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Taxa de poupança e política econômica: notas sobre as possibilidades de crescimento numa economia com restrições* * Agradecemos a contribuição de Franklin Serrano, assumindo responsabilidade exclusiva pelo conteúdo da presente versão.

Savings rate and economic policy: notes on the possibilities of growth in an economy with restrictions

RESUMO

O artigo discute a relação entre poupança e crescimento econômico, de forma a integrar as principais contribuições dos modelos baseados na hipótese de pleno emprego e aqueles que pressupõem a existência de capacidade ociosa. O texto desenvolve um modelo híbrido para mostrar que a eficácia das políticas depende da situação real de cada economia. Assim, recomendações úteis em um determinado contexto podem ser completamente incorretas em outro. Tendo este referencial teórico como guia, são apresentados três casos paradigmáticos e analisados os efeitos sobre os investimentos esperados em cada uma das diferentes situações, a partir das políticas oficiais.

PALAVRAS-CHAVE:
Poupança; modelos de crescimento econômico

ABSTRACT

The article discusses the relationship between savings and economic growth, to integrate the main contributions of the models based on the hypothesis of full employment and those which assume the existence of idle capacity. The text develops a hybrid model to show that the effectiveness of the policies depends on the real situation of each economy. Thus, useful recommendations in a given context may be completely miscarrying in another one. Having this theoretical framework as guidelines, it is presented three paradigmatic cases and analysed the effects over investment expected in each different situation, as result of official policies.

KEYWORDS:
Savings; models of economic growth

1. INTRODUÇÃO

Diante da constatação de que uma política econômica baseada unicamente no rigor monetário e fiscal aparentava ser estéril no sentido de combater uma inflação do nível de 200% ao ano, os economistas críticos das teses ditas ortodoxas passaram no Brasil, em meados da década atual, por uma fase de crescente predomínio no panorama teórico. Como desfecho desse processo, alguns deles tiveram participação ativa na elaboração do chamado Plano Cruzado, cuja gestão posterior, porém, como· se sabe, gerou uma das crises econômicas mais graves da história do País.

Em função disso, é possível que se venha a desenvolver uma nova inflexão, na medida em que o fracasso da experiência heterodoxa representou um estímulo implícito para o resgate das ideias de embasamento teórico neoclássico, em contraposição às versões locais do pensamento keynesiano. Tome-se como indicativo desta tendência o fato de muitos desses keynesianos, inclusive, revelarem uma certa predisposição a fazer uma revisão de antigas teses, com base na ideia de que o que é benéfico no curto prazo não é aconselhável quando se pensa em termos de crescimento sustentado de longo prazo. Em particular, políticas tendentes a estimular o consumo seriam recomendáveis para prazos menores, porém a sustentação do crescimento implicaria conter esse consumo de modo a aumentar o coeficiente de poupança do País.

Este artigo constitui uma tentativa de ordenar alguns dos argumentos que estão por trás das discussões sobre o tema do crescimento, em particular aqueles relacionados com a importância do coeficiente de poupança. A mensagem básica que o artigo pretende transmitir é que a eficácia das políticas depende da situação concreta de cada economia, de modo que não caberia fazer recomendações de política econômica como se fossem pregações religiosas, vale dizer, medidas válidas em um contexto podem revelar-se totalmente contraproducentes em outras circunstâncias.

O texto está dividido em cinco seções. Depois desta introdução, a seção dois detalha nossas preocupações e as associa à literatura gerada nos últimos anos a propósito de assuntos próximos aos que tratamos aqui. A seção seguinte discute isoladamente três restrições ao crescimento econômico. A quarta seção agrega essas restrições em um único modelo com base no qual é discutida uma série de propostas de política econômica de modo a melhor avaliar seu grau de eficácia. Por último, a quinta seção condensa as principais conclusões do trabalho.

2. POUPANÇA E POLÍTICA ECONÔMICA: A IMPORTÂNCIA DAS HIPÓTESES

É conhecida a passagem de Keynes segundo a qual:

“ . . . os teóricos da escola clássica são comparáveis aos geômetras euclidianos em um mundo não-euclidiano, os quais, descobrindo que, na realidade, as linhas aparentemente paralelas se encontravam com muita frequência, as criticam por não se conservarem retas, como único recurso contra, as desastrosas interseções que se produzem. Sendo esta a realidade, não há, de fato, nenhuma solução a não ser rejeitar o axioma das paralelas e elaborar uma geometria não-euclidiana” (Keynes, 1982Keynes, J. M.(1982) Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Ed. Atlas. , pp. 32-33):

O questionamento fundamental de Keynes à teoria neoclássica referia-se à hipótese de inexistência de desemprego involuntário. Sendo a construção teórica à qual ele se opunha baseada nesta hipótese, não válida a seu juízo, cabia formular uma teoria alternativa, com outras hipóteses, que desse fundamento a sugestões de política econômica igualmente alternativas.

