tempo presente, alijadas por projetos antidemocráticos como o Escola Sem Partido. Ir a arquivos e seguir as mulheres que vivenciaram a docência em períodos de acentuado conservadorismo pode ser uma fértil possiblidade para elaborar reflexões e ações para abrir mundos, os de encenação de corpos e os de produções textuais, e tecer as resistências por vir.

A ideologia de gênero, engodo inventado e reificado por segmentos conservadores da sociedade, a exemplo de partidos da direita e da extrema direita e de grupos religiosos, estabelece regularidade com as posições reacionárias do século XVII, cujas marcas ressoaram na publicação anônima A Vindication of the Brutes (anônima à época). Segundo Singer (2010)SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., esse texto foi uma resposta de Thomas Taylor a um texto da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, precursora das feministas atuais, intitulado A Vindication of the Rights of Woman, que defendia igualdade de gênero e reivindicava o reconhecimento da racionalidade das mulheres. Thomas Taylor entendeu que, se mulheres podiam ser sujeitos de direito, os animais não humanos (os brutos) também poderiam ser assim compreendidos. Aqui estamos em consonância com Mary Wollstonecraft, com as feministas das décadas de 1960 e 1970 e com as feministas atuais: homens e mulheres devem ser tratados, igualmente, como sujeitos de direitos. A negação do direito ao acesso à escola, por exemplo, tem consequência no modo como as mulheres aparecem no tecido social. Ou seja, trata-se de uma questão situada nas condições de existência que são constantemente reificadas ou reinventadas. Assim deve ser entendida também em nossos modos de produção textual.

Se conservadores fascistas associarem mulheres à emoção e ao passional, diremos com Despret (2011)DESPRET, Vinciane. As ciências da emoção estão impregnadas de política? Catherine Lutz e a questão do gênero das emoções. Fractal, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 29-42, abr. 2011. que “emoção” e “paixão” dizem respeito a relações políticas (portanto, relações de poder) de homens e mulheres que organizam a vida e permitem criar laços. Enredaremos os homens nas palavras que marcam a inferioridade das mulheres, ressignificando essas mesmas palavras em empreitadas textuais, que são também práticas de resistência. Como ensina-nos bell hooks (2008)hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, dez. 2008., por meio das palavras e pensamentos, a linguagem, situada nas relações de poder das hierarquias raciais, assim como o desejo, fala mesmo contra a nossa vontade; ela recusa as circunscrições das fronteiras. Enfrentaremos as nossas próprias dissimulações nos efeitos da naturalização das exclusões em nossos textos e nos arquivos organizados por nós para fazer aparecer experiências do passado.

Nossos dados permitem afirmar que a Escola Normal emergiu racista, sexista e classista como sintoma de um Estado constituído nesses mesmos matizes. As professoras aposentadas destacaram, em situações de entrevistas, as exigências para estudar na Escola Normal e as necessidades que advinham dessa escolha. Uma dessas necessidades era a montagem de um enxoval, com o devido fardamento e demais roupas necessárias para residir em Caetité, uma vez que muitas alunas e muitos alunos residiam em municípios diferentes da sede da Escola, o que implicava ter condições financeiras para se deslocar das suas residências e dedicar exclusivamente aos estudos. Outra egressa disse que as atividades da Escola começavam às nove horas da manhã e terminavam às dezessete. Ao concluir as atividades do dia, as moças vindas de outros municípios dirigiram-se aos pensionatos mantidos por suas famílias e continuavam os estudos em mesas ao redor de candeeiros.

Ao olhar para o corpus a que este texto se reporta e confrontá-lo com textos cruciais do nosso referencial teórico (LORDE, 2019a, 2019b; COLLINS, 2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, abr. 2016., 2017COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro e além disso. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175118, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510018.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.
https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4...
; bell hooks, 2008hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, dez. 2008., 2015ahooks, bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 677-689, dez. 2015a., 2015bhooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 16, p. 193-210, abr. 2015b.), coube-nos uma interrogação: onde estavam as mulheres negras? Nas fotografias e nas narrativas dos arquivos, elas estavam apagadas. No Arquivo Público Municipal, a única mulher negra que figura na exposição é Maria Afra, que nos foi apresentada como uma mulher negra, ex-escrava e mãe do professor Alfredo. Isso explicita que o apagamento/silenciamento da mulher negra nos espaços de escolaridade e de construção de narrativas sobre a escolarização foi e é ainda mais acentuado do que o das mulheres brancas. Em nossa experiência enquanto pesquisadores/as, reconhecemos que as atuações contemporâneas das pesquisadoras negras nos fazem interrogar os silenciamentos de mulheres negras em nossos campos empíricos e em nossas escritas e ensinam que o “pensamento feminista negro”, nos termos de Patrícia Hill Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, abr. 2016., é uma poderosa possibilidade teórico-política para enfrentar os códigos desses silêncios. Quais seriam as imposições materiais desse apagamento das mulheres e dos homens negros na Escola Normal de Caetité?

