Resumo
As tecnologias de informação e comunicação vêm alterando o contexto em que vivemos nas mais variadas escalas. Por isso, se tornaram também uma importante ferramenta de gestão dos problemas das cidades contemporâneas. O presente artigo tem como objetivo investigar as relações entre território e tecnologia, observando que a tecnologia é produtora de territórios, mas nem todo território produz a mesma tecnologia. Esta relação será explicada por meio da análise da customização territorial dos aplicativos móveis AlertaBlu (Blumenau/SC) e Onde Tem Tiroteio (Rio de Janeiro/RJ). A metodologia utilizada consiste em revisão bibliográfica e análise comparativa. Os resultados mostram que estes aplicativos são criadores de territórios, uma vez que demarcam os locais seguros e inseguros das cidades onde atuam. Conclui-se que estes territórios funcionam como uma ferramenta de mediação urbana.
Palavras-chave: Território; Tecnologia; Cidades inteligentes
Abstract
Information and communication technologies have changed the context in which we live on the most varied scales. For this reason, they have also become an important management tool for the problems of contemporary cities. This article aims to investigate the relationship between territory and technology, noting that technology is a producer of territories, but not all territory produces the same technology. This relationship will be explained by the analysis of the territorial customization of the mobile applications AlertaBlu (Blumenau/SC) and Onde Tem Tiroteio (Rio de Janeiro/RJ). The methodology consists of a bibliographic review and comparative analysis. The results show that these applications are territorial creators because they demarcate the safe and insecure places of the cities where they work. We conclude that these territories function as an urban mediation tool.
Keywords: Territory; Technology; Smart cities
Introdução
Estamos constantemente produzindo informações. Esta constatação está relacionada ao crescente uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC). Segundo o We Are Social (2019), há cerca de 5 bilhões de usuários de celulares no mundo, o que representa cerca de 67% da população mundial. Isto também causa efeitos na atividade urbana, onde verifica-se um processo de informatização do urbano. Neste processo, as TIC são utilizadas como meio para a gestão dos problemas contemporâneos. Esta é a proposta do conceito de Smart Cities: a utilização de informações e tecnologias para melhorar o desempenho das cidades, fornecer serviços mais eficientes, otimizar e monitorar a infraestrutura existente, aumentar a colaboração entre os diversos atores econômico e incentivar a inovação nos setores público e privado (Marsal-Llacuna et al., 2015).
Neste contexto, vários aplicativos móveis (apps) relacionados ao uso da cidade surgiram nos últimos anos. Estes apps tornaram-se ferramentas de mediação urbana, uma vez que as ações dos indivíduos na cidade perpassam por eles. Por isso, ao intensificar a mediação entre coisas, a tecnologia (internet) conforma o território (espaço). Isto acontece porque as associações entre tecnologia e território são multiplicadas, diminuindo o espaçamento entre coisas e lugares (Lemos, 2013). Mais precisamente, os apps, redes sociais, e dispositivos IoT (Internet of Things) intensificam a circulação entre coisas e lugares. Nestes dispositivos técnicos o espaço deixa de ser concebido como um reservatório em que estão as coisas e se converte numa rede onde se estabelecem relações. Isso significa que as mídias digitais reforçam a atenção ao contexto pela acoplação da informação ao local. Neste processo contam mais as associações que passam pelos lugares do que as posições que as coisas assumem no espaço. Portanto, a relação entre tecnologia e território amplia as mediações locais.
O presente trabalho examina a relação entre território e tecnologia. Mais precisamente, os efeitos do processo de customização territorial da tecnologia. Neste sentido, argumenta que o processo de coconstrução estabelecido entre território e tecnologia converte o território numa tecnologia de mediação social. Para testar este argumento, são analisados dois casos específicos: a)Onde Tem Tiroteio(OTT): aplicativo desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro (RJ) para monitorar a violência urbana; b) AlertaBLU: aplicativo desenvolvido na cidade de Blumenau (SC) para auxiliar o processo de gestão dos desastres (Figura 1). Estes apps identificam o risco e demarcam o território em áreas seguras e inseguras, constituindo uma ferramenta de mediação. Desta forma, o processo de customização territorial da tecnologia converte os atributos de risco num localizador espacial.
A relevância das TIC no espaço urbano tem sido assinalada por um conjunto variado de estudos. Estes trabalhos vêm desde a área das ciências da computação, em que são feitas sugestões de criação e melhorias dos apps existentes (Munarolo et al., 2018); mas também das ciências sociais aplicadas, em que seus efeitos sob o urbano são mais relevantes. Há exemplos de trabalhos nacionais e internacionais, que estudam como os aplicativos móveis potencializam a vida das pessoas nos ambientes urbanos (Silva & Urssi, 2015); exploram o potencial das mídias sociais e das tecnologias como forma de estimular a participação popular no planejamento e gestão urbana (Ertiö, 2015; Kleinhans et al., 2015; Bugs & Bortoli, 2018); questionam como os aplicativos influenciam a utilização do espaço urbano (Dallabona-Fariniuk & Firmino, 2018); investigam o papel das TIC no espaço urbano no contexto dos movimentos sociais (Giaretta & Giulio, 2017); e analisam a relação entre as TIC e a forma urbana (Maeng & Budic, 2010).
