Resumo
O presente trabalho busca analisar os efeitos do denominado “pacto narcísico” da branquitude sobre a psique dos indivíduos de cor. Esse acordo, em suma, é caracterizado por um contrato não verbal entre corpos brancos para manutenção de seus privilégios. O objetivo deste estudo é investigar as reverberações desse pacto em corpos negros, principalmente no que se refere a suas emoções e afetos, a partir de dados bibliográficos e de experiências clínicas. Constituir-se como negro em um universo que preza pelo ideal da brancura significa experimentar um “não lugar”, que resulta em danos psíquicos à comunidade negra. Desse modo, apostamos na decolonização da psicologia como ferramenta para criar novas formas de ser e de estar no mundo.
Palavras-Chaves: Branquitude; Racismo; Saúde Mental; Decolonização
Resumen
Este trabajo busca analizar los efectos del denominado “pacto narcisista” de la blanquitud en la psique de las personas de color. Este acuerdo, en suma, se caracteriza por un contrato no verbal entre cuerpos blancos para mantener sus privilegios. El objetivo de este estudio es investigar las reverberaciones de este pacto en los cuerpos negros, especialmente en lo que respecta a sus emociones y afectos, a partir de datos bibliográficos y experiencias clínicas. Constituirse como negro en un universo que valora el ideal de la blancura significa experimentar un “no lugar”, lo que resulta en daños psíquicos a la comunidad negra. De eta manera, apostamos por descolonizar la psicología como herramienta para crear nuevas maneras de ser y estar en el mundo.
Palabras-claves: Blanquitud; Negro; Salud mental; Descolonización
Abstract
This paper aims to analyze the effects of the so-called “narcissistic pact” of whiteness on the psyche of individuals of color. This agreement, in short, is characterized by a nonverbal contract between white bodies to maintain their privileges. This objective of this study is to investigate the reverberations of this pact on black bodies, especially with regard to their emotions and affections, based on bibliographical data and clinical experiences. Constituting oneself as black in a universe that values the ideal of whiteness means experiencing a “non-place”, which results in psychic damage to the black community. Therefore, we are committed to decolonizing psychology as a tool to create new ways of being in the world.
Keywords: Whiteness; Black; Mental Health; Decolonization
Introdução
Intelectuais como Mário Theodoro e Cida Bento enxergam o racismo e a branquitude de um ponto de vista histórico e coletivo. Para Mário Theodoro (2022, p. 239) o racismo se manifesta de duas maneiras: enquanto preconceito e discriminação no microespaço social, mas também enquanto exercício da branquitude, do biopoder e da necropolítica no macroespaço social. Em outros termos, a branquitude pode ser vista como um legado do exercício do racismo em longa duração no Brasil. Para Cida Bento (2017, p. 24), a branquitude é um contrato subjetivo não verbalizado, no interior do qual as novas gerações brancas podem se beneficiar de tudo o que foi acumulado por décadas de supremacia branca.
Para além da branquitude pensada nas chaves do macroespaço social e do pacto narcísico, nossa intenção é refletir sobre os impactos subjetivos dela nas pessoas pardas e pretas, razão pela qual a branquitude é lida por nós também enquanto um efeito psíquico do racismo. Inicialmente, apresentamos essa leitura mais objetiva e histórica, depois nos direcionamos a esse questionamento subjetivo, onde a branquitude aparece como brancura, como ideal diante do qual a pessoa negra deve se curvar ou perseguir.
Dessa maneira, no primeiro momento, trabalhamos com o conceito de “branquitude” proposto por Cida Bento (2022), refletindo sobre os efeitos do racismo na formação do Brasil, apresentando essa chave de análise mais coletiva e histórica dos fenômenos do racismo e da branquitude. No segundo tópico, nos voltamos para os impactos do racismo na construção da subjetividade do corpo negro, explorando as implicações em sua condição psíquica e em sua expressão emocional, a partir das reflexões de Neusa Souza e de Isildinha Baptista, propondo, dessa forma, uma chave psíquica centrada no sofrimento. No final deste trabalho, dialogamos de maneira mais próxima com a Psicologia, chamando a atenção para a urgência da decolonização dos saberes e práticas psi (Veiga, 2021).
Ao longo do desenvolvimento histórico da psicologia enquanto ciência explicou-se o racismo tomando o negro enquanto objeto de conhecimento e não enquanto sujeito. Além disso, a própria psicologia, mesmo em suas correntes mais progressistas, via a si mesma como algo alheio ao racismo, como se estivesse imune a ele e pudesse falar desde fora. Apostamos em uma outra estratégia ético-política, incitamos uma psicologia que possa ser construída a partir dos corpos negros, isto é, uma psicologia enquanto saber aberto, produzido e ampliado pelas suas interfaces, bordas e margens. Assim, a psicologia aqui é muito mais um campo de reflexão sobre as formas de sofrimento do que uma disciplina científica departamentalizada.
Racismo e branquitude: impactos históricos e políticos
Devido ao processo de colonização protagonizado por povos brancos europeus, foi imposto ao corpo negro1 um deslocamento para uma categoria inferior, refém da fantasia falaciosa assujeitada pelo civilizador. Essa operação fundamentou a escravidão e, por conseguinte, a captura e aprisionamento dos corpos de cor. Sob o domínio do racismo e da branquitude, a paisagem social foi organizada conforme seu fenótipo, legitimando os desníveis hierárquicos estruturais presentes. O corpo negro, que aceita o local de subalternidade e inferioridade sem contestar, não configura ameaça à branquitude. Entretanto, quando reivindica sua humanidade e seu espaço na sociedade, esse mesmo corpo é tido como incômodo, alvo de perseguições e discriminações raciais de modo mais explícito.
Nessa direção, Tânia Müller e Lourenço Cardoso (2018) definem o invento da branquitude como norma, ao passo que também é situada como um elemento neutro, tomado a partir da perspectiva de como o indivíduo branco enxerga a si mesmo e aos sujeitos não brancos. Em sua gênese, essa acaba por suscitar benefícios materiais e simbólicos à comunidade branca em detrimento aos grupos de cor.
