Que interesse pode haver para o público brasileiro a correspondência epistolar entre uma escritora inglesa e uma argentina? A questão se amplifica quando se constata que a troca ocorreu há cerca de noventa anos, no distante mundo do Entreguerras e na iminência da Segunda Guerra Mundial. Alguma motivação é possível, quando se sabe que a missivista principal é Virgínia Woolf (1882-1941), hoje célebre romancista e referência da literatura modernista anglo-saxã, ligada à roda de intelectuais londrinos do Bloomsbury, dona da editora Hogarth Press, entre outras credenciais. Mas, afora nichos de especialistas da área de Letras e determinados pesquisadores das Ciências Sociais que fazem trabalhos comparados com o país vizinho (Sérgio MICELI, 2018), muito poucos terão ouvido falar de Victoria Ocampo (1890-1979), nunca traduzida no Brasil, até o lançamento deste livro (Victoria OCAMPO, 2024) organizado pela jovem doutoranda e talentosa pesquisadora Manuela Barral (2023).
Apesar do presumido desconhecimento geral, trata-se de uma mulher cosmopolita, intelectual portenha de renome, polígrafa e poliglota, mecenas e proprietária editorial de impacto no universo cultural da Argentina do século XX. Eis uma crítica cultural e ensaísta da cultura vis-à-vis de uma Beatriz Sarlo (2010), esta última contemporânea e bem mais conhecida para a leitora de formação livresca mediano-alta em nosso país.
Ainda que o nome consagrado de Woolf possa despertar a atenção e mesmo que os créditos de Victoria sirvam de argumento convincente para a tradução, pondere-se, no entanto, que não estamos diante de um livro de ficção, o que em princípio tornaria menos importante a produção literária das autoras aqui em tela. Estaríamos em face, pois, de um residual livro de cartas, modo de comunicação em desuso nos tempos instantâneo-digitais de hoje, para uns, peça de antiquaria com importância exclusiva para arquivistas, historiadoras/es da vida privada ou anacrônicos beletristas.
Uso da ironia para começar essa apresentação como uma maneira de ser fiel ao espírito irônico e satírico de Virgínia Woolf (2014). Sabemos que o tratamento das questões de juízos de valor em geral, e da cultura em particular, tem caráter cíclico e pendular, o que se reflete na história e na política da canonização na literatura e nas artes. Assim, pressupomos que o interesse de um imaginado público brasileiro assenta apenas naquilo que é nacional, ou seja, tão somente vale ler escritores do panteão da língua portuguesa e da história literária de dicção nacionalista.
Outra pressuposição do quadro diz respeito à ideia de uma hierarquia constitutiva dos gêneros literários, em que o ficcional é mais importante que o documental no universo artístico-letrado. Por fim, está implícita a existência valorativa de uma ordem das reputações intelectuais, em que o que vem da Inglaterra é previamente conhecido, bom e universal, enquanto aquilo que advém da Argentina seria local, desconhecido ou, salvo uma e outra exceção, de curiosidade pitoresca.
Em contrapartida a tais questionamentos e premissas, o presente livro é uma oportuna tradução para o português - como dito, a primeira de Victoria Ocampo no Brasil -, que contribui aos estudos epistolares no país, subárea hoje estabelecida em diversas tradições disciplinares das Ciências Humanas e Sociais, das Artes e das Letras. Como se sabe, desde fins dos anos 1990, o mercado editorial tem fomentado publicações do gênero referentes a escritores nacionais e internacionais de vulto, muitas delas derivadas de projetos acadêmicos e de instituições de guarda de arquivos públicos e privados.
Um dos mais representativos desses projetos coletivos e institucionais resultou da coleção “Correspondência Mário de Andrade”, estabelecida na esteira da doação do arquivo do escritor modernista ao IEB-USP, em fins da década de 1960, ensejando caudalosos volumes de trabalho filológico e de aparato crítico-genético, contextualizadores de aspectos da vida literária, das redes de intelectuais e de seus correspondentes períodos históricos.
Mais um exemplo: a projeção internacional de Júlio Cortázar (2005) levou uma editora espanhola a publicar, décadas atrás, em três tomos, seu conjunto de mais de setecentas cartas. Junto a abordagens seriadas dedicadas a um único escritor, antologias plurais como as de Walnice Nogueira Galvão e Nádia Gotlib (2000) - Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas - reúnem dezenas de pares de autores que se corresponderam ao longo do tempo e que deixaram marcas manuscritas de suas ideias, de sua vivência e das contingências existenciais.
Um dos elementos que desponta no escrutínio da epistolografia é seu intrínseco teor dialógico, que extrapola o estudo de caso monográfico. Ela coloca lado a lado os escritores, confronta-os, dá pistas autorais por meio de seus registros particulares e permite, ao fim e ao cabo, compreender e reconstituir as biografias de cada um, por mais fragmentárias, processuais ou indiciárias que sejam as informações encontradas. O mais notável é que tal interface não prescinde, para o conhecimento de um, das condições de existência do outro. O mútuo espelhamento dessa comunicação a dois revela, portanto, mais da interação dessa díade que da individualidade exclusiva e coesa, por assim dizer, de uma mônada.