As inovações tecnológicas estão cada dia mais inseridas no cotidiano. O smartphone em pouco tempo moldou os hábitos dos seus usuários, tornando-se uma ferramenta essencial no dia-a-dia e conectando a sociedade em uma poderosa rede (Höffken & Streich, 2013). Os apps inserem ao smartphone novas funcionalidades, portanto são um dos fatores que levaram à sua popularidade. Entre estas novas funcionalidades, destaca-se a possibilidade de distribuição de alertas, serviços móveis e informações para a população. Por isso, os apps podem ser ótimos mediadores em processos comunicacionais multilaterais entre governo e cidadãos, ampliando a participação popular na gestão das cidades (Bouskela et al., 2016; Lemos & Araujo, 2018). Portanto, investigar a relação entre os apps e o território permite compreender qual a força motriz por trás de sua criação, qual a aderência com os usuários, além de dar subsídios para a criação de novas propostas.
Tendo em vista estas considerações, os objetivos deste trabalho são:
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a) Relacionar tecnologia e território e descrever como eles estão constantemente alterando um ao outro;
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b) explicar o processo de customização territorial e territorialidade da tecnologia, com ênfase nos aplicativos móveis;
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c) analisar os apps AlertaBlu e Onde Tem Tiroteio como casos de customização territorial.
Para testar estes argumentos foi aplicada uma estratégia mista de produção de dados (Gray, 2012; Cresswell, 2010). Esta estratégia baseou-se em três procedimentos. Em um primeiro momento, utilizou-se do método qualitativo para esclarecer os conceitos necessários (território e tecnologia), assim como a relação entre eles. Para isto, foi realizada uma revisão bibliográfica considerando as principais referências nacionais e internacionais sobre o tema. O método quantitativo foi utilizado em seguida para realizar-se a coleta de dados. Os dados foram coletados dos aplicativos analisados, notícias on-line e trabalhos acadêmicos anteriores. Com base nestes dados, retornou-se ao método qualitativo para efetuar uma análise comparativa (Remaud et al., 2012) entre os dois aplicativos. Abaixo, descrevemos o processo de coleta e análise dos dados dos aplicativos:
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Partindo da diferenciação dos aplicativos entre globais e locais, identificada com base na investigação de aplicativos que são utilizados no contexto urbano, foram selecionados dois apps com alcance local e usos diferenciados.
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Tendo os apps selecionados, iniciou-se a coleta de dados. Esta coleta ocorreu a partir da base de dados dos serviços de distribuição dos aplicativos (Google Play e App Store), das bases dos próprios aplicativos, de notícias e informações encontradas na internet, e de outros trabalhos acadêmicos realizados anteriormente.
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Após a coleta dos dados, foi realizada a análise de cada um dos apps, considerando o contexto territorial em que cada um dos apps foi criado e qual o efeito territorial que eles causam.
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Finalmente, foi realizada uma análise comparativa entre os apps tendo em mente as seguintes perguntas: a) como os apps foram definidos?; b) quais são os atores que participaram do processo?; c) qual é a força motriz por trás dos apps?; d) como se estabeleceu o acordo para estabilização dos apps?; e) qual é a organização social necessária?; f) como é que a atividade dos apps é categorizada?; e g) qual o papel do usuário para o funcionamento do app?
O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução. A primeira consiste em uma revisão bibliográfica e discussão sobre território e tecnologia e suas relações entre si. Esta seção dá destaque para as TIC e como elas alteraram a noção de território, por desvinculá-lo de um espaço material. Em seguida, explicamos o conceito de customização territorial e territorialidade da tecnologia, com ênfase nos apps. Esta ideia tem como base o conceito de Smart Cities. Em seguida, o artigo foca na análise dos apps AlertaBlu e OTT como exemplos de customização territorial dos aplicativos móveis. O efeito territorial de cada um deles é investigado, concluindo-se que eles demarcam territórios como seguros ou inseguros. Como conclusão, é feita uma comparação entre os apps. O modelo de análise está exposto na Figura 2.
O território como tecnologia de mediação social
Um espaço somente se torna território quando é delimitado de alguma maneira (Penrose, 2002). A demarcação do território é um processo dinâmico e contínuo, o que faz com que os territórios estejam em constante transformação. Por isso, as fronteiras demarcadas não são rígidas, mas fluídas (Kadercan, 2015). O território é uma ferramenta utilizada para simplificar ou esclarecer algo, como a autoridade política, a identidade cultural, autonomia ou direitos individuais. Portanto, no cotidiano, esta demarcação territorial pode ser percebida nos espaços públicos e privados: nos espaços privados há restrições em termos de acesso, definidas pelos proprietários; os espaços públicos são acessíveis a todos. Estes micro-territórios do cotidiano são mais perceptíveis e significativos para a maioria das pessoas do que os macro-territórios da política global (Delaney, 2005). Por isso, o território é, fundamentalmente, definido por sua escala (Latham & Mccormack, 2010).
