Resumo:
Este artigo explora representações da serra do Roncador e de temas correlatos na produção cultural brasileira dos anos 1920 e 1930, buscando demonstrar a vigência de mitos relacionados àquele ambiente e sua relação com o processo de avanço da nacionalidade em direção a espaços do território brasileiro ainda pouco conhecidos. Para tanto, analisa-se o entrecruzamento de narrativas míticas com estratégias de conquista e apropriação da natureza, estabelecendo um diálogo com a literatura e a imprensa. A partir dessas fontes literárias e jornalísticas é possível observar a recorrência de temas que demonstram a conversão do meio natural em um universo de representações que abarca crenças místicas, narrativas lendárias, mistérios contemporâneos. Em questão está o aprofundamento do processo de incorporação da natureza do Brasil central e da Amazônia ao imaginário da modernidade.
Palavras-chave:
Serra do Roncador; Expedições exploratórias; Imprensa; Relatos de viagem
Abstract:
This article analyses representations of the serra do Roncador and related themes in Brazilian cultural production in the 1920s and 1930s, seeking to demonstrate the validity of myths related to that environment and their connection with the process of national advancement towards territories still little known. To this end, the intersection of mythical narratives with strategies of conquest and appropriation of nature is discussed, establishing a dialogue with literature and the press. From these literary and journalistic sources, it is possible to observe the recurrence of themes that demonstrate the conversion of the natural environment into a universe of representations that encompass mystical beliefs, legendary narratives, contemporary mysteries. At issue is the deepening of the incorporation of the nature of Central Brazil and Amazonia in the imaginary of modernity.
Keywords:
Serra do Roncador; Exploratory expeditions; Press; Travel reports
Nas duas décadas anteriores à célebre Expedição Roncador-Xingu, realizada a partir de 1943, diversos grupos de aventureiros e exploradores empreenderam excursões em direção à serra do Roncador, tida como um dos pontos mais inacessíveis do território brasileiro. Localizada à margem esquerda do rio das Mortes, na transição entre os biomas do Cerrado e da Amazônia, no estado de Mato Grosso, a serra consagrou-se como uma fronteira simbólica da nacionalidade, limite da presença neoeuropeia no território central do país, em direção à Amazônia. A aventura de sua transposição revestiu-se, assim, de notável força no imaginário nacional, sobretudo porque os mitos em torno da região, surgidos já no período colonial, foram em grande parte alimentados pela frustração dos esforços dos que pretenderam explorá-la.
Neste artigo, proponho um mergulho em fontes escritas das décadas de 1920 e 1930, em busca de compreender o imaginário da natureza do Brasil central no período, e, especificamente, da serra do Roncador. À época, as representações culturais em torno dessa região guardavam intrincadas relações com registros como narrativas lendárias, conhecimento histórico, crenças místicas, retóricas de conquista, discurso nacionalista, e, sub-repticiamente, prospecção mineral. Grande parte desse trabalho dependerá de reconstituir trajetórias em direção àquele espaço, a partir de saberes e suposições adquiridos, reelaborados e transmitidos por meio desses vários repertórios.
O fascínio despertado pela serra do Roncador residia, em grande parte, em seu desconhecimento, explicado por questões práticas e logísticas. Sua localização inexata pode ser vista como causa e como consequência desse quadro, enquanto a existência de populações indígenas refratárias ao contato, sobretudo os temidos xavantes,1 1 Sobre o povo xavante, no contexto da política indigenista brasileira, ver Garfield (2011). fortalecia sua aura de obscuridade. Somam-se a isso outros elementos como a incidência de malária, a distância em relação a núcleos de povoamento e a dificuldade de obtenção de víveres. Considerando esses aspectos, cabe, neste artigo, articular a experiência objetiva dos que tentaram explorá-la, a difusão de narrativas em torno desses empreendimentos e o imaginário da natureza bruta que os precede, e que passa a ser alimentado por eles. Em questão estão representações, mas também sistemas de crenças e estratégias de domínio, apropriação e controle do ambiente natural.
Assim, este estudo localiza-se no ponto de convergência entre a história ambiental e a história cultural (e intelectual). Desenvolvida a partir do final dos anos 1960, a história ambiental estadunidense dedicou um espaço considerável, desde seus primórdios, a pesquisas sobre temas relacionados ao imaginário. Dá exemplo disso Wilderness and the American mind, de Roderick Frazier Nash, que analisa a história da ideia de natureza selvagem nos Estados Unidos, observando as percepções culturais e intelectuais em torno dela e sua transformação ao longo do tempo, à medida da expansão geográfica e tecnológica do capitalismo e da consolidação dos mitos da nacionalidade. Traces on the Rhodian shore: Nature and culture in Western thought from ancient times to the end of the eighteenth century, de Clarence J. Glacken, por sua vez, é uma extensa inquirição sobre a ideia de natureza na filosofia ocidental. Ambos os livros foram lançados em 1967, inaugurando uma linha de pesquisa que, na definição posterior de J. Donald Hughes, incorpora
the study of human thought about the natural environment and attitudes toward it, including the study of nature, the science of ecology, and the ways in which systems of thought such as religions, philosophies, political ideologies, and popular culture have affected human treatment of various aspects of nature. It is impossible to understand what has happened to the Earth and its living systems without giving attention to this aspect of social and intellectual history (Hughes, 2016HUGHES, J. Donald. What is environmental history? 2. ed. Cambridge: Polity, 2016., p. 8).2 2 A partir de então, a história ambiental desdobrou-se em direção a outras áreas, em grande parte ligadas às ciências físicas e biológicas, e que corresponderiam ao estudo das influências de elementos ambientais sobre a história humana e das mudanças no meio causadas por sua ação, abordando também as consequências sociais disso. Essas correspondem às duas demais vertentes da história ambiental identificadas por Hughes (2016).
Trata-se, portanto, de buscar, por meio da pesquisa histórica, representações mentais da natureza indomada, e investigar a relação com ela estabelecida pelas sociedades humanas, analisando os modos de elaboração discursiva que expressam e difundem essas representações.
A partir dessa gênese no final dos anos 1960, em décadas mais recentes os estudos culturais sobre temas correlatos ao meio ambiente diversificaram-se, incorporando novas variáveis, relativas, por exemplo, à perspectiva pós-colonial e aos estudos de gênero, e dando origem a uma área de estudo atualmente conhecida como ecocrítica (ecocriticism) - “the most prevalent and widely accepted name for cultural criticism from an environmentalist perspective” (Garrard, 2010GARRARD, Greg. Ecocriticism. Year’s Work in Critical and Cultural Theory, v. 18, n. 1, p. 1-35, 2010., p. 1) e/ou green cultural studies, que tem como projeto “the examination of nature through words, image, and model for the purpose of foregrounding, potential effects representation might have on cultural attitudes and social practices which, in turn, affect nature itself” (Hochman, 1997HOCHMAN, Jhan. Green cultural studies: An introductory critique of an emerging discipline. Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, v. 30, n. 1, p. 81-96, 1997., p. 82).
O presente artigo comunica-se com essa linhagem da história ambiental, ao abordar, fundamentalmente, representações da serra do Roncador em um momento específico da história brasileira em que a região em que ela se localiza recebeu destaque considerável na produção cultural. A partir desse núcleo, difundiram-se expressões diversas, por vezes divergentes e até mesmo potencialmente contraditórias, do imaginário da natureza selvagem da região, a ser vencida em benefício dos desbravadores, da nacionalidade ou da “civilização”. Não nos interessa avaliar a veracidade ou exatidão dos relatos de viagem e reportagens jornalísticas aqui citados, até porque o compromisso com a verdade parece ser secundário neles, principalmente na imprensa. Importa atentar para as expressões de um imaginário da natureza selvagem que ilustra a forma como as regiões desconhecidas do território nacional foram apreendidas cognitivamente e incorporadas à produção cultural.
