RESUMO
Objetivamos com este estudo apresentar os principais marcos históricos da luta pela construção da Educação do Campo no norte do estado do Espírito Santo. A investigação, de natureza qualitativa, se fundamenta no pensamento de Caldart (2005, 2008, 2009, 2015); Fernandes (2001, 2009); Scarim (2009) e outros. A partir dos registros históricos destacados ressaltamos que as experiências educativas que os camponeses do norte capixaba têm construído estão inseridas em um contexto de luta e confronto mais amplo contra os vários mecanismos de dominação social. Estes processos socioeducativos, que surgem e avançam a partir das tentativas de superar as formas de reprodução das desigualdades sociais, evidenciam que o campesinato é uma realidade social viva e que, de modo contínuo, cria estratégias para garantir sua permanência histórica.
Palavras-chave: Educação do Campo; lutas sociais; norte capixaba
Resumen
Con este estudio pretendemos presentar los principales hitos históricos de la lucha por la construcción de la Educación Rural en el norte del estado de Espírito Santo. La investigación, de carácter cualitativo, se basa en el pensamiento de Caldart (2005, 2008, 2009, 2015); Fernandes (2001, 2009); Scarim (2009) y otros. Con base en los registros históricos destacados, destacamos que las experiencias educativas que han construido los campesinos del norte de Espírito Santo se insertan en un contexto más amplio de lucha y confrontación contra los diversos mecanismos de dominación social. Estos procesos socioeducativos, que surgen y avanzan a partir de los intentos de superar las formas de reproducción de las desigualdades sociales, muestran que el campesinado es una realidad social viva y que continuamente crea estrategias para garantizar su permanencia histórica.
Palabras clave: Educación rural; luchas sociales; norte de Espírito Santo
Abstract
With this study, we aim to present the main historical landmarks of the struggle for the construction of Rural Education in the north of the state of Espírito Santo. The investigation, of a qualitative nature, is based on the thought of Caldart (2005, 2008, 2009, 2015); Fernandes (2001, 2009); Scarim (2009) and others. Based on the highlighted historical records, we emphasize that the educational experiences that peasants in the north of Espírito Santo have built are inserted in a broader context of struggle and confrontation against the various mechanisms of social domination. These socio-educational processes, which arise and advance from attempts to overcome the forms of reproduction of social inequalities, show that the peasantry is a living social reality and that it continuously creates strategies to guarantee its historical permanence
Keywords: Rural Education; social struggles; north of Espírito Santo
RÉSUMÉ
L'objectif de cette étude est de présenter les principaux repères historiques de la lutte pour la construction de l'éducation rurale dans le nord de l'État d'Espírito Santo. L'enquête, e nature qualitative, s'appuie sur la pensée de Caldart (2005, 2008, 2009, 2015) ; Fernandes (2001, 2009); Scarim (2009) et autres. À partir des archives historiques mises en évidence, nous soulignons que les expériences éducatives que les paysans du nord d'Espírito Santo ont construites s'insèrent dans un contexte plus large de lutte et de confrontation contre les différents mécanismes de domination sociale. Ces processus socio-éducatifs, qui naissent et avancent des tentatives de dépassement des formes de reproduction des inégalités sociales, montrent que la paysannerie est une réalité sociale vivante et que, de manière continue, elle crée des stratégies pour garantir sa permanence historique.
Mots clés: Education rurale; luttes sociales; nord d'Espírito Santo
INTRODUÇÃO
O enfrentamento ao desafio teórico de analisar a organização social, econômica e política do campesinato do norte do estado do Espírito Santo, fundamenta-se na compreensão de que a vida camponesa e sua existência na atualidade demanda o reconhecimento das transformações agrárias ocorridas ao longo da história, as consequências e reações camponesas a estas modificações no espaço.
Como parte constitutiva da sociedade capitalista o campesinato assume novas singularidades sociais, econômicas e culturais que, longe da ideia de uma classe atrasada, explicita profunda capacidade para elaborar distintas estratégias com a finalidade de garantir a manutenção das condições imediatas de vida e de trabalho.
Existem inúmeras tentativas de convencimento sobre o absoluto controle que o capital possui sobre os processos sociopolíticos em escala totalizante no mundo agrário, todavia, como enuncia Fernandes (2001) é impossível não reconhecer os campos de possibilidades de criação e recriação de meios de resistências realizados pelos trabalhadores camponeses. Em suas múltiplas formas de organizarem a vida e de produzirem as condições materiais de existência, o que as famílias agricultoras, historicamente, têm feito em todas as regiões do país é desafiado de distintas maneiras a hegemonia capitalista.
Os camponeses se ressocializam e se fazem campesinos, tomam e recuperam suas terras, conquistando sempre novas frações de territórios. Existe um processo constante de luta e de resistência, onde se alternam momentos de avanço do capital, quando os camponeses são expropriados e o trabalho assalariado adquire maior expansão, e momentos em que os trabalhadores conquistam e reconquistam suas terras dominadas pelo capital, transformando grandes unidades agrícolas em comunidades de produtores familiares autônomos. Em outras palavras, quando o capital avança, se territorializa, os camponeses se desterritorializam; quando os camponeses avançam, se territorializam, desterritoriza-se o capital.
A existência do campesinato é uma questão do próprio campesinato, que sempre lutou para ser o sujeito de sua própria história. (FERNANDES, 2009). Nesse sentido, a permanência histórica desta classe social está contida em sua condição de criação e recriação; é a única categoria que pode engendrar sua própria existência, ao contrário do capitalista e do seu assalariado, onde um existe apenas se o outro existir também, em um processo contínuo de exploração, submissão e desigualdade.