Assim, Keynes elaborou sua teoria com destaque para o princípio da demanda efetiva - conforme o qual o gasto determina a renda - e seu complemento, o mecanismo do multiplicador segundo o qual, dado um aumento do gasto autônomo, o aumento da renda daí resultante será tanto maior quanto menor for a propensão a poupar da sociedade. Daí se deriva o que é conhecido como “paradoxo da parcimônia”, isto é, a ideia de que a recomendação (neoclássica) de poupar mais individualmente, com vistas a investir mais e crescer mais no futuro, não passaria de uma típica falácia de composição, na medida em que a agregação desses atos individuais depreciaria o rendimento esperado dos· investimentos, reduzindo, portanto, o nível destes e, consequentemente, a poupança agregada da economia.

A partir deste raciocínio, Keynes derivou outra conhecida conclusão, a de que “quanto mais virtuosos, quanto mais resolutamente frugais e mais obstinadamente ortodoxos formos em nossas finanças particulares e nacionais, mais terão de diminuir as nossas rendas, quando o juro crescer proporcionalmente à eficiência marginal do capital. A obstinação só nos trará um castigo, e jamais uma recompensa, pois o resultado é inevitável” (Keynes, 1982, p. 99)Keynes, J. M.(1982) Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Ed. Atlas. .

Parte do debate teórico que serve de pano de fundo para as decisões econômicas passou a girar, como se vê, em torno do coeficiente de poupança mais apropriado com vistas ao crescimento. Enquanto sob a ótica neoclássica seria melhor que aquele fosse o mais elevado possível, sob a ótica de Keynes, seria desejável exatamente o oposto. Evidentemente, como buscaremos sugerir, a recomendação mais adequada depende do “regime” em que se encontra a economia a cada momento do tempo.

Posteriormente, o argumento em favor da elevação do coeficiente de poupança seria conciliado com as ideias de Keynes, nos trabalhos de um keynesiano emérito, como era Kaldor, ao desenvolver seus modelos de crescimento na tradição de Cambridge dos anos 50 (Kaldor, 1956Kaldor, N. (1956) “Alternatíve Theories of Distribution “, Review of Economic Studies, vol, 23 , 1957Kaldor, N. (1957) “A Model of Economic Growth”, Economic Journal, vol. 67. ). Desses modelos extrai-se, a título de conclusão, a ideia segundo a qual a distribuição de renda deveria adaptar-se à taxa de crescimento que garantisse o pleno emprego da força de trabalho. Para tanto, dadas as hipóteses sobre as propensões a poupar a partir de salários e lucros, quanto maior a taxa de crescimento, maior deveria ser· a participação dos lucros no produto e maior a propensão média a poupar da sociedade.

Evidentemente, porém, ambas as proposições acima - a de Keynes, conforme a qual para crescer seria necessário consumir mais; e as variantes da segunda, pelas quais o consumo deveria ser contido - tratam apenas de um dos aspectos que envolve esta problemática. Assim, enquanto a ideia de Keynes está condicionada à disponibilidade de recursos ociosos, a tese· contrária só adquire validade quando a capacidade instalada está efetivamente utilizada em toda a sua plenitude. Ou, dito de outra forma, Keynes tinha em mente um mundo em que a principal restrição ao crescimento era a insuficiência de demanda, ao passo que a visão alternativa incorpora o diagnóstico de insuficiência de oferta. ·

Que Keynes não defendia a vigência das propostas que se depreendem da sua Teoria Geral independentemente das circunstâncias é algo que fica claro à luz do que ele próprio escreveu em How to Pay for the War, alguns anos depois. Nesse momento, diante de conjuntura radicalmente diversa em relação àquela do início dos anos 30, preocupou-se essencialmente com o financiamento dos investimentos em condições de pleno emprego, como forma de fazer frente ao esforço de guerra requerido.