Dois mitos bandeirantes e um mito midiático
Em grande parte do mundo, a partir de meados do século XIX, a construção de ferrovias, a navegação a vapor e a instalação de linhas telegráficas conduziram à aceleração dos processos de exploração e descrição do território. No início da década de 1930, considerava-se que o progresso técnico havia eliminado as regiões inabitadas no globo terrestre, com a exceção de pequenos grupos isolados, nos ambientes onde havia sido mantida a cobertura vegetal original. O interesse dos viajantes estava na busca de proezas como mundos perdidos, tipos humanos fisicamente incomuns e regiões despovoadas ainda não inseridas no mapa-múndi. O público leitor, “crédulo e ansioso”, dividia suas atenções entre a literatura fantástica e relatos de viagens supostamente factuais, em busca de narrativas imaginosas e francamente inverossímeis (Fernández-Armesto, 2009FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Os desbravadores: uma história mundial da exploração da Terra. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 476). Esse fenômeno repercutiu no Brasil à medida que a extensão e a diversidade do território nacional, que guardava zonas ainda cobertas pela natureza virgem, apontavam possibilidades inéditas de exploração.
Embora as iniciativas de caráter estatal tenham sido privilegiadas pela historiografia,3 3 O marco, nesse sentido, é a expedição Roncador-Xingu, criada em 1941. a maior parte dos empreendimentos exploratórios realizados no Brasil das décadas de 1920 e 1930 partiu da iniciativa de indivíduos ou grupos privados, tanto nacionais quanto estrangeiros, dotados dos mais diversos interesses: esportivo, aventureiro, exploratório, jornalístico, científico, artístico-cultural. Um dos principais objetivos, às vezes inconfessos, de muitos dos aventureiros que acorriam ao Brasil central era o de descobrir jazidas de ouro e diamantes. De fato, naquele momento, levas de viajantes brasileiros e estrangeiros lotavam os empreendimentos mineradores que se distribuíam pela região, localizados inicialmente nas proximidades do rio das Garças, afluente do Araguaia. A busca de novas jazidas de ouro e diamantes extrapolou esses núcleos iniciais, e iniciativas de prospecção mineral tornaram-se comuns em vários pontos de Mato Grosso e também em Goiás, sobretudo na região do baixo Araguaia e do vale do rio das Mortes. Produto do caldeamento entre história e lenda, esse fenômeno surgiu sob a inspiração das narrativas míticas sobre as expedições paulistas que percorreram o interior do continente à caça de índios para apresamento e de riquezas minerais (Ribeiro, 1945RIBEIRO, Luis Saboia. Caçadores de diamantes. Rio de Janeiro: Epasa, 1945.).
Desde o período colonial, o interesse pela região vizinha à serra do Roncador foi nutrido pela mitologia bandeirante que, a partir das primeiras iniciativas de exploração do Brasil central, do século XVII em diante, consagrou lugares lendários como as minas de Martírios e Araés. Esses adquiriram longeva reputação e se tornaram objeto da cobiça de sucessivas levas de aventureiros. A descoberta das chamadas minas de Araés é atribuída ao bandeirante Manuel Corrêa, que entre 1647 e 1648 teria extraído ouro de um rio cujas margens eram ocupadas pelos nativos araés, destinando-o a uma coroa para a imagem de Nossa Senhora do Pilar de Sorocaba. A assimilação entre a localização dessa aldeia, à margem de um rio não identificado, a imensas jazidas de ouro marcou as narrativas sobre a exploração no Mato Grosso, somando-se, e em alguns momentos confundindo-se, com a busca da serra dos Martírios, cuja história inicia-se pouco depois (Borges, 1986BORGES, Durval Rosa Sarmento. Rio Araguaia, corpo e alma. São Paulo: Ibrasa, 1986.; Correia Filho, 1925CORREIA FILHO, Virgilio. As raias de Matto Grosso. v. 3. São Paulo: Secção de obras d’O Estado de S. Paulo, 1925.).
Segundo narrativas em que se mesclam história e tradição oral, entre 1673 e 1682 as bandeiras de Manuel de Campos Bicudo e Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro Anhanguera, confluíram na descida do rio Araguaia e divisaram rochas de brilho amarelado que identificaram como ouro, e que hoje se sabe ser quartzito micáceo. Em um primeiro momento, decidiram não investir nessa descoberta, mais interessados no apresamento de nativos. Em versão alternativa, não tinham os instrumentos necessários para mineração. Teriam registrado, no entanto, o achado de inscrições com signos que lhes pareceram ser cruzes, cravos, espinhos, coroas, martelos e lanças, que associaram à paixão de Cristo, e por isso deram ao local o nome de serra dos Martírios. Em outra versão, não se tratava de petróglifos, mas de rochas cujas formas lembravam aqueles objetos. O bandeirante teria encontrado indígenas que portavam peças de ouro e que indicaram a ele a localização da mina. Contribuiu decisivamente para a difusão do mito a existência de um suposto roteiro em direção a essas jazidas, documentação provavelmente autêntica, mas não necessariamente correta. A partir daí, difundiu-se a imagem de um Eldorado no baixo Araguaia, combinando devoção religiosa e ambição argentária e abrigando dois mitos, o das minas dos Araés e o da serra dos Martírios, que seriam dois lugares distintos, mas próximos, segundo alguns, ou, para outros, dois aspectos do mesmo topônimo, uma serra banhada por um rio em cuja margem viviam os nativos araés (Borges, 1986BORGES, Durval Rosa Sarmento. Rio Araguaia, corpo e alma. São Paulo: Ibrasa, 1986.; Correia Filho, 1925CORREIA FILHO, Virgilio. As raias de Matto Grosso. v. 3. São Paulo: Secção de obras d’O Estado de S. Paulo, 1925.).
O afluxo de viajantes em busca dessas minas começou já nas primeiras décadas do século XVIII, e prolongou-se até, pelo menos, a primeira metade do século XX. Esse movimento se inicia com o retorno dos filhos dos bandeirantes descobridores, no início do século XVIII, ao qual se seguem expedições de caráter oficial patrocinadas pelos governadores das capitanias de Mato Grosso e Goiás e, mais tarde, pelos presidentes das províncias. Inclua-se nesse processo a fundação de bandeiras privadas e de companhias mineradoras, além da atuação, particular ou em cooperação com o poder público, de cientistas e exploradores brasileiros e estrangeiros. Essas iniciativas de exploração demonstram a vitalidade de uma corrente ininterrupta de viajantes, descrevendo uma dinâmica marcada não pela bonança aurífera, que nunca veio, mas pelo extermínio dos autóctones, como os goiases, que deram nome ao estado, e os araés, que batizaram as minas lendárias, povos hoje extintos (Borges, 1986BORGES, Durval Rosa Sarmento. Rio Araguaia, corpo e alma. São Paulo: Ibrasa, 1986.; Correia Filho, 1925CORREIA FILHO, Virgilio. As raias de Matto Grosso. v. 3. São Paulo: Secção de obras d’O Estado de S. Paulo, 1925.).
Até a década de 1920 são raras as referências à serra do Roncador em relatos de viagem e na imprensa, seja no Brasil, seja no exterior. É sobretudo a partir da segunda metade da década seguinte que a serra passa a ser cultuada, em parte em função da atualização dos mitos bandeirantes, em parte pelo surgimento de um novo mito, o do militar e explorador inglês Percy Fawcett (1867-1925?). Muito já se escreveu sobre sua história: em 1925, acompanhado do filho mais velho, Jack (1903-1925?), e de um amigo médico, Raleigh Rimell (1901-1925?), ele desapareceu nas proximidades da serra do Roncador, onde acreditava existir uma civilização perdida, que alcunhou a cidade de “Z”.4 4 Percy Harrison Fawcett realizou sua primeira expedição à Amazônia em 1906, seguida de várias outras em que realizou trabalhos de reconhecimento e exploração geográfica. A suposta cidade teria sido descrita a partir de antigas crônicas de viagem à Amazônia e de um relato bandeirante encontrado na Biblioteca Nacional. Na historiografia recente sobre o mistério de Fawcett, destaca-se Grann (2009), dentro de uma vasta bibliografia, a maior parte em inglês. A indefinição sobre o seu destino deu ensejo à organização de uma série de expedições com o suposto objetivo de descobrir seu paradeiro, desde um grupo oficial enviado pelo governo inglês, até diletantes e caçadores de recompensa e de notoriedade.
