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Desenvolvimento da agricultura familiar desde o pentágono de capitais: estudo de caso dos assentamentos Bom Jardim e Facão de Cáceres, Mato Grosso

Development of family farming from the pentagon of capitals: a case study of the Bom Jardim and Facão settlements in Cáceres, Mato Grosso

Desarrollo de la agricultura familiar a partir del pentágono de capitales: estudio de caso de los asentamientos Bom Jardim y Facão, en Cáceres, Mato Grosso

Resumo

Debater o desenvolvimento da agricultura familiar demanda a interpretação de múltiplos contextos. Propôs-se analisar o pentágono de capitais (humano, social, físico, financeiro e natural) dos agricultores familiares inseridos nos assentamentos de Bom Jardim e Facão, localizado no município de Cáceres, Mato Grosso, partindo da concepção do desenvolvimento rural da agricultura familiar assentada. Para isso, se realizaram entrevistas semiestruturadas com 114 agricultores dos assentamentos, no qual os dados foram analisados desde o pentágono de capitais (humano, social, físico, financeiro e natural). Identificaram-se adversidades multidimensionais nos cinco capitais, antagônicas ao desenvolvimento da agricultura familiar. A superação da estagnação dos assentamentos requer a organização de um conjunto de políticas específicas, e/ou facilitar o acesso aos programas existentes, reforçando o acúmulo de capitais da agricultura familiar para então alcançar o desenvolvimento rural.

Palavras-chave:
Assentamentos rurais; desenvolvimento rural; políticas públicas

Abstract

Debating the development of family farming demands the interpretation of multiple contexts. It was proposed to analyze the pentagon of capitals (human, social, physical, financial and natural) of family farmers inserted in the settlements of Bom Jardim and Facão, located in the municipality of Cáceres, Mato Grosso, based on the conception of rural development of settled family farming. For this, semi-structured interviews were conducted with 114 farmers from the settlements, in which the data were analyzed from the pentagon of capitals (human, social, physical, financial and natural). Multidimensional adversities were identified in the five capitals, antagonistic to the development of family farming. Overcoming the stagnation of settlements requires the organization of a set of specific policies, and/or facilitating access to existing programs, reinforcing the accumulation of capital from family farming to then achieve rural development.

Keywords:
Rural settlements; rural development; public policy

Resumen

Debatir el desarrollo de la agricultura familiar exige la interpretación de múltiples contextos. Se propuso analizar el pentágono de capitales (humano, social, físico, financiero y natural) de los agricultores familiares insertos en los asentamientos de Bom Jardim y Facão, ubicados en el municipio de Cáceres, Mato Grosso, a partir de la concepción del desarrollo rural de la agricultura familiar asentada. Para eso, se realizaron entrevistas semiestructuradas a 114 agricultores de los asentamientos, en las que los datos se analizaron desde el pentágono de capitales (humano, social, físico, financiero y natural). Se identificaron adversidades multidimensionales en los cinco capitales, antagónicas al desarrollo de la agricultura familiar. La superación del estancamiento de los asentamientos requiere la organización de un conjunto de políticas específicas, y/o facilitar el acceso a los programas existentes, reforzando la acumulación de capital de la agricultura familiar para entonces alcanzar el desarrollo rural.

Palabras-clave:
Asentamientos rurales; desarrollo rural; políticas públicas

Introdução

Os estudos teóricos ao redor da agricultura familiar indicam que se trata de uma forma de organização social que se sustenta em pequenas extensões de área, emprego de mão de obra do núcleo familiar, produção de subsistência e/ou comercial e, é responsável pela atividade produtiva e de suas inter-relações econômicas e sociais (Wanderley, 1999WANDERLEY, M. N. B. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: TEDESCO, J. C. (Org.). Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: EDIUPF, 1999. p.23-56.). Conforme Lamarche (1993)LAMARCHE, H. Introdução geral. In: LAMARCHE, Hughes (Coord.). A agricultura familiar. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993., o estabelecimento produtivo e o trabalho estão intrinsecamente relacionados à família. Essa dinâmica é heterogênea, ou seja, a formação social da agricultura familiar é diversa enquanto a área, mão de obra, tecnologia, renda, mercado etc.

Nos estabelecimentos familiares preponderam sistemas produtivos que combinam distintas atividades agrícolas, pecuárias, extrativismo etc. (Brito; Zamberlan, 2020BRITO, A. R.; ZAMBERLAN, C. O. Capital social e desenvolvimento endógeno no assentamento Itamarati em Ponta Porã-MS. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 8, n. 3, p. 63-88, set./dez. 2020.). Por outro lado, também reúne complexos encadeamentos com o meio ao seu redor, desde as relações humanas, sociais, econômicas e com o meio ambiente, quer dizer, formas complexas que se entrelaçam com os princípios do desenvolvimento rural.

Da compreensão teórica à jurídica, o Estado delimitou o conceito de agricultura familiar: área não superior a quatro módulos fiscais (valor, em hectares, definido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA - à cada município); gestão constituída pelo núcleo familiar; predomínio da mão de obra familiar; renda econômica composta por um percentual mínimo das atividades agropecuárias (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 25 jul. 2006. Seção 1, p. 1.). O marco normativo foi crucial para o reconhecimento da agricultura familiar e desenho de políticas públicas específicas, entretanto, as delimitações plasmadas na legislação não acompanham a realidade do campo, já que ainda parece um sonho a consolidação do desenvolvimento rural da agricultura familiar.

Debater o desenvolvimento rural requer a interpretação de múltiplos contextos que vão desde a produção primária, até o convívio socioambiental. Conforme Vassallo (2001)VASSALLO, M. A. Desarrollo rural: teorías, enfoques y problemas nacionales. Montevideo: FAGRO, 2001., o desenvolvimento rural concilia aspectos agroeconômicos de produção e produtividade, representação política, organização da produção e comercialização, inserção e participação social e cultural, educação e capacitação, saúde rural, habitação, juventude, sustentabilidade, entre outros. Os aspectos destacados por Vassallo se associam à acumulação de capital (Bresser-Pereira, 2005BRESSER-PEREIRA, L. C. Desenvolvimento Como Missão. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 90-96, abr./jun. 2005.), entre eles o capital humano, social, físico, financeiro e natural (Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.).

Entende-se por capital humano a formação escolar, os conhecimentos e habilidades adquiridos no tempo, capacidade de trabalho, saúde etc. vinculadas às condições (em que se encontram) e destrezas (no desenvolvimento de suas atribuições) do núcleo familiar (Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.). O acúmulo do capital humano interfere positivamente na remuneração, na produção, na economia, no social etc., em que a educação é um meio para alcançar o desenvolvimento (Sen, 2010SEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.; Nunes et al., 2020NUNES, E. M.; SILVA, V. M.; CLAUDINO DE SÁ, V. Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER): formação e conhecimentos para a agricultura familiar do Rio Grande do Norte Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 857-881, 2020.).