O fato de que recomendações, adequadas em condições de existência de capacidade ociosa, não o sejam numa situação de pleno emprego não significa, porém, que o arcabouço teórico da Teoria Geral deva ser abandonado. Em particular, a relação de causalidade apontada por Keynes, do investimento para a poupança - contrariamente à visão neoclássica-, continua válida sob qualquer hipótese, acerca das circunstâncias vigentes. Em outras palavras, embora em condições de pleno emprego, keynesianos e neoclássicos concordem quanto ao possível excesso de consumo, os rumos apontados a partir daí serão totalmente diferentes. Uma leitura neoclássica dos fatos conduzirá à recomendação de aumentar a poupança, ao passo que uma interpretação keynesiana dos fatos levará a concluir que é preciso investir mais. A diferença entre ambas as recomendações, imperceptível quando se lida apenas com identidades contábeis, sem discutir a teoria que figura por trás das mesmas, é crucial e será abordada posteriormente.

Nas próximas duas seções desenvolveremos um modelo extremamente simples, destinado a captar os traços principais de uma economia cujo processo de crescimento encontra-se limitado por um ou mais fatores. Dessa forma, procuraremos analisar as medidas recomendáveis em cada caso, para reforçar a tese de que a eficácia das medidas depende das circunstâncias que prevalecem na ocasião.

As ideias a serem desenvolvidas guardam uma certa relação com os modelos da macroeconomia de desequilíbrio. No Brasil, há uma literatura recente com preocupações semelhantes às nossas. Em Arida e Bacha (1984Arida, P. & Bacha, E. (1984) “Balanço de Pagamentos: urna Análise de Desequilíbrio para Economias Semi-Industrializadas”. Pesquisa e Planejamento Econômico, vol. 14, n. 1, abril. ), por exemplo, faz-se uma análise de situações de desequilíbrio aplicada especificamente ao Balanço de Pagamentos, a propósito da eficácia das terapias associadas ao FMI e à CEPAL. Conclui-se que a primeira delas seria recomendável para o caso de excesso de demanda, enquanto a segunda seria válida para o caso de excesso de oferta. Cysne et alii (1987Cysne, R.; Simonsen Leal, C. I.; Werlang, S. (1987) “Macroeconomia com Racionamento: um Modelo Simplificado para Economia Aberta”. Pesquisa e Planejamento Econômico, vol.17,n.2,agosto.), por sua vez, constroem um modelo de racionamento com base na hipótese de preços fixos e analisam os resultados que cabe esperar em diversos cenários, cuja configuração depende das hipóteses assumidas acerca da relação entre oferta e demanda e entre os graus de prioridade conferidos ao abastecimento dos mercados interno e externo.

3. TRÊS RESTRIÇÕES AO CRESCIMENTO

Em um modelo agregado, a taxa de crescimento do produto (y) é dada por:

y t = Y t / Y t - 1 - 1 (1)

onde Y é o nível do produto no período t, que pode também ser expresso em termos do estoque de capital (K), da relação entre o estoque de capital e o produto potencial (c) e do grau de utilização do capital (u) em relação ao produto potencial (Y*):

Y t = K t / c · u t i (2)

Supondo que o investimento se incorpora ao estoque de capital com uma defasagem de um período e chamando d à percentagem de depreciação do capital, temos

K t = K t - 1 1 - d + I t - 1 (3)

Em consequência, conclui-se que, dados os valores do estoque de capital no período anterior, da relação capital/produto e do coeficiente de depreciação, e supondo plena a ocupação da capacidade, a taxa de crescimento do produto efetivo num período será limitada pela taxa de crescimento do produto potencial (y*), a qual, por sua vez, é uma função do investimento. De acordo com

Y t * = K t / c (4)

conclui-se, por (3) e (4), que

y t y t * = f I t - 1 (5)

Verifica-se, portanto, que para que seja possível crescer no futuro, há que se investir hoje. As políticas de crescimento devem forçosamente procurar, portanto, vencer a restrição de capacidade representada pela insuficiência de investimentos. Desta restrição se derivam as três limitações que enfrenta o investimento presente, quais sejam, de poupança, de demanda e de divisas externas.1 1 Há ainda dois outros tipos de limitações não discutidos aqui, vale dizer, da oferta de força de trabalho e de crédito ou financiamento. Quanto à discussão da última, ver Amadeo & Franco (1988).

