RESUMO
Objetivo:
Avaliar o contexto de trabalho e analisar suas repercussões na qualidade de vida de trabalhadores rurais do agronegócio da soja.
Método:
Estudo transversal, com amostra intencional de trabalhadores rurais, realizado entre os meses de outubro e dezembro de 2019, com aplicação dos instrumentos World Health Organization Quality Life-bref e Escalas de Avaliação do Contexto e Custo Humano do Trabalho. Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva, bivariada e multivariada.
Resultados:
Participaram 299 trabalhadores rurais. Os escores das Condições de Trabalho e das Relações Socioprofissionais foram satisfatórios e o da Organização do Trabalho foi crítico. Os escores dos Custos Físico e Cognitivo foram considerados críticos e o do Custo Afetivo, satisfatório. As Relações Socioprofissionais repercutiram negativamente na qualidade de vida geral e nos Domínios Físico e Psicológico, nas Relações Sociais e no Meio Ambiente, enquanto o Custo Cognitivo repercutiu positivamente nos Domínios Físico e no Meio Ambiente e o Custo Afetivo repercutiu positivamente no Domínio das Relações Sociais.
Conclusão:
Apesar de o Contexto e o Custo Humano do Trabalho indicarem condições adversas, somente as Relações Socioprofissionais exerceram influências negativas na qualidade de vida dos trabalhadores rurais.
DESCRITORES
Trabalhadores rurais; Condições de Trabalho; Qualidade de vida; Saúde do Trabalhador; Enfermagem do Trabalho
ABSTRACT
Objective:
To assess the context of work and analyze their repercussions on the quality of life of rural workers in soybean agribusiness.
Method:
Cross-sectional study, with an intentional sample of rural workers, conducted between the months of October and December 2019, with the application of the instruments World Health Organization Quality Life-bref and Scales of Assessment of Context and Human Cost of Work. The data were analyzed through bivariate and multivariate descriptive statistics.
Results:
The participants amounted to 299 rural workers. The scores of Work Conditions and Socioprofessional Relations were satisfactory and Organization of Work was critical. The scores of Physical and Cognitive costs were considered critical and of the Affective Cost was satisfactory. The Socioprofessional Relations have negatively impacted the overall quality of life and the Physical and Psychological, the Social Relations and the Environmental Domains, whereas Cognitive Cost positively impacted the Physical and the Environmental Domain and the Affective Cost positively impacted the Social Relations Domain.
Conclusion:
Although the Work Context and Human Cost indicated adverse conditions, only the Socioprofessional Relations exerted negative influences on the quality of life of rural workers.
DESCRIPTORS
Rural Workers; Working Conditions; Quality of Life; Occupational Health; Occupational Health Nursing
RESUMEN
Objetivo:
Evaluar el contexto de trabajo y analizar sus repercusiones en la calidad de vida de los trabajadores rurales de la agroindustria de la soja.
Método:
Estudio transversal con una muestra intencional de trabajadores rurales, realizado entre los meses de octubre y diciembre de 2019, con aplicación de los instrumentos World Health Organization Quality Life-bref y Escalas de Evaluación del Contexto y Costo Humano del Trabajo. Los datos se analizaron mediante estadísticas descriptivas, bivariadas y multivariadas.
Resultados:
Participaron un total de 299 trabajadores rurales. Las puntuaciones de las Condiciones de Trabajo y las Relaciones Socioprofesionales fueron satisfactorias y la de la Organización del Trabajo fue crítica. Las puntuaciones de los Costos Físico y Cognitivo fueron consideradas críticas y la del Costo Afectivo fue satisfactoria. Las Relaciones Socioprofesionales impactaron negativamente la calidad de vida global y los Dominios Físico y Psicológico, Relaciones Sociales y Entorno, mientras que el Costo Cognitivo impactó positivamente los Dominios Físico y Entorno y el Costo Afectivo impactó positivamente el Dominio de Relaciones Sociales.
Conclusión:
Aunque el Contexto y el Costo Humano del Trabajo indican condiciones adversas, sólo las Relaciones Socioprofesionales ejercieron influencias negativas en la calidad de vida de los trabajadores rurales.
DESCRIPTORES
Trabajadores Rurales; Condiciones de Trabajo; Calidad de Vida; Salud Laboral; Enfermería del Trabajo
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre a Qualidade de Vida (QV) têm despertado o interesse de pesquisadores sobre vários aspectos da saúde da população em todo o mundo; porém, quando se trata da população rural, a literatura científica, especialmente a nacional, apresenta lacunas significativas no que se refere à inter-relação da QV com as condições de vida, saúde e, principalmente, com os contextos de trabalho de homens trabalhadores rurais.
A escolha por investigar a QV de trabalhadores rurais se deu pela verificação de que o Agronegócio representa para o Brasil um dos setores econômicos de maior relevância, sendo o sexo masculino predominante nessa população(11. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. O mercado de trabalho assalariado rural brasileiro. Estudos Pesq. 2014;(75):1-33.).