De acordo com Putnam (1996)PUTNAM, R. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996., o capital social é constituído pelas relações de confiança e solidariedade que contribuem na cooperação e benefício interpessoais, criando uma reciprocidade coletiva. Esse relacionamento deriva ações de apoio mútuo, ademais de sinergias coletivas coordenadas (capacidade de organização) em um ambiente de intercâmbio material e simbólico (Brito; Zamberlan, 2020BRITO, A. R.; ZAMBERLAN, C. O. Capital social e desenvolvimento endógeno no assentamento Itamarati em Ponta Porã-MS. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 8, n. 3, p. 63-88, set./dez. 2020.; Santos et al., 2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020.).

No capital físico se considera os bens materiais, as instalações e construções, implementos e maquinários agrícolas etc., oriundos da atividade econômica do estabelecimento rural, além dos insumos adotados pelos agricultores no processo produtivo (Bebbington, 1999BEBBINGTON, A. Capitals and capabilities: a framework for analyzing peasant viability, rural livelihoods and poverty. World Development, Philadelphia, v. 27, n. 12, p. 2021-2044, dez. 1999.; Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.).

Para Bebbington (1999)BEBBINGTON, A. Capitals and capabilities: a framework for analyzing peasant viability, rural livelihoods and poverty. World Development, Philadelphia, v. 27, n. 12, p. 2021-2044, dez. 1999. e Ellis (2000)ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000., o capital financeiro se refere à capacidade financeira, crédito financeiro, poupança, ativos materiais com liquidez, resultados operacionais etc. Além disso, se inclui a possibilidade de acesso a políticas creditícias, ou até mesmo a contratação de empréstimos via instituições bancárias (Delgado, 2020DELGADO, G. C. Questão agrária e capital financeiro na agricultura brasileira. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, v. 4, n. 42, p. 286-305, dez. 2020.).

Por fim, o capital natural é representado pelos recursos naturais, também compreendido como as bondades da natureza (Scheuer et al., 2021SCHEUER, J. M. et al. Sostenibilidad de las prácticas agropecuarias de la agricultura familiar productora de maíz verde de Cáceres, Brasil. Agroalimentaria, Mérida, v. 27, n. 53, p. 147-166, 2021.). Nesse ínterim, se destacam os aspectos relacionados à terra, água, biodiversidade e recursos renováveis e não-renováveis, em quantidade e qualidade disponíveis no estabelecimento ou passíveis de acesso pelas famílias (Bebbington, 1999BEBBINGTON, A. Capitals and capabilities: a framework for analyzing peasant viability, rural livelihoods and poverty. World Development, Philadelphia, v. 27, n. 12, p. 2021-2044, dez. 1999.; Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.).

Sublinha-se que a debilidade em um dos presentes capitais ocasiona vulnerabilidades em seu conjunto, traduzindo-se em privações no desenvolvimento rural da agricultura familiar. Em situação oposta, o fortalecimento de um dos capitais pode provocar de forma encadeada a consolidação dos demais (Scheuer et al., 2021SCHEUER, J. M. et al. Sostenibilidad de las prácticas agropecuarias de la agricultura familiar productora de maíz verde de Cáceres, Brasil. Agroalimentaria, Mérida, v. 27, n. 53, p. 147-166, 2021.).

A composição do pentágono de capitais é marcada por características peculiares entre a agricultura familiar (área, estrutura, produção, renda, mão de obra, educação etc.), mas que destoam entre si em um universo heterogêneo (Lamarche, 1993LAMARCHE, H. Introdução geral. In: LAMARCHE, Hughes (Coord.). A agricultura familiar. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.; Hein; Silva, 2019HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 394-417, jun./set. 2019.), ainda mais quando nos referimos aos assentados de projetos de reforma agrária.

Conforme Alves et al. (2012ALVES, J.; FIGUEIREDO, A. M. R.; ZAVALA, A. A. Z. (In)Eficiência dos assentamentos rurais em Mato Grosso. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012., p. 9), a reforma agrária não planejada e assistida gera uma “[...] distribuição de terras voltada apenas para a transferência da pobreza do meio urbano para o rural”. Contribui-se, assim, na ampliação de dificuldades de infraestrutura, produção, crédito, assistência, capacitação, êxodo, serviços sociais básicos, entre outros, fatores relacionados ao desenvolvimento rural.

Dessa forma, o objetivo do artigo é analisar o pentágono de capitais (humano, social, físico, financeiro e natural) dos agricultores familiares inseridos nos assentamentos de Bom Jardim e Facão, localizado no município de Cáceres, Mato Grosso, partindo da concepção do desenvolvimento rural da agricultura familiar assentada.

Metodologia

Área de estudo

O município de Cáceres, estado de Mato Grosso, está situado na região sudoeste de planejamento (Mato Grosso, 2020MATO GROSSO (Estado). Base Cartográfica do Estado de Mato Grosso na escala 1.100.000. Cuiabá: Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, 2020. Disponível em: http://geoportal.seplan.mt.gov.br/metadados/srv/por/catalog.search#/home. Acesso em: 19 jun. 2023.
http://geoportal.seplan.mt.gov.br/metada...
), delimitado pelo rio Paraguai, municípios vizinhos e limítrofe com a Bolívia. As vias de acesso ao município se resumem pelas rodovias BR-174 e BR-070, e a cidade de Cáceres está a 215 km da capital Cuiabá (figura 1).

Nas proximidades do perímetro urbano (15 km), em particular pela rodovia BR-070, se encontram os assentamentos de Bom Jardim e Facão, objeto de estudo deste trabalho. O assentamento Bom Jardim foi criado mediante um projeto de assentamento federal pelo INCRA em 2006, contudo, a área foi apossada em 1997, no qual os moradores iniciaram um processo de ocupação na altura do km 10 da rodovia, com posterior desapropriação de uma área de terra pertencente à família Torres Vila Nova (Mato Grosso, 2015MATO GROSSO (Estado). Relatório do Sistema SIPRA: Relatório 0227. Ministério do Desenvolvimento Agrário, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento. Mato Grosso: SIPRA, 2015.).

Bom Jardim está estruturado e organizado, via comunidade, em três furnas: Bom Jardim, São José e Boa Esperança, isso devido às condições geográficas do terreno. A agrupação é formada por 168 famílias, distribuídas em 4.782,47 ha (Mato Grosso, 2015MATO GROSSO (Estado). Relatório do Sistema SIPRA: Relatório 0227. Ministério do Desenvolvimento Agrário, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento. Mato Grosso: SIPRA, 2015.), e para o estudo se analisou o assentamento em seu conjunto.