Desse modo, a branquitude é a principal produtora da desumanização do negro. Usualmente tido como um problema, infantilizado, destituído de saber e estereotipado como um todo. Nesse sentido, Cida Bento aponta como a exclusão moral do negro é resultado da branquitude:
A exclusão passa a ser entendida como descompromisso político com o sofrimento do outro. Nesse caso, é importante focalizar uma dimensão importante de exclusão: a moral, que ocorre quando indivíduos ou grupos são vistos e colocados fora do limite em que estão vigendo regras e valores.... O primeiro passo da exclusão moral é a desvalorização do outro como pessoa, e, no limite, como ser humano. Os excluídos normalmente são considerados sem valor, indignos e, portanto, passíveis de serem prejudicados ou explorados. Pelos processos psicossociais de exclusão moral, os que estão fora do nosso universo moral são julgados com mais dureza e suas falhas justificam o utilitarismo, a exploração, o descaso, a desumanidade com que são tratados. (Bento, 2017, p. 5)
Por esse ângulo, é imprescindível investigarmos o fenômeno da branquitude, a fim de compreender os desdobramentos raciais e discriminatórios no país, isto é, os efeitos históricos, sociais, políticos e, principalmente, psíquicos que atuam como pano de fundo da branquitude.
Silvio de Almeida (2019) compreende o racismo como um fenômeno que atua sustentado pela raça, de forma discriminatória e sistemática, revelado por ações conscientes e/ou inconscientes, as quais resultam em prejuízos para alguns grupos e em vantagem para outros. Ele faz questão de especificar e diferenciar as três concepções de racismo: individual, institucional e estrutural. Conforme o autor, a ideia de racismo individual é limitada, dada sua compreensão como uma anormalidade, como uma patologia psicológica ou como um caso restrito a um sujeito particular.
Já na noção institucional, o racismo não se aplica apenas aos sujeitos particulares, sendo resultado da conduta adotada pelas instituições. Essa concepção problematiza o poder como chave da relação racial, tornando o racismo um fundamento de dominação. Dessa forma, possui o poder quem detém o domínio sobre os âmbitos políticos, econômicos e sociais. Contudo, tal domínio é executado conforme parâmetros discriminatórios raciais, que atuam na manutenção de um grupo hegemônico racial no poder (Almeida, 2019). Assim, outro grupo racial enfrentará resistências para estar no poder, colocadas, em suma, pelas práticas de controle exercidas pelo grupo dominante.
Outro entendimento possível é conceber o racismo como decorrente da própria estrutura social, ou seja, do funcionamento natural em que são constituídas as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares, “não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional: o racismo é estrutural” (Almeida, 2019, p. 50). Essa perspectiva possibilita novas formas de pensar os saberes e práticas psicológicas, pois considera que as instituições são a concretização de uma ordem social vigente, ou de um modelo de socialização, de modo que se pode afirmar: as instituições são racistas porque a sociedade é racista.
Mário Theodoro (2022, p. 73) destaca que o racismo atua na união, na forma de pensar e na criação de consensos, contudo não atua na divisão social, sendo essa tarefa realizada pela branquitude, que positiva o racismo, tornando o estereótipo branco e suas características particulares como únicas, como principal referência. Se, por um lado, constituir-se como corpo branco abre portas para a ascensão econômica, moral e social, por outro lado, identificar-se como negro abre portas para a cadeia, o cemitério e o camburão.
Ainda que a desigualdade social tenha crescido nos países ao longo do globo, cada um resulta de um processo distinto e singular. O racismo no Brasil é a base central que orienta e fundamenta a sociedade desigual, desdobrando-se na branquitude e na valorização do corpo branco. Como afirmou Ynaê Lopes dos Santos (2022, p. 16), “não há história do Brasil sem o racismo”. Não por coincidência, a desigualdade persiste acentuada no que contempla a população negra, embora a economia do país tenha crescido substancialmente. Sua absorção no mercado de trabalho é concretizada pelas bordas, isto é, em ocupações associadas ao subemprego e ao âmbito da informalidade.
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2019, p. 14) especifica o que chama de “racismo brasileiro”: ele é assimilacionista, tem em seu centro as noções de cor e embranquecimento e está inscrito em uma ordem que pressupõe desigualdade de tratamento. O embranquecimento foi um dispositivo utilizado para tornar a nação brasileira capaz de se constituir como espelho da civilização europeia na medida em que conseguiria absorver e integrar pardos e pretos. O projeto da “democracia racial” visava exatamente isso. Além dos efeitos nocivos dessa integração forçada no âmbito macrossocial, nosso interesse aqui é também demonstrar a maneira pela qual, subjetivamente, essa assimilação racial se faz a partir do sofrimento da pessoa negra, a qual deve assumir para si um ideal branco impossível de alcançar ao mesmo tempo que constitui o único caminho de ascensão social, como veremos no tópico seguinte a partir da leitura de Neusa Santos Souza.
Ocorreu durante décadas no Brasil uma política de clareamento como uma derivação política desse embranquecimento. Do ponto de histórico e coletivo, houve, por exemplo, um estímulo à chegada de imigrantes europeus como estratégia para lidar com o fim da escravidão. Djamila Ribeiro nos elucida:
após séculos de escravização, viram imigrantes europeus receberem incentivos do Estado brasileiro, inclusive com terras, enquanto a negritude formalmente liberta pela Lei Áurea era deixada à margem. Os incentivos para imigrantes fizeram parte de uma política nacional de branqueamento da população do país, com base na crença do racismo biológico de que negros representariam o atraso. (Ribeiro, 2019, p. 37)
Do ponto de vista psíquico, como estratégia de sobrevivência, as pessoas negras tentavam se identificar como brancas, posto o desejo de alcançar ascensão, integração e admiração social. É fundamental destacar que essa medida foi incitada pela elite branca, a qual esperava que a miscigenação produzisse o clareamento populacional, devidamente influenciados pelo já citado racismo biológico, ou seja, pela crença de que o orgânico estabelece o social e cultural.