Daí em diante, a imprensa brasileira passou a associar a maioria das viagens que se fazia para a região do Araguaia e do rio das Mortes à busca por Fawcett, mesmo que o objetivo da viagem fosse inteiramente outro. O coronel inglês não cita a serra do Roncador em seus escritos, e sim a serra de Ricardo Franco. Essa foi, segundo ele, a inspiração para o romance The lost world, de Arthur Conan Doyle, publicado pela primeira vez em 1912. Embora não possa ser confirmada pelo depoimento do próprio Fawcett a respeito de seus diálogos com Doyle, a assimilação da serra do Roncador ao romance e às ruínas de uma civilização antiga acabou por generalizar-se, não apenas na literatura esotérica e de ficção científica, mas também, por vezes, na literatura acadêmica.5 5 Sobre esse último caso, cite-se Soto Roland (2012, p. 59), que trata a serra de Ricardo Franco como parte da serra do Roncador. A distância rodoviária entre elas é de aproximadamente 1.400 km. Não é impossível que Fawcett tenha confundido os dois acidentes geográficos, ou que os pósteros tenham assimilado os atributos de um a outro. Sobre Ricardo Franco, o explorador escreveu:
Above us towered the Ricardo Franco Hills, flat-topped and mysterious, their flanks scarred by deep quebradas. Time and the foot of man had not touched those summits. They stood like a lost world, forested to their tops, and the imagination could picture the last vestiges there of an age long vanished. Isolated from the battle with the changing conditions, monsters from the dawn of man’s existence might still roam those heights unchallenged, imprisoned and protected by unscalable cliffs. So thought Conan Doyle when later in London I spoke of these hills and showed photographs of them. He mentioned an idea for a novel on Central South America and asked for information, which I told him I should be glad to supply (Fawcett, 1953FAWCETT, Col. Percy. Exploration Fawcett. New York: Overlook, 1953., p. 122).
A descrição acaba por corresponder a muitos dos mitos que seriam alimentados, futuramente, a respeito do Roncador. Em um dos cadernos de fotografia que ilustram essa coletânea dos escritos de Fawcett, subtitulado “The lost world bordering the great Matto Grosso Plateau, the account of which inspired Conan Doyle’s famous book”, foi anexada uma imagem da serra do Roncador. O equívoco foi provavelmente cometido pelo organizador da publicação, seu filho mais jovem, Brian Fawcett (1906-1984).6 6 Em 1952, Brian Fawcett aceitou o convite de Assis Chateaubriand para participar de uma expedição até o Mato Grosso, em companhia do sertanista Orlando Villas Bôas (1914-2002) e do jornalista Antônio Callado (1917-1997). Sobre essa experiência, Callado escreveu Esqueleto na Lagoa Verde (1953) (Bernardo, 2023).
A mais famosa das expedições em busca do paradeiro de Fawcett foi promovida pelo diário The Times, de Londres, e liderada pelo jornalista Peter Fleming. O evento deu origem a um dos relatos de viagem sobre o Brasil mais difundidos no século XX. Brazilian adventure, lançado em 1933 e reeditado diversas vezes e em diversas línguas, é uma narrativa de viagem centrada na experiência do grupo, composto de jovens aventureiros e esportistas da elite inglesa. Escrito em linguagem fluida, espirituosa e não muito simpática aos brasileiros, o relato atinge um de seus pontos altos justamente no trecho em que a expedição se aproxima da serra do Roncador, momento em que o narrador abandona seu olhar habitualmente pragmático e desencantado:
I became suddenly converted to the irrational, the romantic point of view. I felt all at once lordly and exclusive. After all, nobody had been here before. Even if we found the spoor of no prehistoric monsters, even if we brought back no curious treasures and only rather boring tales, even if we were unable to give more than the vaguest geographical indication of where exactly it was that we had been - even if these and many other circumstances branded our venture as the sheerest anti-climax - Roger and I would have done a thing which it is becoming increasingly difficult to do - would have broken new ground on this overcrowded planet (Fleming, 1940FLEMING, Peter. Brazilian adventure. London: World Books, [1933] 1940., p. 240-241).
Tamanha expectativa não esconde uma visão de mundo egótica e aristocrática que converte a realização de uma façanha aventuresca em uma espécie peculiar de título honorífico capaz de dignificar os homens excepcionais em um “planeta superpovoado”. Sua busca de conquistar o Roncador redundou em desilusão, na medida em que, uma vez alcançado o ponto indicado no mapa com que contava o grupo, o horizonte continuava vazio. As duas possibilidades aventadas pelo narrador expõem quão reduzidos eram os conhecimentos sobre a geografia da margem esquerda do rio das Mortes: “The Serra do Roncador does not exist; or exists elsewhere” (Fleming, 1940FLEMING, Peter. Brazilian adventure. London: World Books, [1933] 1940., p. 241).
A dúvida quanto à existência da serra do Roncador7 7 No entanto, a serra do Roncador já havia sido incorporada ao conhecimento geográfico oficial, e já constava de mapas da região desde pelo menos o início do século XX. O relato de uma expedição realizada em 1922, Tocantins and Araguaya Rivers, Brazil, publicada em 1924 pela revista da Royal Geographical Society, descreve-a com evidente viés colonizador: The Serra de Roncador, which forms the dividing range between the Araguaya and Xingu rivers, is most certainly metalliferous and well worth of further investigation for gold, diamonds, copper, lead, and silver. […] The land is very fertile, well watered, and nearly all “devolute” or unclaimed Government land, on which the people settle, raise their stock or grow their sugar, etc., without payment for rent (Bullock, 1924, p. 382). impulsionou sua imagem misteriosa, sobretudo porque já havia sido endossada por outros dois outros expedicionários: Vincent Petrullo (1906-1991), etnógrafo da Universidade da Pensilvânia,8 8 Essa expedição foi liderada pelo experiente capitão russo Vladimir Perfilieff. Também fez parte dela o caçador de onças Alexander (Sasha) Siemel, que havia trabalhado por anos na região. Apesar da participação da Universidade de Pensilvânia, estava longe de ser uma expedição caracteristicamente acadêmica. Um exemplo disso é seu principal produto, o filme Matto Grosso, exibido comercialmente nos cinemas norte-americanos a partir de 1932 (Pezzati, 2018). que em 1931 participou de uma viagem de pesquisa à região com finalidades científicas, cinegéticas e artísticas; e G. M. Dyott (1883-1972), experimentado aventureiro que organizou, em 1928, uma expedição com o objetivo de desvendar “o mistério Fawcett”, chegando à conclusão de que o coronel inglês e seus companheiros haviam sido abatidos por indígenas (Commander..., 1930COMMANDER Dyott in New York. The Times, p. 11, 13 out. 1928.; Dyott, 1930DYOTT, G. M. Man hunting in the jungle: Being the story of a search for three explorers lost in the Brazilian wilds. Indianapolis: Bobbs-Merril, 1930.). Apesar de indícios sólidos que apontavam para a morte de Fawcett, continuaram a ser realizadas expedições dedicadas, supostamente, a encontrar o explorador. A recorrência dessas iniciativas abriu espaço até mesmo para um relato de viagem apócrifo que é antes um pastiche do sensacionalismo jornalístico que mantinha o mistério nas páginas dos jornais. O próprio título, Horrores e misterios dos sertões desconhecidos: fatos tenebrosos, vividos pelo autor, numa expedição em procura do explorador inglez cel Fawcett, nos sertões amazonicos de Mato Grosso, romance de João de Minas, reflete o tom adotado pela imprensa ao abordar o assunto. A obsessão de Fawcett por uma suposta cidade perdida não era muito diferente daquela que acometeu aventureiros e exploradores na busca de seu paradeiro, até pelos menos a década de 1950.