Figura 1
Localização do município de Cáceres e dos assentamentos Bom Jardim e Facão (direita/esquerda da BR-070, respectivamente).

O assentamento Facão surgiu por iniciativa do governo do estado de Mato Grosso, gerenciado pela prefeitura municipal de Cáceres, que comprou uma área de 1.639,96 ha em 1988. Foram assentadas 102 famílias, no qual à produção de hortifrutigranjeiros se destinava ao abastecimento da zona urbana de Cáceres (Mato Grosso, 1991MATO GROSSO (Estado). Relatório do Projeto de Assentamento do Facão Estadual. Cáceres: Governo de Estado de Mato Grosso, Prefeitura Municipal de Cáceres, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, 1991.).

Procedimento de investigação

A investigação foi realizada a partir do levantamento prévio de informações estatísticas desde páginas oficiais, complementadas por pesquisas bibliográficas e documentais (Batthyány; Cabrera, 2011BATTHYÁNY, K.; CABRERA, M. Metodología de la investigación en Ciencias Sociales: apuntes para un curso inicial. Montevideo: Udelar, 2011.) que embasaram a parte teórica do estudo (problema e discussão). As palavras-chave de consulta foram agricultura familiar assentada, desenvolvimento rural e capital humano, social, físico, financeiro e natural.

A pesquisa qualitativa (sentido de qualidade, nominal e/ou ordinário (Batthyány; Cabrera, 2011BATTHYÁNY, K.; CABRERA, M. Metodología de la investigación en Ciencias Sociales: apuntes para un curso inicial. Montevideo: Udelar, 2011.)) se concretizou no levantamento de dados primários no primeiro semestre de 2017, no qual se realizou um estudo de caso com a agricultura familiar dos assentamentos Bom Jardim e Facão. Conforme Yin (2009)YIN, R. K. Case study research: design and methods. California: Sage, 2009., esse procedimento permite a problematização de situações concretas focalizando uma unidade de análise - a agricultura familiar dos assentamentos Bom Jardim e Facão.

A técnica de seleção dos atores sociais ocorreu através da amostragem não probabilística intencional, partindo do modelo snowball sampling, estratégia que consiste na seleção propositada dos entrevistados desde outros possíveis participantes (Etikan et al., 2016ETIKAN, I.; ALKASSIM, R.; ABUBAKAR, S. Comparision of snowball sampling and sequential sampling technique. Biometrics and Biostatistics International Journal, Budapeste, v. 3, n. 1, p. 55-56, jan. 2016.), independente de suas características socioeconômicas.

Dessa forma, se realizaram entrevistas semiestruturadas com 76 integrantes do assentamento Bom Jardim, e 38 do assentamento Facão. As perguntas, abertas, condiziam ao pentágono de capitais (humano, social, físico, financeiro e natural) (Quadro 1), proporcionando um contínuo intercâmbio (Lakatos; Marconi, 2017LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2017.) entre a população-alvo e o investigador. Paralelamente, utilizou-se da observação não-participante com o intuito de captar informações não previstas no roteiro (Batthyány; Cabrera, 2011BATTHYÁNY, K.; CABRERA, M. Metodología de la investigación en Ciencias Sociales: apuntes para un curso inicial. Montevideo: Udelar, 2011.).

Quadro 1
Descrição dos capitais selecionados, variáveis e fontes consultadas.

Baseado nos estudos de Ellis (2000)ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000., se aprofunda a discussão ao redor do desenvolvimento da agricultura familiar a partir da plataforma de ativos e/ou estoques de capital, acumulados (ou não) pelas famílias rurais. Analisa-se, dessa forma, o desenvolvimento rural desde o pentágono de capitais: humano, social, físico, financeiro e natural.

Nos instrumentos de análise, os dados coletados foram tabulados em planilhas do Excel, decompostas em campos e as respostas agrupadas por similaridade para a análise, interpretação e compreensão. Posteriormente, foram geradas tabelas que auxiliaram nas apreciações e discussões. As informações qualitativas foram interpretadas através da análise de conteúdo, método que consiste na compreensão, descrição e síntese dos conhecimentos obtidos pela interlocução com a população-alvo (Hecker et al., 2019HECKER, S. et al. How Does Policy Conceptualise Citizen Science? A Qualitative Content Analysis of International Policy Documents. Citizen Science: Theory and Practice, Whitechapel Road, v. 4, n. 1, p. 1-16, dez. 2019.).

Por fim, nas entrevistas se respeitou o livre arbítrio e o anonimato dos agricultores familiares, de acordo com as normas éticas previamente observadas. Ademais, ao longo do artigo se preferiu adotar o gênero neutro para a representação das informações coletadas, quer dizer, não se distinguiu entre agricultor/agricultora, assentado/assentada, entrevistado/entrevistada, assumindo, dessa forma, uma linguagem indiferenciada.

Sublinha-se que o trabalho de campo obteve o deferimento do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), com parecer aprovado sob o número nº. 1.558.158/2016. Os detalhes do projeto de investigação podem ser consultados diretamente na Plataforma Brasil (https://plataformabrasil.saude.gov.br).

Resultados e discussão

Os resultados obtidos e a discussão realizada se encontram em cinco segmentos: capital humano, social, físico, financeiro e natural.

Capital humano

A constituição natural dos assentamentos Bom Jardim e Facão se resume por distintas origens, na maioria alheia ao estado de Mato Grosso (tabela 1).

A ocupação do assentamento Bom Jardim ocorreu anteriormente ao seu projeto de implantação pelo INCRA. Por volta de 1997, 19% dos entrevistados se organizaram ao lado da rodovia federal BR 070, km 10 (aos arredores de Cáceres), e iniciaram o processo de territorialização desse espaço. Ao formalizar-se em 2006, outros 19% compuseram a atual população do assentamento, e o restante migrou para a área em distintas épocas.

No assentamento Facão, 47% dos agricultores entrevistados são pioneiros, ou seja, estão presentes desde o ano de criação em 1988. Paulatinamente se incorporaram novos moradores em busca de oportunidades para sua família, com um ápice entre os anos de 2014 e 2016. Essas novas oportunidades são idealizadas desde uma perspectiva de melhor posição social, de vida, econômica, etc.

Tabela 1
Origem da agricultura familiar dos assentamentos Bom Jardim e Facão.

O perfil dos moradores dos assentamentos se distribui em: (i) 75% se alinham exclusivamente como agricultores familiares (destes, 55% lavradores, 44% essencialmente agricultores e 1% trabalhadores rurais); (ii) 8% funcionários públicos; (iii) 3% em serviços gerais na cidade; aposentado; cabeleireiro; pescador; vigilante, respectivamente; (iv) outros 2% distribuídos de formas distintas como açougueiro, enfermeiro, motorista e autônomo. Essa ocupação de membros da família em distintas atividades é um nítido resultado das dificuldades que enfrentam em seus estabelecimentos, interpretados desde os relatos de suas dificuldades.