O processo de delimitação de territórios é fruto da ação humana (Penrose, 2002). Por isso, os critérios para esta demarcação podem variar. De forma geral, podemos dividir esquematicamente as formas de demarcação de territórios em dois grupos analíticos: a) Abordagem Materialista: considera o território como fornecedor de recursos naturais, ou dos “meios materiais de subsistência” - ou seja, tem forte ligação com a natureza. Esta abordagem tem maior relação com a geografia física, dando mais ênfase aos fatores físicos na determinação de um território; e b) Abordagem Simbólica: considera a dimensão simbólica do território, ou seja, a relação de identificação das pessoas com determinado lugar. Desta forma, mostra uma maior aproximação à antropologia e à cultura como elementos delimitadores de um território (Haesbaert, 2007). Entretanto, estas duas perspectivas não são excludentes: é possível que a demarcação ocorra tanto materialmente quanto de forma simbólica.
O crescente uso da tecnologia e a constituição de uma sociedade em rede (Castells, 2017) causaram contradições na concepção de território. Durante muito tempo, o conceito de redes foi contraposto ao de território, sugerindo que estas são formas distintas de organização espacial (Painter, 2010). Em contraste, existe o conceito de território-rede, que incorpora as redes aos territórios. Nesta concepção, o território deixa de ser um “controle de áreas” para se tornar um “controle de fluxos”, tornando a mobilidade dos fluxos um elemento fundamental para a construção do território (Haesbaert, 2004). Nesta linha de pensamento, Painter (2010) afirma que fluxos são codificados para um território, e não por um território. Por isso, o território é um efeito desta codificação, sendo gerado pelas relações em rede - e, consequentemente, dependendo delas. Além disso, territórios podem ser tipos especiais de redes: quando as relações em rede se tornam mais intensas em um determinado espaço, o resultado disso pode ser entendido como um território (Painter, 2006).
O território é efeito de práticas sociais, mas ele não é somente isso. Ele é produto de práticas sóciotécnicas (Painter, 2010). Isso quer dizer que não são só as práticas de atores humanos que envolvem a constituição de territórios, mas também as de atores não-humanos (Latour, 2006). Dentre os atores não-humanos, destaca-se a tecnologia - que não é um instrumento neutro que facilita a existência, mas molda a forma como experienciamos o mundo (Verbeek, 2011). Por isso, para Barry (2001) a tecnologia está intimamente ligada à própria formação do humano e do social, ou seja, o social não é algo que existe independentemente da tecnologia. O mesmo acontece com o território: seus limites não são pré-existentes à tecnologia e não estão separados dela. É por isso que, segundo Painter (2010), o território não deve ser analisado como um “espaço de estado real”, mas como o efeito de práticas que fazem com que estes espaços pareçam existir.
A abordagem sociotécnica procura ultrapassar a divisão entre contexto social e artefatos técnicos. Procura integrar, analiticamente, a resistência humana à tecnologia com as restrições estabelecidas pela técnica. Mais precisamente, o objetivo é explicar os processos por meio do qual a técnica e o contexto social se estabilizam mutuamente. Não é possível pensar a técnica fora da sociedade ou sociedade fora da técnica pois compreendem arranjos híbridos em que os elementos técnicos e sociais estão interligados. A técnica e o contexto social emergem em conjunto à medida que o dispositivo aumenta a capacidade de traduzir necessidades, aspirações, supostos objetivos de todos aqueles que é necessário interessar (Callon et al., 1999). A forma assumida pelos dispositivos técnicos, seu sucesso ou fracasso, suas áreas de uso, seus efeitos condensam as associações estabelecidas. Por isso, a relação entre território e tecnologia se estabelece por meio de uma coconstrução.
Na perspectiva da conconstrução, o território e a tecnologia se estabelecem simultaneamente. Neste sentido, o território pode ser definido como uma tecnologia de interação social. Mais precisamente, constitui uma mediação social que opera binariamente por meio de uma demarcação entre dentro-fora. Esta demarcação pode ser estabelecida de muitas formas. Por exemplo, as diferenças entre os atributos para demarcar uma região violenta de uma região segura; mas também os pressupostos analíticos para conceber estes atributos (Delaney, 2005). Isso significa que para entender a relação entre território e tecnologia é preciso considerar, simultaneamente, a forma tecnológica de conceber a escala e o efeito territorial produzido pela de escala. É por isso que o território pode ser demarcado por meio da autoridade política, da identidade cultural, fronteiras físicas ou mesmo identidade individual. Portanto, como uma tecnologia exprime uma ordem social.
O contraste das formas de abordagem da relação entre território e tecnologia reforça a hipótese de conversão do território em tecnologia de mediação social. Isso acontece porque a reconfiguração do território pelos apps diminui o espaçamento entre indivíduo e urbano. Neste sentido, o território recruta, alinha e integra elementos em planos muito heterogêneos. No plano estrutural (Macro-Material) produz novas demarcações territoriais do urbano; no plano da ação (Micro-Simbólico) fixa novas formas representações (Figura 3). Por isso, com a aplicação dos apps o território deixa de ser consequência para se tornar a causa de mediações sociais. Analiticamente isto significa que não são as mediações que se disseminam pelo território, mas o território que propaga mediações sociais. O território fixa novas associações entre a ação e a estrutura e, desta forma, entre o urbano e o indivíduo. Portanto, intensificam as disputas pelo território, afinal quem controla o território controla o processo de mediação social.
