Open-access Qualidade do ensino, balanço de uma década de pesquisas

Teaching quality: examining a decade of research

Qualité de l'enseignement, bilan d'une décennie de recherches

RESUMO:

O artigo procura sintetizar algumas das questões sobre as condições da produção da qualidade de ensino retratadas pelos rankings derivados das avaliações nacionais em algumas escolas da cidade do Rio de Janeiro. Uma década de pesquisas em escolas de prestígio no setor privado e público com o recurso a questionários (pais, alunos, professores), observações de campo nas escolas e entrevistas com diretores, agentes escolares e famílias permitiu a produção de um amplo e denso material empírico sobre o problema. Este conjunto possibilitou redimensionar a persistência de desigualdades escolares e estruturais mesmo quando focalizadas as escolas de maior desempenho nas avaliações sistêmicas.

Palavras-chave: Qualidade de ensino; Escolas de prestígio; Escolas públicas; Escolas particulares; Alunos, famílias, professores

ABSTRACT:

This paper offers an overview of a research program which investigated the teaching quality in some of the most prestigious schools in the city of Rio de Janeiro as portrayed by national evaluation rankings. A decade of research in prestigious schools in the private and public sector, by means of questionnaires (among students, families and teachers), field observations in thirteen schools and interviews with families, principals and schools agents provided us with important empirical material about the issue. Based on this material we pointed the permanence of social and structural inequalities among different classes and groups deriving from School Evaluation Policies, both, in the national and international scenario.

Keywords: Teaching quality; Prestigious schools; Public and private schools; Pupils, families, teachers

RÉSUMÉ:

L'article propose à faire une synthèse des quelques questions concernant les conditions de production de la qualité de l'enseignement dans certaines écoles de la ville de Rio de Janeiro, comme vu dans les classifications issues des évaluations nationales. Une décennie de recherches dans des écoles prestigieuses, publiques et privées, appuyées sur des questionnaires (auprès des parents, élèves et enseignants), des observations sur le terrain, ainsi que des entretiens avec des directeurs, agents scolaires et des familles, cela nous a permis la production d'un vaste et consistant matériel empirique sur le sujet. Cet ensemble nous a permis de reconsidérer la poursuite des inégalités scolaires et structurelles, même si l'accent est mis sur les écoles qui présentent les plus hauts niveaux dans les évaluations systémiques.

Mots-Clés: Qualité de l'enseignement; Écoles prestigieuses; Écoles publiques; Écoles privées; Élèves, parents, enseignants

Poderíamos definir como marco da preocupação com a qualidade do ensino os primeiros esforços de criação de um Sistema de Ensino Público no Brasil. Ou seja, a extensão da escolaridade para todos os cidadãos brasileiros, de forma a incorporarem os requisitos mínimos de educação formal, cada vez mais necessários nas "sociedades modernas" dos séculos XX e XXI.1

As elites sempre resolveram a questão do ensino/educação das novas gerações com os recursos materiais, sociais, culturais e políticos de que dispunham. Definidas, nas sociedades, como a referência sociocultural legítima, as elites transmitiam pelo convívio familiar e social seus padrões de linguagem, normas de comportamento e valores aos filhos. Além disso, sempre que necessário e possível recorreram a preceptores2, especialmente antes do desenvolvimento do sistema educacional e da disseminação da oferta da educação para as novas gerações no formato escolar.

A "norma culta" ensinada nas escolas, a partir daí, fundamenta-se no código elaborado (BERNSTEIN, 2003) normalmente assimilado pelas classes dominantes e médias no processo de socialização primária. Desta forma estas últimas, pelo convívio próximo com os diferentes setores das elites (políticas, econômicas), sempre tiveram maiores condições de aspirar a manter seu lugar na sociedade ou ainda alcançar uma mobilidade social ascendente.