Em sequência, a idade média gira em torno dos 40 a 59 anos (45%), com uma tendência de envelhecimento rural, relatado por Aquino et al. (2016)AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016., corroborado pela maior proporção de assentados na faixa dos 60 anos ou mais (36%), que dos 20 a 39 anos (19%). Os entrevistados aposentados permanecem nos seus lotes vivendo maiormente da jubilação, pois a combinação idade/saúde os limitam nas atividades laborais (Lima et al., 2023LIMA, C. P. et al. Análise socioeconômica da agricultura familiar no assentamento Dois Irmãos em Murutinga do Sul (SP). Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 9, n. 5, p. 3409-3427, 2023.). Entre os dois assentamentos, não se observou uma distribuição desigual do perfil etário.

Quanto ao estado civil, 59% são casados, 19% amasiados, 8% viúvos e 7% divorciados e/ou solteiros, respectivamente. Nessa direção, 81% possuem filhos, com uma média familiar de três descendentes. Ao indagá-los sobre o planejamento familiar, comumentemente citaram que não se preocuparam a respeito, dessarte, tão pouco são assistidos por postos de saúde em suas comunidades. Segundo Hein e Silva (2019)HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 394-417, jun./set. 2019., o planejamento é crucial para a definição de estratégias de reprodução familiar e, inclusive, de perpetuação da AF no campo.

Relativo à formação escolar, 64% dos inquiridos não concluíram o ensino fundamental, 11% terminaram o ensino médio, 9% se consideram analfabetos, 8% com formação universitária, 5% finalizaram o ensino fundamental, 2% com ensino médio incompleto e, 1% com ensino superior incompleto. Em Bom Jardim se encontrou os melhores e piores resultados: maior proporção de ensino superior e de analfabetos.

Diante dos dados, se indagou os motivos que levaram a baixa escolaridade. Segundo os assentados, diversas foram as causas, entre elas a falta de oportunidade de frequentar a escola em idade apropriada, desempenho de funções laborais na propriedade de seus pais, bem como o exercício de trabalho externo ao familiar, reduzido número de escolas, muitas vezes distante de suas casas, aliado a inexistência de transporte escolar.

Consultados sobre a capacitação técnica, 90% dos agricultores não realizaram cursos de aperfeiçoamento agropecuário, em particular ao assentamento Facão, que 100% afirmaram que nunca tiveram acesso/apoio para lograr um desenvolvimento de suas habilidades pessoais e laborais.

Uma das consequências do baixo nível de escolaridade e de capacitação levantado pela investigação, se traduz em um fator potencialmente limitante ao desenvolvimento rural e socioeconômico local (Bresser-Pereira, 2005BRESSER-PEREIRA, L. C. Desenvolvimento Como Missão. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 90-96, abr./jun. 2005.), de inserção no mercado de trabalho qualificado e, na perpetuação da cultura agrícola familiar diante da migração dos filhos (Hein; Silva, 2019HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 394-417, jun./set. 2019.). Soma-se nessas causas as dificuldades relativas às políticas públicas e, também, de capital financeiro abreviado (Delgado, 2020DELGADO, G. C. Questão agrária e capital financeiro na agricultura brasileira. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, v. 4, n. 42, p. 286-305, dez. 2020.).

Esse conjunto de variáveis se relaciona com o conceito de desenvolvimento rural, quer dizer, o progresso dos assentados se vê afetado justamente diante das privações de liberdade marcadas por Sen (2010)SEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.. Além disso, a função dos assentamentos vai além do acesso à terra, “[...] mas também com a escola, com educação, posto que ela pode derrubar três cercas: do latifúndio, da ignorância e do capital” (Casallas; Secchi, 2020CASALLAS, Y. M. S.; SECCHI, D. Educação do movimento dos trabalhadores sem-terra: um espaço de resistência à colonialidade e seus mecanismos de poder. Revista Brasileira de Educação do Campo, Tocantinópolis, v. 5, n. 7162, p. 1-24, 2020., p. 10).

A formação escolar e a capacitação técnica, aliada ao tema cultural herdada dos progenitores, foi observado sobre os conhecimentos produtivos, em particular sobre as formas de identificação do tipo de solo para a produção. Para 48% dos entrevistados, os cultivos são realizados desde observações empíricas dos aspectos/cor do solo (terra preta), seguida pela existência de umidade (27%) (características geomorfológicas) e, inclusive, de acordo as fases lunares (Rocha et al., 2022ROCHA, Fabiano. et al. Estrutura socioprodutiva do povoado Kawaiwete e a relação com as bondades da natureza. Revista Geográfica Venezolana, Mérida, v. 63, n. 2, p. 206-218. 2022.).

Destarte, 19% desenvolvem o sistema produtivo a esmo, quer dizer, sem a mínima consideração de alguma técnica, os demais (6%) adotam outros procedimentos. Sublinha-se que 90% dos entrevistados não receberam ou não seguem as recomendações agronômicas para o estabelecimento da produção, quer dizer, há um grave problema enquanto a assistência técnica aos assentados, potencializando as vulnerabilidades socioeconômicas (Aquino et al., 2016AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016.; Nunes et al., 2020NUNES, E. M.; SILVA, V. M.; CLAUDINO DE SÁ, V. Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER): formação e conhecimentos para a agricultura familiar do Rio Grande do Norte Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 857-881, 2020.).

Na direção da baixa assistência técnica, assombrosamente 85% dos inqueridos não utilizam os EPI’s no momento da aplicação dos agroquímicos, e na medida do seu uso, o fazem de maneira rudimentar, já que julgam incômodo colocar os apetrechos de segurança.

Capital social

As estratégias de reprodução social fomentam o desenvolvimento socioeconômico e ambiental da AF (Scheuer et al., 2021SCHEUER, J. M. et al. Sostenibilidad de las prácticas agropecuarias de la agricultura familiar productora de maíz verde de Cáceres, Brasil. Agroalimentaria, Mérida, v. 27, n. 53, p. 147-166, 2021.). Diante dessas potencialidades, 63% relataram que participam e/ou possuem vínculos com alguma organização, gerando um capital social de tipo comunitário, resultado das interações entre os membros da organização (Woolcock, 1998WOOLCOCK, M. Social capital and economic development: toward a theoretical synthesis and policy framework. Theory and Society, Dordrecht, v. 27, n. 2, p. 151-208, 1998.). No caso de estudo, esse laço ocorre com plena participação nas atividades (62%), em algumas atividades (24%) e, esporadicamente (15%).