3.1. Poupança

Esta limitação está associada aos já mencionados modelos de Kaldor.2 2 Ver também Robinson (1962). Esses modelos partem da identidade contábil ex-post entre poupança e investimento. Considera-se então que, se o produto estiver limitado pela demanda, a restrição de poupança não seria importante e a economia poderia crescer sem que o consumo estivesse sujeito a grandes obstáculos. Entretanto, numa situação em que a restrição relevante fosse de oferta, a necessidade de investir estaria associada a um trade-off entre expansão do consumo, de um lado, e investimento e poupança, de outro.

Antes de desenvolver este tema, é importante esclarecer qual o conceito de poupança interna adotado aqui. Ao contrário da contabilidade própria das contas nacionais (CN), na presente análise consideramos não apenas a poupança que efetivamente permanece no país, mas também o valor dos serviços de fatores pagos pelo país do Exterior.3 3 De acordo com certo tipo de classificação, o nosso conceito corresponde à noção de “poupança territorial”, isto é, que é gerada dentro do território, embora parte dela possa ser escoada para o Exterior. Em outras palavras, a poupança interna é o resultado da diferença entre o PIB e o consumo, sem considerar os gastos com juros da dívida externa e o pagamento de lucros e dividendos.

Adotamos tal conceito uma vez que ele nos parece mais relevante que o conceito das CN para efeito da discussão que se segue. Cabe destacar que esta opção conceituai não gera distorções analíticas, na medida em que as modificações da relação entre a poupança interna e externa, de acordo com o conceito das CN, que afetam o lado real do setor externo, são captadas perfeitamente pelo modelo. Isso fica claro se considerarmos a contrapartida da modificação por nós adotada quanto à poupança interna. Esta contrapartida refere-se à poupança externa, que, de acordo com o critério aqui adotado, dada a inclusão do serviço de fatores na poupança interna, tende a ser menor do que no conceito das CN.4 4 Isto no caso de o serviço de fatores ser positivo.

Além disso, supomos ao longo do trabalho o caso de uma economia sem governo. Tal fato não afeta qualitativamente as conclusões do trabalho, na medida em que o caso de restrição financeira do setor público pode ser considerado um caso especial da situação de que estamos tratando. Se o Estado está investindo pouco e a economia está operando a plena capacidade, a solução é restringir o consumo, seja do próprio Governo - via mudança no perfil do gasto - seja do setor privado - via tributação. Em ambos os casos há uma queda do consumo e um aumento da poupança e do investimento.

Chamando Se à poupança interna e Se à poupança externa, temos, por definição,

S i = Y - C (6)

Onde C é o consumo, e

S e = M - X (7)

onde M e X são as importações e as exportações de bens e serviços não-fatores, respectivamente. Por outro lado, define-se

S i = S i · Y (8)

M = m · Y (9)

onde s1 e m são a propensão interna a poupar e a propensão a importar, respectivamente. Dada a identidade

Y = c + S i = C + I + X - M (10)

então o valor de I será dado por

1 = s i · Y + S e = S i · Y + m · Y - X (11)

Chamando de I A ao investimento que prevaleceria se a única restrição fosse a de excesso de consumo, o valor do investimento efetivo seria então dado por

I I A = f s i + , m + , X - (12)

que indica ser o nível de investimento função direta dos coeficientes de poupança interna e de importações, e inversa das exportações. A relação entre a poupança interna e o nível de investimento da economia seria então representada no Gráfico 1 pela reta S.

Gráfico 1:
Restrição de Poupança

Cabe notar que a posição de S depende dos valores de m e X. Um aumento (redução) de m ou redução (aumento) de X, representando um aumento (redução) da poupança externa, implicarão um deslocamento para a direita (esquerda) da reta S, significando que uma mesma taxa de poupança interna estará associada a um volume maior (menor) de investimento.

Nessas condições, um país submetido a um severo ajuste externo, caracterizado pela queda das importações e/ou aumento das exportações, tende a ver as suas chances de crescimento diminuídas, caso não eleve a sua taxa de poupança interna. No caso oposto, de países que obtêm condições favoráveis de renegociação da dívida externa, por exemplo, as possibilidades de expandir mais as suas importações e/ou desviar uma parcela das exportações para a absorção interna podem representar uma chance de crescer a taxas mais elevadas, sem necessariamente ter que aumentar o coeficiente de poupança interna.