Qualidade do Ensino para todos - construção dos Sistemas de Ensino Público

Entre nós, o advento da República mobilizou lideranças democráticas comprometidas com a institucionalização de sistemas públicos de ensino, que evidenciavam suas preocupações pioneiras com a qualidade do ensino e com a democratização da difusão do conhecimento. Até então, o acesso às poucas instituições públicas e privadas (muitas delas confessionais) era restrito aos filhos daquelas famílias que ocupavam as melhores posições no meio social3. A ampliação do acesso aos bens culturais como a leitura, a escrita e os conhecimentos gerais (capital cultural) precisava contar com um sistema de ensino público gratuito para garantir a disseminação desses bens para outros setores sociais. Nesse sentido, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), com uma proposta de política educacional para o país já no contexto do Governo Vargas, marcou a perspectiva da continuidade e da ampliação das reformas estaduais desencadeadas no início do século XX, que foram responsáveis pela implantação definitiva dos sistemas de ensino público no país. É dessa época a intensificação da criação dos "grupos escolares". (NOBREGA, 2000)

A ampliação do acesso à escola entre nós, como em todos os países mobilizados pela Teoria do Capital Humano no contexto otimista em relação ao desenvolvimento econômico e ao papel da educação que sucedeu as duas guerras mundiais, mostrou-se ineficaz no que se refere aos objetivos de escolarização das massas nos diferentes países desenvolvidos. Os grandes surveys dos anos 1960 evidenciaram que o desempenho escolar dependia fortemente do background familiar, e que o fracasso escolar era um produto da distância entre as experiências e práticas culturais das minorias (negros, migrantes pobres etc.) e as práticas e valores escolares das "escolas de massa" acessadas por contingentes cada vez maiores da população.

Inúmeros foram os desdobramentos destes achados de pesquisa no âmbito da sociologia da educação tanto do ponto de vista empírico quanto teórico, gerando interpretações renovadas sobre déficit linguísticos, culturais, cognitivos etc. e propondo variados programas de educação compensatória4 como estratégia de superação do fracasso escolar. Frente às evidências reiteradas dos levantamentos em grande escala realizados, com rigor técnico e vigilância epistemológica crescente, a igualdade de oportunidades educativas, em que se fundamentava a meritocracia de extração liberal capitalista, posta à prova mesmo em países desenvolvidos (Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, França...) passou a ser fortemente questionada pelas Ciências Sociais e da Educação.

A produção da qualidade do ensino: da teoria à empiria

É longo o percurso da pesquisa no campo da Sociologia da Educação sobre os obstáculos e as alternativas para a construção de uma escola de qualidade. A Reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 1975) é o principal marco teórico do debate sobre o significado social e político dos sistemas de ensino. Em que pese o amplo debate que provocou, e provoca até hoje na área, toda a obra posterior de Bourdieu foi construída na perspectiva de fundamentação empírico-teórica dos processos de produção de distâncias (desigualdades) no cruzamento entre diferentes campos (artístico, científico, escolar, literário...) e a sociedade (grupos e classes).

Anos de pesquisa sobre a alfabetização e o ensino básico no Brasil, especialmente a partir da década de 1970, permitiram a criação de um importante conjunto de dados e interpretações sobre o papel das escolas (sistemas escolares) na produção do fracasso escolar. (SOUZA PATTO, 1990; BRANDÃO; BAETA; DUTRA, 1982) Embora as escolas públicas tenham sido o principal objeto de estudo sobre a questão, recentemente investigações sobre escolas de prestígio têm indicado que o fracasso escolar não é privilégio do setor público. (MANDELERT, 2010; 2012)

Desde 1998 o Grupo de Pesquisas em Sociologia da Educação (Soced/PUC-Rio) desenvolveu um amplo programa de investigação (com a participação de pesquisadores doutores colaboradores e mais de uma dúzia de pós-graduandos desenvolvendo suas pesquisas de doutorado e mestrado) tendo por objetivo conhecer os processos de produção de qualidade do ensino em diferentes contextos, estudando-os em diferentes escalas de análise (BRANDÃO, 2008) que combinam abordagens quantitativas e qualitativas. Na suposição de que entre os grupos mais habilitados para a seleção de instituições escolares de qualidade estariam professores e pesquisadores universitários, iniciamos o programa com um questionário aplicado a docentes/pesquisadores, com filhos em idade escolar, de uma universidade de grande prestígio na cidade do Rio de Janeiro. (BRANDÃO; LELIS, 2003) Para nossa surpresa, a maioria dos filhos desses professores universitários, não estava matriculada em algumas das mais conhecidas escolas do município do Rio de Janeiro, consideradas como lócus privilegiado da produção de elites escolares 5. A desconstrução de nossa hipótese inicial sobre os processos de escolarização de filhos de elites acadêmicas levou-nos a reformular o desenho de nossa pesquisa.

