A expressão “bolsonarismo” irrompeu no debate político repentinamente e logo se alastrou nas análises políticas. Buscas realizadas no arquivo da Folha de S.Paulo , do Estadão e do Google acadêmico, com o intuito de rastrear o súbito crescimento do termo, revelam que a maioria das primeiras menções surgem — timidamente — em 2017. No entanto, é apenas no ano das eleições presidenciais, em 2018, que as referências e análises sobre o “fenômeno bolsonarista” explodem.
Embora tenham sido encontrados apenas cinco reportagens ou textos acadêmicos que se referiram ao “bolsonarismo” antes de 2018, os primeiros registros são representativos. Ainda em 2014, Conrado Hübner Mendes escreveu uma coluna no Estadão intitulada: “Reféns do Bolsonarismo”. O texto alertava contra “surtos agudos de primitivismo político”, que não aceita as regras do regime democrático, dos princípios e direitos fundamentais da Constituição de 1988, nem mesmo da decência política. Tampouco compactua com uma interlocução pautada em fatos e evidências, preferindo “frases de efeito moral” impregnadas de homofobia, sexismo, racismo e de desqualificação do adversário. Para Hübner Mendes, esse surto primitivista representa um “Brasil que ainda nos espreita da esquina”, e que tem mantido diversas lideranças políticas em silêncio — como “reféns” —, pelo temor de uma derrota eleitoral (Mendes, 2014MENDES, Conrado Hübner. (2014). Reféns do Bolsonarismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo. ).
Já no ano de 2017, uma reportagem da Folha de S.Paulo destacava o movimento político liderado por Bolsonaro. Sob o título “Bolsonaro arrebata direita jovem e nordestina com ideologia ‘pá, pá, pá’”, a versão impressa do jornal publicava logo abaixo, na mesma página, um texto com a chamada “‘Bolsonarismo’ vai de MEC sob comando militar a ‘pá, pá, pá’ contra estupradores”. Os dois textos narram o alvoroço em torno da visita de Bolsonaro a Natal, onde foi recebido por uma multidão (com uma maioria de jovens), e não poupavam na caracterização dos impactos de um político que cativava a juventude e era visto como um herói, uma sensação, ou um mito. Também relataram falas de apoiadores e de Bolsonaro contra o comunismo, o feminismo e “a esquerda [que] se droga, transa com animal, com gente do mesmo sexo”. Em contrapartida, Bolsonaro elogiou o serviço militar que, segundo ele, “ensina recrutas a usar ‘sr’ e ‘sra’ e a ter higiene”, dentre outros desatinos (Balloussier e Leoni, 2017aBALLOUSSIER, Anna Virginia; LEONI, Marcus. (2017a). Bolsonaro arrebata direita jovem e nordestina com ideologia ‘pá, pá, pá’. Folha de S.Paulo, São Paulo. , 2017bBALLOUSSIER, Anna Virginia; LEONI, Marcus. (2017b). ‘Bolsonarismo’ vai de MEC sob comando militar a ‘pá, pá, pá’ contra estupradores. Folha de S.Paulo, São Paulo. ).
Em “Bolsonaro, o Brasil que desistiu”, coluna na Folha de Celso Rocha de Barros, o tema em debate foi a “visão que Jair Bolsonaro defende para o Brasil” e o abandono de ideais de direitos humanos, de diversidade e até mesmo de qualquer “pretensão de pertencer ao Ocidente iluminista”. Segundo Barros, “o ideal de polícia de Jair Bolsonaro é um esquadrão da morte sem qualquer limite legal. Algo nesta linha está em implantação nas Filipinas. Se o Brasil desistir de ser Estados Unidos e topar ser Filipinas, Bolsonaro tem chances de vitória”. Na conclusão, o bolsonarismo aparece descrito como algo infantil (Barros, 2017BARROS, Celso Rocha de. (2017). Bolsonaro, o Brasil que desistiu. Folha de S.Paulo, São Paulo. ).
Por fim, o artigo de João Ricardo Dornelles, “Direitos Humanos em Tempos Sombrios” ( 2017DORNELLES, João Ricardo. (2017). Direitos Humanos em Tempos Sombrios: barbárie, autoritarismo e fascismo do século XXI. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 5, n. 1, pp. 153-168. ), discutia a crise da “era dos direitos” em meados da década de 2010 e a manifestação da intolerância, do racismo, de valores fascistas e da xenofobia, combinados a diversos outros retrocessos de caráter ultraconservador. A menção ao bolsonarismo no artigo é feita de passagem. É significativo, todavia, notar que o bolsonarismo é listado em um contexto mais amplo de movimentos políticos ocidentais que estão promovendo uma guinada à direita, desacreditando as instituições democráticas, assim como as noções de igualdade e liberdade. São categorizados nesse viés, o Tea Party, o ressurgimento da Ku Klux Klan, o fenômeno Trump, a Frente Nacional francesa ( Rassemblement National ) e grupos brasileiros como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o bolsonarismo.