Atualmente, compreender o fenômeno da recriação camponesa no Brasil é uma tarefa que se formula ressaltando as experiências no âmbito da educação que foram forjadas ao longo das últimas duas décadas, visto que, as lutas sociais e políticas por melhores condições de vida e de trabalho abarca a dimensão do direito fundamental a educação, sendo este um processo constituído de práticas pedagógicas consonantes com as especificidades do modo de vida camponesa.
Assim, objetivamos a partir deste estudo apresentar os principais marcos históricos da luta pela construção da Educação do Campo que, também, é pelos elementos anteriormente enfatizados parte das estratégias de permanência dos camponeses no modo capitalista de produção. O presente estudo, de natureza qualitativa terá como recorte espacial o norte do estado do Espírito Santo.
A imposição da ideologia desenvolvimentista e a resistência camponesa
O início das mobilizações sociais mais sistemáticas e organizadas dos camponeses na região norte do estado do Espírito Santo ocorreu em um contexto de expansão da reprodução do capital na agricultura capixaba. Não por mera coincidência, estes fenômenos emergiram de maneira simultânea. De fato, as lutas sociais que são empreendidas no início da década de 1980 apresentam-se enquanto reações da agudização da precária situação socioeconômica dos agricultores envolvidos; foram respostas objetivas à expansão do capital que se desenvolveu, e permanece se expandindo, através da expropriação e da proletarização dos trabalhadores camponeses e da população indígena.
Para Rocha e Morandi (2012), tanto os agentes do grande capital privado estrangeiro quanto do nacional, no auge cíclico daquilo que convencionou-se chamar de milagre econômico, usufruindo das circunstâncias e condições favoráveis de localização industrial no Espírito Santo (mão de obra abundante e barata, matéria prima em larga escala, sistema de incentivos fiscais e de financiamento, estrutura econômica razoavelmente desenvolvida, infraestrutura de transporte, existência de redes de comunicações e energia elétrica, entre outros) decidiram implementar no estado vários projetos agroindustriais que vieram a ser executados nos anos subsequentes a 1975. Acrescentava-se a estas prerrogativas a colaboração ostensiva do governo federal e estadual, em relação à política de atração e investimentos, às empresas desenvolvimentistas.
A implantação e a expansão da reprodução do capital na agricultura capixaba foi, portanto, também resultado das políticas dos governos militares que mantiveram forte controle sobre a questão agrária.1 No Espírito Santo, as atividades voltadas para a silvicultura do eucalipto foram impulsionadas especialmente com a implementação de incentivos fiscais previstos em ordenamentos jurídicos federais como a Lei nº 5.106 de 02 de setembro de 1966, sancionada pelo General Castello Branco. Este dispositivo estabelecia a concessão de redução de até 50% do valor do imposto de renda em atividades voltadas para a implementação de programas de florestamento ou reflorestamentos, tendo em vista a manutenção e a preservação do patrimônio ambiental ou que servisse de base à exploração econômica. Deste modo, foi apoiada nestes estímulos legais, bem como em empréstimos públicos, que a empresa Aracruz Celulose S/A expandiu para o norte capixaba a silvicultura do eucalipto2 em velocidade e intensidade elevadas.
O fomento à política macroeconômica expansionista possibilitou a emergência e a disseminação da silvicultura no Espírito Santo o que, consequentemente, resultou na modernização da agricultura. A economia capixaba passa a inserir-se de forma definitiva no circuito nacional como novo espaço de reprodução do grande capital. Nessas condições, a dinâmica da economia brasileira e dos empreendimentos de ações dos setores privados passam a ter maior influência nas decisões de investimento que a própria performance da economia estadual.
É à luz desse novo marco fundamental - a hegemonia do grande capital - que se pode compreender as transformações econômicas ocorridas em, praticamente, todos os setores de atividades da economia capixaba. No setor agrícola verificou-se intenso processo de crescimento econômico e de modernização, derivado da transformação capitalista do campo. A expansão da empresa rural e a disseminação do uso de novas técnicas de cultivo e de insumos industriais modernos possibilitaram à atividade agropecuária maiores níveis de produtividade e um caráter bem mais dinâmico. Ao lado disso, verificaram-se o aumento da concentração da posse de terra, a disseminação das relações de assalariamento e a consequente perda de importância das tradicionais relações de produção familiar e de parceria. (ROCHA e MORANDI, 2012, p.115).
A chegada ao estado de grandes empreendimentos empresariais voltados para a monocultura do eucalipto, resultante de articulações entre as federações da indústria e comércio com a elite econômica e política local alinhadas ao regime ditatorial, não altera somente a fisionomia econômica do estado mas também promove alterações de natureza política e social. Ao longo do período de estabelecimento e acomodação do capital nacional e estrangeiro, inúmeros programas foram implementados com o objetivo de liberar mão de obra e terras para os projetos desenvolvimentistas justificados através de planos e estudos que, como aponta Scarim (2009), utilizando uma linguagem técnica envernizavam as práticas violentas de expulsão de posseiros, quilombolas e indígenas de suas terras.
Referindo a este processo de expropriação da população originária e de pequenos produtores para a expansão da silvicultura do eucalipto o naturalista capixaba Augusto Ruschi por meio da revista científica “Boletim do Museu de Biologia Mello Leitão”, constatou:
Além dos Tupiniquins, muitos já alijados com a entrada de plantio de eucalipto, mesmo em suas terras doadas pelo Império do Brasil, de cujas áreas a Aracruz se apossou e não possui o domínio, muitas outras áreas de pobres famílias ribeirinhas, também se apossou, banindo-as com ridículas indenizações, e às vezes por processos um tanto desumanos, uma vez que não foram aproveitadas em seus trabalhos, porque não toleraram muitos de seus membros com essas maneiras, e ainda outras que foram mais cordatas, lhe entregaram as terras por ninharia e foram para as favelas, em Vitória; único lugar para onde lhes era permitido ir. Esses foram problemas preliminares da Aracruz Florestal em Santa Cruz, no Município de Aracruz, que foi a Terra onde nasceu e viveu Araribóia, ancestral desses Tupiniquins que ainda muitos preferem ali morrer a bater em debandada, numa luta desigual com esses civilizados... São esses heróis, para quem clamamos como espírito santenses que seja dado vistas condignas de nossos dirigentes governamentais. Mas as vistas das autoridades se estão fazendo longas e nada vêem em favor dos Tupiniquins e dos caboclos da região. (RUSCHI, 1979, p. 85).