Bandeirantes modernos
O fascínio exercido pelo “caso Fawcett” acabou por se fundir, na imprensa, ao chamado das minas de Martírios e de Araés. A partir de 1933, o engenheiro baiano José Morbeck, nesse momento um dos líderes dos garimpos de diamante do Mato Grosso, passou a contactar jornalistas, políticos e industriais em um empreendimento voltado para encontrar e explorar a mina de Araés. Depois de realizar uma série de estudos, colheu amostras minerais e estimou distâncias, encaminhando ao governo federal um pedido de concessão para exploração mineral na região. Em março de 1935, o Ministério da Agricultura autorizou Morbeck a pesquisar ouro e diamantes no Araguaia e seus afluentes, cobrindo uma extensão de 100 km ao longo do rio das Mortes. No ano seguinte, com o apoio do empresário de comunicações Assis Chateaubriand, do economista Roberto Simonsen, do conde Alexandre Siciliano Júnior, além de vários outros industriais atuantes em São Paulo, foi fundado o Sindicato Paulista de Mineração dos Araés, cujo primeiro empreendimento foi uma expedição ao local (Os Diarios Associados..., 1936OS DIARIOS ASSOCIADOS vão em busca do paradeiro de Fawcett: uma expedição chefiada pelo sertanista José Morbeck no valle do Rio das Mortes. O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jun. 1936.). Os arautos da modernidade rendiam-se, portanto, aos mitos coloniais.
Essa viagem tinha como base um roteiro que, segundo narra Morbeck em reportagem de propaganda publicada pela imprensa, lhe havia sido doado pelo descendente de um dos bandeirantes que havia vivido no povoado de Araés, Álvaro Rodrigues Bueno, neto de Bartolomeu Bueno. O fato de que há dois séculos os resultados alcançados por levas de expedicionários não haviam gerado resultados relevantes e de que a existência das minas foi sempre objeto de questionamento não serviu de desestímulo. A partir da segunda metade da década de 1930, Fawcett e Araés-Martírios passam, crescentemente, a compor um mesmo universo imaginário: “Tudo indica que Fawcett procurava a famosa serra dos Martírios, que, segundo os roteiros conhecidos, está localizada na região ao norte do rio das Mortes” (Os Diarios Associados..., 1936OS DIARIOS ASSOCIADOS vão em busca do paradeiro de Fawcett: uma expedição chefiada pelo sertanista José Morbeck no valle do Rio das Mortes. O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jun. 1936.).
O mito da indevassabilidade da serra do Roncador agrega-se a esse contexto. Apesar de contar com recursos financeiros abundantes e equipamentos modernos, a expedição Morbeck teve que regressar precocemente depois de três meses de viagem, em função do esgotamento dos alimentos, da cheia dos rios e da fuga dos animais de carga, o que tornava o retorno muito perigoso. A falha da tentativa foi atribuída, principalmente, ao excesso de equipamentos, que obstava a marcha: “A serra do Roncador é intransponivel”, explica a reportagem, muito embora a serra não fizesse parte do percurso da expedição (Vae regressar..., 1936VAE REGRESSAR a expedição Morbeck: o roteiro da famosa ruina de ouro dos Araré’s - A serra do Roncador é intransponivel. Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 6 out. 1936.). Espanta, certamente, que um experimentado morador local, José Morbeck, tenha planejado a viagem em uma estação do ano que a tornava impeditiva, mas o verdadeiro objetivo da viagem, a localização de reservas auríferas, é subvalorizado à medida que a ênfase da narrativa jornalística apela para as emoções e recai nas narrativas míticas: Araés, Martírios, Fawcett e serra do Roncador.
Nos anos seguintes, Morbeck realizou outras expedições à região, como expedicionário encarregado da prospecção das minas de Araés pelo Sindicato. Em 1937, o Diário da Noite, do Rio de Janeiro, anunciava: “A bandeira do Brasil hasteada nas lendárias minas de Araés” (A bandeira..., 1937A BANDEIRA do Brasil hasteada nas lendarias minas de Araés. Diário da Noite, Rio de Janeiro, p. 3, 31 ago. 1937.). O evento é divulgado como a “descoberta de Araés”, em tom efusivo, partindo do pressuposto de que ali havia abundantes jazidas de ouro. O fato em si representa, tão somente, a chegada à localidade que, no antigo mapa transmitido a Morbeck pelo velho bandeirante, supostamente correspondia ao antigo arraial. Até 1939, os esforços do minerador não haviam dado resultado (Dutra, 1939DUTRA, Firmo. Buscando ouro. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 4, 4 abr. 1939.).
Como vemos, os mitos de Araés e Martírios chegaram incólumes à década de 1930.9 9 Na década de 1940, o engenheiro e historiador paulista Manoel Rodrigues Ferreira historiou o “mistério do ouro dos Martírios” e, não contente com isso, empreendeu ele próprio pesquisas no sentido de localizar as minas lendárias. Entre seus apontamentos, lê-se: Decidi levar a sério, como se diz, tudo que os antigos Bandeirantes deixaram escrito, os chamados Roteiros dos Martírios, sobre os quais se fizeram tantas ironias, tantos sarcasmos, tantas zombarias. Eu fiz diferente: levei-os a sério. Fui lendo-os sem parar, comparando-os, procurando penetrar no espírito de quem os escrevera, nas suas épocas, para finalmente chegar a uma conclusão: tratava-se de algo sério, verdadeiro, embora tendo sofrido ao longo dos séculos, algumas modificações de escrita, por exemplo (Ferreira apud Medeiros, 2013, D4). De fato, ele participou de várias expedições ao Centro-Oeste brasileiro, algumas delas em companhia dos irmãos Vilas-Boas. Não se tem notícia de que tenha encontrado ouro. Em São Paulo, a difusão de uma ideia heroica e mítica do passado colonial permitiu revalidar as narrativas bandeirantes por meio de uma produção cultural de viés nativista. Em 1930, um grupo de jovens da elite paulista que se tinham como descendentes e naturais herdeiros da “epopeia bandeirante” realizou uma viagem ao rio das Garças com o objetivo de fazer fortuna nos garimpos de diamante. O líder do grupo, Hermano Ribeiro da Silva (1902-1937), acreditava-se dotado de um instinto atávico que o impulsionava para a exploração do território e o trabalho em lavras minerais. O então jornalista confessava sua fascinação pelos antigos roteiros, mas estava longe de atribuir a eles qualquer propriedade lendária, relatando seus 5 anos de estudos da documentação colonial como um esforço racional de decifração de um enigma histórico que, necessariamente, haveria de render-lhe a tão sonhada fortuna. Malsucedido em seu intento, deixou-se seduzir pelo chamado do sertão e iniciou uma série de viagens ao Brasil central, doravante sem objetivos de garimpagem, ao menos declaradamente (Silva, 1935SILVA, Hermano Ribeiro da. Nos sertões do Araguaia: narrativa da expedição ás glebas bárbaras do Brasil central. São Paulo: Cultura Brasileira, 1935., 1936SILVA, Hermano Ribeiro da. Garimpos de Mato Grosso: viagens ao sul do estado e ao lendario rio das Garças. São Paulo: J. Fagundes, 1936.).
Em 1937, já consagrado pela publicação de seu primeiro relato de viagem (Silva, 1935SILVA, Hermano Ribeiro da. Nos sertões do Araguaia: narrativa da expedição ás glebas bárbaras do Brasil central. São Paulo: Cultura Brasileira, 1935.), Hermano ressurgiu como líder de um grupo organizado com fins de exploração territorial: a “Bandeira Anhanguera”. A partir daquele momento, sua meta passava a ser a transposição da serra do Roncador. A expedição pretendia percorrer o território localizado à margem esquerda do rio das Mortes, realizando pesquisas científicas em diversas áreas como a medicina, a antropologia, vários ramos da biologia e da geografia. O ambicioso projeto visava alcançar dois objetivos enobrecidos pelo selo do ineditismo: atingir a serra do Roncador e realizar o que seria o primeiro contato com os indígenas xavante. No discurso sobre os feitos da Bandeira, os indígenas e a serra compõem uma única ordem de significado:
Assim, chegaram até nós, além desses minimos successos do século dezoito, vagas informações de que por aquelles logares e pela margem esquerda do Rio das Mortes devera erguer-se uma cadeia de montanhas, que seriam certas serras azues da tradição das bandeiras e cujo trajeto hypothetico nos mappas tem o nome de Serra do Roncador. Estariam situados por ahi os aldeamentos principaes de uns indios ferozes e indomaveis, senhores absolutos da terra, temidos das tribos suas vizinhas e não vistos nunca por homens de outras nações. [...]