Nesses textos publicados entre 2014 e 2017, em suma, já haviam sido diagnosticadas facetas como a capacidade de atração e mobilização das massas; a recusa em aceitar a Constituição de 1988, as práticas democráticas e os direitos fundamentais; bem como o potencial destrutivo do bolsonarismo e a sua similitude com mobilizações correspondentes alhures. Desde então, o termo frequenta as análises políticas, com intensidade crescente à medida que o movimento se tornou vitorioso na corrida eleitoral. Tal como anunciado no enigma da esfinge, antes de conseguirmos decifrá-lo — com rigor teórico e científico —, fomos “devorados”, e os planos bolsonaristas de desmonte e destruição alcançaram amplos e profundos resultados. Passado todo esse processo, sete anos depois, nossa tarefa intelectual de decifrar o enigma ainda persiste: como entender o bolsonarismo, afinal? Como defini-lo? Quais são suas especificidades em relação aos movimentos correspondentes em outros países?
O número 122 da Lua Nova é dedicado, especialmente, a trazer contribuições teóricas e analíticas a essas questões. A edição abre com o artigo “Da destruição como paradigma”, de Renato Lessa, que caracteriza o bolsonarismo como um projeto destrutivo, sem qualquer precedente na história ideacional ou política, e cujo entendimento deve ser rastreado em seus efeitos de devastação da vida na pandemia, das populações originárias e do próprio quadro político inaugurado desde a Constituição de 1988. Uma vez eliminadas as garantias constitucionais, restaria o usufruto de uma “liberdade natural” em chave hobbesiana. A seguir, Thomás Zicman de Barros discorre, em “Populismo, crise estética e massificação: reflexões sobre a transgressão no lulismo e no bolsonarismo”, sobre a relação entre populismo e transgressão estética, isto é, entre a mobilização por líderes populistas de massas invisibilizadas e a crise estética. A partir da noção de “partilha do sensível”, de Jacques Rancière, o autor chama a atenção para os regimes de visibilidade que separam o que pode e o que não pode aparecer na esfera pública, e para os efeitos perversos daquela partilha em sociedades de massa.
O texto subsequente — “Sistema e antissistema na crítica do bolsonarismo” —, de Pedro Luiz Lima e Jorge Chaloub, analisa criticamente duas obras que examinam a gênese histórica do bolsonarismo: “Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro”, de Marcos Nobre, e “Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição”, de Rodrigo Nunes. Ambas as obras articulam o entendimento do bolsonarismo e sua gênese a uma interpretação da crise do sistema político brasileiro, levando-os a uma definição do conceito de bolsonarismo pautada no antagonismo sistema-antissistema. Para Lima e Chaloub, entretanto, há limites na identificação unilateral do bolsonarismo como antissistema, evidenciados na negligência do processo de radicalização da direita tradicional na última década e na naturalização das narrativas da ultradireita sobre sua própria trajetória.
Adriana Escosteguy, por sua vez, busca compreender a dinâmica de radicalização do antagonismo social e político em “Um Brasil dividido? Reflexões sobre a polarização política e social no Brasil contemporâneo”. Apoiando-se em ampla bibliografia, com dados sobre comportamento político e surveys sobre as percepções da população, Escosteguy atesta que a polarização não é mero efeito circunstancial da conjuntura política e desenvolve uma hipótese sobre suas raízes estruturais. Para além da surrada crítica da polarização política no contexto de emergência do bolsonarismo, trata-se de deslocar a análise para pensar o bolsonarismo como efeito, e não como causa, de uma dinâmica estrutural de polarização.