O estopim dessa política de clareamento se deu na década de 1940, influenciada pelo período de industrialização crescente, dada a quantidade significativa de mão de obra negra disponível para o mercado de trabalho. A situação desencadeou não só o medo do diferente, como também do fim da monopolização dos cargos de trabalho e dos privilégios de classe, concentrados nas mãos de pessoas brancas (Bento, 2017).
Existiu e existe no Brasil uma ideologia de “quanto mais claro melhor”. O discurso do branqueamento, nitidamente eugenista, funda bases sólidas no processo de homogeneização racial e cultural do país. A historiadora Lilia Schwarcz (2013) detalha o racismo à brasileira, mostrando como a abolição escravocrata no país possui algumas particularidades, seja pelo imaginário de que o futuro brasileiro caminharia na direção branca (posto o fenômeno da miscigenação) ou pelo alívio de que esse processo tenha se constituído de modo pacífico. Esse processo era tido como uma dádiva, uma espécie de presente da monarquia, diferente de outras nações que conquistaram sua liberdade.
O corpo mestiço torna-se símbolo nacional, associado ao evento de desafricanização de características culturais, isto é, do clareamento de atributos de origem africana transformados em elementos brancos. Essa construção de identidade, ao passo que fortalecia o corpo branco diante do social, deslocou o negro como oposição. Até mesmo como um símbolo de aversão, que situou e fincou raízes para o genocídio da comunidade negra.
No mestiço, eram depositadas as esperanças de reverter o “perigo racial” incitado pela comunidade afrodescendente. Como pontua Abdias do Nascimento (2016), o mulato configura o caminhar da branquificação estrutural do corpo brasileiro. O mestiço surge como um lugar destoante ao afastar-se da negritude, ao passo que se vincula à brancura, seja através de signos de vestuário, de comportamentos, trejeitos ou posições que admitiriam algum tipo de passabilidade racial.
Isso significa a possibilidade de um grupo racializado ser reconhecido por meio de outra identidade, que não seja a sua originária. A intenção dessa passabilidade consiste na urgência de sobrevivência, seja devido às violências a que estão expostos os grupos minoritários ou pelo desejo destes grupos em alcançar maior status social. Os efeitos dessa ideologia são estreitamente percebidos nas controvérsias presentes em discussões raciais do país, firmando dúvidas e divisões quanto ao constituir-se como corpo negro. No Brasil, um indivíduo é definido como preto, mulato, retinto, mestiço, pardo, dentre outras designações, quando é um sujeito de cor, sendo assim as gradações de colorismo só o afastam da possibilidade de constituir-se como um grupo fortalecido e revolucionário.
Tais interrogações proporcionam espaço para a condensação do já citado mito de democracia racial, isto é, a ideia de que a raça não detém condição hierárquica no país, não existindo quaisquer tipos de discriminação racial. Como resultado, o fenômeno da miscigenação opera com êxito, fornecendo espaço para a branquitude, ausente de indícios racistas e sustentada, de modo velado, na fantasia de supremacia branca (Martins, 2021). Essa ideia está instituída como um desejo geral da nação brasileira: o de ser branca. Como afirmou Mário Theodoro (2022, p. 73), “ninguém em sã consciência quer ser negro sob a branquitude”.
Como destacou Djamila Ribeiro (2020) durante uma entrevista, “todo mundo sabe que o racismo existe, mas ninguém é racista”2. Desse modo, as discriminações raciais são ainda mais camufladas, tornando o seu caráter não oficial. Como exemplo, Lilia Schwarcz (2013) cita a criminalização do racismo na Constituição de 1988, regulamentada pela Lei n. 7716, de 5 de janeiro de 1989, que imputa o racismo como um crime inafiançável. Todavia, nas entrelinhas, destaca que só são consideradas discriminatórias as atitudes preconceituosas realizadas em público, expondo a fragilidade do combate ao racismo no país.
Ainda que não haja um consenso ao discorrer sobre o processo de branquitude no Brasil, há que se pensar para além da dicotomia negro versus branco. Assim, torna-se essencial refletir sobre as consequências da política de embranquecimento populacional no país e do processo de miscigenação como um todo. O poder concedido a pessoa branca, apenas por estar incluída na branquitude, a expõe a uma falta de percepção racial. Entretanto, essa ausência é parcial, sendo investigada e analisada quando seus interesses são atingidos.
É oportuno destacar que, ainda que a branquitude se incomode com a possibilidade do negro lhe ser semelhante e demasiado humano, essa ação, por si só, não lhe causa perigo eminente, já que os privilégios permanecem em gozo do branco. O incômodo surge a partir do momento em que esse corpo negro, historicamente excluído e renegado, passa a ocupar os mesmos espaços que os corpos privilegiados. Destaca-se, assim, a necessidade de relembrar e reforçar a atuação do pacto narcísico.
Para Cida Bento (2017), tal pacto é uma espécie de acordo tácito entre brancos quanto ao não reconhecimento da sua participação na perpetuação das desigualdades raciais. Isso não significa dizer que não tenham ciência do racismo e que este não reverbere na sociedade, mas considera-se um problema apenas dos corpos negros e do legado escravocrata em que foram inseridos.
A partir do momento em que os corpos brancos não se reconhecem como sujeitos essenciais na manutenção das desigualdades raciais, não há uma análise real quanto à sua história e quanto ao racismo no Brasil. Pelo contrário, há um distanciamento moral em relação à existência do pacto narcísico, sendo as instituições fundadoras, reguladoras e alienadoras deste agenciamento coletivo.
Alimentada pelo mito da democracia racial, a comunidade branca goza do privilégio de sua neutralidade, até o momento em que é convocada a se posicionar. Como pontuam Muller e Lourenço (2018), posta nossa sujeição no mundo como herdeiros do que nos é apresentado, a brancura, ao atuar como referência de beleza, moral e intelectual, é colocada como credora de suas experiências, ou seja, idônea de mérito.