A customização territorial dos aplicativos móveis
O fenômeno urbano encontra-se atualmente em um processo de transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de informação. Neste período de transição, os problemas decorrentes da sociedade industrial acumulam-se com os novos problemas desta “nova etapa” do urbano (Meyer, 2000). Estes novos problemas vão desde transformações naturais decorrentes da ação humana, como as mudanças climáticas; até questões sociais de moradia, mobilidade, violência e superpopulação nos grandes centros urbanos. Inclusive, a própria urbanização já foi indicada como um dos principais fatores causadores de crimes (Halicioglu et al., 2012). A população mundial, em 2018, é estimada em 7,6 bilhões de habitantes. Destes, 54,9% vivem em zonas urbanas (Worldometers, 2018). Segundo estimativa das Nações Unidas, até 2040 a população mundial ultrapassará os 9 bilhões de habitantes, com 64,5% da população urbana (United Nations, 2017). Isso indica que os problemas urbanos não tendem a diminuir.
A velocidade das transformações no mundo atual obriga as cidades a readaptações constantes. Neste cenário, as Smart Cities surgem como tentativa de solucionar os desafios das cidades. Segundo Yin et al. (2015), ainda não há uma definição universal para o conceito de Smart City, embora a maioria dos autores aponte a tecnologia como uma das suas principais características. Apesar disso, Karvonen et al (2019) ressalta que uma Smart City não é definida apenas pela inovação tecnológica, mas envolve uma série de mudanças econômicas, socioculturais, arquitetônicas, ecológicas e políticas. As Smart Cities surgem em um contexto de urbanização mundial combinado com uma revolução digital. Esta revolução digital está gerando um mundo hiperconectado, através do crescente uso de dispositivos móveis, mídias sociais, computação em nuvem e big data. Tal hiperconexão se manifesta tanto entre as pessoas, quanto entre as máquinas - mediante dispositivos IoT (Internet of Things) (Cunha et al., 2016).
O conceito de Smart Cities também está relacionado à produção, coleta e organização de dados sobre a cidade e seus usuários em formato digital, utilizando as TIC como suporte (Müller, 2015). Mediante a pontos de acesso wi-fi em praças públicas, por exemplo, pode-se obter dados sobre quem a utiliza, mapeando assim predominância de idade, gênero, horário de uso, etc. Estes dados podem ser aplicados na criação de estratégias para o desenvolvimento e gestão municipais, atendendo às demandas de forma mais eficiente. O desafio da gestão de uma Smart City é justamente entender as interações entre a cidade, os dados e os cidadãos (Yin et al, 2015). Entretanto, o desenvolvimento de territórios não deve basear-se apenas na dimensão virtual, mas deve integrar as dimensões social, política, econômica e tecnológica, tendo o território como base estruturante. Ou seja, as TIC devem ser um meio para a criação de territórios do conhecimento, e não o produto (Lévy, 1999).
Uma das principais TIC que está alterando as relações sociais são os smartphones. Estes estão cada vez mais incorporados ao cotidiano das pessoas, e cada vez possuem mais funcionalidades. Dentre estas novas funcionalidades, é importante destacar os sistemas de localização e georreferenciamento. Foram estes sistemas que possibilitaram a associação dos smartphones com o seu local em tempo real. Foi também um dos fatores que promoveu a grande personalização dos smartphones, uma vez que os permite converter os dados de localização pessoal em soluções para o usuário. Neste cenário, os aplicativos móveis (apps) se tornaram importantes ferramentas no auxílio à gestão das questões contemporâneas. Segundo Dallabona-Fariniuk & Firmino (2018), as demandas de segurança e monitoramento fazem com que apps sejam formulados e disponibilizados com o objetivo de permitir o controle do espaço e o reconhecimento de localidades. Por outro lado, estas tecnologias colocam o sujeito sob vigilância constante, o que pode ameaçar sua privacidade e anonimato. Isso faz com que a vigilância se torne parte intrínseca do espaço, dando visibilidade aos componentes imateriais e invisíveis dos lugares e territórios (Firmino & Duarte, 2012).
Desta forma, diversos apps surgiram no contexto urbano do século XXI. Os apps relacionados ao uso da cidade vieram para atender a demandas de mobilidade, localização, hotelaria, turismo, etc., e ao mesmo tempo reinventaram as relações sociais no espaço urbano. Eles apresentam formas alternativas de uso da cidade, trazendo informações atualizadas em tempo real com o objetivo de otimizar a vida do usuário. Entre os apps relacionados à cidade, identificamos os apps globais e os apps locais. Os apps globais são aqueles que são desenvolvidos visando resolver questões presentes no contexto urbano mundial, e tem suas informações atualizadas conforme o local onde estão inseridos através do GPS. Exemplos deles são os apps de navegação Waze e Google Maps; os apps voltados à mobilidade urbana Uber e Moovit; e o app de turismo TripAdvisor. Esses apps vão do cenário global para o local.