Desses indios, de sua estatura gigantesca, de sua força incrível, de sua extrema ferocidade, contavam-se as coisas mais disparatadas. E porque ninguém havia que pudesse affirmar tel-os, pelo menos, visto, chegou-se a pôr em dúvida até a existencia delles (Na Serra..., 17 jul. 1938NA SERRA do Roncador: a marcha da Bandeira Anhanguéra entre os chavantes. (Publicação feita á vista do archivo da Bandeira). O Estado de São Paulo, p. 9, 17 jul. 1938.).
Evidencia-se, aqui, o paralelismo entre a serra do Roncador e os indígenas que a habitavam e com os quais ela comungava os atributos de mistério, grandeza e agressividade.
No roteiro da Bandeira Anhanguera, a serra deveria ser cruzada de modo a acessar o planalto onde se formavam os rios Xingu e Tapajós. Apenas chega a visualizá-la o grupo da vanguarda, trio de sertanistas responsável por abrir caminho ao longo do percurso para permitir o ingresso dos demais. Na narrativa do chefe desse grupo, Francisco Brasileiro, a serra do Roncador acabou por ser vista como um lugar paradisíaco a ser alcançado pela subida de suas íngremes encostas, onde o padecimento da fome, que havia se tornado crônico, seria dissipado, e onde seriam superadas as dificuldades de avanço do grupo. O percurso até a serra é representado como a expiação do pecado para posterior redenção: depois da fome, da sede, do calor e do cansaço tornava-se possível alcançar o Éden:
É necessário que se diga o que significava esta serra para nós. Tendo como ponto final da primeira etapa o Posto Bacaeris, nas nascentes dos formadores do rio Xingu, esta serra era o degráu que precisaríamos subir para ganhar o planalto que forma a bacia fluvial Tapajós-Xingú. Era ela o centro da mesopotâmia Araguaia-Xingú, objetivo da nossa primeira entrada.
Havia diversas opiniões a respeito. Uns achavam que era uma serra comum. Êstes em menor número. Outros, que era o contra-forte do planalto, e que para lá dessa imensa barreira ficava o altiplano sonhado da “Chanaan” maravilhosa...
Havia até descrições supositivas:
Imensa planície de campina verdejante de que a vista não alcançava o fim, onde a caça mansa e abundante pastava...
Até houve alguem que quando parti me dissesse:
- “Além da serra você vai descansar. Vamos dar numa campina sem fim, e não será preciso mais vanguarda” (Brasileiro, 1938BRASILEIRO, Francisco. Na serra do Roncador: a vanguarda da Bandeira Anhanguera. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938., p. 197-198).
Uma vez alcançada a serra, vislumbra-se, no entanto, um planalto rochoso e estéril, em muitas extensões carente de vegetação, o que apontava para a total ausência de animais de caça ou de frutos comestíveis. A frustração com o cenário encontrado na serra do Roncador acabou por forçar o grupo a desistir do projeto inicial e retornar a partir dali. Sua imagem paradisíaca não foi, entretanto, inteiramente dispensada, uma vez que o amplo panorama descortinado através dela, durante o pôr do sol, é definido como “inenarrável”, capaz de deixar os observadores “extasiados e embevecidos em muda contemplação”. Naquele ponto, adquiriam uma perspectiva paisagística em que “[a] imensidade de luz violava aquele mundão, descortinando a enormidade do vale”, de modo que o viajante munido de um binóculo adquiria, ali, a capacidade de esquadrinhar cada aspecto do território que se estendia abaixo e defronte (Brasileiro, 1938BRASILEIRO, Francisco. Na serra do Roncador: a vanguarda da Bandeira Anhanguera. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938., p. 199). No regresso, o chefe da vanguarda toma a providência de remover a facão diversas árvores, de modo a que o ponto atingido por eles pudesse ser identificado, já que deixar a marca de seu feito parecia tão importante quanto realizá-lo (Na Serra..., 22 jul. 1938NA SERRA do Roncador: a marcha da Bandeira Anhanguéra entre os chavantes. (Publicação feita á vista do archivo da Bandeira). Conclusão. O Estado de São Paulo, p. 9, 22 jul. 1938.).
Participantes da Bandeira Anhanguera chegaram, portanto, a visualizar a serra do Roncador e escalar um de seus contrafortes, mas não a explorá-la e descrevê-la em profundidade.10 10 Hermano Ribeiro da Silva morreu de malária no início da viagem de retorno a São Paulo. Sobre suas narrativas e sobre a Bandeira Anhanguera, ver Murari (2023, 2020a, 2020b) e Murari, Rodrigues (2020). A proeza de sua efetiva “conquista” só foi realizada posteriormente, pelos componentes da Bandeira Piratininga. Similar em vários aspectos ao empreendimento liderado por Hermano Ribeiro da Silva, esse grupo, criado pelo jornalista paulista Willy Aureli (1898-1968), chegou a cruzar seu caminho, tendo retornado após desistir da empreitada em função de um incêndio na mata. Em 1938, a Piratininga se reorganizou e retornou à serra do Roncador, para a qual é dirigida toda a narrativa da expedição desde seu “Exórdio”, em que o narrador justifica o insucesso da tentativa anterior e reafirma a importância de sua conquista. O discurso do livro Roncador, publicado pela primeira vez em 1939, enfatiza o sacrifício pessoal de seu líder em nome da solução de “um problema dos mais árduos”: “a constatação irrefutavel da existencia da Serra do Roncador e sua origem plutonica”. Como o chefe da outra Bandeira, Aureli legitima seu esforço atribuindo a ele uma “somma regular de conhecimentos práticos” e “pesquizas que interessam ao futuro”. Defendendo o próprio pioneirismo, ele pretendia tomar a dianteira do “movimento desusado nesse sentido” (Aureli, 1939AURELI, Willy. Roncador: Expedição da Bandeira Piratininga. 2. ed. São Paulo: Cultura Brasileira, 1939., p. 13-14).
Assim como havia ocorrido em 1937 com a Bandeira Anhanguera, a imprensa acolheu generosamente a Bandeira Piratininga, no ano seguinte, quando essa última voltou à serra do Roncador. Sua motivação é diretamente associada ao desvendamento do “grande e impenetravel mysterio que cerca a zona habitada pelos ferozes Chavantes”, para o qual o Brasil e o mundo teriam despertado depois do malogro da expedição do coronel Fawcett (Uma grande expedição..., 1938UMA GRANDE EXPEDIÇÃO ás terras dos chavantes. Folha da Manhã, Recife, p. 1, 21 maio 1937.). O discurso da imprensa em sua promoção da iniciativa concentra-se no desafio de desvendar os mistérios da serra do Roncador, o que era traduzido como resultado da disposição altruísta de seus participantes de contribuir para a nacionalidade às custas de grande sacrifício pessoal.
O destaque conferido à Bandeira pela imprensa permitiu-lhe um reconhecimento até então inédito: um grupo de expedicionários foi recebido pelo presidente Getúlio Vargas, que os presenteou com a bandeira do Brasil, a ser hasteada no alto da serra, marcando a definitiva conquista simbólica daquele território. Primeiro passo para sua conquista efetiva, alcançar o Roncador significava superar o interdito histórico imposto pela “vigilância” dos xavantes. Nada poderia simbolizar melhor a campanha da Marcha para o Oeste que a superação de obstáculos impostos ao avanço da institucionalidade nacional pelas forças da natureza, aí incluídos os nativos (A expedição..., 1938A EXPEDIÇÃO á serra do Roncador. Folha da Manhã, São Paulo, p. 7, 10 jun. 1938.).
O imaginário da serra do Roncador foi intensamente promovido pela imprensa na divulgação da Bandeira Piratininga, doravante beneficiada pela agregação de novos conteúdos, como as crenças teosóficas em torno da lenda da Atlântida. A teosofia, doutrina exotérica fundamentada nos conhecimentos místicos ocultos depositados em todas as velhas escrituras religiosas, baseava-se no princípio da existência de uma única essência suprema, desconhecida e incognoscível, da qual a alma humana era emanação. Outro de seus fundamentos era a teurgia, ou seja, “the art of applying the divine power of man to the subordination of the blind forces of nature” (Blavatsky, 1879BLAVATSKY, Helena P. What’s Theosophy? The Theosophist, v. 1, n. 1, p. 2-5, 1879., p. 3). Daí o caráter eclético e trans-histórico do movimento.