O principal argumento para os assentados se organizarem ou formar parte de alguma organização social é de cunho coletivo (68%), e a outra parte econômico. As principais vantagens no estabelecimento de vínculos sociais se resumem na obtenção de maiores benefícios ao assentado (42%), acesso a informações (33%), facilidades para a obtenção de financiamentos (12%), forma de representação da comunidade (6%), aquisição e venda de produtos agropecuários (3%), entre outras particularidades do cotidiano (5%).

As relações de confiança entre os entrevistados com as organizações sociais não se apresentam da melhor forma possível, resultado que compromete a integridade do capital social (Putnam, 1996PUTNAM, R. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.). Na indagação anterior das vantagens, 62% asseveraram que as presentes associações não possuem nenhuma relevância, e os motivos para essa negativa se relacionam com a desconfiança e insatisfação com os gestores, não presta serviços relevantes, falta de liderança local proativa, manutenção de benefícios individuais sobre os coletivos (Brito; Zamberlan, 2020BRITO, A. R.; ZAMBERLAN, C. O. Capital social e desenvolvimento endógeno no assentamento Itamarati em Ponta Porã-MS. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 8, n. 3, p. 63-88, set./dez. 2020.) etc.

A constatação levantada vai no sentido oposto do princípio do capital social (Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.). As organizações de agricultores, por exemplo, cumprem um papel “tampão” diante da inanição do Estado nos temas de educação, assistência técnica, atividades culturais, entre outras características do pentágono de capitais. Santos et al. (2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020., p. 307) relataram que uma cooperativa dos produtores rurais atua nas carências e demandas resultantes de seus cooperados diante a “[...] resolução de problemas sociais complexos [...]”.

Apontado anteriormente como informações/financiamentos, as organizações sociais locais de alguma maneira estimularam os inquiridos ao acesso às políticas públicas, neste caso no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA - atual Programa Alimenta Brasil), porém não é expressivo.

A sinergia entre as organizações e os agricultores familiares propiciam a formação de uma unidade social, corroborando com o desenvolvimento rural (Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.). Além do mais, o acesso às políticas públicas facilita a formação de capital social (Santos et al., 2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020.) do tipo social institucional, em que se estreitam os laços entre os beneficiários das políticas e o Estado (Woolcock, 1998WOOLCOCK, M. Social capital and economic development: toward a theoretical synthesis and policy framework. Theory and Society, Dordrecht, v. 27, n. 2, p. 151-208, 1998.).

Em relação a obtenção de informações, 49% sublinharam a importância das casas agropecuárias da região, que socializam diversos dados relativos à agropecuária. Também se constatou outras formas, como a TV, rádio ou jornal (22%), por vizinhos (17%), internet (6%), Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (EMPAER - 3%), outros (3%), meios apontados por distintos investigadores (Scheuer et al., 2022SCHEUER, J. M.; TORTORELLI, H. S.; NEVES, S. M. A. S. Caracterização socioeconômica da agricultura familiar da Associação de Hortifrutigranjeiros de Mirassol d’Oeste, Mato Grosso. Campo-Território: revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 17, n. 48, p. 236-257, 2022.).

A importância da vizinhança entre os assentados requer uma apreciação pontual. Além do compartilhamento de informações, conhecimentos e técnicas, se levantou uma cooperação entre os agricultores familiares no quesito ao acesso à água. Os estabelecimentos com boa disponibilidade hídrica a armazenam, e a distribuem aos demais por meio de um sistema de encanamento que funciona através da gravidade.

Essa sinergia entre os agricultores familiares é um bom indicativo de construção de capital social, fortalecido pelas ações de reciprocidade mútua, confiança, empatia ao redor de um problema e solução coletiva, propiciando uma melhor qualidade de vida entre os indivíduos (Brito; Zamberlan, 2020BRITO, A. R.; ZAMBERLAN, C. O. Capital social e desenvolvimento endógeno no assentamento Itamarati em Ponta Porã-MS. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, v. 8, n. 3, p. 63-88, set./dez. 2020.; Breda et al., 2022BREDA, A. S.; COLARES-SANTOS, L.; PEREIRA, J. A. Capital social na agricultura familiar: análise das relações entre os produtores rurais. Revista em Agronegócio e Meio Ambiente, Maringá, v. 15, n. 1, p. 31-40, 2022.).

Em continuação, se explorou o tema de filhos e mão de obra, conceitualmente intrínsecos, porém, trincado na prática. Quanto aos descendentes, a questão cultural exerce influência, pois os progenitores foram criados na roça preservando e sustentando a filosofia de que quanto mais filhos tiver, maior a disponibilidade de mão de obra. Embora 81% dos entrevistados afirmaram ter filhos, em apenas 20% dos estabelecimentos se observou a sua presença nas atividades familiares, em geral, de um (1) jovem por estabelecimento.

A principal explicação se encontra no “êxodo” dos jovens com idade igual/superior aos 18 anos, que migram às cidades em busca de melhores oportunidades de vida comparada a dos seus pais (Aquino et al., 2016AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016.), uma vez que muitos estão empregados em organismos públicos e/ou privados, além de possuírem negócios próprios. Outra parcela se encontra em processo de formação acadêmica (47%), um contraponto em relação aos seus progenitores.

O êxodo dos jovens se relaciona de certa forma com o planejamento familiar, que por um lado é influenciado pela carência de estratégias e ações familiares que dão continuidade e reprodução familiar (Hein; Silva, 2019HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 394-417, jun./set. 2019.), por outro lado, os jovens entendem que as duras penas de seus pais não justificam uma vida sem maiores perspectivas no campo. Cruz et al. (2020)CRUZ, A. C.; HECK, C. R.; CARRARA, A. F. Os Desafios Socioeconômicos da Agricultura Familiar: Um estudo para o Assentamento Primavera em Rondonópolis. Economia Ensaios, Uberlândia, v. 35, n. 2, p. 160-179, 2020. discutiram que os juvenis possuem basicamente dois caminhos: natural, de manter-se no campo como agricultor e/ou trabalhador rural; desbravador, em que não vislumbra seu futuro na roça e partem para a cidade.

Por mais que haja uma migração dos filhos em busca de novas esperanças, a mão de obra nos estabelecimentos dos assentados é predominantemente familiar. Conforme o levantamento, em apenas 15% das propriedades se constatou a contratação de mão de obra (no total, 33 trabalhadores), 47% como diarista, 41% contratada e 12% fixa.

Capital físico

As casas dos assentados são, em geral, de alvenaria (46%), alvenaria e madeira (20%) e madeira (34%), e em todas as propriedades visitas se observou a existência de rede elétrica. De acordo com os entrevistados, a eletricidade chegou para todos os moradores a partir do programa Luz Para Todos do governo federal, facilitando comodidades cotidianas (geladeiras, freezers, TVs) e produtivas (bomba d’água, moedores elétricos, ferramentas).