Por outro lado, os apps locais são aqueles desenvolvidos para resolver problemas específicos de um território. A partir disso, identificamos a customização territorial dos apps. A customização territorial dos apps pode ser definida como a personalização de apps conforme a problemática que determinado território apresenta, por meio da criação de redes (ou de territórios-rede) com o objetivo de auxiliar na gestão destes problemas. Da mesma forma que os apps globais, os apps locais também podem se disseminar por outros territórios com problemas semelhantes a aqueles que incitaram a criação do app - ou seja, vão do local para o global. Porém, sua criação está associada a características territoriais específicas, como uma rede de colaboração ou a existência de infraestruturas necessárias para o funcionamento do app. Portanto, os apps locais são customizados territorialmente segundo deficiências identificadas naquele território.
Os aplicativos móveis, especialmente os apps locais, apresentam também uma territorialidade. Segundo Storper (1994), uma atividade é territorializada quando sua efetivação depende da sua localização, ou seja, necessita de características específicas que não estão presentes em todos os territórios, e que também não podem ser facilmente copiadas por outros. Por isso, as inovações tecnológicas, neste caso os aplicativos móveis, estão condicionados às características territoriais onde estão inseridos. Portanto, a territorialidade é, na verdade, uma condição necessária para a customização territorial dos apps. A territorialidade dos apps também se expressa pelos fluxos de informações gerados, que levam a criação de territórios-rede.
A ideia exposta aqui é que as TIC, especialmente através dos smartphones, reconfiguram a vida urbana. Suas funcionalidades, com destaque para os apps, são agentes de transformação do meio e das relações territoriais (Dallabona-Fariniuk & Firmino, 2018). Isso acontece mediante um processo de coconstrução entre território e tecnologia, onde a tecnologia modifica o território, mas o território condiciona suas características. É isso que chamamos de customização territorial: a conversão de atributos locais em tecnologia. Também exploramos aqui as transformações territoriais resultantes desta customização, em relação à apropriação, permanência, valorização, e à própria delimitação de novos territórios. Por isso, o território é convertido em uma tecnologia de mediação social, uma vez que os novos territórios delimitados se tornam a causa, e não a consequência, desta mediação.
Como forma de exemplificar o conceito de customização territorial e de territorialidade da tecnologia, mais especificamente dos aplicativos móveis, faremos uma análise comparativa entre dois apps: AlertaBlu (Blumenau/SC) e Onde Tem Tiroteio - OTT (Rio de Janeiro/RJ). Os dois são apps locais que foram criados com o objetivo de facilitar a comunicação em situações de risco para a população: no caso do AlertaBlu, as enchentes e deslizamentos; no caso do OTT, a violência urbana. O caso do OTT, também é um exemplo de app local que foi para um contexto mais amplo, sendo expandido para o estado de São Paulo. Ambos são exemplos da utilização da tecnologia como meio para a gestão de problemas no contexto urbano.
AlertaBlu (AB) - Blumenau/SC
Localizada no estado de Santa Catarina, Blumenau é a principal cidade da mesorregião do Vale do Itajaí. Sua estimativa populacional em 2018 era de mais de 350 mil habitantes (IBGE, 2018), o que a torna também a cidade mais populosa da região. A história da cidade iniciou-se no ano de 1850, quando os primeiros imigrantes alemães chegaram através do Rio Itajaí-Açu. Por isso, a ocupação da região foi condicionada pelo acesso ao Rio como forma de transporte e de fonte de água e energia, desenvolvendo-se primeiramente entre a foz do Ribeirão Garcia e do Ribeirão da Velha - áreas localizadas no leito de inundação do Rio Itajaí-Açu (Siebert, 2001). A história da cidade confunde-se com a história das enchentes, que tem seu primeiro registro em 1852. Desde o início da colonização até 2011, registraram-se 66 desastres, considerando apenas as ocorrências relacionadas às enchentes (Mattedi et al., 2018).
Os desastres socioambientais configuram uma das principais condicionantes do desenvolvimento urbano em Blumenau. As causas dos desastres estão diretamente ligadas à forma de ocupação da cidade, que se deu inicialmente em áreas vulneráveis à inundação do rio. Como tentativa de evitar as enchentes enfrentadas pela população desde o início da colonização, a malha urbana expandiu-se para o alto dos morros (Siebert, 2001). Porém, mesmo com a expansão direcionada para áreas mais altas, as áreas inundáveis continuaram a crescer. Este novo modelo de ocupação agravou o problema dos desastres, pois a população passou a ser afetada também pelo deslizamento das encostas ocupadas. Como consequência, o Desastre de 2008 foi a maior ocorrência do efeito combinado entre enchente e deslizamento, onde foram registradas 24 mortes, 22 mil pessoas desabrigadas e desalojadas, e 103 mil pessoas atingidas em 87 áreas de risco em Blumenau e região (Ludwig, 2017).