Na matéria “O Roncador e seu enigma à luz dos textos antigos”, publicada em 1938, são reproduzidas cartas enviadas ao líder da Bandeira, Willy Aureli, por Edmundo G. Cardillo, membro da Sociedade Teosófica Brasileira. Na visão da doutrina, a serra do Roncador era um território ancestral que guardava a memória da civilização atlante e seus conhecimentos a serem futuramente revelados:
Embora possa parecer-lhe vã phantazia, ou mesmo certa similitude com os famosos contos da Carochinha, hei por bem dizer-lhe, baseado em argumentos que uma simples carta não comportaria, que ninguém conseguirá trazer a publico o que vae de mysterioso pela Serra do Roncador, “em cujas immediações se encontram ainda os restos de um velho emporio atlante” guardado pelas reliquias desse vetusto povo que ha millenios conquistou e civilizou essa parte do Brasil. Foram os componentes daquella raça (raça atlante, a 4ª raça-mãe) os predecessores e antepassados do selvicola que, depois da grande catástrofe, cahiu na barbaria em que o acharam os portuguezes incursionistas. Dia virá que o mysterio será desvendado e tudo quanto se refere às cidades maravilhosas ou “jinas”, como dizemos nós, ainda existentes na Terra symbolizando o testemunho vivo do passado da humanidade, virá a lume para o deslumbramento e a estupefação geral, inclusive da propria sciencia positiva e incredula que considera taes mysterios como lendas (O Roncador..., 1938O RONCADOR e seu enigma á luz dos textos antigos. Diario da Manhã, Recife, p. 10, 6 ago. 1938.).
A serra, portanto, estava inserida em um tempo-espaço que se lançava do passado remoto a um futuro impreciso, incapaz, entretanto, de se comunicar com o presente. Por isso, qualquer tentativa de acessá-la consistia, na visão mística, em uma subversão da ordem preestabelecida, o que endossava a crença em sua impenetrabilidade.
O Roncador, nessa perspectiva, fazia parte de um conjunto de “cidades” cuja conquista era ambicionada desde o achamento da América pelo europeu, como El Dorado, na Venezuela, Ciudad de Oro, nas proximidades de Cuzco, o templo de Chichén, na península de Yucatán. Buscar revelar o segredo antes do tempo adequado significaria, necessariamente, pagar um alto preço, dado que “a irreductivel indevassabilidade de tão augusto segredo será sempre reaffirmada”. O falecido Hermano Ribeiro da Silva, líder da Bandeira Anhanguera, apesar de dotado de uma “intuição digna dos eleitos”, não havia sido capaz de revelar os segredos do Roncador, guardados pelos xavantes “que são como que uma guarda avançada desses régios rincões”. Na definição do porta-voz da teosofia, “os bravos expedicionários terão de lutar com forças e obstaculos que estão muito acima daquelles visiveis, palpaveis, objectivos, da serra bruta e hostil” (O Roncador..., 1938O RONCADOR e seu enigma á luz dos textos antigos. Diario da Manhã, Recife, p. 10, 6 ago. 1938.).
A relação entre os supostos mistérios da serra do Roncador e as crenças teosóficas é, na época, estreita. O próprio coronel Fawcett possuía laços próximos com a doutrina, e certamente baseou-se nela para idealizar a cidade perdida que nomeou “Z”, inspirado por inscrições rupestres que encontrou na Amazônia.11 11 Percy Fawcett era irmão de Edward Douglas Fawcett, um jornalista que foi amigo próximo de Helena Blavatsky. A esposa do coronel também professou sua crença nas doutrinas teosóficas (Grann, 2009). A imprensa parece igualmente mistificada. As manchetes sensacionalistas que estamparam o jornal O Globo durante a cobertura da viagem da Bandeira Piratininga são eloquentes: “Identificado com o silencio da grande esphinge”; “Vae em busca da Atlântida!”; “Na fronteira do mundo desconhecido”; “Uma montanha sagrada, no Roncador, já citado [sic] nos textos antigos”; “El Dorado e os bandeirantes modernos”. A representação da serra pela mídia escrita exemplifica as estratégias retóricas utilizadas para manter o interesse pela expedição.
Nem toda a imprensa era cega, entretanto, aos exageros da cobertura jornalística de expedições como a Bandeira Piratininga.12 12 As bandeiras Piratininga e Anhanguera foram pouco estudadas pela historiografia. Isso se deve, principalmente, à forma violenta como seus membros abordaram os xavantes quando se aproximaram da serra do Roncador. Sua estratégia consistiu em usar foguetes para assustá-los e forçar sua fuga, em seguida invadindo suas aldeias para coletar objetos tradicionais e deixar no lugar produtos industrializados. Práticas como essas renderam críticas severas à Bandeira Piratininga, que se espalharam pela imprensa e comprometeram a imagem da expedição, sobretudo depois que a licença da Bandeira foi impugnada no Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas (Cada vez mais..., 1938). Uma resenha da História dos índios no Brasil, assinada por Luiz Felipe de Alencastro (1992, p. 96), exemplifica a reputação dos grupos: “Em 1938, bandos de facínoras, numa sinistra imitação dos bandeirantes, organizam a ‘Bandeira Anhangüera’ e a ‘Bandeira Piratininga’ para massacrar tribos do rio das Mortes”. Não há evidência, entretanto, de mortes de indígenas em decorrência direta dessas expedições. Sobre as bandeiras Piratininga e Anhanguera, ver, respectivamente, Kurtz (2023) e Murari (2020b). Na visão de Ulpiano del Picchia, foi a “monomania” de Fawcett que chamou a atenção do mundo para a região do Roncador, difundindo a ideia de que “havia uma região que defendia irreductivelmente o seu mysterio, oppondo ás varias investidas de penetração, todas as armadilhas fataes da natureza”. É justamente o mistério, ou seja, o desconhecimento, que fazia do Roncador um espaço tão atraente para o jornalismo.
A curiosidade da imprensa, aguçada essa por intransponibilidade feroz e acalentada por essa exigência de sensação bem delineada na mentalidade moderna uma vez que não podia transpor essas fronteiras materialmente, iniciou um desbravamento imaginario que redundou em folhetins esparços e mal feitos, contando com aventuras impossiveis, muitas das quaes depunha contra o paiz (Del Picchia, 1937DEL PICCHIA, Ulpiano. Os mysterios da serra do Roncador. Diário da Manhã, Recife, p. 2, 30 out. 1937.).
Del Picchia, que não acreditava no sucesso da Bandeira, reflete, então, sobre “a plausibilidade [d]a existência de um nucleo de emigrantes alienigenas” no Roncador, já que, em seu entendimento, tudo o que havia chamado a atenção para o lugar, até então, era “obra da imaginação”.
A história desmentiu o jornalista, e a Bandeira Piratininga logrou ascender à serra. No relato de viagem Roncador, o episódio da subida é construído como a narrativa de uma façanha a ser tomada como exemplo de vigor, resistência e força, dedicados inteiramente à causa patriótica. De início, Aureli trata de corrigir os erros de localização que até então haviam obstado o alcance da serra até aquele momento e conduzido alguns exploradores a afirmar sua inexistência. Em seguida, adota um tom grandiloquente e messiânico em que o evento é tomado como um marco significativo para toda a nacionalidade:
Lobrigamos, muito distantes, picos altíssimos que emergem na uniformidade do Roncador. O espectaculo é impressionante! Valeu a pena tanta tortura, tanto esforço, tanto soffrimento, para gosarmos todo este deslumbramento! Procuramos, entre os arbustos, um de maior consistencia e tamanho afim de nelle hastearmos a bandeira nacional. Procedemos á cerimonia sinceramente emocionados. O acto tem algo de religioso. Somos um punhado de homens esfarrapados, febris, perdidos nesta immensidão que aterra. Somos, porém, os primeiros civilizados a sentir sob os pés o gigante prehistorico! Sobre a giba altíssima desse colosso adormecido, dançamos o “kankan” dos vencedores! Lendas apavorantes, conjecturas e negativas peremptorias cáem por terra ante a nossa constatação! Aqui, neste recanto virgem, nesta serra tão discutida por espíritos inclinados á fantasia, desde ás 11,30 horas do dia 28 de agosto do corrente anno [1938], como symbolo estupendo de pujança moça, tremula a bandeira nacional! (Aureli, 1939AURELI, Willy. Roncador: Expedição da Bandeira Piratininga. 2. ed. São Paulo: Cultura Brasileira, 1939., p. 227).