Frequentemente, as justificativas quanto à baixa seleção de pessoas negras para cargos mais qualificados são embasadas em uma suposta falta de “competência”, virtude essa que, em muitas situações, está relacionada a um certo conhecimento e familiaridade com grupos ascendidos socialmente. Lucas Veiga (2021), em seu livro “Clínica do Impossível: linhas de fuga e de cura”, traz, a partir de sua experiência pessoal, o receio de ser julgado menos preparado devido a sua cor, adotando como estratégia não utilizar foto em seu perfil profissional até que ocorresse o primeiro atendimento clínico e pudesse assim, talvez, ser julgado conforme suas habilidades.
Não por coincidência, é veiculada na mídia a ideia de que, para se conquistar algo, o indivíduo só precisa de força de vontade, excluindo toda a estrutura em torno do sujeito. Essa fala meritocrática é uma das utilizadas contra as leis de cotas, afirmando até que a lei reforça as desigualdades, já que a população deve usufruir de oportunidades “iguais”. Entretanto, como colocado por Sueli Carneiro, no podcast com Mano Brown (Mano a Mano, 2022), os brancos desfrutam de outras formas de cotas oriundas do legado privilegiado estabelecido por séculos de hierarquia, em uma palavra, da cota de ser branco.
Pode-se afirmar que, para a branquitude, aceitar e acolher os corpos destoantes põe em xeque sua condição universal e, por sua vez, sua existência. Sendo assim, o não pensar sobre si ou sobre o outro é a regra de operação para manutenção das desigualdades, naturalizada e reproduzida com normalidade no senso comum. Como modo de autopreservação ao estado de mudança, sentimentos de repulsa e hostilidade aparecem, constituindo uma espécie de medo do negro (Bento, 2017). Essa emoção encontra-se na síntese do preconceito, reverberando na representação da imagem do outro e no modo como nos portamos frente a esse.
É no imaginário social que se solidifica o “mito negro”, posto como um categórico selvagem, incivil e desprovido de inteligência. Como destaca Frantz Fanon (2008, p. 107) “de um homem exige-se uma conduta de homem; de mim uma conduta de homem negro - ou pelo menos uma conduta de preto”. Dito isso, espera-se do corpo negro uma condição animalesca, discrepante em sua gênese da figura do branco sofisticado e civilizador. Como também pontua Mário Theodoro sobre o constituir-se enquanto corpo negro no Brasil:
A ideologia eugênica vai associar cada vez mais os negros às mazelas sociais, ligando-os diretamente à prática de maus hábitos de convívio e comportamento, como a preguiça, a falta de ambição no trabalho, o alcoolismo, o absenteísmo, a baixa condição de aprendizagem e formação. (Theodoro, 2022, p. 111)
A histórica estigmatização do negro possibilitou a expansão da violência contra esses corpos, identificados como eventuais criminosos. Não sendo necessária a conexão entre as práticas criminosas e a identificação dos indivíduos envolvidos, o corpo negro se torna suspeito em sua própria existência, ao ser associado, usualmente, à condição de bandido em potencial. Nesse sentido, a sociedade desigual conta com a participação e eficiência do Estado, em diferentes instâncias, na sua manutenção. Para tanto, o fim da sociedade desigual no Brasil perpassa pela organização e protagonismo de quem é o grande mártir do racismo no país: a comunidade negra (Theodoro, 2022).
À vista disso, o racismo e as desigualdades raciais residem como efeitos da branquitude, que determina quais são as vidas dignas de comoção social e solidariedade afetiva, ou seja, dignas de existir. Em seu enquadramento, a branquitude atua determinando quais os corpos poderão gozar de determinados privilégios sociais, criando um arcabouço de oportunidades, bem como de resultados destoantes. Theodoro (2022) destaca que, sucessivamente, resultados diferentes geram oportunidades discrepantes, o que torna notório o ciclo inerente à população de cor, bem como a emergência de seu rompimento.
Racismo e branquitude a partir da experiência emocional do negro
“Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais do ego do sujeito branco e a de recusar, negar, e anular a presença do corpo negro” (Costa, 1982, p. 25). Essas palavras são do prefácio de Jurandir Freire Costa à obra “Tornar-se negro”, de Neusa Souza, que nos instiga a pensar as adversidades da identidade negra no Brasil. Deste modo, almejamos nessa seção, a partir da nossa própria experiência e dos escritos de Neusa e Isildinha Baptista, Frantz Fanon, dentre outros autores, (re)construir a emocionalidade do negro e sua dimensão psíquica.
Em uma sociedade oriunda de um sistema escravagista, marcada por violência contra povos de cor, dar ênfase à saúde emocional do negro e ao custo mental e psíquico do racismo é de caráter urgente. Por muito tempo, atrelou-se sentimentos aversivos, baixa autoestima e os complexos de inferioridade do corpo negro à uma condição diagnóstica, ignorando, por sua vez, os reflexos do racismo no sofrimento psíquico.
No que tange à clínica, escutei de meus acompanhados o receio de ser deslegitimado, ou seja, de ter suas vivências raciais minimizadas, especialmente quando escutados por pessoas brancas. Falas como “você deve imaginar” ou “você sabe como é” foram corriqueiras em minhas análises. Essas frases, que nos lançam e implicam no sofrimento do outro, reforça a urgência de uma clínica decolonial, aquilombada e antirracista. Como Veiga (2021) destaca, a realidade do negro no Brasil, enquanto sujeito de direitos e deveres, produzida pelo colonialismo, não é e nem deve ser a única realidade das pessoas negras, há que se criar e projetar linhas de fuga.
Em uma das histórias presenciadas no setting terapêutico, um paciente me relatou como tentava ser assertivo em suas ações, posto o seu receio em parecer rude ou ignorante, mesmo que a situação exija um comportamento mais recluso. Quando indaguei o porquê do seu incômodo em agir dessa forma, o paciente pontuou que era esperado dele esse tipo de atitude, e que ele, em contrapartida, sempre lutou para que seus trejeitos não reforçasse tal imagem: a figura de um preto perigoso3.