Famílias de moças e rapazes negras/os certamente tinham muitas dificuldades para acessar as condições materiais para enviarem suas filhas e filhos para estudar na Escola Normal, restando às mulheres negras os postos de trabalho relacionados ao cuidado da Escola e das residências das famílias das normalistas, uma vez que essas últimas estavam impedidas de assumir as funções de cuidado do lar devido à distância geográfica entre a Escola e as suas residências. Mesmo nas residências de famílias menos abastadas, nas quais a presença de moças significava mão de obra para o trabalho doméstico, as mulheres negras assumiram a condição de empregadas do cuidado, muitas vezes, sendo remuneradas com comida e/ou presentes, como um dia foram remuneradas as professoras leigas. As exceções permitem pensar que existir como corpo negro, e, mais especificamente, como mulher negra, estudante da Escola Normal, significava resistir às imposições classistas e racistas que exploravam a população negra à época. Em 1976, Beatriz Nascimento (2019)NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 259-263. ponderou que a sociedade brasileira é fundada em um sistema econômico que define os espaços na hierarquia de classes e os mecanismos para selecionar as pessoas que os preencherão, sendo o critério racial um desses dispositivos de seleção que coloca negros e negras nos lugares mais baixos da hierarquia. Para ela, a mulher negra representa a cristalização dessa estrutura de dominação. Maria, do conto de Conceição Evaristo (2015)EVARISTO, Conceição. Olhos d´água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015., ilustra o vergonhoso cenário de desigualdade e opressão contra as mulheres negras.

A partir das leituras de bell hooks (2008hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, dez. 2008., 2015ahooks, bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 677-689, dez. 2015a., 2015bhooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 16, p. 193-210, abr. 2015b.), questionamos ainda: as mulheres formadas na Escola Normal passaram a fazer parte de uma economia masculina, fálica e branca que invisibilizou e oprimiu mulheres, negras e negros? Ao retornar para as escolas após conclusão dos cursos na condição de professoras das escolas primárias, as egressas da Escola Normal atuaram para a diminuição das assimetrias de gênero e raça ou reproduziram modelos do racismo e do elitismo educacional? As imposições sociais do período 1898-1943 sobre negras e negros dificultavam fortemente o acesso à escola e, quando esses sujeitos adentravam ao espaço escolar reverberavam sobre eles as possibilidades de insucesso nos estudos, o que equivocadamente foi interpretado pelos racistas como condição do status racial. E, por fim, ainda cabe outro questionamento: quais os modos inventivos elaborados por mulheres e homens negras/os desafiaram a estrutura social sexista, classista, racista e religiosa (católica) para se incluírem nos ensinos primário e secundário da primeira metade do século XX? Há uma imensa pauta de pesquisa em aberto. Sigamos!

Em suma, sustentamos que modos criativos das mulheres da Escola Normal de Caetité contribuíram para mudar o cenário educacional do alto sertão da Bahia, a partir da segunda metade do século XX, e devem aparecer nos acervos dos arquivos locais como condição de possibilidade para produções textuais que sustentem protagonismos marcados por experiências generificadas e racializadas.

Frente a isso, Ensino, Discurso e Sociedade (DisSE), nutrido pelo pensamento feminista negro, especialmente pelas contribuições de bell hooks, Judith Butler e Patricia Hill Collins, reafirma seu compromisso com os estudos a respeito de gênero, sexualidade, raça, religião, classe social e educação para formar professores/as pesquisadores/as no alto sertão da Bahia. Em sua pauta de estudo, está também a necessidade de compreender, mesmo com os diversos apagamentos das mulheres e homens negros nos acervos dos arquivos, criatividade e protagonismo das negras e dos negros que se escolarizaram em Caetité, inclusive no tempo presente, no qual devemos levar adiante a possibilidade de uma escola diversa e que represente, de fato, as vidas e os modos de existências dos diversos sujeitos que compõem a estrutura social generalizada como alto sertão da Bahia.