Optamos então por investigar o perfil do público - famílias e alunos das 8ª séries do ensino fundamental (atualmente 9º ano) - e as equipes pedagógicas (professores, coordenadores e diretores) de algumas das escolas de maior prestígio na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, buscamos as famílias e os agentes escolares a partir de uma seleção de escolas. Esse conjunto de escolas era composto pelas instituições melhor posicionadas nos rankings divulgados à época (2001-2002) pela mídia a partir da classificação de seus egressos nos vestibulares das universidades e carreiras mais disputadas da cidade, configurando assim uma aproximação dos critérios utilizados pelas famílias e o público em geral para identificar as "melhores escolas" ou aquelas de maior prestígio e reconhecimento público pela qualidade do ensino ministrado.

Definimos na construção dos questionários para realizar um novo survey nestes estabelecimentos, os principais temas/conceitos, usualmente tratados pelas investigações referentes ao desempenho escolar6, desenvolvendo novos instrumentos com as questões formuladas a partir destes conceitos. Nesse segundo movimento de pesquisa - de 2002 a 2004 - os instrumentos de pesquisa foram reconstruídos e aplicados a pais, professores e alunos das 8ª séries/9º anos de seis escolas: quatro privadas (uma confessional tradicional, uma alternativa 7, uma escola bilíngue e outra de cultura judaica) e duas públicas federais (sendo uma delas um colégio de aplicação de uma universidade federal).

Além dos questionários, a equipe fez observações no espaço escolar8 durante a aplicação do survey e, posteriormente, no retorno aos estabelecimentos para apresentar os resultados alcançados. Desenvolvemos assim um novo movimento de investigação, numa perspectiva qualitativa, com entrevistas com os agentes escolares e algumas famílias, que resultou também na realização de estudos de caso no período subsequente (2004 a 2007). Este retorno ao campo para o refinamento e aprofundamento da análise logrou, entre outros aspectos, caracterizar melhor o corpo docente destas escolas (CERDEIRA, 2008) e realçar contrastes relevantes entre as instituições em termos de clima escolar e estilos de gestão. (MEDEIROS, 2006; GALVÃO, 2009; PAES DE CARVALHO; CANEDO, 2012)

Renovando nosso escopo de investigação sobre os processos de produção da qualidade da educação a partir de 2008, sem perder de vista os aprendizados consolidados ao longo dos anos anteriores de pesquisa, a equipe do Soced/PUC-Rio empreendeu um novo survey no biênio 2009/2010, ampliando desta feita o universo investigado na cidade do Rio de Janeiro para também abranger escolas públicas municipais com bons resultados. Inspirados na perspectiva relacional de análise proposta por Bourdieu, desenhamos novos questionários e grades de observação que também pudessem apreender diferentes aspectos da cultura e da gestão escolar. A expectativa era investigar o impacto destes fatores no desenvolvimento do habitus escolar dos alunos e desta forma a qualidade de ensino, considerando também a relação de cada escola com as famílias de seus alunos.

Optamos, então, por aprofundar o estudo em escolas privadas ainda não investigadas e incluir quatro escolas da rede municipal de ensino no universo da pesquisa. Para isso, considerando a consolidação das avaliações em larga escala e a disponibilização pública dos dados por escola, antes inexistente, utilizamos os resultados do Enem em 2005, 2006 e 2007 para selecionar quatro escolas privadas ainda não investigadas que estivessem entre as 20 primeiras colocadas nessas três edições do exame. No caso das escolas públicas municipais, selecionamos quatro unidades que ofertavam ensino fundamental completo9, com pelo menos 800 alunos matriculados10 e que, submetidas às avaliações externas em 2005 e 2007, tivessem resultados acima da média da rede municipal nas duas edições da Prova Brasil. Ainda no caso das escolas públicas, consideramos também sua distribuição espacial em diferentes regiões e contextos (Coordenadorias Regionais de Educação - CREs) da cidade e contemplamos quatro faixas diferentes de nível socioeconômico médio dos alunos de 9º ano em 2007, a partir das informações dos questionários contextuais da Prova Brasil. (PAES DE CARVALHO; FELIPE; MANDELERT, 2011) Desta forma chegamos a um subconjunto formado por algumas das escolas municipais de melhor desempenho na cidade do Rio de Janeiro, que atendiam públicos diferenciados e se situavam em diferentes contextos na distribuição geográfica das oportunidades sociais e educacionais da cidade, cuja relevância tem despertado atenção crescente dos pesquisadores no que toca às relações entre famílias e escolas. (ALVES, 2010)