A liberação da mão de obra que estava sendo gerada pelo avanço das relações capitalistas de produção não era somente para atender as demandas da agricultura modernizante que acabara de ser instalada no território capixaba, mas também se constituía em reserva de força de trabalho para os setores industriais urbanos que se encontravam em franco movimento de expansão. O ponto transitório entre a distribuição da população rural e urbana, como consta no gráfico abaixo, vai acontecer justamente no período em que as bases das matrizes desenvolvimentistas se apresentavam em um momento de nítida ascendência.
Segundo Scarim (2009) o processo de pensamento, prática e institucionalização do desenvolvimento no estado do Espírito Santo portava inúmeros paradoxos cujas centralidades estavam especialmente direcionadas para as seguintes tentativas: impor a industrialização sobre uma base territorial rural; impor o latifúndio sobre uma base agrícola comunitária e familiar; impor a monocultura sobre uma diversidade de formas de cultivos e práticas orientadas para a manutenção integral da família e da comunidade; e impor uma racionalidade instrumental e única sobre uma base de enorme heterogeneidade social, étnica e ecológica de saberes agrários que ainda pode ser encontrada em território capixaba em decorrência das insurgências, resistências e domesticações, constituindo territorialidade e laços múltiplos.
Para se implantar no estado do Espírito Santo, a ideologia desenvolvimentista necessitou produzir uma versão sobre a história, uma concepção sobre o real e uma visão sobre o futuro. Na versão sobre a história, construiu a tese sobre o vazio demográfico, sob a lógica de que a colonização-modernização foi um processo constante de ocupação de terras de ninguém, provocando intencionalmente a invisibilidade e a subalternização de ambientes e povos. Quanto à concepção sobre o real - que se constitui parte e reforço da tese do vazio demográfico - a expansão de áreas subalternizadas deu-se pelo critério da desqualificação das áreas como atrasadas e subdesenvolvidas, num processo autoritário de desagregação da pequena agricultura familiar e de liberação de áreas para outros usos considerados mais modernos e racionais. A visão sobre o futuro busca, a partir da desqualificação e da deslegitimação do conhecimento popular, apoiada no domínio da ciência e da técnica, ordenar o futuro. (SCARIM, 2009, p.206).
O avanço das relações capitalistas de produção na agricultura enfrentou e, ainda enfrenta, o obstáculo da diversidade das formas de viver e produzir dos camponeses. No caso do norte capixaba, o embate entre estas forças sociais antagônicas se realizou em circunstâncias mais complexas e conflituosas em relação às demais regiões do estado, devido ao elevado grau de heterogeneidade em que o campesinato deste território foi constituído. A este fator de caráter socioterritorial acrescia-se a atuação de duas expressões políticas imprescindíveis para se compreender o avanço do acirramento da luta de classes no campo no Espírito Santo. A primeira delas se refere ao Movimento Sem Terra que em 1985 implanta suas bases organizativas no estado e se torna o principal agente de articulação e mobilização dos trabalhadores do campo. A segunda está relacionada à setores progressistas da Igreja Católica que inspirados na Teologia da Libertação3 - movimento que se encontrava em momento de profunda efervescência no Espírito Santo especialmente durante a década de 1980 - contribuíam para estimular as massas de trabalhadores rurais para as lutas sociais através das Comunidades Eclesiais de Base.4
O embate dos trabalhadores camponeses contra o processo de imposição da ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo, que detinha como importantes agentes as forças arcaicas do setor rural ocupando uma posição de domínio na esfera política no interior do estado sob as bases territoriais camponesas, se traduziu em uma série de conflitos agrários, principalmente, como resultado da conformação da luta social mais organizada voltada essencialmente para a questão da reforma agrária. Todavia, a grande diferença entre estes tensionamentos em relação àqueles que aconteciam em períodos anteriores estava na impossibilidade de silenciar ou negar os processos de resistência dos camponeses, ainda que o Estado cumprisse a função histórica de acentuar as tendências dominantes em relação à agricultura.
A partir da década de 1980, os conflitos agrários por terra no Espírito Santo, conforme gráfico abaixo5, envolveram posseiros e grileiros, meeiros e fazendeiros, população indígenas, remanescentes quilombolas e empresas do agronegócio, trabalhadores rurais sem terra e latifundiários. Estes tensionamentos também incluíram as lideranças dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) que passaram a ter uma atuação central na mobilização das massas camponesas e nas denúncias contra a expropriação desses trabalhadores.
As respostas objetivas que foram apresentadas pelas famílias agricultoras no momento do impulso expansionista das relações capitalistas de produção no campo capixaba marcaram uma nova etapa no contexto das lutas camponesas no estado, uma vez que passaram a ser forjadas dentro de uma nova racionalidade. A inserção de entidades catalisadoras das mobilizações políticas populares no cenário das lutas camponesas no Espírito Santo contra o capital estabelece um novo padrão de conflitividade em que a atuação do Estado como mediador é ressignificado. Segundo Scarim (2009), a partir deste momento verificou-se uma ascendência das lutas pela reforma agrária com a ampliação das ações da Via Campesina, das mulheres, articulações dos indígenas Tupiniquim e Guarani, comunidades quilombolas, o trabalho das crianças, movimentos populares da cidade e universitários.
Neste cenário, a construção da Educação do Campo no estado do Espírito Santo começa a ser parte constitutiva da luta por justiça social das famílias agricultoras face à imprescindibilidade de fortalecer as experiências educativas existentes e engendrar novas iniciativas correspondentes às demandas destes sujeitos enquanto forças sociais, políticas e históricas.