Em “A Palavra e a coisa: bolsonarismo como convergência, horizonte, infraestrutura, ecologia e máquina”, Rodrigo Nunes propõe-se a examinar as condições de formação e consolidação do bolsonarismo a fim de estabelecer contornos mais rigorosos ao conceito. Essa força social e política é entendida, então, antes de tudo, como uma convergência de elementos que ganharam identidade e direção em 2018. Aqui, em termos análogos aos do artigo de Lessa, haveria no bolsonarismo um horizonte político de retraimento do Estado, com a postulação radical de uma liberdade que remeteria, em sua afirmação da violência, ao estado de natureza hobbesiano. Para Nunes, o caso brasileiro de emergência da extrema-direita não deve ser tratado isoladamente e tampouco apresenta qualquer inovação ideológica notável, devendo antes ser concebido como efeito de uma ecologia política e de uma convergência de atores e de oportunidades.
Os textos seguintes contribuem com análises empíricas de segmentos cruciais para a formação do bolsonarismo, quais sejam, os operadores de segurança e o campo evangélico. A partir de trabalho etnográfico, Louise Cadorel explora a constituição do discurso punitivista em “Compreendendo o ‘punitivismo’ desde um espaço profissional: os agentes de segurança socioeducativa no Rio de Janeiro”. A autora analisa o impacto do contexto das unidades socioeducativas na consolidação de valores e visões de mundo afins ao punitivismo entre os profissionais que trabalham diretamente com jovens infratores detidos pelo Estado. Mais uma vez, percebemos como a violência é parte fundamental não só da ideologia bolsonarista, mas também do contexto que possibilitou sua ascensão eleitoral.
Margaux de Barros, autora de “Entre a fé e a expressão política: etnografia das interações entre pastores e fiéis evangélicos durante as eleições de 2022 no Rio de Janeiro”, parte de seu trabalho de campo em templos da Zona Oeste carioca no segundo semestre de 2022 para analisar as dificuldades da esquerda diante da hegemonia bolsonarista entre o eleitorado evangélico. De Barros ilustra, com suas descrições etnográficas, a delicada entrada da campanha eleitoral nos cultos e as reações adversas à mistura explícita entre fé e política. Complexifica-se, assim, os lugares-comuns sobre a entrada do bolsonarismo nas igrejas evangélicas e percebem-se possibilidades para uma reversão da hegemonia atual.
Esta edição conta ainda com mais dois artigos avulsos. “Desenvolver para preservar: o desenvolvimentismo conservador de Juarez Távora durante a República de 1946”, de Helio Cannone, é dedicado ao pensamento político desse importante ator militar e político da República de 1946, ex-candidato à presidência pela União Democrática Nacional (UDN) nas eleições de 1955, ex-diretor da Escola Superior de Guerra (ESG), além de um dos formuladores da doutrina de segurança nacional. Nesse estudo, Cannone busca interpretar o projeto desenvolvimentista de Távora para o Brasil, tendo em vista sua adesão ideológica ao conservadorismo. O estudo dos discursos e pronunciamentos de Juarez Távora ilumina, portanto, um modo possível de articular um ponto de vista conservador com a defesa da modernização, isto é, da adoção de bandeiras desenvolvimentistas que estivessem aliadas a ideais de preservação da ordem, da tradição e do costume.
Diogo Cunha, por sua vez, contribui com “A construção de uma sociedade de iguais. O problema da igualdade na teoria democrática de Pierre Rosanvallon”. O artigo dedica-se a reconstruir a crítica de Rosanvallon às teorias da justiça de John Rawls e Ronald Dworkin, e a mostrar como esse diálogo contribuiu para a elaboração da concepção rosanvalloniana de “igualdade-relação”, que abre novos caminhos para se refletir política e teoricamente acerca da igualdade diante dos atuais desafios e dilemas democráticos contemporâneos.
Os nove artigos deste número foram enviados espontaneamente por seus autores e foram avaliados positivamente por nossos pareceristas, a quem novamente agradecemos.
Bibliografia
- BALLOUSSIER, Anna Virginia; LEONI, Marcus. (2017a). Bolsonaro arrebata direita jovem e nordestina com ideologia ‘pá, pá, pá’. Folha de S.Paulo, São Paulo.
- BALLOUSSIER, Anna Virginia; LEONI, Marcus. (2017b). ‘Bolsonarismo’ vai de MEC sob comando militar a ‘pá, pá, pá’ contra estupradores. Folha de S.Paulo, São Paulo.
- BARROS, Celso Rocha de. (2017). Bolsonaro, o Brasil que desistiu. Folha de S.Paulo, São Paulo.
- DORNELLES, João Ricardo. (2017). Direitos Humanos em Tempos Sombrios: barbárie, autoritarismo e fascismo do século XXI. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 5, n. 1, pp. 153-168.
- MENDES, Conrado Hübner. (2014). Reféns do Bolsonarismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024