Para o desenvolvimento do sistema produtivo, os agricultores familiares de ambos os assentamentos contam com a seguinte infraestrutura: cercas (99%), para a delimitação da propriedade e resguardo dos animais; chiqueiro (61%), destinado à criação de suínos; curral (60%), como forma de confinamento e cuidado dos animais; barracão (37%), no armazenamento de implementos, equipamentos, insumos; galinheiro (36%), na criação de galinhas e postura de ovos; paiol (17%), forma de aprovisionamento dos produtos colhidos na roça; entre outras infraestruturas.

Perguntados como trabalham com a terra, 79% realizam desde a mecanização, 13% manualmente (braçal) e 8% a partir da tração a sangue, dados próximos ao verificado por Scheuer et al. (2022)SCHEUER, J. M.; TORTORELLI, H. S.; NEVES, S. M. A. S. Caracterização socioeconômica da agricultura familiar da Associação de Hortifrutigranjeiros de Mirassol d’Oeste, Mato Grosso. Campo-Território: revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 17, n. 48, p. 236-257, 2022.. Entretanto, da forma mecanizada somente 8% dos inqueridos são proprietários, ou seja, necessitam terceirizar os serviços que envolvem os maquinários agrícolas para preparar a terra e/ou reformar o pasto, plantar, aplicar agrotóxicos e colher. De acordo com os entrevistados, alguns dos maquinários são emprestados entre os próprios agricultores (Breda et al., 2022BREDA, A. S.; COLARES-SANTOS, L.; PEREIRA, J. A. Capital social na agricultura familiar: análise das relações entre os produtores rurais. Revista em Agronegócio e Meio Ambiente, Maringá, v. 15, n. 1, p. 31-40, 2022.), facilitando a realização das atividades rurais.

A existência de infraestrutura e equipamentos rurais não guarda diretamente uma relação ao aproveitamento integral desse material (condição e ciência de uso), tão pouco condiciona a produção agropecuária. Em outras palavras, sua presença não implica em uma eficiência e eficácia produtiva, asserto levantado com os próprios assentados e desde as observações pontuais no estabelecimento. Demais estudos realizados na região também abordam que, em geral, a infraestrutura disponível nos assentamentos é precária e cerceia a produção (Aquino et al., 2016AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016.).

Em relação aos insumos disponíveis e formas de manejo, 76% usam algum agrotóxico, maiormente destinado para a produção agrícola em si, com alguma derivação a pecuária (alimentos -pasto, grãos, ração). Requer atenção ao elevado percentual (92%) de agricultores que fazem a aplicação dos insumos por intuição, conhecimento empírico e sugestões de vizinhos, desconsiderando as recomendações de profissionais por “capricho” ou pela falta de assistência técnica (é mais crível este argumento).

Nessa corrente, 15% afirmaram que fizeram análise do solo nas recentes safras, 84% não realizaram a calagem nos últimos anos, 78% aplicam adubo agroindustrial, 47% utilizam adubo orgânico oriundo da produção pecuária, em especial de aves e bovinos e, 95% não possuem irrigação, com relatos de falta de água. Infelizmente, 17% dos entrevistados ainda fazem uso do fogo como técnica para “limpar” o campo (Rocha et al., 2022ROCHA, Fabiano. et al. Estrutura socioprodutiva do povoado Kawaiwete e a relação com as bondades da natureza. Revista Geográfica Venezolana, Mérida, v. 63, n. 2, p. 206-218. 2022.), o que implica em um risco ambiental pela poluição e potencialidade de provocar incêndios.

Capital financeiro

A produção agropecuária dos agricultores familiares de ambos os assentamentos se encontra desconcentrada, ou seja, não se identificou um produto agrícola dominante sobre os demais, mas sim, um conjunto produtivo diversificado (Tabela 2).

Tabela 2
Principais produtos agropecuários dos assentamentos Bom Jardim e Facão.

A prioridade da produção se destina ao abastecimento pessoal (segurança alimentar (Hein; Silva, 2019HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 394-417, jun./set. 2019.)), consequentemente o excedente é comercializado nos centros urbanos (Santos et al., 2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020.). Neste ínterim, predominou-se a venda direta ao consumidor (64% -feiras livres, produtor a produtor, produtor a consumidor), e uma parte indireta ao consumidor (36% -supermercados, frigoríficos, associações, laticínios, atravessadores).

Entre os produtos agropecuários, se destaca a comercialização de aves (43%), leite (39%), bovinos (30%), derivados lácteos (23%), ovos (19%), suínos (15%), mandioca (13%), abóbora (7%), laranja (7%) e banana (6%). Ressalva seja feita em relação à comercialização de bovinos e ovos, destacando-se o assentamento Bom Jardim, enquanto o assentamento Facão se sobressai na venda de laranjas.

Na lista de produtos comercializados também se encontrou derivados de cana-de-açúcar e artesania, ademais que 7% dos assentados citaram que realizam a exploração de produtos florestais, neste caso especificamente o cumbaru. Esse panorama comercial não se diferencia muito de outras regiões brasileiras (Santos et al., 2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020.).

Conforme os dados levantados com os agricultores, tanto na produção e/ou comercialização, como na composição da renda, os produtos de origem da pecuária foram predominantes (tabela 3). Entretanto, sublinha-se que a renda familiar é diversa (Ellis, 2000ELLIS, F. Rural livelihoods and diversity in developing countries. Oxford: Oxford University, 2000.), não sustentada exclusivamente em uma forma produtiva.

Tabela 3
Principais fontes de renda dos assentados de Bom Jardim e Facão.

Os inquiridos justificam a importância da renda obtida pelo leite diante do ingresso mensal que proporciona essa atividade (Lima et al., 2023LIMA, C. P. et al. Análise socioeconômica da agricultura familiar no assentamento Dois Irmãos em Murutinga do Sul (SP). Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 9, n. 5, p. 3409-3427, 2023.). A criação de gado também se sobressai nessa análise, uma vez que as cabeças se tornam como uma espécie de poupança, proporcionando uma rápida liquidez em momentos cruciais. Na interpretação dos agricultores consultados, o manejo de animais (bovinos, aves, suínos) é mais rentável e gera um menor esforço laboral ao comparar com a agricultura.

A renda com origem na aposentadoria merece uma explicação a parte. 37% da população estudada estão jubilados e destes, 3% sobrevivem exclusivamente do benefício social, enquanto os demais conciliam a vida de aposentado com as atividades agropecuárias, porém a um ritmo de trabalho inferior (Lima et al., 2023LIMA, C. P. et al. Análise socioeconômica da agricultura familiar no assentamento Dois Irmãos em Murutinga do Sul (SP). Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 9, n. 5, p. 3409-3427, 2023.).