O MOVIMENTO DE CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO NORTE CAPIXABA: CONQUISTAS E RESISTÊNCIAS
A chegada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no estado do Espírito Santo dá impulso ao processo de reivindicação da implantação de escolas no campo. Apesar de todos os desafios enfrentados pelas famílias agricultoras, foi possível a criação de instituições de ensino em áreas de acampamentos e assentamentos da reforma agrária que atendessem todas as etapas da educação básica e cuja forma de organizar o ensino encontrasse correspondência com as especificidades das comunidades campesinas onde as instituições estivessem inseridas.
Fica evidente, desde o momento da constituição do setor de educação do MST no estado no ano de 1988 que a formação dos estudantes sem terras nos assentamentos e acampamentos era uma prioridade. Aqui, explicita a crítica ao modelo e concepção hegemônicos de escola das redes municipais e estaduais de todo o país cuja marca fundamental é uma proposta curricular que não alcança a multiplicidade da realidade agrária brasileira. Daí, as ações propositivas no sentido de implantar um conjunto de práticas pedagógicas específicas a serem adotadas pelas escolas do campo no Espírito Santo, em consonância com a agenda nacional de defesa da educação pública apresentada pelo MST. Esta conduta assumida pelo maior movimento social do país representou, no momento histórico destacado, no âmbito educacional, uma das contraposições mais radicais à ideologia que buscava a deserção do Estado em vários contextos da esfera econômica, política e social.
As políticas neoliberais empreendidas, sob medida, para os países da América Latina nos anos 1990 pelos organismos internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), dentre outros, defendiam uma nova relação entre Estado e sociedade civil fundamentada na parceria público-privada, ou seja, na adoção de uma forma de organização administrativa descentralizada e flexível.
A efetivação e legitimação do neoliberalismo decorreu por meio da criação de um Estado mínimo, no que tange à intervenção na economia e o compromisso com as questões sociais fundamentais sem comprometer, todavia, a preservação da ordem vigente. Em outras palavras, os interesses da classe hegemônica seriam mantidos mesmo diante de uma conjuntura de crise.
No cerne da defesa do capitalismo de livre mercado a educação assumiu um papel estratégico na formação da chamada acumulação flexível, ou reserva de mão de obra adequada e disciplinada às novas demandas da reprodução do capital. Portanto, para os aparelhos hegemônicos, as políticas educacionais aceitáveis eram àquelas que permitiam aos países a integração ao mercado global e à sua população se proteger do desemprego. Estes objetivos seriam supostamente atingidos através do desenvolvimento da competência empregatícia adaptável do indivíduo. Nestes termos, as políticas educacionais se direcionaram, como pontua Gentili (1998, p.89), para “[...] garantir a transmissão diferenciada das competências flexíveis que habilitem os indivíduos a lutar, nos exigentes mercados de trabalho, pelos poucos empregos disponíveis”.
As reformas estruturais gestadas e executadas pelos organismos internacionais foram implementadas, no Brasil, mediante a instrumentalização de políticas educacionais para as camadas proletarizadas da população. Somente os processos educacionais teriam o alcance e o potencial necessário para alinhar a formação social às concepções ideológicas neoliberais. Como bem destacou Adolf Berle, um dos mais importantes conselheiros de Kennedy e Johnson: “na América Latina o campo de batalha é pelo controle da mente do pequeno núcleo de intelectuais, dos educados e dos semieducados.”6 Ou seja, a estratégia da política intervencionista estadunidense era conseguir a dominação, também, através dos processos educacionais.
A educação ocupava um espaço central nas proposições dos aparelhos hegemônicos com uma função ideológica bem específica. O aliviamento da pobreza e a consequente inserção dos países periféricos no “mundo globalizado” seriam alcançados mediante o imprescindível alinhamento das políticas educacionais nacionais com a agenda neoliberal de reorganização dos fatores de produção e do desenvolvimento social.
A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico e social, ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os países a reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo. Essa dupla estratégia requer a promoção do uso produtivo do trabalho (o principal bem do pobre) e proporcionar serviços sociais básicos para o pobre (BANCO MUNDIAL, apud LEHER, 1999, p.23).
A eleição de Fernando Collor de Mello e a vitória do projeto neoliberal, o qual durante o governo Itamar Franco teve continuidade e foi intensificado durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, representou tanto o refluxo quanto a derrota do movimento operário e popular no Brasil. O espectro desses retrocessos compreendia desde a criminalização das organizações populares através da participação imprescindível da mídia corporativista até a cooptação de lideranças das forças sociais para a burocracia estatal. Uma das mais eminentes constatações deste fato pode ser verificada com a mudança de atuação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) que redirecionou seu eixo político estratégico da luta classista para a formação sindical-instrumental referenciada pelo exercício da cidadania. Como bem observou Armando Boito Jr. (1999, p.120) em relação à tendência da organização em formular políticas para a formação profissional na direção da cidadania: “seu enfraquecimento era estratégico para a consolidação do neoliberalismo”.
Se por um lado os anos 1990 foram marcados pela afirmação de uma pauta conservadora com a qual seus proponentes objetivaram subordinar a educação à dinâmica da reprodução do capital, por outro lado, houve uma reação inédita dos movimentos sociais. Conforme Baiarle (1994), a complexificação do tecido associativo e a nova conjuntura política dos anos 1990 levaram a necessidade de os movimentos sociais terem um papel mais propositivo, instituinte. Um dos exemplos mais expressivos desta dimensão participativa veio principalmente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tensionando o Estado a reconhecer e viabilizar as experiências educativas de escolarização que estavam sendo forjadas pelas organizações e movimentos populares.