Esse programa de pesquisa desenvolveu-se graças ao trabalho integrado da pesquisa-chave do Soced/PUC-Rio com as dissertações e teses desenvolvidas pelos pós-graduandos11. Essas investigações ampliaram e aprofundaram aspectos específicos das instituições investigadas, dos seus agentes e das suas práticas, que estariam contribuindo para a construção da imagem de qualidade de ensino corroborada em boa medida pelas avaliações sistêmicas. O resultado deste intenso trabalho em equipe nos permitiu elaborar um conjunto de hipóteses sobre os contextos sociais, instituições e processos de construção de qualidade de ensino, dos quais, a seguir, destacamos alguns aspectos.

Escolas, famílias ou alunos?

Desde o Relatório Coleman (1966), a tese do impacto da origem socioeconômica sobre o desempenho escolar tem dominado o campo de investigações e teorizações sobre os processos escolares. A importância deste aspecto tem sido explorada e reforçada por incontáveis investigações e abordagens teórico-metodológicas. Décadas de pesquisas sobre o tema foram, gradativamente, evidenciando o caráter complexo e diferenciado da combinação dos fatores intra e extraescolares, seja entre os sistemas de ensino (públicos e privados), seja entre escolas do mesmo subgrupo (federais, estaduais, municipais e escolas privadas).

Há vários fatores intervenientes: localização/contexto sociocultural em que estão inseridas as escolas, condições de trabalho docente, características e condições de trabalho das equipes pedagógicas, características das famílias dos alunos, apoio pedagógico ao processo de escolarização (explicadoras, professores particulares ou mesmo apoio institucional no contra turno), público matriculado, expectativas sociais tanto dos alunos e famílias como dos agentes escolares, acesso a bens culturais que favorecem a escolarização bem-sucedida etc.

Entre outros aspectos, o estudo das escolas municipais evidenciou a enorme distância entre os padrões de trabalho pedagógico nas escolas municipais e os das outras escolas que investigamos (federais e instituições privadas12). Cabe ressaltar que, ainda que a liderança da equipe de gestão tanto nas escolas públicas como nas privadas se tenha mostrado claramente relevante, a descrição das oito escolas pesquisadas e de suas respectivas condições de gestão13 mostrou diferenças estruturais impressionantes, que delimitam as possibilidades e os desafios do exercício deste papel nos processos de construção e manutenção da qualidade do ensino nos diferentes contextos escolares. (PAES DE CARVALHO, 2013)

Quando se fala de desempenho escolar com base na divulgação de avaliações externas, nem sempre essas diferenças são percebidas pelos não especialistas, o que tende a fundamentar as ideologias da centralidade do mérito e esforço individual no caso dos alunos bem-sucedidos. Nesse sentido, os conceitos de capital social, cultural, material e simbólico e os processos de transferência de capitais de Bourdieu foram recursos fundamentais para a aprofundar e ampliar nossa compreensão e análise do material empírico produzido pela equipe Soced. Portanto, além das condições institucionais, a estrutura de capital das famílias dos estudantes, as condições estruturais e contextuais, o grupo de pares (dos professores e turmas/grupos de alunos) e as condições de escolha da escola (assim como a impossibilidade de escolha) são balizas fundamentais na construção da qualidade de ensino.

Quem escolhe?

A escolha das escolas pelas famílias tem sido tema importante de pesquisas na área da sociologia da educação. As condições sociais e o capital informacional das famílias são considerados, pela maioria dos estudos, como os principais determinantes das "boas" escolhas. Ou seja, responsáveis pelas condições de opção pelas escolas (públicas ou privadas) que oferecem ensino de qualidade e encontram-se bem posicionadas nos rankings das avaliações de desempenho. As camadas médias, neste sentido, são tradicionalmente reconhecidas como fortemente empenhadas na escolha das escolas e no monitoramento da escolarização dos filhos que tendem a garantir bons desempenhos. Diferentemente das elites, que teriam uma posição mais laxista em relação à escola (BRANDÃO; LELIS, 2003), e das camadas populares, cujo acompanhamento escolar dos filhos é mais condicionado pela limitação dos recursos materiais e sociais, as camadas médias tendem a investir fortemente na instituição escolar, como garantia de ascensão social para os filhos.