Os assentamentos estudados são uma clara oposição a interpretação de Buainain et al. (2013)BUAINAIN, A. M. et al. Sete teses sobre o mundo rural brasileiro. Revista de Política Agrícola, Brasília, v. 22, n. 2, p. 105-121, abr./jun. 2013., considerando que a principal fonte de renda se origina pela exploração crua do recurso natural terra, sem maior atenção à infraestrutura, tecnologia (capital físico), capacitação e assistência (capital humano). Dessarte, há uma lacuna nos ingressos familiares diante o potencial valor que se pode agregar pelo investimento físico e humano.

A combinação de distintas atividades econômicas (Tabelas 2 e 3) guarda relação com a proximidade de ambos os assentamentos ao perímetro urbano de Cáceres (Figura 1), o que proporciona aos entrevistados a facilidade de ir e vir entre a cidade e o assentamento. Dessa forma, se observou que alguns trabalham na cidade durante o dia, com funções laborais que complementam a renda, e retornam à noite para às suas propriedades, vice-versa aos que moram na cidade e se deslocam periodicamente aos lotes (capital natural).

Esse panorama é resultado da transformação do mundo rural fechado e isolado dos demais setores, para um “novo rural brasileiro”, com o incremento de atividades rurais não agropecuárias (renda extra estabelecimento) e pluriatividade (Aquino et al., 2016AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016.), aliás de outras formas de ingresso.

Na média, 74% dos agricultores consultados contabilizam uma renda familiar entre um (1) a dois salários-mínimos, 20% de três a quatro, 4% mais de quatro e, 3% chegam até um salário-mínimo. Aquino et al. (2016)AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016. relacionam que a renda familiar muitas vezes está condicionada a extensão da área produtiva, fato observado neste estudo (capital natural), bem como o acúmulo dos capitais humano e social.

Relativo ao acesso às políticas públicas agropecuárias, 33% dos entrevistados foram beneficiados pelo PRONAF, destinado para o custeio e/ou investimento pecuário, agrário e em maquinarias (este em menor proporção). Outra política acessada, o PAA auxiliou no processo de comercialização da produção a entidades sociais do município, porém essa política chegou somente a 5% dos entrevistados.

As dificuldades no acesso às políticas públicas, entre elas de assistência técnica e social, extensão, comercialização, crédito etc., “[...] tem ampliado a massa de pobres no meio rural mato-grossense, uma vez que não disponibiliza a essa nova população de agricultores a devida assistência” (Alves et al., 2012ALVES, J.; FIGUEIREDO, A. M. R.; ZAVALA, A. A. Z. (In)Eficiência dos assentamentos rurais em Mato Grosso. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012., p. 111).

Capital natural

Ao contrário do assentamento Facão, no qual predominam áreas produtivas de menor estrato (1 ha a 5 ha), em Bom Jardim se sobressaiu as áreas médias de 21 ha a 30 ha. Sublinha-se que essa distribuição não possui mais o seu tamanho original (capital humano), o que acarretou distintas concentrações dos espaços produtivos (tabela 4).

Tabela 4
Distribuição da área dos assentados em Bom Jardim e Facão.

Partindo de um ponto em comum, os inquiridos mencionaram distintas frustrações que cercearam o seu desenvolvimento, por exemplo, falta de apoio institucional, limitação de recursos, infraestrutura precária, idade avançada etc. Essas decepções favoreceram uma prática “naturalizada” de comercialização das frações de terra, surgindo (i) assentados frustrados que querem vender o lote, mas que permanecem no mesmo, e (ii) assentados temerários que abandonam o lote e vão para a cidade, esperando que surja algum comprador.

Esses agricultores “decepcionados” dão lugar aos “novos moradores”, externos ao assentamento e muitos com vida estabelecida na cidade (trabalho formal e/ou aposentados). Destarte, a função social da terra se perde justamente pelo tipo de ocupação dada pelos “novos moradores”, geralmente usadas como uma área de lazer para os finais de semana, salvo os casos que a destina para gerar uma renda extra desde a pecuária. Esses fatores não contribuem para a democratização do acesso às terras (Santos et al., 2020SANTOS, L. L. et al. Capital Social e Tipologia de Redes: análise comparativa entre duas cooperativas agrícolas em territórios rurais diferenciados no estado de Goiás. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 23, n. 1, p. 293-315, 2020.).

Somado a problemática de venda dos lotes, também há responsabilidade desde o INCRA. Os inquiridos discutiram que o Instituto pouco outorga apoio e/ou estímulo, sem mencionar a inexistente fiscalização da compra/venda de lotes pelos “novos moradores”.

Em diálogo com os agricultores, se ressalta o baixo conhecimento sobre a legislação ambiental (incluída sua assistência/orientação) e formas de produção sustentável. Em nenhum dos casos se identificaram registros formais de APP e RL, contudo, 77% dos inquiridos consideram extremamente relevante a conservação das bondades da natureza (Scheuer et al., 2021SCHEUER, J. M. et al. Sostenibilidad de las prácticas agropecuarias de la agricultura familiar productora de maíz verde de Cáceres, Brasil. Agroalimentaria, Mérida, v. 27, n. 53, p. 147-166, 2021.), tanto para as presentes gerações, como para as futuras. A fragilidade nessa temática abre caminho a possíveis impactos ambientais quanto à conservação dos solos, das águas, do ar etc. (disponibilidade às gerações futuras), ademais da negativa sobre autorização prévia pelas autoridades para a exploração de madeira.

Em sequência, se questionou sobre a disponibilidade de água para o consumo doméstico e na propriedade. No primeiro caso, 55% dos consultados possuem acesso à água potável por meio da distribuição pública (água encanada), enquanto 45% obtêm desde os poços artesianos, dos quais somente 9% em algum momento realizou a análise de qualidade.

Para o segundo caso, 18% discorreram que possuem alguma fonte d’água (córregos, açudes, poços), e 90% afirmaram que se encontram em bom estado de conservação, embora a observação em campo tenha revelado o oposto, pois foi identificada falta de planejamento a respeito desses espaços. Para a exploração dos cultivos, 75% não possuem outorga para o uso da água.

Supracitado na seção “capital social”, as propriedades limitadas em recurso hídrico são abastecidas por um sistema de cooperação entre os vizinhos, uma espécie de acordo diante o problema hídrico. Essa colaboração atua como uma válvula de escape, minimizando os possíveis inconvenientes produtivos pela falta de água (Grigol et al., 2022GRIGOL, N. S. et al. Produção para autoconsumo e segurança alimentar entre assentados rurais do Alto Xingu, Mato Grosso, Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v. 60, n. 2, p. 1-19, abr./jun. 2022.).