Embora ele não tenha nomeado em momento algum que a sua ação estivesse relacionada a estereótipos raciais, o não dito já havia sido dito no silêncio que se seguiu em nosso encontro. Sua fala pausada em narrar o que sentia evidenciava o sofrimento psíquico que o causava. E o racismo se constitui assim, no não dito, silenciado no público e partilhado no privado. Dentre um cenário de privações, do que ser, como ser, para que ser e para quem ser, o racismo finca raízes como agente modulador e regulador do sofrimento psíquico do corpo negro. Analisar esse fenômeno a partir dos corpos que o sofrem implica pensar nos efeitos psicológicos que acompanham suas existências, seus modos de agir e reagir ao mundo.
Como disserta Neusa Souza (2021), tratar sobre a história da ascensão social do negro brasileiro é tratar dos modos pelos quais os corpos negros internalizaram um ideal branco como válvula de escape de sua negritude. Essa comunidade, destituída de qualquer concepção positiva acerca de si mesma, acaba por espelhar-se no ideal da brancura, tomando-a como referência de identidade e, até mesmo, de constituir-se como humano.
Isto posto, a ficção sustentada pela ausência de barreiras de cor, apoiada pelo mito da democracia racial, em associação à ideologia do embranquecimento, teve como efeito desestimular qualquer tipo de companheirismo ao negro, que findava entendendo seu grupo como um parâmetro aversivo. Não por acaso, o sujeito entendia que, para ascender socialmente, seria necessário afastar-se do seu grupo identitário e renunciar a sua subjetividade. Deveria, então, embranquecer-se, mesmo que essa tarefa lhe fosse impossível.
Neste ínterim, o meio negro se dividiu. De um lado, permaneciam aqueles que se conformavam com o suposto destino que lhe pertencia, ou seja, ao modo de viver negro. Do outro, se encontravam os que reivindicavam outro tipo de existência oposta à miséria e a noção de inferioridade vivida.4 Para além de não propor êxito na união do negro como um grupo sólido de direitos, essa divisão também resultava em retaliações e ideias de superioridade entre os mesmos.
O negro que conseguia ultrapassar todas as barreiras discriminatórias e ascender socialmente tornava-se mera exceção. À medida que ascendia, “perdia” a sua cor, deixando de ser visto como negro, preto ou pardo, embora ainda necessitasse a todo instante provar o seu valor, ou melhor, comportar-se como um sujeito branco, resultando, assim, na sua dupla negação: seja como indivíduo ou como parte de um grupo social. Com efeito, a história de ascensão do negro no Brasil é a história de uma subjetividade renunciada, que detém o seu reconhecimento ao passo em que avança em sua própria negação (Souza, 2021).
Destaco aqui uma experiência particular do meu ensino fundamental, realizado, em suma, em escolas de classe média branca5. Em tese, eu havia ascendido socialmente, ocupava um local que poucas garotas de meu bairro ocupavam. Lembro das meninas com seus cabelos soltos, brilhosos e lisos e suas constituições harmônicas em sala de aula, elegidas como as mais belas, gentis e amáveis do ambiente.
A paisagem saia dos trilhos quando se olhava para mim e para uma outra menina retinta da sala. Éramos as únicas com o cabelo amarrado, em um formato de coque bem apertado, não permitindo que os fios chamassem qualquer tipo de atenção. O coque atuava como nossa proteção, não precisávamos expor nossos cabelos e enfrentar os olhares brancos que sustentavam nosso sofrimento. Criava-se, tão logo, uma espécie de raiva em meu corpo, movido pela crença de que algo me faltava.
A dimensão da falta produz, para o sujeito, o objeto: o objeto representa aquilo que falta, aquilo que, se o sujeito o possuísse, poderia obturar a falta. Assim, ao longo da existência, o sujeito movido pelo desejo, buscará sempre, na dimensão do objeto A, o ideal da completude que lhe é, constitutivamente, impossível. (Nogueira, 2021, p. 145)
Como podemos vislumbrar no escrito acima, o corpo negro, no campo individual, institucional, e principalmente, estrutural, há de viver diariamente com a condição da falta: a da branquitude. É em função dessa falta que o ser negro carrega em si o peso da rejeição determinado pelo olhar do outro, dada sua representação oposta a tudo aquilo que é concebido como o ideal da brancura. Deste modo, segundo Isildinha Baptista (2021), a brancura, em sua gênese, é o objeto que falta, o objeto simbólico, sendo sua falta real, já que vislumbra como algo que se reverbera na concepção de falta diante parte do próprio corpo.
Ora, se a brancura é o elemento que falta ao corpo negro, não é uma surpresa que seja o atributo buscado em sua existência. Logo, o indivíduo negro, incitado pelo imaginário do embranquecimento, é obrigado a se destituir e separar dos sinais que lhe afirmam como um corpo de cor, aniquilando até a sua própria existência. Essa relação de falta reflete no campo dos afetos, a partir da concepção de um amor narcísico, que o sujeito gostaria de possuir e ser. É neste sentido que a cor da pele se torna um objeto presente no sofrimento psíquico, posto o desejo do corpo de cor em ser branco, seguido pela impossibilidade da concretização carregada pelo marco de sua própria pele, negra, assinalada por tudo que ela simboliza: “um significante que recorta e inscreve, por contraste, o objeto simbólico do desejo do negro: a brancura; contrariando a condição do objeto simbólico do desejo do negro” (Nogueira, 2021, p. 150).
Para Lucas Veiga (2021, p. 90), ainda que não tenhamos vivido o terror da escravidão, vivemos o do embranquecimento, como o autor afirma: “Esta introjeção da política de embranquecimento nacional nas subjetividades negras cria uma condição psicológica debilitante, porque aquilo que ele é e do qual não pode se desfazer, a cor da pele, coloca-o socialmente numa posição subalterna”, condição essa que impacta diretamente na experimentação de sentimentos autodestrutivos por parte da comunidade negra. Como elucida Bárbara Borges e Francinai Gomes (2023, p. 28): “Ceifamos a nossa subjetividade quando acreditamos que aquilo que temos de mais íntimo/pessoal é justamente o que precisa ser destruído”.