E o que, vistas em conjunto, a díade Virginia & Victoria têm a nos dizer nesses apontamentos particulares ora tornados públicos? Antes de responder, convém sublinhar, em primeiro lugar, que a obra abrange um recorte temporal relativamente breve e um apanhado material quantitativamente pequeno. São pouco mais de duas dezenas de correspondências trocadas no decorrer da segunda metade da década de 1930, mais precisamente nos seis anos que se sucedem ao primeiro encontro pessoal das duas, em 1934, durante uma exposição fotográfica, em Londres. Haveria ainda mais dois encontros pessoais entre as duas na Europa, alguns desencontros e ainda uma promessa não cumprida de Woolf de viajar à Argentina, o que vem informado nesses manuscritos redigidos em inglês e em francês, depois traduzidos ao espanhol, e agora transpostos ao português.
O protagonismo aparente é de Virgínia: são 23 cartas endereçadas à editora-escritora argentina nesse período. Do ponto de vista do seu arquivamento, que aqui nos interessa, os originais encontram-se depositados na biblioteca de Hougthon, da Universidade de Harvard, por decisão da destinatária, Victoria, temerosa das instabilidades políticas em seu país. Vinte dessas haviam sido publicadas em inglês, em volume de cartas reunidas de Woolf, que perfazem a impressionante soma de 3.700 missivas.
Victoria, por seu turno, assinou cerca de quatro mil cartas ao longo da vida, mas comparece com o número diminuto de tão somente três remetidas, uma vez que as demais não foram conservadas por Woolf. Também para fins de localização, as cartas de Victoria estão arquivadas na Universidade de Sussex, em Brighton, cidade litorânea do sul da Inglaterra, em que Woolf tinha casa de veraneio e onde passava consideráveis temporadas do ano.
A assimetria entre a correspondência passiva e ativa é balanceada pela importância dada por Victoria ao contato com a célebre Woolf. A autora argentina publica um desses escritos como prefácio ao primeiro tomo de sua longa série memorialística, “Testemunhos”, iniciada justamente nos anos 1930, sob o incentivo da interlocutora distante. O maior reconhecimento da influência de Woolf em Ocampo não é, pois, de ordem quantitativa na troca das cartas. Diz mais respeito à recepção e à difusão da obra woolfiana na Argentina, mediante palestras sobre sua obra e todo um investimento para que sua poderosa editora, a Sur, traduza em língua espanhola as novelas, os contos e os textos não ficcionais da escritora inglesa.
E ainda para contrapor à disparidade numérica, o livro acrescenta um longo ensaio - diga-se de passagem, mais extenso que a seção de cartas -, do início dos anos 1950. Ocampo examina os diários póstumos de Woolf, selecionados em livro de um montante total de igualmente espantosos vinte e seis volumes. A polifonia ocampiana dá assim à sua maneira continuidade a um diálogo com Woolf, interrompido pelo suicídio desta em 1941, em meio aos sinais de uma nova crise nervosa e ao descalabro da Segunda Guerra mundial, quando a autora assiste ao deprimente espetáculo de bombardeamento de suas duas residências, a casa londrina e a do sul inglês.
O pano de fundo motivador para a permuta epistolar são as tratativas para a tradução de alguns de seus trabalhos. Trata-se do processo de negociação editorial que visa materializar em espanhol os livros principais da lavra de Woolf, saídos desde os anos 1920, tais como Mrs. Dalloway (1925), Ao farol (1927), Orlando (1928) e As ondas (1931). À ficção, agrega-se o ensaio feminista Um quarto só seu, cuja tradução para o espanhol Ocampo incumbe Jorge Luís Borges de fazê-la. Junto aos negócios e ao contexto comercial, estabelece-se uma poética da amizade na reciprocidade entre duas mulheres desconhecidas, com atividades semelhantes, mas posicionamentos assimétricos na chamada “república mundial das letras” (Pascale CASANOVA, 2002).
O elo afetivo flagra-se no panorama evocativo do livro. Tal panorama é mais trágico que lírico, com uma sequência de cartas que testemunham de relance um mundo assombrado pela emergência do nazifascismo - em carta de 1938 Virgínia chama Hitler de “maldito” (OCAMPO, 2024, p. 50) -, pela sanguinolência da Guerra Civil espanhola e pela eclosão da Segunda Guerra. A escalada destrutiva e belicosa não impede Victoria e Virginia de construir uma intimidade além-mar, uma afeição recíproca que sobressai aos interesses puramente pecuniário-editoriais.
Passa-se da reverência sul-americana, de um lado, e da curiosidade exótica europeia, de outro, a uma série de convergências sobre a necessidade da escrita feminina e o lugar diferenciado do gênero no papel da crítica literária feita por mulheres vis-à-vis a dos homens. Ambas refutam, para tanto, os previsíveis comentários masculinos, via de regra convencionais e frívolos, com elogios artificiais. Assim, face à distância oceânica e à autenticidade das opiniões compartilhadas, Virginia e Victoria buscam-se aproximar pela concordância dos rumos que a literatura deve tomar.