Mesmo em tempos da pandemia da COVID-19, em que vários setores econômicos apresentaram quedas de arrecadação em decorrência das restrições sanitárias, a safra de grãos 2019/20, no Brasil, apresentou aumento de 4,8%, com 253,7 milhões de toneladas, tornando-se a maior safra na história da produção de grãos brasileira, com destaque para a soja, o milho e o algodão(22. Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Companhia Nacional de Abastecimento. Safra brasileira de grãos. Brasília: Conab; 2020.). A safra de soja teve seu plantio iniciado em setembro de 2019, com término da colheita em abril de 2020, concomitante à pandemia da COVID-19 no país; ou seja, a produção poderia ter sido maior, com impactos econômicos ainda mais positivos, não fosse a ocorrência da pandemia.
Ainda não há consenso sobre o conceito de QV, uma vez que este pode diferir entre pessoas, lugares e mesmo ao longo da vida; no entanto, há concordância de que existem múltiplos fatores que a determinam. Assim, no presente estudo, assumiu-se o conceito de QV proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que a define como um conjunto de percepções que o indivíduo possui a partir da sua posição na vida, seu contexto cultural e sistemas de valores, considerando suas metas, expectativas, padrões e preocupações(33. The Whoqol Group. The World Health Organization Quality of Life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med. 1995;41(10):1403-9. https://doi.org/10.1016/0277-9536(95)00112-K
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).
A avaliação da QV de uma população abrange tanto aspectos subjetivos dos indivíduos quanto fatores individuais e socioambientais que os circundam em determinado contexto sociocultural, assim como aspectos objetivos
relativos à mensuração das condições de vida, saúde e trabalho(44. Angelim RCM, Figueiredo TR, Correia PP, Bezerra SMMS, Baptista RS, Abrão FMS. Avaliação da qualidade de vida por meio do Whoqol: análise bibliométrica da produção de enfermagem. Rev Baiana Enferm. 2015;29(4):400-10. http://dx.doi.org/10.18471/rbe.v29i4.11857
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).
Para se compreender a forma como o trabalho influencia a QV dos indivíduos, utilizou-se a Psicodinâmica do Trabalho, concebida por Christophe Dejours(55. Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.), que desenvolveu um conjunto teórico e metodológico cujo objeto de estudo são as relações dinâmicas entre a organização do trabalho e os processos de subjetivação manifestadas nas vivências de prazer e sofrimento no trabalho, bem como nas estratégias de ação para mediar contradições presentes na organização do trabalho, nas doenças sociais, na saúde e no adoecimento decorrentes do processo laboral(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
As bases conceituais da Psicodinâmica do Trabalho são elaboradas a partir da análise da dinâmica inerente ao Contexto de Trabalho, fundamentada pela atuação de forças visíveis e invisíveis, objetivas e subjetivas, psíquicas, sociais, políticas e econômicas, que podem ou não prejudicar esse contexto, convertendo-o em um lugar de saúde ou de adoecimento(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
A partir dessas concepções, a Psicodinâmica do Trabalho propõe uma organização do trabalho que considera a dimensão coletiva do trabalho a fim de propiciar o “prazer no ambiente laboral e, para isso, é necessário que a organização ofereça condições ao trabalhador de desenvolver três importantes ações: mobilização de inteligência prática, espaço público de discussão e cooperação”(77. Aciole GG, Pedro MJ. Sobre a saúde de quem trabalha em saúde: revendo afinidades entre a psicodinâmica do trabalho e a saúde coletiva. Saúde Debate. 2019;43:194-206. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912015
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).
Assim, compreende-se que o Contexto do Trabalho pode exercer influências diretas na saúde física e/ou psíquica e, consequentemente, na QV dos trabalhadores(88. Silva RM, Limas BT, Pereira LS. Contexto de trabalho e custo humano no trabalho: um estudo com trabalhadores portuários de transporte. Barbaroi. 2016;46:98-118. http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i46.6410
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–99. Santos OOA, Machado ACA, Facas EP. Psicodinâmica do trabalho e atividade pastoral. Trabalho (En)Cena. 2018;3(3):115-38. https://10.20873/2526-1487V3N3P115
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). Apesar disso, verifica-se que são escassos os estudos que inter-relacionam o Contexto do Trabalho e a QV entre os trabalhadores rurais, especialmente entre os homens, uma vez que o trabalho rural é composto por cerca de 80% de trabalhadores assalariados do sexo masculino(11. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. O mercado de trabalho assalariado rural brasileiro. Estudos Pesq. 2014;(75):1-33.).
Não obstante, revisão sistemática realizada em bases de dados nacionais e internacionais com o intuito de analisar a produção científica sobre a QV de trabalhadores rurais entre os anos de 1996 e 2012, revelou produção pouco expressiva, encontrando somente três estudos internacionais com foco no comprometimento da QV por distúrbios musculoesqueléticos(1010. Siqueira DF, Moura RM, Laurentino GEC, Silva GPF, Soares LDA, Lima BRDA. Qualidade de vida de trabalhadores rurais e agrotóxicos: uma revisão sistemática. Rev Bras Ciênc Saúde. 2012;16(2):259-66. https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.02.22
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). Não foi encontrado nenhum estudo que relacionasse as questões de subjetividade e a organização do trabalho para a análise do Contexto do Trabalho.