Ao fazer referência a este momento de crescimento de articulação entre as diferentes entidades e organizações para contrapor as reformas de orientação neoliberal, Menezes Neto (2003) destaca que no 5° Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais em Brasília, que aconteceu no ano 1991, questões relacionadas à educação são abordadas a partir do tema “Participação política nas questões sociais”. Dentre as propostas aprovadas pelas diferentes categorias de trabalhadores rurais, destacam-se: a defesa da escola pública compatível com as especificidades do meio rural, a elaboração de currículos vinculados ao cotidiano dos agricultores, a adoção do método Paulo Freire, campanhas de alfabetização, flexibilização do turno escolar, implantação de colégios agrícolas, condições de acesso às escolas, qualificação dos professores, luta pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação pelo Congresso Nacional e inserção do movimento sindical nos Conselhos de Educação e Cultura.
Esta plataforma de deliberações evidenciava que os trabalhadores rurais começavam a assumir de forma mais efetiva a tarefa de formação política de seus quadros e a educação das crianças e jovens. Esta iniciativa correspondia a um amplo processo de mobilização de forças sociais que colidia com as estratégias e ações das diferentes esferas do governo que objetivam prosseguir com o ritmo acelerado do avanço do capitalismo no campo. Como assinala Grzybowski (1991, p.32) sobre este embate:
Nem se reproduz o modelo de desenvolvimento capitalista selvagem, nem as forças democrático-populares têm se mostrado capazes de ganhar a hegemonia e complementar um modelo alternativo. Ou melhor, as lutas políticas dramáticas nesta conjuntura de crise revelam o quanto as classes interessadas na expansão capitalista de nossos países são ainda autoritárias, não admitindo ser desafiadas e contestadas em sua estratégia.
No campo, as forças sociais refratárias aos mecanismos fisiológicos e corporativos dos setores dominantes, notavelmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, respondiam aos retrocessos que inviabilizavam a reforma agrária“ampla, geral e massiva”demandada pelos trabalhadores mantendo a agenda política e as pautas de mobilização junto à opinião pública. No entanto, para além do debate que caracterizou sua trajetória na década anterior, a reivindicação fundamental do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi adquirindo novos conteúdos. A luta pela reforma agrária não estava mais restrita à dimensão da regularização e reorganização fundiária. Ela passou a ser anunciada de forma mais efetiva a partir de uma perspectiva histórico-social na qual o sujeito sem terra e sua situação histórica passaram a figurar na centralidade da questão.
...querem mais do que a reforma agrária encabrestada pelos agentes de mediação. Querem uma reforma agrária para as novas gerações, uma reforma que reconheça a ampliação histórica de suas necessidades sociais, que os reconheça não apenas como trabalhadores, mas como pessoas com direito à contrapartida de seu trabalho, aos frutos do seu trabalho. Querem, portanto, mudanças sociais que os reconheçam como membros e integrantes da sociedade. (MARTINS, 1994, p.156)
Estes desdobramentos na luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foram fundamentais na correlação de forças nos anos 1990 no estado do Espírito Santo e em todo o país, momento em que os mecanismos da luta de classes que se encontravam em franco funcionamento estavam amplamente desfavoráveis para o conjunto dos proletarizados. Mesmo que as organizações coletivas dos trabalhadores não tenham conseguido impor significativas restrições ao avanço da execução das medidas contidas na agenda neoliberal, como foi o caso das privatizações de empresas estatais, o MST se tornou uma das maiores expressões políticas da América Latina na luta pela reforma agrária. Isto foi possível através da ampliação de sua base de apoio e atuação. Menezes Neto (2003, p.53) enfatiza que:
O MST, contrariando as expectativas políticas que enxergavam o esgotamento das lutas pela terra no Brasil, cresce e consegue se impor como um movimento social e sindical fundamental nos anos 90, lutando pela reforma agrária, ideia que parecia derrotada pela modernização capitalista do campo. É fundamental observar que o MST, no decorrer dos anos, modifica-se e recria nas suas ações políticas, apresentando-se, a partir dos anos 90, como um movimento social que luta por mudanças mais amplas que a simples divisão de terra.
Essas novas formas de organização sociopolítica e econômica do MST, que marca o período que Fernandes (2000) define como de territorialização e institucionalização, o transforma em uma organização híbrida, múltipla e plural que tem o trunfo da conquista do território para um processo de recriação permanente. Neste momento, a questão do direito à educação para a população camponesa é apresentada formalmente pelos coletivos de trabalhadores camponeses e com a especificidade de que seriam as políticas públicas as portadoras da implementação desta reivindicação histórica.
Após o processo de redemocratização e a aprovação da Constituição de 1988 os direitos sociais da população camponesa centralizaram inúmeros debates, especialmente questões referentes a heterogeneidade do campesinato brasileiro e do respeito a esta diversidade. Através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/1996 algumas demandas dos camponeses foram contempladas, dentre essas, as adequações curriculares às peculiaridades do meio rural.
Na esteira desta abertura legal e política os movimentos sociais passaram a discutir a mudança do termo educação rural para Educação do Campo. Conforme Fernandes, Cerioli e Caldart (2011), a utilização da expressão campo provoca uma reflexão sobre o sentido do atual trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que tentam assegurar a sobrevivência deste trabalho. Deste modo, no final dos anos 1990, a proposta educativa construída pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra passa a ser discutida no cerne das reflexões sobre a Educação do Campo com o intuito de conceber uma educação básica do campo direcionada aos interesses e ao desenvolvimento econômico e sociocultural dos povos que vivem e trabalham no campo, atendendo às tais especificidades.
O desenvolvimento da Educação do Campo acontece em um momento de potencial acirramento da luta de classes no campo, motivado por uma ofensiva gigantesca do capital internacional sobre a agricultura, marcada especialmente pelo controle das empresas transnacionais sobre a produção agrícola, que exacerba a violência do capital e de sua lógica de expansão sobre os trabalhadores, notadamente sobre os camponeses. (CALDART, 2009, p.47-48).