Além disso, dados m e X, uma distribuição progressiva (regressiva) da renda tende a provocar, ceteris paribus, um deslocamento para baixo (cima) ao longo da reta, supondo que a propensão a poupar é função direta ao nível de renda5 5 Vale lembrar que estamos lidando com uma economia sem Governo. Na presença deste, aquele efeito pode ser compensado ou agravado através da política tributária. .

O discutido até aqui nada mais é que uma apresentação de equações contábeis. Estas nada nos dizem, porém, sobre as relações de causalidade envolvidas na análise. Por isso, é fundamental ir além das identidades e fazer uma breve discussão teórica.

A forma como o tema costuma ser tratado na literatura parece-nos responsável pela confusão analítica associada à relação entre poupança e investimento,6 6 Para uma discussão conceitual semelhante à que se segue, ver Tavares et alii (1982). As análises feitas a posteriori supõem que o aumento do investimento é causado pelo crescimento de poupança, ou que o investimento não atingiu o nível satisfatório porque a poupança foi insuficiente. O que essas análises não levam em consideração é que a decisão dos indivíduos de poupar uma parcela maior dos seus rendimentos não necessariamente irá se transformar num aumento do investimento e da poupança agregados, ao passo que um aumento do investimento implica necessariamente a geração de um fluxo de poupança de igual valor.

Pode-se argumentar que reduzir o consumo e aumentar a poupança, se ocorrer um aumento do investimento, correspondem ao mesmo fenômeno. Entretanto, a sequência lógica é diferente, ou seja, na prática o que ocorre não é que a queda do consumo gera um aumento da poupança e este uma elevação do investimento e, sim, que o aumento do investimento acarreta um aumento da poupança e, em condições de pleno emprego, exige uma redução do consumo.7 7 Este, afinal, foi um ponto exaustivamente tratado por Keynes em sua crítica à Lei de Say, Ver Teoria Geral, cap. 7.

E importante, por último, destacar que o princípio da demanda efetiva, conforme o qual o gasto determina a renda nominal, é válido em qualquer situação, embora a forma assumida por este aumento - variação da renda real e/ou dos preços - seja, ela sim, dependente das circunstâncias vigentes.8 8 Ver Amadeo (1988), caps. 5 e 7.

3.2. Demanda

Para que uma política monetária de natureza expansionista possa ser eficaz, é necessário não apenas que existam recursos disponíveis para o investimento e paralelamente os bancos se mostrem dispostos a aumentar sua oferta de crédito, mas também que os tomadores potenciais - os empresários - demandem efetivamente os recursos extras disponíveis. Em outras palavras, a expansão do M1, per se, não induzirá um aumento do crédito e dos investimentos se não houver a necessária demanda por crédito compatível com o crescimento do fluxo de oferta de moeda.

Suponhamos que o volume de investimentos realizado depende da renda futura esperada, a qual é por sua vez uma função dos gastos autônomos e do multiplicador. Chamando de A esses gastos esperados e dado um grau u de utilização planejada da capacidade, a renda potencial esperada seria dada, supondo a vigência do multiplicador dos gastos autônomos, por

Y * e = A e · / s i e + m e · 1 / u P (13)

Até que ponto os empresários se guiam pelo comportamento da demanda agregada e como se dá na prática a integração micro-macro é algo que poderia ser objeto de uma longa discussão e que continua em aberto na literatura econômica. Este tema, entretanto, foge aos objetivos deste trabalho. Supomos que a propensão interna a poupar e a propensão a importar esperados para o futuro (se e me, respectivamente) sejam iguais aos valores correntes dessas variáveis. O estoque de capital (Ke) programado pelos empresários para um período depende do valor de Y*e e da relação capital/produto potencial, conforme

K e = c · Y * e (14)

Tendo em mente as equações (3), (13) e (14) e incorporando defasagens temporais obtém-se:

I t = c · A t + 1 e / s i + m · 1 u P - K t 1 - d (15)

Chamando de JB ao nível de investimento que prevaleceria se a única restrição fosse de demanda, e sendo os valores de K, d, c e u dados, o nível efetivo de investimento seria dado por

I I B = f s i - , m - , A t + 1 e + (16)

que indica ser o investimento uma função inversa dos coeficientes de poupança interna e de importações, e direta do nível esperado de gastos autônomos, sendo essa expectativa referente ao período seguinte. É importante ressaltar que, neste caso, ao contrário do que acontece no caso da restrição relevante no Gráfico 1, quedas (aumentos) de m, estão associadas a um maior (menor) volume de investimentos. Relacionando agora os valores de s e I com base em (16), podemos construir o Gráfico 2.