A compreensão da inter-relação entre a QV e o trabalho rural pode contribuir para a área da Enfermagem e para a Saúde Pública, em especial no cuidado às populações rurais, ao ampliar o conhecimento teórico, prático e metodológico do ambiente de trabalho e do trabalhador rural(1111. Cezar-Vaz MR, Bonow CA, Mello MCVA, Silva MRS. Abordagem socioambiental na enfermagem: focalizando o trabalho rural e uso de agrotóxicos. Rev Bras Enferm. 2016;69(6):1179-87. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0364
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). É necessário envolver a população e os profissionais de saúde, em especial a Enfermagem, na discussão da atenção à saúde com vistas a promover a QV entre os trabalhadores rurais, com ênfase na implantação de educação em saúde, na realização de pesquisas, no financiamento e na organização dos serviços no âmbito rural(1212. Oliveira AR, Sousa YG, Silva DM, Alves JP, Diniz IVA, Medeiros SM, et al. A Atenção Primária à Saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41:e20190328. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2020.20190328
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), com enfoque no contexto de trabalho dessa população.
Isso posto, esta pesquisa questiona: de que forma as Condições de Trabalho vivenciadas pelos homens trabalhadores rurais inseridos no contexto da soja repercutem na qualidade de vida desses trabalhadores?
Considerando a necessidade de se conhecer e refletir sobre os processos de trabalho e suas consequências, este estudo teve como objetivo avaliar o Contexto de Trabalho e analisar suas repercussões na qualidade de vida de trabalhadores rurais do agronegócio da soja.
MÉTODO
Desenho do estudo
Estudo de delineamento transversal de abordagem quantitativa.
População
Estudo desenvolvido na área rural do município de Sinop, Mato Grosso (MT), com homens trabalhadores rurais atuantes no contexto da soja. Sinop se localiza na região médio-norte do Estado de Mato Grosso e compõe, juntamente com as cidades de Sorriso e Lucas do Rio Verde, o polo econômico dessa macrorregião, devido à intensa produção de culturas como a soja, o milho, o algodão e à pecuária, com destaque para a produção de aves e suínos. A cidade também foi classificada pelo Ministério do Turismo como o Portal do Agronegócio.
A população estimada em 2017 era de 956 homens trabalhadores rurais ocupados no contexto da soja(1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário, 2017 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2017 [cited 2020 jun. 14]. Available from: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017
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). Devido às dificuldades de acesso às fazendas e armazéns produtores de soja, obteve-se uma amostra não probabilística por conveniência, composta por trabalhadores dos estabelecimentos que permitiram o acesso dos pesquisadores. Para a determinação da amostra, foi considerado o tamanho da população, uma proporção de 50% para a prevalência desconhecida do desfecho, uma confiança de 95% (zα/2 = 1,96) e um erro amostral de 5%. Assim, obteve-se amostra aproximada de 277 somados a 15% para possíveis perdas, totalizando 318 homens trabalhadores rurais.
Solicitou-se a autorização para realização da pesquisa a 25 estabelecimentos: 16 fazendas e 9 armazéns/silos; porém, somente 6 fazendas e 6 armazéns/silos consentiram na realização da pesquisa. No total, 315 trabalhadores rurais foram entrevistados; entretanto, devido à incompletude no preenchimento dos instrumentos, 16 participantes foram excluídos, o que resultou na amostra final de 299 homens trabalhadores rurais.
Critérios de seleção
Foram incluídos homens trabalhadores com idade acima de 18 anos que desenvolviam sua ocupação em atividades relacionadas ao contexto da soja. Foram excluídos trabalhadores que se encontravam na lavoura ou em alguma atividade laboral no momento da coleta, assim como trabalhadores de férias ou em licença médica. Foram considerados como perda os trabalhadores que não responderam todos os instrumentos da pesquisa.
Coleta de Dados
A coleta de dados ocorreu no período de outubro a dezembro de 2019, durante o plantio da soja na safra 2019/20. Aplicou-se a versão brasileira do World Health Organization Quality Life-bref (WHOQOL-bref), desenvolvido pela OMS(1414. The Whoqol Group. Development of the World Health Organization WHOQOL-BREF quality of life assessment. Psychol Med. 1998;28(3):551-8. https://doi.org/10.1017/S0033291798006667
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) com intuito de avaliar a QV. Essa escala é composta por duas questões gerais (sobre a percepção da QV e a satisfação com a saúde) e 24 questões relacionadas aos Domínios Físico, Psicológico, Social e Meio Ambiente, totalizando 26 questões. Os resultados obtidos com a aplicação da escala WHOQOL-Bref apresentaram evidência de confiabilidade, constatada por meio do coeficiente alfa de Cronbach (α = 0,85). As informações obtidas a partir dessa escala compuseram as variáveis dependentes.