As discussões iniciais para a consolidação da concepção de Educação do Campo aconteceram no I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (I Enera), realizado em 1997 com a participação de mais de vinte instituições de ensino superior do país. Estas discussões avançam em outros espaços e momentos, como nas Conferências Nacionais por uma Educação do Campo, com a efetiva participação da sociedade civil, órgãos governamentais e entidades internacionais, afirmando a necessidade da implementação de políticas públicas para a Educação do Campo e ampliando esta reivindicação para todos os níveis de ensino.
Em suma, conforme Camacho (2014), as razões primordiais que levaram a idealização de um projeto de educação peculiar, denominado Por Uma Educação do Campo, era, de um lado, a marginalização social e educacional a qual estavam submetidos os moradores do campo naquele momento. A condição de miséria, desigualdade social e avanço predatório do capital no campesinato se integravam com a inexistência de políticas públicas para a Educação no Campo. Por outro lado, a luta pela Educação do Campo se torna possível em virtude dos movimentos sociais de trabalhadores camponeses estarem construindo sua luta pela terra e, simultaneamente, por um projeto de desenvolvimento para a sociedade distinto do projeto do agronegócio. Como aponta Caldart (2005, p.2), no contexto originário da Educação do Campo, estão entre seus principais elementos:
[...] ao mesmo tempo emergência de lutas e de sujeitos coletivos reagindo a esta situação social; especialmente as lutas camponesas, e entre elas, a luta pela terra e pela Reforma Agrária; - também o debate de uma outra concepção de campo e de projeto de desenvolvimento que sustenta uma nova qualidade de vida para a população que vive e trabalha no campo.
Desta maneira, a luta pela Educação do Campo se origina nos problemas sociais, econômicos e educacionais que os camponeses enfrentavam e na tentativa dos movimentos sociais camponeses em encontrar soluções. A necessidade de conter o avanço do capitalismo no campo é outra característica do processo de construção deste movimento político-pedagógico. É neste cenário de intensas contradições e lutas para superar estes desafios históricos, vividos pelos trabalhadores do campo, que a educação se apresenta como instrumento de resistência para contribuir na luta pelo acesso e permanência na terra tendo em vista a reprodução do campesinato como classe social e como modo de vida.
As lutas sociais forjadas pelos agricultores camponeses através dos movimentos sociais como o Movimento Sem Terra no Espírito Santo trouxeram à luz a discussão sobre a necessidade da reforma agrária como possibilidade de justiça social em que o acesso à terra, como meio de produção e condição de trabalho, representa a fração de uma totalidade de um modo específico de viver. Nesta conjuntura, o processo de construção da Educação do Campo se constitui no cerne das lutas sociais das famílias agricultores. Sendo este, portanto, um movimento pedagógico que surgiu a partir das experiências de classe de camponeses e cujo ponto referencial é o direito dos povos do campo a um projeto educativo que transforma cada sujeito em um ente crítico na busca de emancipação.
Na Educação do Campo, o debate do campo precede o da educação ou da pedagogia, ainda que o tempo todo se relacione com ele. E, para nós, o debate de campo é fundamentalmente debate sobre o trabalho no campo. Que traz colada a dimensão da cultura, vinculada às relações sociais e aos processos produtivos da existência social no campo. Isso demarca uma concepção de educação. Integrados a uma tradição teórica que pensa a natureza da educação vinculada ao destino do trabalho. (CALDART, 2008, p.77).
O Movimento Nacional de Educação do Campo encontrou no norte capixaba um contexto muito propício para sua afirmação, o que se traduziu em uma mobilização mais incisiva das comunidades camponesas, mediatizada pela Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo para a expansão através da via pública das experiências educativas que vinham sendo desenvolvidas, particularmente, por meio da Pedagogia da Alternância. Acrescenta-se também a incorporação da Educação da Campo nas plataformas reivindicatórias de outras organizações coletivas para além dos movimentos sociais campesinos, como entidades sindicais e religiosas.
O movimento de expansão da Pedagogia da Alternância e dos Centros Familiares de Formação em Alternância (CEFFAs)7 para outras regiões do Espírito Santo já estava inserido no plano estratégico do Movimento Promocional do Espírito Santo (Mepes)8, referente ao período de 1971/73 elaborado pela equipe técnica da entidade em agosto de 1970: “o pensamento é de estender, ao norte do estado, as atividades do Mepes tendo presente a necessidade de testar a ideia em outras condições”9. Contudo, será no início do século XXI que o processo de expansão da Pedagogia da Alternância para o norte do estado alcançará maior expressividade.
Durante mais de 30 anos a rede Mepes centralizou e coordenou a difusão da Pedagogia da Alternância para o norte do Espírito Santo, todavia, paulatinamente, o caráter limitante de sua estrutura administrativa e pedagógica para atendar as demandas das especificidades da região tornou-se manifesto. De acordo com Telau (2015), entre os anos de 1980 até 2000 a Pedagogia da Alternância no norte do estado, acompanhando as lutas sociais, expandiu-se para fora do Mepes. Foram criadas as Escolas Comunitárias Rurais e as Escolas Famílias Agrícolas ligadas às Secretarias Municipais de Educação, como resultado da pressão da população rural ao poder público municipal.
As escolas dos assentamentos rurais do Movimento dos Sem Terra também adotaram a Pedagogia da Alternância. A incorporação desta metodologia por diferentes instituições em um contexto campesino bastante diferente do sul capixaba - realidade agrária na qual inicialmente ela foi implantada - impôs, às famílias agricultoras, o desafio de se pensar em um modo de organização que permitisse maior autonomia dos CEFFAs para conduzir as formas pelas quais a Pedagogia da Alternância se desenvolveria. Portanto, a necessidade em assegurar a unidade político-pedagógica das instituições que assumiram a alternância como proposta educativa no norte do estado determinou a implementação em 2003 da Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo (RACEFFAES), através de uma ampla articulação entre as famílias agricultoras e entidades camponesas.