Neste cenário, a Secretaria de Gestão Governamental de Blumenau criou, em 2015, o primeiro app municipal para desastres em Santa Catarina: o AlertaBlu. O app é uma interface para smartphones do Sistema de Monitoramento e Alerta de Eventos Extremos de Blumenau, e tem como objetivo preparar a população para eventuais desastres. Ele mostra um compilado de informações de interesse da população em relação a eventuais desastres, como: previsão do tempo, nível do rio, situação e localização dos abrigos, cotas de inundação em que determinadas ruas são atingidas, probabilidade de deslizamento de terra por região, etc. (Figura 4). Além da interface do app, o AlertaBlu também possui um website que contém as mesmas informações disponíveis no app e gera mapas que espacializam as informações de chuva e deslizamentos (Figura 5). A principal vantagem do app sobre o website, é que nele é possível criar um perfil e salvar lugares de interesse, sobre os quais o usuário receberá notificações em caso de risco (Ludwig, 2017).
O aplicativo possui mais de 50 mil instalações na Google Play, loja de apps do Google/Android. Não há informações públicas sobre de onde vem estas instalações, porém, presume-se que a maioria dos usuários seja morador de Blumenau. Desta forma, este número corresponde a cerca de 14% dos habitantes da cidade. A média de avaliação do aplicativo é de 1,7 na App Store (Apple) e 4,4 na Google Play (Android), ambos numa escala de 1 a 5. De maneira geral, as avaliações dos usuários são positivas nos dois primeiros anos do app (2015 e 2016), as quais salientam a eficiência, a importância e a utilidade do aplicativo e parabenizam a prefeitura pela iniciativa. Já os comentários mais recentes (2017, 2018 e 2019) relatam problemas de funcionamento, como o atraso dos alertas ou o excesso deles. A Tabela 1 faz uma comparação das informações técnicas disponíveis publicamente nas lojas de apps Google Play e App Store.
O AlertaBlu depende da existência de uma infraestrutura externa de monitoramento, responsável por captar informações em tempo real. A gestão destes dados é feita por uma equipe de meteorologistas, que coleta os dados em toda a cidade através de uma rede de estações meteorológicas e pluviométricas, e repassa as informações da forma mais correta possível ("AlertaBlu - Prefeitura de Blumenau", 2018). O sistema também apresenta integração de dados com o Centro de Operação do Sistema de Alerta da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí-Açu (CEOPS) da Universidade Regional de Blumenau (FURB). O CEOPS monitora o nível do Rio Itajaí-Açu através de uma câmera e de uma régua localizada no rio, e o AlertaBlu disponibiliza estes dados. Além do CEOPS, o sistema é integrado com os dados das barragens de Taió e Ituporanga, disponibilizados pela Prefeitura de Rio do Sul. Portanto, o AlertaBlu reúne informações de infraestruturas já existentes por meio de uma integração em nível municipal e regional (Ludwig, 2017).
No caso de Blumenau, a customização territorial aconteceu a partir da identificação de um problema - a dificuldade de comunicação entre a Defesa Civil e a população em um desastre. Desta forma, utilizou-se como base uma tecnologia existente e com uso consolidado por grande parte da população - o smartphone - introduzindo neste a função de alertar os usuários sobre os territórios seguros e inseguros em caso de desastres. O AlertaBlu é o resultado desta customização territorial. Já a territorialidade, neste caso, vem primeiramente da problemática dos desastres: não faria sentido a sua existência em uma cidade que não sofre com enchentes, deslizamentos, ou outro tipo de desastres socioambientais. Em segundo lugar, vem das infraestruturas físicas necessárias para o seu funcionamento: o app não funcionaria da mesma maneira em um território que não possui tais infraestruturas de monitoramento.
O AlertaBlu tornou-se uma ferramenta de mediação social. Ao indicar as áreas de risco (áreas suscetíveis a deslizamentos, ruas alagáveis) e as áreas alternativas a esse risco (abrigos temporários, por exemplo), ele está dividindo a cidade em territórios seguros e territórios inseguros. Segundo Mattedi (2017, p. 277) “um desastre constitui a dissolução da rede sociotécnica que associa simbólica e materialmente o mundo social ao mundo natural”. Desta forma, o AlertaBlu constitui um elemento de mediação que recompõe a rede sociotécnica, através dos fluxos de informação criados pelo app, que por sua vez formam novos territórios-rede.
Onde Tem Tiroteio (OTT) - Rio de Janeiro/RJ
O Rio de Janeiro é um dos principais centros urbanos do Brasil. Segundo censo do IBGE (2010), sua região metropolitana abriga cerca de 11,7 milhões de pessoas, sendo 6,3 milhões somente na cidade do Rio de Janeiro. Já foi conhecida como “Cidade da Morte” ou “Porto Sujo” no início do século XX, devido aos seus problemas de violência e de saneamento. Por causa disso, o prefeito da época empreendeu um projeto de reurbanização inspirado nos planos de Haussmann para Paris. O projeto ficou conhecido como “Bota-abaixo”, e tinha como objetivo sanear, urbanizar e embelezar a cidade. Devido às evacuações realizadas nessa época, os moradores começaram a ocupar pântanos e encostas - espaços com boa localização, mas não incorporados ao mercado de terras (Meirelles & Athayde, 2014). E assim as favelas começaram a surgir, e hoje abrigam cerca de 14,9% da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (IBGE, 2010).