Para a análise das condições relacionadas ao trabalho, foram utilizadas duas escalas, Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT) e Escala de Avaliação do Custo Humano do Trabalho (EACHT). Ambas integram o Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA)(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.), cujo arcabouço teórico foi embasado pela teoria da Psicodinâmica do Trabalho de Dejours(55. Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.). Esse inventário é composto por quatro escalas interdependentes que possuem a finalidade de avaliar quatro dimensões da inter-relação entre o trabalho e os riscos de adoecimento. Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas as escalas EACT e EACHT por se considerar que estas demonstram um panorama aprofundado da inter-relação trabalho-saúde-adoecimento dos trabalhadores rurais. A EACT é composta por três fatores: 1. Organização do Trabalho, integrada por 11 itens que expressam a divisão das tarefas, as normas, os controles e o ritmo de trabalho; 2. Condições de Trabalho, composta por 10 itens que buscam expressar a qualidade do ambiente físico, posto de trabalho, equipamentos e material disponibilizados para a execução do trabalho; e 3. Relações Socioprofissionais, composta por 10 itens que refletem os modos de gestão do trabalho, comunicação e interação profissional(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
A EACHT é composta por três fatores: 1. Custo Físico, constituído por 10 itens que interrogam sobre custo da energia fisiológica e biomecânica exigido do trabalhador rural para a realização das atividades laborais pelo contexto de seu trabalho; 2. Custo Cognitivo, composto por 10 itens que exploram o esforço intelectual para a aprendizagem, a resolução de problemas e a tomada de decisões inerentes ao trabalho desenvolvido; e 3. Custo Afetivo, formado por 12 itens que abordam o envolvimento emocional para retratar os comportamentos afetivos, sentimentais e estados de humor do trabalhador(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
As escalas utilizadas são do tipo Likert e possuem variância de 38,46% e 44,46%, respectivamente, ambas com cargas fatoriais acima de 0,30 e Alfa de Cronbach de 0,75 e 0,84, respectivamente(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.). Em ambas as escalas, o ponto de corte para classificação dos fatores é estabelecido em três níveis diferentes, considerando um desvio padrão em relação ao ponto médio. Valores médios acima de 3,7 representam avaliação grave, indicando que o contexto de trabalho e o custo humano do trabalho possibilitam de forma grave o adoecimento do trabalhador. Valores médios entre 2,3 e 3,69 representam uma avaliação crítica, indicando que o contexto de trabalho e o custo humano do trabalho favorecem moderadamente o adoecimento do trabalhador. Valores médios abaixo de 2,29 representam avaliação satisfatória, indicando que o contexto de trabalho e o custo humano do trabalho favorecem a saúde dos trabalhadores(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
As escalas foram previamente validadas em diferentes grupos ocupacionais (auditores, enfermeiros, policiais, bancários); contudo sua estrutura não havia sido testada em trabalhadores rurais. Por esse motivo, foram realizadas novas análises para confirmar a estrutura de fatores nesse grupo ocupacional. Os resultados confirmaram a estrutura fatorial das escalas originais na amostra de trabalhadores rurais. A escala EACT apresentou carga fatorial de 0,69, alfa de Cronbach de 0,82 e explicou 55% da variância da medida. Quanto à escala EACHT, o fator Custo Físico apresentou carga fatorial de 0,80; o fator Custo Cognitivo demonstrou carga fatorial de 0,77 e o fator Custo Afetivo, carga fatorial de 0,66. A EACTH apresentou alfa de Cronbach de 0,82 e explicou 45% da variância da medida. O escores médios das escalas EACT e EACHT compuseram as variáveis independentes do presente estudo.
Análise e Tratamento dos Dados
Os dados foram digitados e organizados no software Microsoft Excel® e a análise dos dados foi realizada com o auxílio do pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 20 para as análises bivariadas. O software R, com auxílio do pacote GAMLSS(1515. Stasinopoulos DM, Rigby RA. Generalized Additive Models for Location Scale and Shape (GAMLSS) in R. J Statistical Software [Internet]. 2007 [cited 2020 Aug 27];23(7):1-10. Available from: https://www.jstatsoft.org/article/view/v023i07
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), foi utilizado para a análise multivariada. Foram realizadas análises descritivas de frequência relativa e absoluta, bem como medidas de tendência central (média e mediana) e de dispersão (desvio padrão). Para testar a normalidade das distribuições das variáveis dependentes, foi utilizado o teste de Shapiro Wilk, que constatou se tratar de dados não paramétricos.
Para as análises de comparação, foram empregados os testes de Mann-Whitney (variáveis dicotômicas) e Kruskal-Wallis (variáveis com três ou mais categorias), o qual foi seguido do teste post-hoc de Dunn. O nível de significância adotado foi de 5% (p < 0,05). Para o controle de confundimento, somente as variáveis independentes que apresentaram valor de p < 0,10 na análise bivariada foram incluídas nos modelos aditivos generalizados para locação, escala e forma (GAMLSS), método que modela a média, a variância, a assimetria e a curtose em um único modelo. Nesse modelo, o sinal negativo referente ao coeficiente de estimativa indica uma diminuição nos escores para o referido domínio e, de forma contrária, o sinal positivo corresponde ao aumento nos escores, quando as demais covariáveis são mantidas constantes no modelo. Para a escolha da melhor distribuição para modelar os dados, foi utilizado o Critério de Informação de Akaíke (AIC). O nível de significância adotado foi de 5% (p < 0,05).