No senso comum, partilha-se a ideia de que indivíduos negros odeiam-se por definição, que introjetamos a partir do nosso próprio olhar, crenças limitantes sobre nossos corpos, quando, na realidade, essas crenças são construídas a partir de múltiplos fatores, sejam eles de caráter político, histórico, social ou até mesmo afetivo. Assim, esse mecanismo subjetivo de internalizar o afeto do outro como seu é muito similar ao que ocorre com outras vítimas de violências. Sobre isso, Veiga diz:
A vítima, por vezes, sente-se culpada pelo ocorrido quando o afeto de culpa deveria ficar com o abusador. Culpa e auto-ódio atravessam a dolorosa experiência de elaboração do trauma de uma violência. Os abusos do racismo sobre os corpos e as subjetividades negras têm como um de seus efeitos a culpa pela condição socioeconômica precária em que a maior parte da população negra se encontra; e o auto-ódio por toda a raça negra e por si mesmo por sentir-se falho, menor, sem qualidades diante dos privilégios da branquitude. (Veiga, 2019, p. 3)
Neusa Souza (2021) já abordava que o ideal do ego do negro, isto é, a instância que o organiza como sujeito, é tomada pelo ideal da brancura. Assim, como forma de compensar e minimizar o seu suposto defeito de cor, o negro tem como necessidade ser sempre mais, quer dizer, ser o melhor em todos os âmbitos em que frequenta. Em conjunto a expectativas tão elevadas, por não possuírem um ideal possível de ser alcançado pelo ego, sentimentos de autodesvalorização, atitude fóbica e de submissão são vivenciados de forma frequente entre esses corpos.
Para além, embora o desejo do negro também esteja ligado à ascensão social, ou seja, ao tornar-se branco, há uma ideia de pertencimento interminável a um estado de precariedade. Presencio em companheiros negros a dificuldade de deslocar-se do lugar de vulnerabilidade que lhes foi concebido, seguida pelos sentimentos de culpa e aflição, como se aquele lugar de poder não fosse digno de sua presença, representando um mero impostor. Sobre isso, Veiga argumenta:
Certamente há uma dimensão sociopolítica dessa questão que é o fato de vivermos num país onde 75% da população mais pobre é negra, efeito de uma dívida que o Estado brasileiro tem com esta população devido à ausência de reparação econômica aos mais de trezentos anos de escravidão. A esta dimensão existe uma outra que podemos chamar de subjetiva, clínica ou inconsciente na qual pessoas negras podem vir a sentir como essa dívida fosse delas. (Veiga, 2021, p. 30)
Conforme o corpo negro deseja embranquecer, sua aniquilação se torna mais próxima, por meio do desejo de ser o que jamais poderá ser: branco. Tendo em vista essa condição, não é incomum que parte da população negra seja movida por um “auto-ódio”. Se um sujeito vive e experimenta as ações de uma sociedade racista, que direciona violências contra sua cor e suas características físicas, não é raro que esse sujeito acabe por introjetar essas mesmas violências contra si e seus semelhantes.
O status de diferente dos demais imposto à pessoa negra não é vivido somente no que tange seu comportamento em relação com o mundo, mas também na reinscrição da desigualdade racial. Tal relação é internalizada em sua dimensão psíquica, quando, ao relacionar-se com outros corpos negros, reproduz a norma aprendida ao longo de sua experiência social (Souza, 2021). Supõe-se que, por tanto escutar em seu cotidiano, pessoas negras passem a reproduzir o dito pelo grupo opressor, aderindo à linguagem dominante.
Frantz Fanon já destacava a luta do negro em afirmar sua existência perante o outro. No centro da branquitude, único modelo tido como honesto e válido, a participação do negro é rejeitada: “No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa” (Fanon, 2008, p. 104).
É frequente, dentre conversas com pessoas pretas e pardas, o sentimento de impor-se como crucial, andar preparado, em posição de defesa, como quem espera um possível ataque. Dentre um diálogo com um colega preto, ele me relatou que comumente as pessoas trocavam de calçada quando o viam e que ele até havia se acostumado com essa prática, ainda que lhe gerasse sofrimento psíquico. Como estratégia de proteção tentava ao máximo se vestir de modo “adequado”, que significa de modo caracteristicamente branco.
Para Fanon (2008), uma vez que o outro não lhe concebe o reconhecimento, só há uma solução ao problema: fazer-se reconhecer. Sendo assim, deveria destituir e demolir por completo o mito do negro. O negro ignora sua existência enquanto ela é dada entre os seus, mas ao primeiro olhar branco, o peso de sua cor é sentido. Neste mito, aplica-se a marca do diferente, insólita e intransferível, exposta em sua pele, marca essa sustentada pela crença de que pretos são incivilizados, selvagens, exóticos, inferiores e incapazes, estereótipos utilizados para imputar privilégios à população branca.
Ademais, alguns estereótipos inscritos ao redor do mito negro, em grau de discurso, carregam uma falsa conotação positiva. A título de exemplificação, retomamos o que Neusa Souza (2021) chama de “privilégio da sensibilidade”, em que esta é representada pela musicalidade/ritmicidade da cultura negra, pela sua força física e desempenho sexual. Todos esses “dons” alocados ao negro são relacionados ao “primitivismo” e a “ilogicidade”, opostos ao “requinte” e “logicidade” do branco, destacando a simetria falaciosa da dita superioridade negra nestes quesitos. Portanto, quando se aborda uma suposta emocionalidade do negro, trata-se de um contraponto à racionalidade da branquitude.
Fanon (2008), primeiro a pensar raça atrelada à subjetividade, observa que durante o tempo de prestação de serviços militares em que esteve incluído, realizado em nações europeias, em ambientes festivos, o comportamento de mulheres brancas às tentativas de danças efetuadas por homens negros era marcado pelo ímpeto de fuga, retraimento e pavor. Nos atrevemos a afirmar que essas reações são incitadas pelo estereótipo de potência sexual alucinante - resumidos em si pela sua genital e pelo imaginário selvático do homem negro -, bem como pela suposta periculosidade associada à esse grupo.