A convergência dá-se pelo modo como Woolf estimula Ocampo a escrever suas memórias e sua ensaística literária - estreara em 1924 com um ensaio sobre Dante e continua com escritores da pátria de Shakespeare -, deixando de lado a ficção romanesca do século XIX e sua suposta condição de gênero elevado. Entende o peso do modelo do grande romance vitoriano e a necessidade de romper com o fardo patriarcal dessa tradição oitocentista. Superadas o que chama de imensas fachadas da ficção, sem os subterfúgios da técnica simulatória ou os estratagemas da verossimilhança, as mulheres podem se expressar de modo mais autêntico e livre, franquear sua subjetividade por meio de uma escrita pessoal e íntima, a exemplo da autobiografia e dos diários.
Em meio a essa conversa por escrito, com intervalos que alternam dias, meses e silêncios que podem se espaçar por anos, ruídos também acontecem. Victoria envia orquídeas e rosas e teme ser tomada pela admirada amiga como aduladora. Em seu último encontro, Victoria fotografa Virginia, que rechaça com veemência a foto e condena o culto imagético de sua figura.
Os mal-entendidos são recíprocos. Conforme vemos nos fac-símiles deste livro, Woolf, por seu turno, mostra-se premida pelo tempo, tem redação apressada, faz garatujas ilegíveis em seus rápidos rabiscos, como quem apenas telegrafa para cumprir um dever de resposta. Ato contínuo, reenvia mais uma carta, postada no mesmo dia, em que se desculpa, explica as razões da demora e deixa-se transbordar em afetos e reconhecimento à imaginada amiga longínqua.
A distância é um elemento que suscita indagações de ambas as partes. Enquanto Virginia carrega sua imaginação de exotismo, a projetar uma América de fauna e flora exuberantes, terras de vastidão sem-fim, Victoria refere-se ao dilaceramento que a presença em cada um dos continentes lhe suscita. Em uma certa versão do que ficou conhecido no Brasil como mal de Nabuco, a ensaísta argentina, socializada entre vultos das letras e das artes europeias - Ortega y Gasset, Paul Valéry, Aldous Huxley, Igor Stravinski, Albert Camus - destaca seu sentimento de ausência e de vazio intelectual quando se encontra na América do Sul. Na mesma proporção, tem a sensação da estranheza e do não pertencimento quando viaja à Europa. Para encontrar um termo que expresse a angústia do desterro e da incompletude, traduz a sensação pela metáfora da fome.
Tal metáfora considera que no continente europeu há o alimento, mas não há a fome, tampouco a voracidade, a gana de comer. Já no continente americano o cenário é inverso: aqui não estamos nunca saciados, pois falta-nos o alimento. Mas em seu favor a América do Sul não tem vergonha de ser carente, de ser faminta: assume seu apetite voraz, o que vale para tudo, pois o amor é a fome de amar, da mesma maneira que a pintura, em Picasso, é a fome de pintar.
A propósito, faço um parêntesis, pois décadas depois, no Brasil, o cineasta Gláuber Rocha formularia um ensaio terceiro-mundista intitulado “A estética da fome”, com a impressão de um sentido político e revolucionário à metáfora ocampiana, da qual provavelmente ele nunca tomou conhecimento.
Seria possível avançar e aprofundar muito mais na análise do livro, mas, para os fins de uma resenha, visa-se tão somente chamar a atenção para a dupla importância dessa publicação no Brasil: por um lado, a obra mobiliza a interlocução inédita de duas personalidades do feminismo internacional do século passado e, de outro, traz uma importante contribuição em termos metodológicos, ao mostrar as potencialidades analíticas, para os estudos de gênero, do uso de fontes primárias e de crítica genética como as aqui empreendidas.
Referências
- BARRAL, Manuela (Org.). Victoria Ocampo e Virginia Woolf: correspondências Buenos Aires: Rara Avis, 2023.
- CASANOVA, Pascale. A República mundial das letras São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
- CORTÁZAR, Júlio. Cartas (1937-1954) São Paulo: Alfaguara, 2005.
- GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia. Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
- MICELI, Sérgio. Sonhos da periferia São Paulo: Todavia, 2018.
- OCAMPO, Victoria. Correspondência seguida de Virginia Wolff em seu diário Trad. e notas de Emanuela Siqueira, Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli. Prólogo de Manuela Barral. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
- SARLO, Beatriz. Modernidades periférica: Buenos Aires 1920 e 1930 São Paulo: Cosac Naify, 2010.
- WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros ensaios São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. “Vitória & Virgínia: cartas à periferia”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e100733, 2024.
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Não se aplica.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
20 Jun 2024 -
Revisado
15 Jul 2024 -
Aceito
20 Jul 2024