A referência ao “colosso adormecido” evidencia que o discurso do aventureiro acaba por associar metonimicamente a serra do Roncador ao Brasil, também ele a ser conquistado e reconhecido em sua grandeza, apesar dos séculos de enganos e frustrações.
Além da imprensa e da literatura, a moda expedicionária que abrigou a mistificação da serra do Roncador encontrou expressão também no cinema. Sob a inspiração do filme produzido pela Mato Grosso Expedition, que lançou seu documentário sonorizado em 1933, tanto a Bandeira Anhanguera quanto a Piratininga tiveram seus feitos gravados em filmes documentários lançados comercialmente nos cinemas, o que, juntamente com Tapyrapés, produção lançada em 1938, demonstra a atração dos produtores culturais - e, virtualmente, do público - por esse tipo de narrativa. A ideia de rodar um filme capaz de alimentar-se do interesse generalizado pelos sertões do Brasil central moveu o empreendimento da Companhia Cinédia, que patrocinou uma expedição, liderada pelo explorador paulista Oliveira Borges, destinada a realizar filmagens para um documentário sobre a serra do Roncador. Em seu relato da experiência, o diretor Roberto Pompílio acentuou o fascínio por ela exercido, ao explicitar os motivos da iniciativa:
Dessa serra, cujos contrafortes foram explorados unicamente pelos primeiros bandeirantes paulistas, contam-se muitas lendas. Ruinas mysteriosas de cidades antigas, tribus de indios brancos que habitam gigantescas florestas, riquissimas minas de ouro, rochedos enormes cobertos de inscripções indecifráveis, etc. (O que diz..., 1937O QUE DIZ o Sr. Roberto Pompilio chefe da expedição á aldeia dos indios tapyrapes. Correio Paulistano, São Paulo, p. 9, 30 out. 1937.).
A equipe da Cinédia não chegou a alcançar a serra do Roncador e concentrou suas atenções na gravação de imagens do cenário natural e das tribos tapirapés, localizadas às margens do rio homônimo, entre a serra e o vale do rio Araguaia. O documentário de longa-metragem estreou em fevereiro de 1937 no Rio de Janeiro, composto a partir das imagens captadas e de sua descrição e sincronização por Pompílio. A ideia inicial do realizador era experimentar, em sua primeira expedição, um novo roteiro de acesso à serra do Roncador e realizar contato com os indígenas tapirapés, de modo a criar condições para a realização de uma segunda viagem que atingiria a serra. Embora não se tenha pretendido chegar a ela naquele momento, o topônimo “Roncador” foi utilizado intensamente na divulgação do filme (Estréas..., 1937ESTRÉAS da proxima semana. Correio Paulistano, p. 11, 28 out. 1937.).13 13 Sobre a viagem, ver o artigo “Tapirapés, chave do Roncador” (Pompilio, 1942). Não há notícia de que uma nova expedição tenha sido realizada por Pompílio.14 14 Os filmes sobre a região realizados no Brasil à época foram perdidos, à exceção de Mato Grosso e suas selvas (1931), produzido pela expedição estadunidense liderada por Vladimir Perfilieff. Listam-se, a partir de registros jornalísticos, além de Tapirapés (Roberto Pompilio, 1937), Nos sertões do Brasil (Juan Etchepare, 1928), Às margens do Araguaia (Aristides Junqueira, 1925), Bandeira Anhanguera: a epopea de Hermano Ribeiro da Silva (Victor del Picchia, 1938), Bandeira Piratininga (Willy Aureli, 1938), No reinado dos chavantes (Willy Aureli, 1939) e Sertões bravios (Willy Aureli, 1941).
Epílogo
Mesmo depois de “conquistada” a serra do Roncador, seu fascínio persistiu. Em 1940, o presidente Getúlio Vargas, em visita à Amazônia, expressou seu desejo de sobrevoar a região habitada pelos indígenas xavantes, sendo prontamente advertido de que “para lá chegar, é necessário transpor a serra do Roncador, numa região onde ninguém penetrara”. Segundo a narrativa jornalística, a equipe do presidente não conseguiu, entretanto, esconder seu nervosismo, pois “ninguém pensara que o chefe de governo pudesse ter a idéia de arriscar-se a visitar uma zona completamente desconhecida e povoada de mistérios e ameaças de toda a natureza”. Sobrevoando a serra, pelo binóculo, o presidente avistou todos os possíveis detalhes da aldeia, e observou uma faixa reta em direção ao rio Kuluene, localizado a um quilômetro de distância: “Isso prova que os Chavantes trabalham ativamente, pois tem a sua ‘estrada’ bem-cuidada”. Pareciam, portanto, prontos para ser úteis à nação (O Presidente..., 1940O PRESIDENTE Getulio Vargas sobrevôa o territorio dos Chavantes. A Noite, Rio de Janeiro, p. 1, 3, 12 ago. 1940.).
Em 1945, Harold Wilkins, aventureiro e arqueólogo amador, vem ao Brasil em busca de resquícios da Atlântida, definindo a serra do Roncador como a mística “White Cordillera” de uma inespecífica tradição indígena. É surpreendente ler suas especulações sobre o paradeiro de Fawcett; sua identificação do Roncador com as ruínas de uma cidade milenar; a incerteza quanto à real localização da serra; a informação de que ninguém jamais havia saído vivo dela (Wilkins, 1946WILKINS, Harold D. Mysteries of ancient South America. London: Rider, 1946., p. 10). De fato, o autor parece decidido a ignorar as muitas evidências da morte de Fawcett, assim como o sucesso da “conquista” do Roncador pela Bandeira Piratininga, que não encontrou lá nenhuma cidade perdida e retornou incólume a São Paulo. Aparentemente, os mitos ligados à serra do Roncador recusavam-se a morrer, ao menos entre agentes culturais particularmente dispostos a alimentar a mistificação.
Diametralmente oposto a Wilkins, Vargas imagina um xavante moderno capaz de construir e manter uma linha reta. A vitória sobre aquele espaço geográfico recalcitrante, a serra do Roncador, permitiria dominar a barbárie e construir referências para a intervenção sobre a sociedade e para a assimilação dos espaços tidos como “intocados” ao repertório das riquezas nacionais incorporadas aos horizontes de ação e de representação dos agentes da vida política e cultural do país. Em termos estritamente materiais, a apropriação do Roncador alimentava sonhos de progresso econômico e de expansão da colonização neoeuropeia na totalidade do território brasileiro. Difundidas pela cultura de massas, as representações místicas haviam tornado a serra fascinante, mas construíam a imagem exatamente contrária à da natureza apropriável desejada pelos agentes modernizadores, aquela feita de pura materialidade, dessacralizada e instrumentalizada, enfim. As narrativas dos exploradores, e sobre eles, podem ser definidas como a de agentes da racionalidade que fazem do mito seu impulso e seu pretexto.
A história do imaginário da serra é feita de mesclas e intercâmbios entre topônimos, coordenadas incertas, descrições subjetivas, deslizamentos de sentido, antigos mitos, atalhos, adaptações e empréstimos. A instabilidade dos significantes que formaram o universo conceitual em torno do Roncador naquele momento específico da história cultural do Brasil, a década de 1930, não anula nem enfraquece a mistificação em torno da serra. Pelo contrário, essa plasticidade é seu veículo mais eficiente. Pela imprensa e pela literatura, opera-se uma seleção aparentemente fortuita de imagens que se sobrepõem, enquanto muitas outras são obliteradas no trabalho de elaboração dos mitos alimentados pela cultura de massas e prontos para a instrumentação política e ideológica, em nome da conquista dos territórios selvagens.
Referências
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- O PRESIDENTE Getulio Vargas sobrevôa o territorio dos Chavantes. A Noite, Rio de Janeiro, p. 1, 3, 12 ago. 1940.
- O RONCADOR e seu enigma á luz dos textos antigos. Diario da Manhã, Recife, p. 10, 6 ago. 1938.