Referências

  • BENTO, Maria Aparecida da Silva. Racialidade e produção do conhecimento. In: SEYFERTH, Giralda et al. Racismo no Brasil. São Paulo: Abong: Ação Educativa: Anped, 2002. p. 45-52.
  • BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
  • BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009.
  • BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-220, 2003.
  • BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jun. 2014.
  • CARVALHO, José Murilo de. O radicalismo político no Segundo Reinado. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. p. 32-45.
  • COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, abr. 2016.
  • COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro e além disso. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175118, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510018.pdf Acesso em: 19 mar. 2021.
    » https://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510018.pdf
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • DESPRET, Vinciane. As ciências da emoção estão impregnadas de política? Catherine Lutz e a questão do gênero das emoções. Fractal, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 29-42, abr. 2011.
  • ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP: Fapesp: Edusc, 2003.
  • EVARISTO, Conceição. Olhos d´água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
  • FERREIRA, Gabriela N. Visconde do Uruguay: teoria e prática do Estado brasileiro. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 18-31.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2007b.
  • FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007a.
  • GREGOLIN, Maria do Rosário de Fátima Valencise. AD: descrever-interpretar acontecimentos cuja materialidade funde linguagem e história. In: NAVARRO, Pedro. Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 19-34.
  • GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, p. 1-18, 1998.
  • HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, jan. 2009.
  • HIRATA, Helena. Gênero, patriarcado, trabalho e classe. Trabalho Necessário, São Paulo, v. 16, n. 29, p. 14-27, set. 2018a.
  • HIRATA, Helena. Divisão internacional do trabalho, precarização e desigualdades interseccionais. Revista da ABET, João Pessoa, v. 17, n. 1, p. 7-15, 2018b.
  • HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2014.
  • hooks, bell. À Glória, seja ela quem for: sobre usar um pseudônimo. In: hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019. p. 324-336.
  • hooks, bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 677-689, dez. 2015a.
  • hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, dez. 2008.
  • hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 16, p. 193-210, abr. 2015b.
  • JORNAL A PENNA. Caetité. 04 fev. 1926. Arquivo Público Municipal de Caetité, BA.
  • LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: redefinindo diferenças. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019b. p. 239-249.
  • LORDE, Audre. Não existe hierarquia de opressão. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019a. p. 235-236.
  • MARTINS, Angela Maria Souza. Breves reflexões sobre as primeiras escolas normais no contexto educacional brasileiro, no século XIX. Revista Histedbr, Campinas, v. 9, n. 35, p. 173-182, 2009.
  • NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 259-263.
  • NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto Silva. Mulheres baianas nas artes da escrita; tessituras de experiências, memórias e outras histórias (1926-1960). 2015. 300 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Edunicamp, 2007.
  • PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.
  • ROCHA, Lúcia Maria da Franca. A escola normal na província da Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 5., 2008, Aracaju. O ensino e a pesquisa em história da educação. v. 1. Aracaju: UFSE: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1-19.
  • ROSEMBERG, Fúlvia. Mulheres educadas e a educação das mulheres. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 333-359.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia da Letras, 1993.
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80.
  • SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
  • STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • STRATHERN, Marilyn. A Antropologia e o advento da fertilização In Vitro no Reino Unido: uma história curta. Cadernos Pagu, Campinas , n. 33, p. 9-55, dez. 2009.
  • VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, p. 502-516, dez. 2008.
  • YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, Brasilia, DF, v. 11, n. 22, p. 271-292, jul./dez. 2011.
  • 2
    - Gênero/sexualidade, raça/etnia e classe social são conceitos trabalhados há algum tempo na pesquisa educacional. Para Joan Scott (2019)SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80., gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e uma ferramenta primeira de significar as relações de poder. Consoante com Michel Foucault, ela pondera que o poder social não deve ser entendido como unificado, coerente e centralizado, mas “[...] como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos ‘campos de forças’” (SCOTT, 2019SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80., p. 66). Inspirados em Stengers (2015)STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015., ao manejar tais categorias, estamos menos hierarquizando conceitos e as opressões a que se reportam do que nomeando aquilo que faz sentir e pensar no que esses nomes suscitam. Com Audre Lorde (2019a, 2019b), sem deixar de considerar as diferenças de raça entre mulheres, aprendemos a refutar a hierarquia das opressões. E, com Scott (2019)SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80., Lorde (2019a, 2019b), Butler (2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-220, 2003., 2014BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jun. 2014.) e Strathern (2009)STRATHERN, Marilyn. A Antropologia e o advento da fertilização In Vitro no Reino Unido: uma história curta. Cadernos Pagu, Campinas , n. 33, p. 9-55, dez. 2009., apropriamos da categoria gênero considerando os sistemas de parentesco (herança antropológica), o mercado de trabalho (a economia), a educação (seus sujeitos, currículos e instituições) e o sistema político para pensar um futuro de paz. Raça, por sua vez, aqui é um conceito tomado como construção que marca as diferenças entre brancos, negros, índios... Segundo Maria Aparecida da Silva Bento (2002BENTO, Maria Aparecida da Silva. Racialidade e produção do conhecimento. In: SEYFERTH, Giralda et al. Racismo no Brasil. São Paulo: Abong: Ação Educativa: Anped, 2002. p. 45-52., p. 48), “[...] raça é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer, mais do que qualquer outra, a desigualdade humana”.
  • 3
    - A identidade de gênero não prediz a orientação sexual (BUTLER, 2009BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009.; GROSSI, 1998GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, p. 1-18, 1998.). Em face ao avanço do fascismo no Brasil, com o aumento significativo de pessoas que correlacionam gênero e identidade sexual no espaço público e midiático, a exemplo da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro, avaliamos necessário reafirmar esta já consolidada formulação no campo dos estudos de gênero. Gênero é aqui um fenômeno sócio-histórico-cultural não, necessariamente, permanente sem que isto implique a necessidade de atestado do aparato regulatório da psiquiatria e da psicologia, ainda que, em nossa sociedade, ele assim se apresente, como aparato por meio do qual se manifestam a produção e a normalização do masculino e do feminino (BUTLER, 2014BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jun. 2014.). Nesse sentido, argumentamos que a Escola Normal corporificou as regulações de gênero do período incidindo sobre corpos “masculinos” e “femininos” – e os produzindo –, que, por desdobramento, tornaram-se sujeitos normalistas, “espíritos” aptos a assumirem as classes de primeiras letras da emergente escola sertaneja. Certamente existiam pessoas fora desse binarismo, mas que a ele deviam se assujeitar para ocupar lugares possíveis. Em nossa incursão no campo empírico, identificamos o significante beata (e beato) que, a nosso ver, é uma profícua ferramenta para pensar os corpos e os modos de vida não conformados com o binarismo masculino-feminino. Aqui, mais uma vez com Butler (2014BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jun. 2014., p. 254), gênero é um aparato para desconstruir e desnaturalizar esse binarismo. “Manter o termo ‘gênero’ em separado de masculinidade e feminilidade é salvaguardar uma perspectiva teórica que permite analisar como o binarismo masculino e feminino esgotou o campo semântico de gênero”. Certamente existiram individualidades não totalmente conformadas com a norma de gênero corporificada pela Escola Normal; estamos falando, mais especificamente, de mulheres, egressas da Escola Normal de Caetité do período 1898-1966, com as quais estabelecemos interlocução e, hoje, com mais de oitenta anos vivem como “beatas”. Uma delas disse em uma entrevista que não se casou para não se submeter aos papéis sociais exercidos pelas suas colegas casadas, de submissão aos maridos. Ou seja, a sua beatice emergiu em nossos diálogos como uma subversão às regulações de gênero da época.
  • 4
    - Definimos o período 1898-1943 tomando como referência a nossa pausa reflexiva do trabalho nos arquivos. Dessa forma, o ano de 1898 representa o início de funcionamento da primeira Escola Normal de Caetité e o ano de 1943 representa o ano de fechamento do Jornal A Pena, uma das fontes cruciais que permitiram os contornos da pesquisa e deste texto. Ou seja, o recorte diz respeito às condições de produção textual oferecidas pelos documentos analisados.
  • 5
    - “bell hooks” é o pseudônimo adotado por Gloria Jean Watkins, intelectual, escritora, acadêmica, professora e ativista negra estadunidense. Ela usa este pseudônimo, que é o nome da sua bisavó, em letras minúsculas para assinar seus textos a fim de impedir a sua hiperidentificação com as ideias, o que, para ela, impede a criatividade.
  • 6
    - Segundo Estrela (2003ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP: Fapesp: Edusc, 2003., p. 37), uma regionalização deve considerar “sobretudo as percepções e o imaginário dos homens que as habitam”, além dos fatores geográficos, culturais, históricos etc. que lhe são próprios. Para a autora, a utilização do termo, “designa uma vasta área do interior do Brasil, situada na atualidade nos limites de dois Estados diferentes, revela claramente a existência de uma região imaginária na geografia do extremo sudoeste da Bahia [...] a qual tem sua origem na formação territorial do Brasil Colônia”. (ESTRELA, 2003ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP: Fapesp: Edusc, 2003., p. 37).
  • 7
    - O percurso de formação e inserção profissional do professor Alfredo José da Silva, já no final do século XIX e início do XX, explicita uma excepcionalidade que nos provocou a tentar compreender a sua distinção e individualização enquanto homem negro, professor e diretor da Escola Normal em outra frente de trabalho que foge ao escopo deste texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2019
  • Revisado
    29 Abr 2020
  • Aceito
    02 Jun 2020
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Av. da Universidade, 308 - Biblioteca, 1º andar 05508-040 - São Paulo SP Brasil, Tel./Fax.: (55 11) 30913520 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revedu@usp.br