Aspectos éticos
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Saúde, Campus de Sinop, sob o Parecer n. 3.085.698 em 2018 e foi realizada seguindo as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 466/2012. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido após a explicação de seu conteúdo, riscos e benefícios em participar da pesquisa.
RESULTADOS
Participaram deste estudo 299 homens trabalhadores rurais atuantes no contexto da soja, com média de idade de 34 anos. Estes eram majoritariamente pardos (45,8%), solteiros (35%), com Ensino Médio (52,2%), católicos (60%), com média de 1,41 filho, naturais do Maranhão (29%) que dormiam no trabalho (58%) e utilizavam transporte próprio (66%), com carteira assinada (98%), não sindicalizados (66%), desenvolvendo a função de operadores de máquinas agrícolas (29%), com média de renda mensal de 2.141,92 reais e renda real de 3.195,46 reais na safra, com carga horária média de 45 horas semanais fora da safra e de 73 horas semanais na safra, com média de 10 anos de trabalho rural e 7 anos de trabalho na soja.
Na análise descritiva apresentada na Tabela 1, observa-se classificação satisfatória quanto às Condições de Trabalho (1,81 ± 0,67) e Relações Socioprofissionais (1,86 ± 0,74). Em relação ao fator Organização do Trabalho, constatou-se avaliação crítica entre os trabalhadores (2,53 ± 0,65). O fator Custo Físico apresentou classificação crítica (2,94 ± 0,87), assim como o fator Custo Cognitivo (3,32 ± 0,89). Para o fator Custo Afetivo, constatou-se avaliação satisfatória entre os trabalhadores (2,00 ± 0,80).
Análise descritiva da Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho e Escala de Avaliação do Custo Humano do Trabalho em trabalhadores rurais – Sinop, MT, Brasil, 2019.
A partir da comparação dos escores dos domínios da QV e do Contexto de Trabalho, descritos na Tabela 2, houve dife-rença estatisticamente significante no Domínio Físico para o fator Relações Socioprofissionais (p = 0,003), sendo que, na análise de pos-hoc de Dunn, observaram-se diferenças entre as categorias grave ≠ satisfatório e crítico ≠ satisfatório.
Comparação entre os escores da versão brasileira do World Health Organization Quality Life-bref (WHOQOL-Bref) e escores das Escalas de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT) e de Avaliação do Custo Humano do Trabalho (EACHT) – Sinop, MT, Brasil, 2019.
No Domínio Psicológico, houve diferença estatisticamente significante para o fator Relações Socioprofissionais (p = 0,028); porém, não foi verificada diferença significativa na análise de pos-hoc de Dunn. No Domínio Relações Sociais, houve diferença estatisticamente significante para o fator Relações Socioprofissionais (p < 0,001), sendo que, na análise de pos-hoc de Dunn, se observou diferença entre as categorias crítico ≠ satisfatório.
No Domínio Meio Ambiente, houve diferença estatisticamente significante para o fator Condições de Trabalho (p = 0,008), sendo que, na análise de pos-hoc de Dunn, se observou diferença entre as categorias crítica ≠ satisfatória. Da mesma forma, houve diferença estatisticamente significante para o fator Relacões Socioprofissionais (p > 0,001), sendo que, na avaliação de pos-hoc de Dunn, houve diferença nas categorias crítico ≠ satisfatório, assim como entre as categorias grave ≠ satisfatório.
Ao analisar a influência dos fatores em relação ao Contexto e Custo Humano do Trabalho sobre a QV geral e os domínios (Físico, Psicológico, Relações Sociais, Meio Ambiente), verificou-se que as Relações Socioprofissionais repercutiram negativamente em todos os domínios e na QV geral desses trabalhadores. No entanto, constatou-se que o fator Custo Cognitivo impactou positivamente os Domínios Físico e Meio Ambiente, enquanto o Custo Afetivo impactou positivamente o Domínio Relações Sociais da QV, conforme Tabela 3.
Modelo final de regressão via GAMLSS segundo a qualidade de vida geral e os domínios do WHOQOL-bref em trabalhadores rurais – Sinop, MT, Brasil, 2019.
DISCUSSÃO
No que tange ao perfil sociodemográfico dos trabalhadores rurais desta pesquisa, observou-se semelhança com o perfil dos trabalhadores agrícolas nos Estados Unidos, de acordo com o Department of Labor, Employment and Training Administration dos EUA, que, em publicação sobre o perfil demográfico dos trabalhadores agrícolas, indicou a predo-minância de homens (68%) com idade média de 38 anos, casados (57%) e com filhos (55%)(1616. Hernandez T, Gabbard S. Findings from the National Agricultural Workers Survey (NAWS) 2015-2016: a demographic and employment profile of United States farmworkers [Internet]. Washington: Department of Labor; 2019 [cited 2020 Aug 27]. Available from: http://hdl.voced.edu.au/10707/504095
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).