- OS DIARIOS ASSOCIADOS vão em busca do paradeiro de Fawcett: uma expedição chefiada pelo sertanista José Morbeck no valle do Rio das Mortes. O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jun. 1936.
- O QUE DIZ o Sr. Roberto Pompilio chefe da expedição á aldeia dos indios tapyrapes. Correio Paulistano, São Paulo, p. 9, 30 out. 1937.
- PEZZATI, Alessandro. The Matto Grosso Expedition. Brazil, 1931. Expedition Magazine v. 60, n. 3, p. 38-47, 2018.
- POMPILIO, Roberto C. Tapirapés, “chave do Roncador”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. 40, p. 295-309, 1942.
- RIBEIRO, Luis Saboia. Caçadores de diamantes Rio de Janeiro: Epasa, 1945.
- SILVA, Hermano Ribeiro da. Garimpos de Mato Grosso: viagens ao sul do estado e ao lendario rio das Garças São Paulo: J. Fagundes, 1936.
- SILVA, Hermano Ribeiro da. Nos sertões do Araguaia: narrativa da expedição ás glebas bárbaras do Brasil central São Paulo: Cultura Brasileira, 1935.
- SOTO ROLAND, Fernando Jorge. Visitantes de otros mundos: Aproximación al imaginario del explorador del siglo XIX Buenos Aires: [s.n.], 2012.
- UMA GRANDE EXPEDIÇÃO ás terras dos chavantes. Folha da Manhã, Recife, p. 1, 21 maio 1937.
- VAE REGRESSAR a expedição Morbeck: o roteiro da famosa ruina de ouro dos Araré’s - A serra do Roncador é intransponivel. Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 6 out. 1936.
- WILKINS, Harold D. Mysteries of ancient South America London: Rider, 1946.
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Sobre o povo xavante, no contexto da política indigenista brasileira, ver Garfield (2011).
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A partir de então, a história ambiental desdobrou-se em direção a outras áreas, em grande parte ligadas às ciências físicas e biológicas, e que corresponderiam ao estudo das influências de elementos ambientais sobre a história humana e das mudanças no meio causadas por sua ação, abordando também as consequências sociais disso. Essas correspondem às duas demais vertentes da história ambiental identificadas por Hughes (2016).
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O marco, nesse sentido, é a expedição Roncador-Xingu, criada em 1941.
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Percy Harrison Fawcett realizou sua primeira expedição à Amazônia em 1906, seguida de várias outras em que realizou trabalhos de reconhecimento e exploração geográfica. A suposta cidade teria sido descrita a partir de antigas crônicas de viagem à Amazônia e de um relato bandeirante encontrado na Biblioteca Nacional. Na historiografia recente sobre o mistério de Fawcett, destaca-se Grann (2009), dentro de uma vasta bibliografia, a maior parte em inglês.
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Sobre esse último caso, cite-se Soto Roland (2012, p. 59), que trata a serra de Ricardo Franco como parte da serra do Roncador. A distância rodoviária entre elas é de aproximadamente 1.400 km.
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Em 1952, Brian Fawcett aceitou o convite de Assis Chateaubriand para participar de uma expedição até o Mato Grosso, em companhia do sertanista Orlando Villas Bôas (1914-2002) e do jornalista Antônio Callado (1917-1997). Sobre essa experiência, Callado escreveu Esqueleto na Lagoa Verde (1953) (Bernardo, 2023).
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No entanto, a serra do Roncador já havia sido incorporada ao conhecimento geográfico oficial, e já constava de mapas da região desde pelo menos o início do século XX. O relato de uma expedição realizada em 1922, Tocantins and Araguaya Rivers, Brazil, publicada em 1924 pela revista da Royal Geographical Society, descreve-a com evidente viés colonizador: The Serra de Roncador, which forms the dividing range between the Araguaya and Xingu rivers, is most certainly metalliferous and well worth of further investigation for gold, diamonds, copper, lead, and silver. […] The land is very fertile, well watered, and nearly all “devolute” or unclaimed Government land, on which the people settle, raise their stock or grow their sugar, etc., without payment for rent (Bullock, 1924, p. 382).
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Essa expedição foi liderada pelo experiente capitão russo Vladimir Perfilieff. Também fez parte dela o caçador de onças Alexander (Sasha) Siemel, que havia trabalhado por anos na região. Apesar da participação da Universidade de Pensilvânia, estava longe de ser uma expedição caracteristicamente acadêmica. Um exemplo disso é seu principal produto, o filme Matto Grosso, exibido comercialmente nos cinemas norte-americanos a partir de 1932 (Pezzati, 2018).
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Na década de 1940, o engenheiro e historiador paulista Manoel Rodrigues Ferreira historiou o “mistério do ouro dos Martírios” e, não contente com isso, empreendeu ele próprio pesquisas no sentido de localizar as minas lendárias. Entre seus apontamentos, lê-se: Decidi levar a sério, como se diz, tudo que os antigos Bandeirantes deixaram escrito, os chamados Roteiros dos Martírios, sobre os quais se fizeram tantas ironias, tantos sarcasmos, tantas zombarias. Eu fiz diferente: levei-os a sério. Fui lendo-os sem parar, comparando-os, procurando penetrar no espírito de quem os escrevera, nas suas épocas, para finalmente chegar a uma conclusão: tratava-se de algo sério, verdadeiro, embora tendo sofrido ao longo dos séculos, algumas modificações de escrita, por exemplo (Ferreira apud Medeiros, 2013, D4). De fato, ele participou de várias expedições ao Centro-Oeste brasileiro, algumas delas em companhia dos irmãos Vilas-Boas. Não se tem notícia de que tenha encontrado ouro.
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Hermano Ribeiro da Silva morreu de malária no início da viagem de retorno a São Paulo. Sobre suas narrativas e sobre a Bandeira Anhanguera, ver Murari (2023, 2020a, 2020b) e Murari, Rodrigues (2020).
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Percy Fawcett era irmão de Edward Douglas Fawcett, um jornalista que foi amigo próximo de Helena Blavatsky. A esposa do coronel também professou sua crença nas doutrinas teosóficas (Grann, 2009).
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As bandeiras Piratininga e Anhanguera foram pouco estudadas pela historiografia. Isso se deve, principalmente, à forma violenta como seus membros abordaram os xavantes quando se aproximaram da serra do Roncador. Sua estratégia consistiu em usar foguetes para assustá-los e forçar sua fuga, em seguida invadindo suas aldeias para coletar objetos tradicionais e deixar no lugar produtos industrializados. Práticas como essas renderam críticas severas à Bandeira Piratininga, que se espalharam pela imprensa e comprometeram a imagem da expedição, sobretudo depois que a licença da Bandeira foi impugnada no Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas (Cada vez mais..., 1938). Uma resenha da História dos índios no Brasil, assinada por Luiz Felipe de Alencastro (1992, p. 96), exemplifica a reputação dos grupos: “Em 1938, bandos de facínoras, numa sinistra imitação dos bandeirantes, organizam a ‘Bandeira Anhangüera’ e a ‘Bandeira Piratininga’ para massacrar tribos do rio das Mortes”. Não há evidência, entretanto, de mortes de indígenas em decorrência direta dessas expedições. Sobre as bandeiras Piratininga e Anhanguera, ver, respectivamente, Kurtz (2023) e Murari (2020b).
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Sobre a viagem, ver o artigo “Tapirapés, chave do Roncador” (Pompilio, 1942).
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Os filmes sobre a região realizados no Brasil à época foram perdidos, à exceção de Mato Grosso e suas selvas (1931), produzido pela expedição estadunidense liderada por Vladimir Perfilieff. Listam-se, a partir de registros jornalísticos, além de Tapirapés (Roberto Pompilio, 1937), Nos sertões do Brasil (Juan Etchepare, 1928), Às margens do Araguaia (Aristides Junqueira, 1925), Bandeira Anhanguera: a epopea de Hermano Ribeiro da Silva (Victor del Picchia, 1938), Bandeira Piratininga (Willy Aureli, 1938), No reinado dos chavantes (Willy Aureli, 1939) e Sertões bravios (Willy Aureli, 1941).
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O trabalho contou com bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Jun 2023 -
Aceito
13 Nov 2023