Entretanto, bem menos importância e sobretudo menos divulgação, tem sido dada à "escolha dos alunos/famílias" pelas escolas. O princípio legal da "liberdade de escolha" da educação pelas famílias tem obscurecido o caráter performativo das instituições escolares na seleção ou atração de um determinado perfil de alunos14. Em nossa equipe, uma dissertação de mestrado sobre websites escolares (WALDHELM, 2009) analisou as estratégias de conteúdo e marketing desenvolvidas pelas instituições de prestígio, como recursos para atrair a clientela "adequada" aos seus estilos e valores pedagógicos. As "escolhas" neste âmbito têm assim um sentido de mão dupla, ainda que a faixa da escolha das famílias seja mais ampla, principalmente devido a fatores legais e culturais.

Nosso material empírico, em especial as entrevistas com diretores e pais, permitiu-nos perceber que as escolhas dos pais, além do prestígio da escola, são motivadas pelas diferentes opções ideológicas relacionadas com o estilo ou a filosofia educacional (confessional, enfoque cultural, ênfase disciplinar e na liberdade, dimensão política etc.) das escolas. No que se refere às escolas públicas investigadas, as respostas do survey e os estudos de caso realizados confirmaram a prevalência do capital cultural das famílias no processo de escolha, referendado também nas informações disseminadas nas redes sociais em que estas circulam. Não poucas vezes as escolhas na rede pública ocorrem a despeito da distância entre o local de residência e a escola dos filhos, expressando uma considerável mobilização familiar em busca da qualidade da escolarização da prole. (ALVES, 2010)

Condições institucionais de produção de qualidade de ensino

Além do aspecto já assinalado das condições de trabalho dos professores, há que se destacar também as práticas institucionais de seleção dos professores e de provimento de condições didático-pedagógicas especiais para os discentes e docentes. Nosso programa de pesquisa, através dos questionários (alunos, pais, professores), das observações e das entrevistas com diferentes tipos de agentes, permitiu a produção de material empírico bastante elucidativo sobre a variedade de condições sob as quais são gerados os processos de produção de qualidade de ensino e socialização escolar. Considerando os diferentes movimentos de pesquisa, fizeram parte da nossa investigação 14 escolas nas quais foram aplicados 2597 questionários (1292 alunos, 1045 pais, 260 professores), cerca de 200 horas de observações do quotidiano escolar e mais de 20 entrevistas com gestores, professores e famílias de alunos, além das conversas informais desenvolvidas durante o trabalho de campo.

As escolas privadas que estudamos têm, em seu corpo docente, professores mais experientes, procedentes de universidades reconhecidas, com passagem pelo ensino público15, com salários mais atrativos e com um grande número deles indicados por pares. A gestão escolar vai além da direção institucional contando com uma estrutura didático-pedagógica muito mais ampla do que no comum das escolas (pública ou particulares). A direção conta com coordenações específicas de turno, de segmentos e das disciplinas, assim como de especialistas para as atividades complementares. As instalações são amplas, dotadas de laboratórios, quadras de esporte, bibliotecas, salas de arte e espaços de recreação bem cuidados.

No caso das escolas federais, os concursos públicos, a dedicação exclusiva, os níveis salariais e a estabilidade funcional criam condições atrativas aos docentes melhor preparados, semelhantes e até mesmo superiores às condições oferecidas pelas escolas privadas de prestígio. O sentimento de pertencimento, associado ao capital simbólico conferido pelo nome da escola16 completam o compromisso com o trabalho, inclusive no sentido de manter o "padrão de qualidade", muitas vezes "ameaçado" pelas novas normas de sorteio para o preenchimento de vagas, o que levou, segundo depoimentos dos agentes pedagógicos, os professores a trabalharem com grupos de alunos cada vez mais heterogêneos em termos de estrutura de capitais (social, cultural, econômico etc.).

No que se refere às escolas municipais que investigamos, sua posição e prestígio no contexto das diferentes Coordenadorias Regionais de Educação - CREs (que cobrem diferentes regiões da cidade) normalmente atrai aquelas famílias com maior capital social e informacional e que, em muitos casos, podem fazer maiores deslocamentos na cidade para garantir a frequência escolar dos filhos nas melhores escolas municipais, como já assinalado. São, pois, na maioria dos casos, grupos com condições sociais superiores entre os segmentos populares, e até mesmo setores das camadas médias que fazem suas escolhas dentro de maiores limites econômicos ou em função de princípios ideológicos.