A violência urbana é um dos problemas mais graves do Rio de Janeiro. Este problema não é recente, mas vem de anos de um processo de urbanização desigual. A segregação urbana decorrente deste processo gera territórios ocupados ilegalmente, onde há tanto ilegalidade urbanística quanto ilegalidade na resolução de conflitos (Maricato, 2003). Estes territórios tornam-se focos de criminalidade localizados fora do controle estatal. Como consequência, os habitantes destes territórios são excluídos da proteção do Estado, enquadrando-se em formas de governança alternativa, que frequentemente utilizam a violência como demonstração de poder (Moulin & Tabak, 2014). Os eventos que manifestam a violência urbana geram sociedades baseadas na cultura do medo, além de interferirem na dinâmica das cidades.
O app Onde Tem Tiroteio (OTT) foi criado em 2016 como uma alternativa aos problemas de violência urbana no Rio de Janeiro. Segundo descrição do app, o seu objetivo é alertar a população dos locais onde são ouvidos barulhos de tiros, e desta forma retirar os cidadãos das rotas de perigo (OTT-Brasil, 2018). O app teve origem em uma página de mesmo nome no Facebook, criada de forma voluntária. A ideia de criar a página veio de uma reportagem sobre uma vítima de bala perdida em uma comunidade do Rio de Janeiro. Rapidamente, os alertas de tiroteio se espalharam para outras redes sociais, como Twitter, WhatsApp e Instagram, além da criação de um website e do app (Estadão, 2017). A equipe do OTT estima que mais de 4,7 milhões de pessoas já foram atingidas com os informes (OTT-Brasil, 2018). Hoje o app está disponível no estado do Rio de Janeiro, sendo implantado também no estado de São Paulo e recentemente (abril/2019) no restante do Brasil.
O app pressupõe uma forma de segurança feita do cidadão para o cidadão, onde consequentemente a participação do usuário é fundamental. Assim, a informação de um local onde está acontecendo algum tiroteio é recebida através do app (ou das demais redes sociais), verificada pela equipe operacional através de uma rede de informantes em toda a cidade, e repassada para a população - tudo em um curto espaço de tempo (OTT-Brasil, 2018; Estadão, 2017). Os alertas permanecem no app durante 24h e são especializados em um mapa com base no Google Maps (Figura 6). O app também utiliza o Google Data Studio para gerar relatórios comparativos mostrando as regiões com maior número de ocorrências no dia corrente, dia anterior, mês vigente, mês anterior e no ano inteiro, além de um relatório geral que compara 2017 com 2018 (Figura7). Como os alertas são baseados em uma rede de informantes, o app não necessita de uma grande infraestrutura externa para funcionar.
A equipe do OTT criou também uma versão light do aplicativo, disponível apenas para Android. Esta versão requer uma versão anterior do Android para seu funcionamento. Porém, quanto ao tamanho do app, não há muita diferença: o OTT tradicional tem 6,2Mb enquanto o light possui 6,1Mb. Os dois aplicativos juntos somam mais de 510.000 instalações na Google Play. Sua média de avaliação é de 3,7/5 na App Store e 4,2/5 na Google Play (em ambas as versões). A App Store não disponibiliza de forma pública a quantidade de instalações do app, porém, pelo número de avaliações (1.618 na Google Play contra 10 na App Store), presume-se que o aplicativo é mais utilizado por usuários de Android. Sob uma ótica geral, os usuários relatam em seus comentários a importância do app, mostrando que o utilizam de forma rotineira. Também são encontrados comentários relatando problemas do app, assim como sugestões de melhorias. A Tabela 2 mostra um comparativo entre as informações técnicas disponíveis na App Store e Google Play.
O fator que impulsionou a customização territorial, no contexto do Rio de Janeiro, foi a violência urbana. O OTT surgiu como um manifesto da população pela segurança pública. Neste caso, a customização proporciona a interação dos usuários através da criação de uma rede colaborativa, que tem como base a confiança da população nas informações do app. Expressa também uma forma de desenvolvimento “de baixo para cima”, onde a sociedade tem maior autonomia na resolução de seus problemas. O OTT também é um exemplo de app que surgiu no contexto local e foi para o global, a partir de sua expansão para o estado de São Paulo. Desta forma, a territorialidade do OTT em relação à problemática vem de um problema mais comum aos grandes centros urbanos: a violência. Porém, esta também se expressa através da rede de colaboração necessária para o seu funcionamento.
Assim como o AlertaBlu, o OTT também se tornou uma importante ferramenta de mediação social. O fluxo de informações promovido pelo app gera territórios-rede, identificando-os como seguros ou inseguros. Neste caso, a mediação social apresenta um caráter mais efêmero, pois os territórios demarcados somente são considerados territórios nas 24 horas em que o alerta permanece no app. Tendo isso em vista, os relatórios gerados pelo app também delimitam territórios, estes mais definitivos do que os anteriores, pois sinalizam os locais em que acontecem tiroteios com maior frequência.