Consoante à avaliação do Contexto de Trabalho, verificou-se que os trabalhadores rurais consideraram as Condições de Trabalho e as Relações Socioprofissionais satisfatórias. Todavia, a Organização do Trabalho foi considerada crítica pelos participantes do estudo, revelando uma possibilidade de adoecimento desses trabalhadores decorrente da Organização do Trabalho caracterizada pela divisão das tarefas, normas e controles rígidos e ritmo de trabalho intenso.
Ao avaliar o impacto do Contexto de Trabalho sobre a QV dos trabalhadores, verificou-se que as Relações Socioprofissionais exerceram influência negativa em todos os domínios (Físico, Psicológico, Social e Meio Ambiente), demonstrando-se um preditor negativo para a QV dos trabalhadores investigados. As Relações Socioprofissionais dizem respeito às interações hierárquicas coletivas intra e intergrupos e externas que ocorrem no universo do trabalho(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
Assim sendo, é preciso considerar a inter-relação entre os processos organizacionais como fatores que atuam sobre a saúde e QV dos trabalhadores e que, frequentemente, as abordagens de QV no trabalho praticadas nas organizações tendem a mascarar essas relações e a moldar o comportamento dos trabalhadores ao invés de buscar soluções efetivas para lidar com os problemas inter-relacionais vivenciados(1717. Ferreira MC. A ergonomia da atividade pode promover a qualidade de vida no trabalho? Reflexões de natureza metodológica. Rev Psicol Org Trabalho [Internet]. 2011 [cited 2020 ago. 27];11(1):8-20. Available from: https://periodicos.ufsc.br/index.php/rpot/article/view/22243
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).
Pesquisa realizada no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, relativa à satisfação no trabalho rural verificou que os trabalhadores estavam “muito satisfeitos” com a natureza do trabalho agrícola, seus supervisores e colegas de trabalho. Os níveis de satisfação foram relativamente altos para a comunicação interna, salários e compromissos familiares. Os trabalhadores estavam “extremamente insatisfeitos” com o trajeto para o trabalho e “insatisfeitos” com as consequências do trabalho para a saúde. Eles estavam “um pouco insatisfeitos” com os benefícios adicionais oferecidos, as oportunidades promocionais e as recompensas contingentes(1818. Hobbs M, Klachky E, Cooper LM. Job satisfaction assessments of agricultural workers help employers improve the work environment and reduce turnover. Calif Agric. 2020;74(1):30-9. https://doi.org/10.3733/ca.2020a0002
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). Ou seja, os trabalhadores agrícolas norte-americanos também se demonstraram satisfeitos quanto às Relações Socioprofissionais.
Porém, é preciso considerar que no trabalho rural, fatores como a pequena possibilidade de ascensão profissional, o modelo de produção focado na padronização e na fragmentação das tarefas(1919. Charlton D. Development of agricultural supply through structural changes in labor inputs. New York: UC Davis; 2019.), bem como as dificuldades enfrentadas devido a uma Organização do Trabalho aquém das necessidades dos trabalhadores podem impactar negativamente nas interações hierárquicas e entre pares(2020. Campos JF, David HSL. Work context assessment in intensive therapy units from the perspective of work psychodynamics. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(2):363-8. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342011000200009
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), o que pode explicar os menores escores na QV entre os trabalhadores que avaliaram criticamente as Relações Socioprofissionais. Dessa forma, a eliminação de estressores psicossociais, como carga horária extenuante, cobrança por produtividade, lidar com ordens contraditórias, entre outros presentes no ambiente de trabalho rural, pode estar além do escopo de um profissional de saúde e segurança agrícola. Logo, ressalta-se a necessidade de incorporar o gerenciamento do estresse e as intervenções para proteção contra condições de saúde mental(2121. Antloga CS, Maia M, Cunha KR, Peixoto J. Contexto de trabalho e custo humano no trabalho em um órgão do poder judiciário brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(12):4787-96. https://doi.org/10.1590/1413-812320141912.22252013
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).
A avaliação negativa da Organização do Trabalho pode ser explicada pela presença de longas jornadas de trabalho, trabalho disperso, deslocamento excessivo do trabalhador, diversidade e variabilidade das atividades executadas e horário de trabalho desgastante(1818. Hobbs M, Klachky E, Cooper LM. Job satisfaction assessments of agricultural workers help employers improve the work environment and reduce turnover. Calif Agric. 2020;74(1):30-9. https://doi.org/10.3733/ca.2020a0002
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), fatores comumente evidenciados no contexto de produção agrícola brasileiro. Nos Estados Unidos e no México, o contexto de produção no trabalho agrícola apresenta características como maior divisão do trabalho, investimento nos trabalhadores para se tornarem mais produtivos e desenvolvimento de melhores técnicas de produção(2222. Rudolphi J. Diversity of mental health issues in agriculture. J Agromed. 2019;25(1):1. https://doi.org/10.1080/1059924X.2020.1694821
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), aspectos também evidenciados no Brasil. Aliado a isso, “os procedimentos repetitivos, a imposição de ritmos e rigidez na condução da atividade podem causar vivências de sofrimento no trabalhador”(88. Silva RM, Limas BT, Pereira LS. Contexto de trabalho e custo humano no trabalho: um estudo com trabalhadores portuários de transporte. Barbaroi. 2016;46:98-118. http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i46.6410
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) e repercutir na QV dos trabalhadores.