A luta dos camponeses por uma educação apropriada a seu modo de vida, sua cultura e seu trabalho não se encerram com a criação de uma nova escola ou com a adoção da Pedagogia da Alternância em uma escola já existente. O valor dado à ação coletiva e à integração de cada um na comunidade onde vive, aspectos que fundamentam esse Projeto Político-Pedagógico, merecem atenção permanente de todos aqueles que a defendem como projeto de vivência compartilhada. (RACEFFAES, 2015, p.48).
Ainda, no bojo das lutas sociais pela garantia da educação pública em todos os níveis de ensino para a população camponesa no norte capixaba foi implementado no ano de 2013 o Curso de Licenciatura Plena em Educação do Campo pela Universidade Federal do Espírito Santo através do campus do Centro Universidade Norte Capixaba, localizado no município de São Mateus. A instituição deste curso superior ocorreu em atendimento à demanda apresentada pelo Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - Secadi. Este órgão conclamou as Instituições Públicas de Educação Superior - a elaborarem projetos de Cursos Presenciais de Licenciatura em Educação do Campo a partir do Programa de apoio à formação superior em Licenciatura em Educação do Campo - Procampo, em cumprimento à Resolução CNE/CEB Nº 1, de 03/04/2002 ao Decreto Nº 7.352 de 04/11/2010 e em consonância com o Programa Nacional de educação do Campo - Pronacampo. Para além de responder a solicitação do Ministério da Educação, este projeto foi resultado de um conjunto de ações de caráter político-social empreendidas por diferentes sujeitos e contextos campesinos da região.
O curso de Licenciatura plena em Educação do Campo que tem quase uma década de existência no norte do Espírito Santo objetiva formar e habilitar educadores para atuarem em atividades docentes nas escolas do campo em todas as etapas da educação básica; educadores que atuam em processos de escolarização básica de jovens e adultos em comunidades camponesas; pessoas que coordenam ou fazem o acompanhamento político-pedagógico dos cursos formais apoiados pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária -Pronera; pessoas que já desenvolvem atividades educativas em diferentes setores e movimentos sociais do campo e; egressos dos cursos de ensino médio da educação do campo.
Esta formação que se realiza por meio das áreas de conhecimento cria novas possibilidades de organizar o trabalho escolar como prática social. Tal dinâmica contribuiu para as transformações que as instituições escolares camponesas necessitavam e atendeu, portanto, a reivindicação histórica dos povos do campo e movimentos sociais de uma formação docente específica para as escolas do campo. Neste sentido, o educador camponês é mais do que um agente educativo. Ele é um sujeito fundamental para a transformação. Conforme Caldart (2002, p.36):
Por isso defendemos com tanta insistência a necessidade de política e projetos de formação das educadoras e dos educadores do campo. Também porque sabemos que boa parte deste ideário que estamos construindo é algo novo em nossa própria cultura. E que há uma nova identidade de educador que pode ser cultivada desde este movimento por uma educação do campo.
A formação específica para os educadores camponeses representa a possibilidade de práticas coerentes com os princípios e valores da Educação do Campo, considerando as relações sociais que são estabelecidas, bem como, de outros elementos que nos possibilitam reconhecer o campesinato, não como um apêndice da urbanidade, mas como espaço de produção de saberes e de pluralidade cultural. Contudo, esta formação não é compreendida apenas na perspectiva de valorização de saberes. É necessário entendê-la, principalmente, no plano da autonomia e da organização de uma outra sociedade que enfrenta os mecanismos de opressão. Assim, as necessidades fundamentais que as escolas do campo apresentam, demandam educadores cuja formação lhes ofereça condições de compreender o processo histórico real, em suas dimensões particulares e universais.
Atualmente, podem ser identificadas diversas experiências de Educação do Campo no norte do estado do Espírito Santo, dentre as quais se destacam: a Educação Indígena, a Educação Quilombola, MEPES, Escolas Comunitárias Rurais (ECOR`s), RACEFFAES, Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Espírito Santo (Fetaes), MST e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). São movimentos sociais e outras organizações coletivas que afirmam propostas pedagógicas materializadas a partir das suas contradições históricas e de uma concepção de campo, de trabalho e de educação determinada.
[...] É também imprescindível garantir a sua materialidade de origem, pois, ao perder o vínculo com as lutas sociais do campo que a produziram, ela deixará de ser Educação do Campo. Ou seja, para continuar sendo contra hegemônica, a Educação do Campo precisa manter o vínculo e o protagonismo dos sujeitos coletivos organizados, ser parte da luta da classe trabalhadora do campo por um projeto de campo, educação e sociedade. (MOLINA, 2012, p. 593).
As experiências educativas que os camponeses do norte capixaba têm construído estão inseridas em um contexto de luta e confronto mais amplo contra os vários mecanismos de dominação social. Estes processos socioeducativos, que surgem e avançam a partir das tentativas de superar as formas de reprodução das desigualdades sociais, evidenciam que o campesinato é uma realidade social viva e que, de modo contínuo, cria estratégias para garantir sua permanência histórica.
Em Educação para Além do Capital (2008) o filósofo húngaro István Mészáros enfatiza que a educação possui papel soberano, tanto para a formulação de estratégias apropriadas e adequadas para alterar as condições objetivas de reprodução, quanto para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a elaboração de uma ordem social metabólica radicalmente distinta. Daí a importância da práxis e sua formalização específica na configuração dos indivíduos.