Gráfico 2:
Restrição de Demanda

Neste gráfico, todos os pontos sobre D estão associados a um mesmo nível de. gasto autônomo futuro e nele um aumento (redução) de m implica um deslocamento para a esquerda (direita) da curva D.

Uma distribuição progressiva da renda, como proposto, por exemplo, por Kalecki, implica um deslocamento ao longo da curva. Admitindo-se diferenças entre as propensões a poupar a partir de lucros e salários, haverá uma queda da propensão média a poupar e um aumento do multiplicador dos gastos futuros, gerando uma maior renda esperada e, consequentemente, uma maior necessidade de investimento no presente. Inversamente, uma distribuição regressiva gerará o efeito oposto.

3.3. Balanço de Pagamentos

A terceira e última limitação a ser analisada é a clássica restrição de Balanço de Pagamentos. Incorporando a variação dos preços externos à nossa análise e considerando o coeficiente de importações m a proporção de quantum importado na renda, tem-se, por definição:

p X , X - p m , m , Y - R L E + C K = Δ R (17)

onde p X e p m são os índices de preço de exportações e importações, RLE é a renda líquida enviada ao Exterior, CK é’ o saldo da conta de capitais e R é a variação de reservas.

Supomos que o país só é importador de bens de capital, cujo montante importado é uma proporção m do investimento. Então, temos que

m · Y = m k . (18)

Supomos ainda que a renda líquida enviada ao Exterior e o valor de CK são dados. Assim,

I = p x · X - R L E + C K - Δ R / p m · m k (19)

Supondo, adicionalmente, que a variação de reservas é nula e chamando de Ic ao investimento resultante do fato de a restrição de Balanço de Pagamentos ser a única vigente na economia, o valor efetivo do investimento seria dado por

I I c = f p x + , X + , i * - , g * - , C K + , p m - , m k - (20)

que indica ser I uma função direta do preço das exportações e do quantum destas, bem como do ingresso de capitais externos e uma função inversa da taxa de juros externa i*, da proporção g* de remessa de lucros e dividendos ao Exterior sobre o estoque de capital estrangeiro, do preço das importações e do coeficiente de importações.9 9 Observe-se que, por (18), para um dado nível da taxa de investimento (I/Y), m é proporcional a mk.

Neste contexto, a literatura sobre o assunto é vasta e, sem dúvida, os trabalhos mais importantes relacionam-se com o modelo de dois hiatos, cujos fundamentos teóricos aparecem expostos em Chenery (1975Chenery, H. B. (1975) “The Structuralist Approach to Development Policy”, American Economic Review, 65 (2), maio. ), Chenery e Strout (1966)Chenery, H. B. & Strout, A. (1966) “Foreign Assistance and Econormic Development”, American Economic Review, 56. e Bacha (1983Bacha, E. (1983) “Growth with Limited Supplies of Foreign Exchange: A Reappraisal of the Two Gap Model “, in Syrquin, M.; Taylor, L. e Westphal, L. (orgs.). Economic Structure and Performance (essays in Honor et Hollis B. Chenery. ), onde são relacionadas as alternativas existentes para superar o estrangulamento externo.10 10 Para uma discussão específica sobre o trade-off expansão de exportações versus substituições de importações, ver Balassa (1978).

Numa figura nos termos dos esquemas anteriores, a restrição mencionada aparece exposta no Gráfico 3 pela reta X. Sua inclinação obedece ao fato de que um aumento da taxa de poupança interna pode se traduzir no crescimento das exportações e, consequentemente, das importações e do investimento.

Gráfico 3:
Restrição Externa

Aqui é interessante destacar que, assim como no caso anterior e contrariamente à situação prevalecente quando da restrição de poupança interna, uma queda (aumento) de m representa um aumento (queda) do investimento, devido ao deslocamento da reta X para a direita (esquerda).

4. UMA ABORDAGEM INTEGRADA

Cabe agora integrar a análise. As relações que sintetizam o desenvolvido na terceira parte do trabalho, de acordo com cada restrição, são:

Poupança:

I I A = f s i + , m + , X - (21)

Demanda:

I I B = f s i - , m - , A + 1 e + (22)

Balanço de Pagamentos:

I I C = f p x + , X + , i * - , g * - , C K + , p m - , m k - (23)

Com base nos Gráficos 1 a 3, construímos o Gráfico 4, no qual as letras S, D e X estão associadas às restrições de poupança, demanda e balanço de pagamentos, respectivamente.