A avaliação das exigências em relação ao trabalho, sinalizadas pelo Custo Humano do Trabalho, apresentou panorama preocupante, posto que se observou maior prevalência de avaliações críticas e graves para o Custo Físico e Cognitivo entre os trabalhadores rurais estudados. Nesse sentido, verifica-se que tal contexto tem exigido um alto custo físico e cognitivo destes. Considerando o referencial da Psicodinâmica do Trabalho, a exposição dos trabalhadores a um custo humano alto pode levar ao adoecimento a longo prazo(66. Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA): instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p.111-26.).
A presença de uma avaliação crítica do Custo Físico entre os trabalhadores rurais no contexto da soja revela a importância de se avaliar o ambiente físico ao qual o trabalhador é exposto. A avaliação do desgaste físico e as peculiaridades relacionadas a esse desgaste revelam facetas importantes do contexto em que os trabalhadores estão inse-ridos(2323. Hoffmann C, Traverso LD, Zanini RR. Contexto de trabalho das pessoas com deficiência no Serviço Público Federal: contribuições do inventário sobre trabalho e riscos de adoecimento. Gest Prod. 2014;21(4):707-18. https://doi.org/10.1590/0104-530X379
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). As características da atividade a que os trabalhadores estão expostos, com grande dispêndio fisiológico, podem contribuir para o adoecimento, ausência e afastamento do trabalho, demonstrando a interferência que o trabalho exerce sobre a saúde dos trabalhadores(2424. Guimarães MC. Custo humano de trabalho e estratégias de mediação em trabalhadores rurais In: Mendes AM, organizador. Psicodinâmica e clínica do trabalho: temas, interfaces e casos brasileiros. Curitiba: Juruá; 2012.). A extenuante carga física do trabalho pode levar ao comprometimento do sistema cor-póreo, do bem-estar psicológico, das relações socioafetivas, da percepção sobre o labor e da satisfação no trabalho(2525. Silva RM, Tiepo MVS. Condições de trabalho, custo humano e dano físico: um estudo com estivadores de um terminal portuário. Barbaroi. 2016;48:135-52. http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i48.9589
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).
O maior Custo Cognitivo pode estar estritamente relacionado com as mudanças vivenciadas pelo campo, especialmente na produção da soja, em que o uso extensivo da tecnologia se dá com o intuito de aumentar cada vez mais a produção na mesma quantidade de área plantada. Essa lógica exige dos trabalhadores rurais o aperfeiçoamento na manipulação de implementos agrícolas com alta tecnologia e manipulação de defensivos agrícolas, que precisam ser corretamente calculados, a fim de se evitar o risco de perder a produção.
A Revolução Verde promoveu a implantação de tecnologias no campo, seja na agricultura ou na pecuária, visando o aumento da produtividade(2626. Koglin AP, Bezzi ML. A modernização da agricultura e os impactos na organização socioespacial do município de Toropi-RS. Soc Território. 2019;31(2):156-76. https://doi.org/10.21680/2177-8396.2019v31n2ID18305
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) e instigou a readequação do trabalho rural às novas técnicas de produção, organização e gestão do processo produtivo, “mudança essa que acarreta o aumento da exigência por profissionais de maior qualificação, sendo necessários profissionais aptos a absorver e adaptar técnicas modernas de cultivo e planejar o manejo da fase agrícola”(2727. Mesquita FC, Furtado AT. Expansão da agroindústria canavieira e qualificação da mão-de-obra em Goiás (2006-2013). Soc Nat. 2016;28(1):67-81. https://doi.org/10.1590/1982-451320160105
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). Em Mato Grosso, a soja apresenta uma produção altamente mecanizada, na qual o plantio e a colheita são completamente mecanizados e controlados via satélite e computador de bordo através do sistema de agricultura de precisão(2828. Soares HV. O trabalho na cadeia da soja no centro-oeste brasileiro: um debate sobre emprego, renda e condições de trabalho na agricultura capitalista contemporânea. Tempos Históricos. 2019;23(1):602-28.).
Apesar de os trabalhadores terem avaliado o Custo Cognitivo como crítico, indicando alto dispêndio mental, este repercutiu positivamente nos Domínios Físico e Meio Ambiente. Esse resultado é plausível, visto que, com a maior utilização de tecnologias, há menor dispêndio de força física por parte dos trabalhadores rurais. Antes do advento da modernização da atividade agrícola, os trabalhadores ficavam expostos a maior gasto físico (colheita manual) e meio ambiente mais adverso (expostos ao sol e às condições de alterações ambientais, como chuva e calor intenso). Na atualidade, o plantio e a colheita são realizados por meio de maquinário agrícola altamente tecnológico, com cabines fechadas, livre de ruídos e com ar condicionado, podendo ter efeitos positivos nesse resultado.