As experiências educativas que sinalizam a emancipação têm como marca fundamental a transformação dos trabalhadores em agentes políticos que pensam e agem conscientes das possibilidades concretas de transformação da sociedade. Por isso é imprescindível, como observa Caldart (2015) não se pensar a Educação do Campo fora da contradição fundamental entre capital e trabalho e sem o objetivo de superação das leis fundamentais de funcionamento da lógica de produção que move o capitalismo: exploração do trabalho e exploração da natureza.
CONCLUSÃO
É inegável a importância do movimento de construção da Educação do Campo no horizonte espacial retratado para articular e mobilizar politicamente e pedagogicamente a classe trabalhadora constituída de diferentes sujeitos, como: assentados da reforma agrária, assalariados rurais, meeiros, pequenos e médios proprietários rurais que vivenciam os dilemas fundamentais dos camponeses brasileiros em sua generalidade. Dada a sofisticação sem precedentes da expropriação da grande massa de trabalhadores no momento atual, e que demanda respostas urgentes, o papel que estas experiências educacionais têm desempenhado no sentido de promover o desenvolvimento contínuo de uma consciência crítica é absolutamente fundamental. Neste sentido, concordamos integralmente com Mészáros (2008) quando afirma que é imprescindível não perdemos o compromisso com a tarefa histórica de transição de uma ordem social existente para outra, qualitativamente distinta. No conjunto dos desafios que precisam ser enfrentados para alcançar este objetivo é necessário inserir planos estratégicos para se pensar uma educação que vá além do capital. Deste modo, a transformação social emancipadora radical requerida é impossível de ser realizada sem uma contribuição ativa e concreta da educação em seu sentido mais amplo.
A educação, como pondera Mészáros (2008, p.76) não pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida de forma contínua no seu inter-relacionamento dialético com “as condições cambiantes e as necessidades da transformação social emancipadora e progressiva em curso”.
Por estas razões se mantém a afirmação de que os trabalhadores do campo não se posicionam de forma passiva frente as forças externas que minam sua vitalidade, como já refletimos anteriormente neste estudo. Pelo contrário, o campesinato como classe social mantém-se ativo nos processos históricos desempenhando um papel cardeal na correlação de forças no contexto da luta de classes. Como destacou Arroyo (2010), é também ver e captar que o campo está vivo, que é um dos territórios sociais, políticos, econômicos e culturais de maior tensionamento, e que os povos do campo, em sua rica diversidade, afirmam-se como sujeitos políticos em múltiplas ações de natureza coletiva.
REFERÊNCIAS
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Logo após o golpe militar o governo do Marechal Castelo Branco enviou ao Congresso Nacional o projeto desenvolvido pelo Ipes que, aprovado em 30 de novembro de 1964, se transformou no Estatuto da Terra, por meio da Lei n.º 4.504. Pela ótica dos proprietários o Estatuto viabilizava o acesso à terra, mas fechava esse mesmo acesso pela ótica da grande maioria de trabalhadores do campo: a reforma agrária favorecia os lavradores com vocação empresarial. Ou seja, o Estatuto foi elaborado de tal forma que se orientou para estimular e privilegiar o desenvolvimento e a proliferação da empresa rural. O destinatário privilegiado do Estatuto não era o camponês, mas o empresário, o produtor de espírito capitalista, que organizava a sua atividade econômica de acordo com os critérios da racionalidade do capital. (VALADÃO, 1999, p. 49-50).
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A Aracruz Florestal S.A foi criada pelo imigrante norueguês Erling Lorentzen em 1967. ARACRUZ CELULOSE S/A, que surge em 1972 como sucessora da Aracruz Florestal S/A, numa junção de vários grupos acionistas: BNDE (25,90%), Cia. Souza Cruz Indústria e Comércio (25,29%), FIBASE (14,72%), Grupo Billerud (6.07%), Grupo Lorentzen (5,08%), Vera Cruz Agroflorestal S/A (3.37%), Grupo Moreira Salles (2,63%), e os restantes 391 acionistas, como o Grupo Oliver Araújo, CBPO, Paranapanema S/A, Refinaria União e outros. Em 2009 o Grupo Votorantim Celulose e Papel funde com a Aracruz e a partir da unificação destas corporações surge a Fibria Celulose, um negócio que teve o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em março de 2018 a Suzano Papel e Celulose anuncia a compra da Fibria Celulose.
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Movimento sócio eclesial que surgiu dentro da Igreja Católica na década de 1960 a como resposta à contradição existente na América Latina entre a pobreza extrema e à fé cristã de maioria de sua população. Este movimento elaborou teorias e formas concretas de viver uma nova forma de ser Igreja, que além de questionar as bases tradicionais da instituição eclesial e da organização política, contribuíram para o avanço da identidade latino-americana.
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4
As comunidades eclesiais de base (CEBs) são organismos da Igreja Católica que se caracterizam por: (a) celebração dominical realizada por leigos ou leigas; (b) ampla participação na tomada de decisões, geralmente por meio de assembleias; e (c) ligação entre a reflexão bíblica e a ação na sociedade.
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5
Referem-se a soma das ocorrências em que famílias foram despejadas, expulsas, ameaçadas de despejo ou expulsão, tiveram seus bens destruídos ou sofreram ação de pistolagem.
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6
Ver LEHER, Roberto. Um Novo Senhor da Educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Outubro, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 19-30, 1999.
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7
Segundo García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010, p. 59) “um Centro Educativo Familiar de Formação por Alternância, um CEFFA é uma Associação de famílias, pessoas e instituições que buscam solucionar uma problemática comum de Desenvolvimento Local através de atividades de formação em Alternância, principalmente de jovens, sem excluir os adultos”.
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8
Instituição Filantrópica criada através de uma assembleia de agricultores realizada em 25 de abril de 1968 na Câmara Municipal de Anchieta (ES). O MEPES está presente no Espírito Santo a mais de 50 anos atuando nas áreas de educação, saúde e ações sociais.
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9
Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo,1970, p.3.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
04 Jan 2022 -
Aceito
31 Maio 2022