Essa fantasia acerca do negro, como o “outro” e também como “Outridade”, atua em toda personificação daquilo que o indivíduo branco teme em ser reconhecido. Como Grada Kilomba (2019) problematiza, no racismo cotidiano, termo utilizado para observar que essas vivências não são pontuais, a pessoa negra torna-se alvo de aspectos reprimidos pela branquitude, isto é, a projeção de tudo aquilo que foi posto como tabu para o branco. À medida que o indivíduo negro é posto como o “outro” da brancura, é renegado o seu direito de existir enquanto “eu” e, portanto, de existir como igual, sendo sempre o “outro” indesejado, o “outro” intruso, o “outro” exótico e assim por diante.
Desta maneira, ainda conforme Grada Kilomba (2019), o indivíduo negro é tido como o “outro” através de modos operantes como a infantilização, ao ser personificado na crença de dependência do seu senhor; a primitivização, quando situado na figura do selvagem, mais próximo da natureza; pela crença da incivilização, como personificação da violência, do terror; a animalização, quando posto na figura do “king kong”, como um outro tipo de humanidade; e por meio da erotização, sendo submetido ao papel do sexualizado, promíscuo.
Comumente, encontros com a “Outridade” são reconhecidos como mais excitantes, instigantes e até mais ameaçadores. Assim sendo, a sedução nesses encontros reside no conflito entre as sensações de gozo e perigo iminente vivenciadas. Quando analisamos a partir de um olhar interseccional de gênero e raça, mulheres negras não estão excluídas deste conjunto, há que se lidar com o imaginário performático sexual, sustentado no pano de fundo “boa para transar, mas não para se casar”.
Esse sentimento de recusa e aversão, de experimentar o racismo como “outro”, reverbera diretamente na formação psíquica do corpo negro, que se apresenta para o mundo como objeto fobógeno e ansiógeno, ou, melhor dizendo, como o corpo que deve ser evitado. Sobre isso, Grada Kilomba (2019) comenta quanto à sua vivência na Alemanha:
Discursos me colocam como “Outra” quando dizem que não posso ser daqui porque sou negra. Imagens me colocam como “Outra/o” quando ando pela rua e me vejo cercada por anúncios com rostos negros e palavras apelativas como “Ajuda”. Gestos me posicionam como “Outra/o” quando na padaria a mulher branca ao meu lado tenta ser atendida antes de mim. Ações me colocam como “Outra” quando sou monitorada pela polícia assim que chego a uma estação de trem [...] Toda vez que sou colocada como “Outra” estou experimentando o racismo, porque não sou “outra”. Eu sou eu mesma. (Kilomba, 2019, p. 80)
Desse modo, é em sua própria corporeidade que o negro é atingido, na sua concretude existencial. Ainda segundo Grada Kilomba (2019), o processo discriminatório que o indivíduo racializado sofre não é oriundo das diferenças e sim o contrário, as diferenças entre pessoas são construídas a partir da discriminação. Toda essa concepção de “Outra/o” é concebida e sustentada através do discurso racista inscrito e legitimado pela branquitude, circunscrita no “nós”, evitando o contato entre os grupos.
Considerações finais: Decolonizar a Psicologia
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2000) afirmou que é necessário “provincializar a Europa”, o que significa pôr a Europa como um lugar que produziu conhecimentos situados geográfica e historicamente, cuja universalização se fez não por sua verdade, mas por sua dominação e hegemonia, ancorada em processos de barbárie. Esse chamado de Chakrabarty à história também deve ser feito à psicologia, isto é, também é necessário “provincializar a psicologia”, compreendê-la enquanto “conhecimento situado” (Restrepo, 2016). As práticas e saberes psicológicos são localizados, portanto, não tendem à universalização, a qual se torna possível somente mediante a expansão da violência. A decolonização da psicologia se dá na quebra do silêncio imposto às pessoas negras e suas questões. Durante parte significativa da história da psicologia, o negro foi colocado na condição de objeto de estudo e nunca enquanto sujeito ou agente de produção de conhecimento.
Pensar na expressão emocional do negro implica necessariamente pensar nos efeitos do ideal da brancura, instituído pela sociedade na subjetividade do negro. Ora, se o seio social é exposto à colonização, com a psicologia não seria diferente. Não por acaso, os currículos e ementas dos cursos de psicologia das universidades brasileiras são imersos pela colonialidade, marcados pelo estudo, predominante, de homens cis brancos europeus. Decolonizar a psicologia implica olhar para o sofrimento desses povos subalternos silenciados.
Problematizar a construção da subjetividade do negro em um universo predominantemente branco é compreender que forças aversivas atravessam estes corpos, independente de seus desejos. A psicologia é um lugar de cuidado, tanto no que tange o cuidado de si, quanto o do outro, mas qual seria o outro que estaríamos aptos a cuidar? Como estamos construindo nossa clínica?
Refletir acerca da presença da branquitude no mundo, bem como as suas reverberações na psique negra, é uma tarefa fundamental, se não desejamos recair sobre alguns estereótipos já conhecidos. Para tanto, destaca-se a importância do letramento racial, isto é, do entendimento de como as relações raciais-sociais modelam nossas visões e nossas formas de estar no mundo, a fim de nos (re)educarmos a partir de um modelo antirracista.
O colonialismo ainda se faz operante e predominante no mundo contemporâneo; pessoas negras são forçadas a se identificarem com a branquitude, por não gozarem de imagens “positivas” sobre seus corpos. Apenas quando dispusermos de concepções “positivas” e não “idealizadas”, como aponta Grada Kilomba (2019), criadas por nosso próprio povo negro, seja na literatura ou na mídia, poderemos criar formas de resistência à alienação imposta. Sendo indispensável, ainda, o mesmo movimento de criação no que tange nossos saberes psis.