Gráfico 4:
A Fronteira do investimento

Relacionando (21), (22) e (23) entre si, podemos agora definir o valor do investimento efetivo como

I = m i n I A , I B , I C (24)

O valor de I é então determinado pela restrição que efetivamente prevalece na economia numa dada situação.11 11 Além das restrições mencionadas, poderíamos citar também a existência de outras duas: a de mão-de-obra e a de financiamento. Dado que nenhuma delas se relaciona com a poupança, num gráfico como o 4 elas seriam representadas por uma reta vertical. Assim, a reta correspondente à restrição da mão-de-obra se deslocaria para a direita ou para a esquerda em função do aumento ou da queda da população economicamente ativa e da produtividade do trabalho. Por sua vez, a reta correspondente à restrição de financiamento se deslocaria para a direita ou para a esquerda em função do aumento ou da redução do crédito. O investimento efetivo, consequentemente, continuaria sendo definido como em (21), porém incorporando dois outros termos, associados a cada uma das restrições adicionais.

A principal conclusão da análise é que a política a ser seguida para aumentar ou reduzir o coeficiente s deve depender da situação concreta em que se encontra a economia. Isto é, as políticas não são eficazes per se, pois o seu efeito sobre a taxa de crescimento é função do tipo de restrição relevante.

Se a economia estiver no ponto A, por exemplo, a elevação da taxa de crescimento irá requerer uma queda relativa do consumo - isto é, um aumento do coeficiente de poupança interna -, na medida em que é justamente o fato de o consumo ser elevado que impede a obtenção de uma maior taxa de investimento, necessária para expandir a capacidade produtiva a um ritmo mais acentuado. Já se a economia estiver numa situação como a de B, variações de si, terão um impacto pequeno sobre o investimento, posto que a taxa de crescimento se encontra limitada por outras causas que não o nível elevado de consumo. Por último, partindo de C, uma queda relativa do consumo - isto é, um aumento de Si - tende a ser contraproducente, sendo mais recomendável. no caso, o seu aumento ou, eventualmente, gerar uma elevação da demanda que desloque a curva D, preservando o valor dos coeficientes de consumo e de poupança.

No Quadro 1, elaborado com base no Gráfico 4, são sintetizadas as principais medidas que são aconselháveis em cada situação e que implicam deslocamento nas ou das curvas/retas respectivas.

Quadro 1:
Restrição Relevante

O Quadro 2 apresenta algumas dessas conclusões de uma outra forma.

Quadro 2
: Efeitos sobre o valor de 1

Como fica claro neste último quadro, medidas que numa situação podem ser benéficas em outra podem revelar-se francamente prejudiciais e vice-versa.

Portanto, antes de fazer recomendações de política, conclui-se que é necessário levar em conta qual é concretamente a situação em que a economia se encontra, explicitando as hipóteses assumidas, sob pena de se virem a sugerir políticas inadequadas para um determinado momento.

5. CONCLUSÕES

No artigo, foram discutidas três restrições que limitam efetiva ou potencialmente o nível de investimento no presente, e, consequentemente, a capacidade futura de crescimento da economia. Tais restrições são as de poupança, demanda e Balanço de Pagamentos. Os assuntos foram abordados à luz da discussão, recorrente nas análises referentes ao tema do crescimento, acerca do papel da taxa de poupança interna e da suposta necessidade de elevá-la, para garantir maiores taxas de investimento e de expansão sustentada do produto.

A linha teórica seguida visou fugir a proposições simplistas pelas quais é sempre necessário elevar o valor do coeficiente de poupança interna (visão ortodoxa) ou, inversamente, é impossível aumentar-se a taxa de crescimento se paralelamente se tenta conter o ritmo· de expansão do consumo (visão keynesiana).

Tentamos argumentar que a melhor política a ser seguida acerca do tema da taxa de poupança interna depende da situação concreta em que a economia se encontrar. Políticas destinadas a elevar essa taxa seriam bem-vindas quando o fator a inibir um crescimento maior fosse o excesso de consumo. Teriam, porém, escassos efeitos, no caso de a restrição vigente ser a de Balanço de Pagamentos. Finalmente, seriam inclusive contraproducentes se o limite ao crescimento fosse imposto pela insuficiência de demanda.