Sobre a existência de tratamento de esgoto, ao estar localizado em uma zona rural, não se dispõe de uma rede pública, ou seja, de um serviço prestado pela prefeitura municipal. Independentemente, todos os assentados consultados destinam os resíduos a uma fossa séptica, forma comum aos estabelecimentos rurais (Scheuer et al., 2022SCHEUER, J. M.; TORTORELLI, H. S.; NEVES, S. M. A. S. Caracterização socioeconômica da agricultura familiar da Associação de Hortifrutigranjeiros de Mirassol d’Oeste, Mato Grosso. Campo-Território: revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 17, n. 48, p. 236-257, 2022.).

Outro ponto a considerar é em relação à coleta de resíduos domiciliários, no qual os inqueridos afirmaram que não contam com um serviço público de recolhimento. A alternativa encontrada foi através da queima (66%), descarte em um buraco no solo (28%), deixando-o aberto ou enterrado, alguns transladam até a cidade (4%), entre outras formas (2%).

Nos resíduos de origem agropecuário, em particular as embalagens dos agrotóxicos, em ambos os assentamentos se identificou que os agricultores devolvem os recipientes ao fornecedor (39%), há aqueles que queimam (38%), ou destinam em buracos e/ou lixo comum nos quintais das propriedades (23%), depois aterram e queimam.

Analisa-se que há um grande descaso na destinação correta das embalagens de agrotóxicos (Scheuer et al., 2022SCHEUER, J. M.; TORTORELLI, H. S.; NEVES, S. M. A. S. Caracterização socioeconômica da agricultura familiar da Associação de Hortifrutigranjeiros de Mirassol d’Oeste, Mato Grosso. Campo-Território: revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 17, n. 48, p. 236-257, 2022.), uma vez que os inquiridos conhecem a necessidade de devolver os recipientes vazios, no prazo de até um ano, aos estabelecimentos comerciais onde foram adquiridos.

Considerações finais

A execução da pesquisa proporcionou a identificação de um conjunto de adversidades que seguramente cerceiam o desenvolvimento da agricultura familiar. Entre elas, se destacam a desconfiguração de “assentado” nos lotes, envelhecimento rural, saúde, formação escolar, capacitação técnica, assistência técnica, sistema produtivo anacrônico, relações de confiança organizacional, êxodo dos jovens, equipamentos rurais, agrotóxico, renda agropecuária, políticas públicas, área, função social da terra e conservação ambiental.

O cerne dos problemas no capital humano está na tríade da formação escolar, capacitação e assistência técnica. Esses reveses se observam na capacidade de interpretação e visão crítica de seu entorno, subaproveitamento de suas habilidades, aliado a inanição do Estado enquanto a socialização de técnicas que visam o seu desenvolvimento, resultando muitas vezes em um sistema produtivo anacrônico. O reflexo macro dessa situação se relaciona ao fato de que uma parte das famílias originalmente assentadas não se encontram nos lotes, fruto das dificuldades que cerceiam o seu desenvolvimento.

No capital social, a assincronia se refere ao (i) êxodo dos jovens diante a inópia de perspectivas (envelhecimento rural), bem como a (ii) inércia entre os assentados e suas organizações, particularmente no que se refere às relações de confiança e frutos de uma vida plural, quer dizer, na captação de conhecimentos, informações, políticas etc. Em oposição a esse quadro, aponta-se a cooperação dos assentados na distribuição de água entre os estabelecimentos, facilitando o seu acesso e consequentemente a produção.

Os entraves no capital físico se referem a disponibilidade, acessibilidade e aproveitamento dos equipamentos rurais, relativamente sanado desde a terceirização entre os assentados e/ou outros agricultores, porém não reflete necessariamente na eficácia produtiva. Soma-se nesse cenário a alta dependência por agrotóxicos e uso irracional, efeitos potencialmente negativos à saúde humana e à biodiversidade.

Salienta-se, no capital financeiro, que os assentados (i) possuem uma produção diversificada que garante sua segurança alimentar, ademais de relações comerciais diretamente com o consumidor, e (ii) a fonte de renda é variada entre distintos produtos. Entretanto, a renda agropecuária se baseia especificamente pela exploração dos recursos naturais, sem maior preocupação enquanto a investimento físico e humano no estabelecimento, sucedendo uma baixa renda familiar. Corrobora a essa situação o sórdido acesso às políticas públicas creditícias, comerciais e sociais, colaborando ainda mais com a sua inanição.

Predomina no capital natural estabelecimentos com baixa extensão de área, e algumas destas não pertencem à população objetivo dos projetos de assentamento, caracterizados como “novos moradores”, nem sempre com aptidão agropecuária definida. Além do mais, essa forma de (re)ocupação desconfigura a função social da terra, que não pode ser simplificada a um espaço reservado para o lazer. Não obstante, a conservação ambiental é um reflexo tanto das atuações pessoais (capital humano), quanto sociais (capital social) e econômicas (capital financeiro). Nesse sentido, faz-se menção ao interesse dos assentados na conservação das bondades da natureza, por outro lado, há ações que implicam negativamente no meio ambiente (APP, RL, resíduos domésticos e agropecuários).

A estagnação dos assentados de Bom Jardim e Facão é multidimensional e antagônica ao desenvolvimento rural da agricultura familiar. As adversidades estão presentes nos cinco capitais analisados, no qual o governo (nas suas diferentes esferas de poder) necessita organizar um conjunto de políticas específicas e/ou facilitar o acesso às existentes.

O roteiro desse policy mix deve contemplar estratégias que reforçam as capacidades individuais (capital humano) e coletivas (capital social), reestruturação produtiva (capital físico), otimização do sistema produtivo (capital financeiro) e conservação dos recursos naturais (capital natural), aspectos essenciais ao desenvolvimento rural da agricultura familiar.

  • Como citar este artigo

    SCHEUER, Junior Miranda; NEVES, Sandra Mara Alves da Silva; MENDES, Marcílio Ferreira. Desenvolvimento da agricultura familiar desde o pentágono de capitais: estudo de caso dos assentamentos Bom Jardim e Facão de Cáceres, Mato Grosso. Revista NERA, v. 27, n. 1, e9994, jan.-mar., 2024.

Referências

  • ALVES, J.; FIGUEIREDO, A. M. R.; ZAVALA, A. A. Z. (In)Eficiência dos assentamentos rurais em Mato Grosso Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012.
  • AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Um retrato do lado pobre da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Sul. Redes: revista do desenvolvimento regional, Santa Cruz do Sul, v. 21, n. 3, p. 66-92, 2016.
  • BATTHYÁNY, K.; CABRERA, M. Metodología de la investigación en Ciencias Sociales: apuntes para un curso inicial. Montevideo: Udelar, 2011.
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  • BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 25 jul. 2006. Seção 1, p. 1.
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O processo de editoração deste artigo foi realizado por Lorena Izá Pereira e Camila Ferracini Origuela.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Revisado
    11 Mar 2024
  • Aceito
    17 Abr 2024
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