Ao basear-se em leituras e construções de saberes, sustentados por corpos brancos, instruídos a manejar a subjetividade (também) branca, a psicologia finda abdicando, de certo modo, do tratamento e do “cuidado” da maior parte da população do país. Isto é, da população de cor. Contudo, como Veiga (2021) nos aponta, não basta promovermos uma decolonização apenas pela inclusão de epistemologias até então silenciadas, mas também colocarmos em xeque o nosso próprio lugar profissional, assinalando suas marcas e seu lugar de fala, dado que é deste lugar que se realiza a escuta. É necessário devolver para a branquitude a responsabilização das violências produzidas pelo racismo.
Por fim, praticar a expansão de uma psicologia racializada é uma forma de criar espaços de aquilombamento, de fortalecimento identitário e, essencialmente, de resistência. É preciso fincar condições para a emergência de um devir ético-político, compreendendo que a pertença racial alicerça nossa subjetividade e a nossa própria posição no setting terapêutico. Como destaca Achille Mbembe (2017), trata-se de criar possibilidades de recusa, de dizer “não”, de afastar-se da supremacia branca imposta e de sua suposta neutralidade.
Referências
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- Bento, Cida (2022). O pacto da branquitude Companhia das Letras.
- Borges, B. & Gomes, F. (2023). Saber de Mim: Autoconhecimento em escrevivências negras Edições 70.
- Costa, Jurandir Freire (2021). Da cor ao corpo: a violência do racismo In Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Editora Schwarcz; Companhia das Letras.
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- Fanon, Frantz (2008). Pele negras, máscaras brancas Salvador: EDUFBA.
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-
Mano a Mano (2022, 26 de maio). Entrevistada: Sueli Carneiro. Entrevistador: Pedro Paulo Soares Pereira. Podcast (2h, 19min). Spotify. https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr?si=O-Bmp0tBTUivPxCGfWXI3g&nd=1
» https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr?si=O-Bmp0tBTUivPxCGfWXI3g&nd=1 - Martins, Daniara T. Fernandes (2021). Da ideologia do branqueamento à branquitude. Revista Espaço Acadêmico, 21(230), 106-116.
- Mbembe, Achille (2017). Políticas de inimizade Antígona.
- Müller, Tânia M. P. & Cardoso, Lourenço (2018). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil Appris; Livraria Eireli.
- Nascimento, Abdias (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado Perspectiva.
- Nogueira, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro Perspectiva.
- Restrepo, Eduardo (2016). Descentrando a Europa: aportes de la teoríapostcolonial y el giro decolonial al conocimiento situado. Revista Latina de Sociología, 6(1), 60-71.
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- Souza, Neusa Santos (2021). Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social Editora Schwarcz; Companhia das Letras.
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- Veiga, Lucas Motta (2021). Clínica do Impossível: Linhas de fuga e de cura Telha.
Notas
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1
Optamos pela expressão “corpo negro” ao longo do artigo nos referindo a várias dimensões da existência como o corpo, a subjetividade, a cognição, as emoções, os afetos etc. Essa escolha é feita a partir da reflexão de Frantz Fanon (2008) segundo a qual o preto não é escravo das ideias que os outros fazem dele, como no caso do judeu, mas da própria aparência, de modo que enquanto um judeu pode passar mais ou menos desapercebido em público, o preto é denunciado pelo próprio corpo. Ele está assim aprisionado num mundo branco, sua inferioridade está epidermizada. Tudo o que ele sente e vive é mediado pela sua cor, por isso apostamos na expressão “corpo negro” como um marcador dessa experiência subjetiva do racismo. Como disse Fanon (2008, p. 142): “é em sua corporeidade que o negro é atingido”.
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2
<https://sindijuspr.org.br/noticias/3/noticias/11219/racismo-no-brasil-todo-mundo-sabe-que-existe-mas-ninguem-acha-que-e-racista-diz-djamila-ribeiro>
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3
As experiências aqui narradas foram construídas a partir da vivência do estágio institucional e clínico da Universidade Federal de Sergipe, bem como na nossa experiência clínica profissional.
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4
A partir dos grupos que não aceitavam à condição exposta, percebemos as criações dos movimentos negros, especialmente ao que tange sua terceira fase (1978-2000), conforme Petrônio Domingues (2007) esse momento foi marcado pela tentativa de rompimento da ideia sistemática do mito de democracia racial, pelo incentivo de negros no poder e da valoração da identidade cultura negra como um todo.
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5
O recurso à nossa experiência pessoal faz parte da tradição de leitura do racismo em que nos apoiamos, composta por obras onde isso é feito de maneira constante. Ela se inicia com Franz Fanon quando, no capítulo cinco de “Peles Negras, Máscaras Brancas”, afirma: “descobri minha negrura”, trazendo suas experiências pessoais como uma maneira de problematizar a vivência do racismo. Esse gesto continua atravessando muitas obras. Aparece em Cida Bento, quando ela inicia seu livro “O Pacto da Branquitude” a partir de uma experiência com seu filho Daniel Teixeira, fazendo dela uma forma de adentrar o problema do racismo e da branquitude. Também em Grada Kilomba (2019, p. 61), quando no capítulo três de seu livro “Memórias da Plantação”, ela afirma: “Eu estava furiosa e exausta. Quantos obstáculos ainda faltavam? Quantas mentiras e mal-entendidos? Quem pode, de fato, entrar nesse centro? E quem tem permissão para produzir conhecimento?”. Ou seja, ao refletir acerca da necessidade de decolonizar o conhecimento, Kilomba recupera sua experiência durante o doutorado na Alemanha. Por fim, mencionamos aqui o livro de Christina Sharpe (2023, p. 24) no qual ela segue essa tradição, emparelhando vivência pessoal e crítica do racismo: “O exemplo autobiográfico, diz Saidiya Hartman, não é uma história de pessoa que se dobra sobre si mesma; não se trata de olhar para o próprio umbigo, trata-se de realmente tentar olhar o processo histórico e social e a própria formação como uma janela para os processos sociais e históricos, como um exemplo deles. Como Hartman, incluo o pessoal aqui para contar uma história capaz de produzir envolvimento e de se opor à violência da abstração”.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
28 Jul 2023 -
Revisado
12 Set 2023 -
Aceito
22 Set 2023