Conclui-se, portanto, que com o intuito de obter o máximo de eficácia das medidas a serem tomadas, é fundamental ter clara a restrição específica a afetar o desempenho do investimento nesse momento. Este é o melhor caminho para fazer diagnósticos precisos, que venham a conduzir à adoção de um mix adequado de medidas relacionadas com os problemas existentes, as quais possam aliviar as restrições e assim possibilitar a obtenção de uma taxa de crescimento sustentado mais elevada.

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  • Cysne, R.; Simonsen Leal, C. I.; Werlang, S. (1987) “Macroeconomia com Racionamento: um Modelo Simplificado para Economia Aberta”. Pesquisa e Planejamento Econômico, vol.17,n.2,agosto.
  • Kaldor, N. (1956) “Alternatíve Theories of Distribution “, Review of Economic Studies, vol, 23
  • Kaldor, N. (1957) “A Model of Economic Growth”, Economic Journal, vol. 67.
  • Keynes, J. M.(1982) Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Ed. Atlas.
  • Robinson, J. (1962) Essays in the Theory of Economic Growth, St. Martin Press.
  • Tavares, Maria da C. et alii . (1982) “A Questão da Poupança: Desfazendo Confusões”, in Tavares, M. da C. e Dias, M. A economia Política da Crise - Problemas e Impasses da Política Econômica Brasileira, Ed. Vozes.
  • 1
    Há ainda dois outros tipos de limitações não discutidos aqui, vale dizer, da oferta de força de trabalho e de crédito ou financiamento. Quanto à discussão da última, ver Amadeo & Franco (1988)Amadeo, E. J. e Franco, G. H. (1988) “O Motivo ‘Finance’: nem Keynes, nem Robertson”, mimeo, Departamento de Economia, PUC-RJ. .
  • 2
    Ver também Robinson (1962)Robinson, J. (1962) Essays in the Theory of Economic Growth, St. Martin Press. .
  • 3
    De acordo com certo tipo de classificação, o nosso conceito corresponde à noção de “poupança territorial”, isto é, que é gerada dentro do território, embora parte dela possa ser escoada para o Exterior.
  • 4
    Isto no caso de o serviço de fatores ser positivo.
  • 5
    Vale lembrar que estamos lidando com uma economia sem Governo. Na presença deste, aquele efeito pode ser compensado ou agravado através da política tributária.
  • 6
    Para uma discussão conceitual semelhante à que se segue, ver Tavares et alii (1982)Tavares, Maria da C. et alii . (1982) “A Questão da Poupança: Desfazendo Confusões”, in Tavares, M. da C. e Dias, M. A economia Política da Crise - Problemas e Impasses da Política Econômica Brasileira, Ed. Vozes. .
  • 7
    Este, afinal, foi um ponto exaustivamente tratado por Keynes em sua crítica à Lei de Say, Ver Teoria Geral, cap. 7.
  • 8
    Ver Amadeo (1988)Amadeo, E. J. e Franco, G. H. (1988) “O Motivo ‘Finance’: nem Keynes, nem Robertson”, mimeo, Departamento de Economia, PUC-RJ. , caps. 5 e 7.
  • 9
    Observe-se que, por (18), para um dado nível da taxa de investimento (I/Y), m é proporcional a mk.
  • 10
    Para uma discussão específica sobre o trade-off expansão de exportações versus substituições de importações, ver Balassa (1978)Balassa, B. (1978) “Exports and Economic Growth: Further Evidence “; Journal of Development Economics, vol. 5, n. 2, junho. .
  • 11
    Além das restrições mencionadas, poderíamos citar também a existência de outras duas: a de mão-de-obra e a de financiamento. Dado que nenhuma delas se relaciona com a poupança, num gráfico como o 4 elas seriam representadas por uma reta vertical. Assim, a reta correspondente à restrição da mão-de-obra se deslocaria para a direita ou para a esquerda em função do aumento ou da queda da população economicamente ativa e da produtividade do trabalho. Por sua vez, a reta correspondente à restrição de financiamento se deslocaria para a direita ou para a esquerda em função do aumento ou da redução do crédito. O investimento efetivo, consequentemente, continuaria sendo definido como em (21), porém incorporando dois outros termos, associados a cada uma das restrições adicionais.
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    Agradecemos a contribuição de Franklin Serrano, assumindo responsabilidade exclusiva pelo conteúdo da presente versão.
  • 13
    JEL Classification: O41; E21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1990
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