O Custo Afetivo foi considerado satisfatório por 67,6% dos trabalhadores rurais investigados, repercutindo favo-ravelmente na avaliação do Domínio Relações Sociais na análise multivariada. A partir do arcabouço teórico da Psicodinâmica do Trabalho(55. Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.), é possível compreender tal fenômeno, uma vez que os trabalhadores, mesmo diante de processos de trabalho que causam sofrimento, são capazes de encontrar o prazer e a disposição para enfrentar a realidade através de estratégias defensivas de modo a alcançar o equilíbrio psíquico(77. Aciole GG, Pedro MJ. Sobre a saúde de quem trabalha em saúde: revendo afinidades entre a psicodinâmica do trabalho e a saúde coletiva. Saúde Debate. 2019;43:194-206. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912015
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,99. Santos OOA, Machado ACA, Facas EP. Psicodinâmica do trabalho e atividade pastoral. Trabalho (En)Cena. 2018;3(3):115-38. https://10.20873/2526-1487V3N3P115
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).
Diante do apresentado referente ao Contexto e Custo Humano do Trabalho dos homens trabalhadores rurais atuantes no contexto da soja, verifica-se a necessidade de maior inserção da enfermagem do trabalho nessa realidade, uma vez que, no mundo, muitos serviços assistenciais voltados ao trabalhador são fornecidos por enfermeiras de saúde ocupacional independentemente ou em colaboração com profissionais de outras disciplinas. Esses serviços podem ser de proteção e/ou de promoção à saúde, bem como voltados à redução de agravos à saúde e melhora da QV dos trabalhadores(2929. Rogers B, Kono K, Marziale MHP, Peurala M, Radford J, Staun J. International survey of occupational health nurses’ roles in multidisciplinary teamwork in occupational health services. Workplace Health Saf. 2014;62(7):274-81. https://doi.org/10.1177/216507991406200702
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). No Brasil, destaca-se a urgência de que as equipes de saúde que assistem à zona rural reconheçam os problemas de saúde interligados ao contexto laboral que acometem essa população, empregando maior foco nas ações preventivas e de promoção da saúde(3030. Ferraz L, Trindade LL, Bevilaqua E, Santer J. As demandas do homem rural: informações para a assistência nos serviços de saúde da atenção básica. Rev Min Enferm. 2013;17(2):349-55. http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20130026
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).
Nesse contexto, a Enfermagem, profissão mais presente na Atenção Primária à Saúde, necessita de maiores investimentos na qualificação de seus profissionais para o atendimento das populações rurais e na formação específica para a assistência qualificada às necessidades dos homens trabalhadores rurais.
Faz-se importante ressaltar algumas limitações deste estudo resultantes do processo de acesso aos trabalhadores rurais, uma vez que, via de regra, a amostra pesquisada foi composta por trabalhadores atuantes em grandes propriedades. Acredita-se que a realidade, principalmente em relação às Condições de Trabalho, possa se apresentar de forma distinta das verificadas nesta pesquisa. Nesse sentido, recomenda-se a realização de pesquisas com enfoque nas pequenas propriedades rurais. É também fator limitante a realização da pesquisa no ambiente de trabalho, o que pode de alguma forma ter intimidado os trabalhadores, influenciando suas respostas.
Apesar dessas limitações, acredita-se que este estudo possui como fortaleza o fato de ter alcançado um grupo de trabalhadores que, embora pouco estudado na literatura, traz uma importante contribuição para a economia brasileira. Portanto, conhecer suas Condições de Trabalho, dando contorno às vulnerabilidades presentes nesse contexto, é de grande valia para a promoção de políticas socioambientais com foco nas relações de trabalho. A partir desses resultados, pode-se pensar novas formas de Organização do Trabalho Rural, especialmente no contexto da soja.
No que tange à atuação da Enfermagem, salienta-se que a Saúde do Trabalhador Rural se apresenta como um campo rico para a atuação profissional, posto que existe a possibilidade de que, a partir do arcabouço da Psicodinâmica do trabalho, a Enfermagem possa contribuir para mitigar os riscos decorrentes dessa atividade laboral. Espera-se que os achados deste estudo possam influenciar a elaboração, o planejamento e a execução de políticas públicas com o intuito de diminuir os efeitos prejudiciais das Condições de Trabalho no contexto da soja, assim como em realidades semelhantes.
CONCLUSÃO
Em relação ao Contexto de Trabalho, os trabalhadores rurais avaliaram as Condições de Trabalho satisfatoriamente; a Organização do Trabalho foi considerada crítica e as Relações Socioprofissionais, satisfatórias. Quanto ao Custo Humano do Trabalho, os trabalhadores avaliaram o Custo Físico e Cognitivo como críticos e o Custo Afetivo como satisfatório.
No que se refere às repercussões do Contexto de Trabalho na QV dos trabalhadores rurais, verificou-se que as Relações Socioprofissionais repercutiram negativamente em todos os domínios e na QV geral desses trabalhadores. No entanto, constatou-se que o fator Custo Cognitivo impactou positivamente os Domínios Físico e Meio Ambiente, enquanto o Custo Afetivo impactou positivamente o Domínio Relações Sociais da QV.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Ago 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
16 Set 2020 -
Aceito
09 Abr 2021