Conclusão
Os dois apps analisados possuem diversas semelhanças e diferenças entre si. Por um lado, ambos expressam uma forma de gestão dos problemas do território em que se inserem através da tecnologia. Por outro lado, enquanto um deles representa a integração de várias infraestruturas físicas previamente existentes; o outro é baseado somente em uma rede de colaboração, tendo como base a confiança mútua entre os usuários. Outra diferença está na iniciativa de criação do app. Enquanto o OTT foi uma iniciativa de pessoas comuns para um problema não resolvido pelo Estado, o AlertaBlu foi uma criação que partiu do poder governamental. Isso se explica justamente pela infraestrutura necessária para o funcionamento de cada um deles. Como o AlertaBlu necessita de uma infraestrutura física, necessita também de maior investimento. Já o OTT utiliza uma estrutura existente e de fácil acesso de maior parte da população.
Retomando as perguntas feitas anteriormente, formulamos um quadro relacionado questões envolvendo os dois apps (Tabela 3):
Quanto ao interesse dos usuários em relação aos dois apps também há semelhanças e diferenças. Para tentar mensurar este interesse, foi elaborado um gráfico a partir do Google Trends, onde os termos “alertablu” e “onde tem tiroteio” são comparados com relação ao interesse de pesquisa dos usuários na web (Figura 8). O recorte temporal de comparação é de julho de 2015, quando foi criado o AlertaBlu, até junho de 2019. Segundo o gráfico, o termo “alertablu” tem uma maior média de interesse do que o “onde tem tiroteio”. Este termo também mostra dois picos de interesse: um no dia 24 de outubro de 2015, e outro dia 10 de junho de 2017. Estas duas datas são próximas das duas últimas ocorrências registradas em Blumenau pelo Sistema de Monitoramento. Isso mostra que o interesse relativo a este app é intermitente. Além destes dois picos, a média dos dois termos se mantém parecida na maior parte do tempo.
O interesse dos usuários também está relacionado ao território. A Figura 9 mostra os estados brasileiros onde predominam as pesquisas de cada um dos termos analisados. O primeiro mapa demonstra um comparativo entre os dois termos, e os dois seguintes a proporção de cada um dos termos separadamente. O interesse sobre o AlertaBlu predomina em mais estados do que o OTT (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Goiás). Porém, a intensidade de buscas é muito maior no estado de Santa Catarina. O mesmo acontece com o OTT: a maior parte das buscas vem do estado do Rio de Janeiro. Percebe-se também que o interesse por cada um dos apps vem de estados mais próximos de onde eles foram criados. Isso demonstra que a proximidade geográfica pode ser um fator que ajuda na popularidade dos apps em outros territórios.
Existem ainda outras diferenças a serem destacadas. Uma delas é o tempo de territorialização de cada um dos apps. Os territórios demarcados pelo OTT têm um caráter mais efêmero do que aqueles demarcados pelo AlertaBlu. Isso acontece porque os territórios seguros ou inseguros relativos a desastres estão associados também a características geográficas, como proximidade aos rios ou encostas, e por isso são mais definitivos (a dimensão simbólica dos territórios, neste caso, vem da apropriação ou não destes locais). Já os territórios demarcados pelos alertas do OTT duram apenas 24h, com uma duração maior para aqueles delimitados pelos relatórios. Outra diferença diz respeito à utilização dos apps: enquanto o OTT tem uma utilização contínua (é utilizado todos os dias), o uso do AlertaBlu é eventual (apenas quando há um desastre).
Sobre os territórios demarcados, ambos os apps definem territórios relativos à segurança. No caso do OTT, o usuário é parte fundamental para a constituição destes territórios, pois contribui com as informações necessárias. Já o usuário do AlertaBlu é passivo, somente recebe as informações compiladas por funcionários do Estado. Nos dois casos, os fluxos de informações gerados pelos apps criam territórios-rede, estes com maior ligação à concepção simbólica de território. Percebemos também dois tipos de territorialidade em relação aos apps. Por um lado, existe a territorialidade referente à problemática que impulsionou a customização territorial dos apps: os desastres e a violência urbana. Por outro lado, há a territorialidade relativa ao funcionamento e efetivação dos apps: no caso do AlertaBlu, existência de uma infraestrutura física de monitoramento; e no caso do OTT, a formação de uma rede colaborativa de pessoas. Portanto, a customização territorial dos apps depende destas territorialidades, tanto para o seu desenvolvimento, quanto para sua efetivação.
Concluímos que território é uma tecnologia de mediação social. Esta mediação acontece quando é possível distinguir se estamos “dentro” ou “fora” de um território. Quando pensado em escala macro, o território geralmente terá um caráter mais material, baseado na geografia física. É o caso da delimitação territorial das cidades, estados, países, etc. Já quando concebido em escala micro, pode ter um caráter mais simbólico, pois diz respeito às relações das pessoas com o território. Portanto, os desastres e os tiroteios são eventos que dissolvem a mediação social, pois abalam as fronteiras simbólicas dos territórios onde acontecem: quem vive nestes locais pode, normalmente, considerá-los como territórios seguros, percepção que mudará quando houver algum tiroteio ou desastre. Neste sentido, o AlertaBlu e o OTT são ferramentas que recompõem a mediação social, por sinalizarem onde estão os territórios seguros ou inseguros (Figura 10).
Apontamentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
29 Mar 2019 -
Aceito
21 Jul 2019