Outra característica que pudemos observar nas instituições públicas municipais foi a centralidade da direção na gestão administrativo-pedagógica17. Normalmente, suas diretoras estão há décadas nas escolas e na mesma função, desenvolveram um perfil de liderança legitimada entre os pares, tendem a ser centralizadoras e, muitas vezes, até mesmo autoritárias. São respeitadas pelos professores e temidas pelos menos compromissados. As equipes docentes abrigam poucos novatos, porque os mais experientes e melhores professores percebem que encontram ali parceiros dispostos a manter o prestígio adquirido junto à população e aos dirigentes municipais. Entretanto, em que pesem as características comuns descritas acima, é importante assinalar que as instituições investigadas têm identidades muito marcadas, e são de certa forma "únicas" dentro de suas categorias administrativas formais.

A mobilização familiar

O investimento familiar tradicionalmente foi enfatizado como uma característica típica das classes médias (pequena burguesia na França). Entre nós o contraste entre as disposições escolares (habitus) das camadas médias e das populares foi objeto de inúmeras pesquisas, focalizando o abismo entre as exigências do sistema escolar e as condições das práticas sociais e escolares dos diferentes grupos sociais. O trabalho de Bernstein (2003) sobre os códigos linguísticos (elaborado e restrito) adquiridos desde a socialização familiar (primária) aprofundou a percepção do impacto dos habituslinguísticos sobre o desempenho escolar.

Até as décadas finais do século XX, as investigações na área prestavam pouca atenção ao que Lahire (1997) caracterizou como "as razões do improvável": o sucesso escolar nos meios populares. Jailson Souza e Silva (2003), membro de uma das primeiras equipes do Soced, desenvolveu em sua tese de doutorado uma pesquisa pioneira, entre nós, sobre as estratégias (no sentido bourdieusiano) de ampliação da estrutura de capitais por jovens das camadas populares em suas trajetórias até a universidade.

Nogueira (2010), com base em mais uma de suas revisões de literatura no campo da sociologia da educação, chama a atenção para o que seriam as novas tendências das relações das classes médias com a escola. Destaca a "parentocracia"18 como um novo tipo de estratégia desses pais, cada vez mais dispostos a investir, para além da escola, recursos financeiros com o objetivo de ampliar os horizontes sociais, culturais e informacionais dos filhos, viabilizando viagens, experiências multiculturais e convívio com os "diferentes", em relação à sua própria classe e seus valores, numa abertura muito maior à heterogeneidade como uma forma de adequar-se às novas exigências de empregabilidade decorrentes das transformações do mercado global nas últimas décadas.

A guisa de conclusão sempre provisória...

A clareza da equipe Soced sobre a complexidade empírico-teórica implicada nas pesquisas sobre a mobilização das famílias em relação a escolaridade dos filhos contribuiu fortemente para uma interpretação matizada das relações famílias-escolas. As hierarquias sociais, seja com base no capital cultural, seja no econômico (BRANDÃO, 2003), desempenham um papel predominante na produção dos rankings escolares e, de certa forma, condicionam e alteram as diferentes articulações entre as práticas institucionais e os recursos de mobilização familiar.

A qualidade de ensino, portanto, adquire formatos próprios aos contextos institucionais e às condições infra e superestruturais de cada espaço social investigado. As representações e autorrepresentações sociais dos agentes escolares são hoje sobejamente reconhecidas como fatores de desempenho, o que contribui para uma consciência maior dos investigadores sobre os cuidados necessários ao fazer comparações no campo da sociologia escolar.

Cabe por fim destacar que o debate sobre a qualidade de ensino não pode obscurecer que a lógica performativa dominante, nas avaliações nacionais e internacionais (Enem/Prova Brasil/Pisa-OCDE), tem contribuído para o aprofundamento das desigualdades sociais e escolares, e muitas vezes legitimado a suposição de que a escolaridade depende exclusivamente do interesse, esforço e competência de seus agentes: professores, famílias, alunos e gestores.

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  • 1
    As pesquisas que serão apresentadas contaram com o apoio do CNPq e da Faperj.
  • 2
    Ver a respeito: Binzer, I. Os Meus Romanos: Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Trata-se de interessante depoimento de uma preceptora alemã no Brasil do século XIX.
  • 3
    Durante o Império desenvolveram-se intensas discussões sobre a necessidade de escolarização pública as quais geraram, entre outras iniciativas, o Ato Adicional de 1834. A partir de 1860, algumas províncias tentaram criar seus sistemas de ensino, embora bastante diversos em suas preocupações, com a substituição das "escolas de primeiras letras" por "grupos escolares" Ver a respeito: Nóbrega, 2000.
  • 4
    Entre os quais o mais conhecido foi Head Start, criado em 1965 nos Estados Unidos para atender crianças de baixa renda e suas famílias e que no Brasil teve uma versão televisiva, o "Vila Sésamo", muito popular entre as crianças com acesso à televisão nas décadas 1970 e 1980.
  • 5
    Chamamos de elites escolares os alunos que frequentavam as escolas de maior prestígio na cidade, pois o simples nome dessas escolas confere um capital simbólico ao processo de escolarização dos jovens que as frequentam.
  • 6
    Por exemplo, no caso dos alunos: trajetórias de escolarização, contexto e clima escolar, envolvimento ou monitoramento dos pais durante a escolarização dos filhos, caracterização socioeconômica familiar, práticas culturais das famílias.
  • 7
    Algumas dessas escolas questionam essa adjetivação que, no entanto, era bastante utilizada pelo senso comum pedagógico.
  • 8
    Salas de aula, recreios, bibliotecas, corredores, entrada e saída dos alunos etc.
  • 9
    Cabe lembrar que a rede municipal da cidade do Rio de Janeiro não oferta o Ensino Médio. Por esta razão selecionamos escolas que tinham o Ensino Fundamental completo para que sua complexidade não fosse muito diferente das escolas privadas selecionadas, que ofereciam tanto o Ensino Fundamental como o Médio.
  • 10
    Estes critérios foram definidos para que as instituições apresentassem porte equivalente às outras já investigadas.
  • 11
    Ver a respeito: Xavier, Canedo e Brandão, 2013.
  • 12
    O senso comum sobre o ensino tende a supor que o setor privado tem qualidade superior a do setor público. Essa crença advém também da hipótese de que o que se paga diretamente vale mais e da pouca consciência dos cidadãos do financiamento dos serviços públicos pelos impostos obrigatórios. Isabel Lelis, da PUC-Rio, desenvolve atualmente uma interessante pesquisa sobre escolas privadas que atendem às camadas médias baixas e populares.
  • 13
    Nas escolas privadas havia, em média, entre 15 e 20 profissionais ocupados em funções direta ou indiretamente vinculadas à gestão pedagógica, além dos responsáveis diretos pela direção, e de toda a estrutura de pessoal de apoio disciplinar e operacional (portaria, inspetores distribuídos pelos diversos espaços da escola, coordenadores de turno, pessoal de limpeza e manutenção etc.). Já nos estabelecimentos públicos municipais, as equipes de gestão eram compostas por um diretor e seu adjunto, com o apoio um coordenador pedagógico apenas (e por vezes nem isso), um a quatro funcionários na área administrativa e mais seis ou sete funcionários responsáveis pela limpeza (nesse caso terceirizados) e alimentação.
  • 14
    Alguns autores vêm dando atenção à dinâmica do mercado (setor privado) e "quase mercado" escolar (setor público). Ver a respeito: Costa; Koslinski, 2012. Muitas escolas alegam falta de vagas às famílias que não têm o perfil adequado às expectativas das escolas de bons desempenhos nas avaliações.
  • 15
    A experiência no setor público do ensino (redes estaduais e municipais) - onde geralmente as condições materiais e sociais são menos favoráveis do que as encontradas nas escolas privadas que estudamos - exige o desenvolvimento, pelos professores, de uma pluralidade de estratégias didáticas para obter bons resultados com clientelas mais heterogêneas e recursos materiais mais escassos.
  • 16
    Ver a respeito: Galvão (2009).
  • 17
    No caso das escolas privadas e federais que estudamos, a gestão é muito mais partilhada e menos centralizada.
  • 18
    BROWN (1990) The third wave: education and the ideology of parentocracy. British Journal of Sociology of Education, v. 11, n. 1, 1990, apud Nogueira, M. A. (2010).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2015
  • Aceito
    26 Maio 2015
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