RESUMO:
este estudo teve o objetivo de buscar indicadores de desenvolvimento em crianças e adolescentes com dificuldades para aprender, com QI igual ou inferior a 70 no teste WISC-IV (compatível com o valor delimitado para o diagnóstico de deficiência intelectual). Fundamentou-se na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano proposta por Vygotsky, especialmente no que se refere à distinção entre desenvolvimento real e potencial. Foram relatados estudos de caso com duas crianças. A coleta de dados ocorreu a partir de gravações em áudio de entrevistas semiestruturadas com os pais/responsáveis e com os profissionais da escola em que os participantes estavam matriculados, e gravações em vídeo das sessões de atendimento de um serviço de educação não formal que as crianças participavam regularmente. A análise de dados envolveu transcrição das entrevistas e elaboração de quadros com os modos de participação social e processos mentais superiores relatados, de cada criança/adolescente; exame das filmagens das sessões de atendimento, com transcrição e análise microgenética de episódios significativos. Os dados sugerem que, ao se enfatizar a busca de indicadores de desenvolvimento, pode-se obter uma visão abrangente de cada caso, de forma a contemplar, para além das limitações, as potencialidades das crianças e dos adolescentes.
PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Deficiência Intelectual; Teoria Sócio-Histórico-Cultural; Desenvolvimento Humano
ABSTRACT:
This study aimed to identify development indicators in children and adolescents with learning difficulties, with IQ equal to or below 70 in the WISC-IV test (compatible to the delimited value for diagnosis of intellectual disability). It was based on the historical-cultural perspective of human development proposed by Vygostsky, especially in relation to the distinction between real and potential development. This research reports two case studies with a child and a teenager. Data was collected from audio recordings of semi-structured interviews with parents/responsible person and the professionals of the schools they were enrolled, as well as video recordings of the service sessions in an informal educational project the child and teenager regularly attended. Data analysis involved transcriptions of the interview and construction of tables with the child/teenager's social participation modes and superior mental processes, analysis of the service sessions recordings with transcriptions and micro genetic analysis of significant episodes. Data suggest that, when emphasizing the search for development indicators, it is possible to have a wide view of each case in a way to contemplate, beyond limitations, children and teenagers' potentialities.
KEYWORD:
Special Education; Intellectual Disability; Social-Historical-Cultural Theory; Human Development
1 Introdução
No início do século XX, Vygotsky iniciou uma discussão sobre deficiência, em bases diferentes da tradição organicista da época. O foco passou de uma visão biológica e centrada nas limitações do indivíduo para a busca de compreensão do seu desenvolvimento, a partir de uma perspectiva social e cultural (BARROCO, 2007BARROCO, S.M.S. A Educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. 2007. 414f. Tese (Pós-Graduação em Educação Escolar) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007.; VYGOTSKY, 2011VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011.). Segundo Vygotsky (1997VYGOTSKY, L.S. Obras escogidas: Fundamentos de defectologia. Tomo V. Trad. Julio Guilhermo Blank. Madrid: Visor, 1997., 2011)VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011., o déficit orgânico desempenha uma dupla influência no desenvolvimento de uma pessoa com deficiência. Se, por um lado, traz dificuldades, obstáculos e limitações, por outro, estimula o desenvolvimento de caminhos alternativos ou indiretos, com a finalidade de compensar a deficiência. Para o autor, a principal forma de compensar a deficiência é através do desenvolvimento cultural, que "[...] não se relaciona, necessariamente, com essa ou aquela função orgânica" (VYGOTSKY, 2011VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011., p. 868). O autor destaca que: "Onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho sem limites para o desenvolvimento cultural", e lembra que a mesma tarefa pode ser realizada por vários meios (VYGOTSKY, 2011VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011., p. 869). Como exemplos, nesse aspecto, pode-se pensar em formas alternativas de comunicação pelo surdo (ex: datilologia, Língua de Sinais) e de leitura pelo cego (ex: texto em Braille, livro falado). O papel da tecnologia seria o de prover novas alternativas, sempre na linha de superar os impedimentos orgânicos. Em relação às crianças com deficiência intelectual, Vygotsky (2011)VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011. argumenta sobre a necessidade de se criarem caminhos alternativos para o desenvolvimento de suas funções superiores de pensamento e memória, ou seja, desenvolver meios internos de comportamento cultural.
Barroco (2007)BARROCO, S.M.S. A Educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. 2007. 414f. Tese (Pós-Graduação em Educação Escolar) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. e Daianêz (2009)DAIANÊZ, D. A inclusão escolar de crianças com deficiência mental: focalizando a noção de compensação na abordagem histórico-cultural. 2007. Dissertação (Pós-Graduação em Educação) - Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2009. adotam essa perspectiva e enfatizam os aspectos socioculturais da compensação. Para Daianêz (2009)DAIANÊZ, D. A inclusão escolar de crianças com deficiência mental: focalizando a noção de compensação na abordagem histórico-cultural. 2007. Dissertação (Pós-Graduação em Educação) - Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2009., esta ocorre por meio da linguagem e da mediação social, tendo como foco central a participação e a inserção social e cultural das pessoas com deficiência. Góes (2002)GÓES, M.C.R. Relações entre desenvolvimento humano, deficiência e educação: contribuições da abordagem histórico-cultural. In: OLIVEIRA M.K.; SOUZA, D.T.R.; REGO, T.C. (Org.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002. afirma que na compensação sociopsicológica proposta por Vygotsky, o desenvolvimento está totalmente vinculado às relações sociais e às experiências culturais a que o indivíduo tem acesso. Para a autora, "Não é o déficit em si que traça o destino da criança. Esse 'destino' é construído pelo modo como a deficiência é significada, pelas formas de cuidado e educação recebidas pela criança, enfim, pelas experiências que lhe são propiciadas" (GÓES, 2002GÓES, M.C.R. Relações entre desenvolvimento humano, deficiência e educação: contribuições da abordagem histórico-cultural. In: OLIVEIRA M.K.; SOUZA, D.T.R.; REGO, T.C. (Org.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002., p.99).
Decorrente dos estudos de Vygotsky, Sierra et al. (2011)VYGOTSKY, L.S. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Trad. Denise Regina Sales, Marta Kohl Oliveira, Priscila Nascimento Marques. Revista Educação e Pesquisa, v.37, n.4, p.861-870, 2011. e Sierra e Facci (2011)SIERRA, D.B. et al. Atendimento educacional especializado à pessoas com deficiência intelectual: contribuição da psicologia histórico-cultural. Revista Teoria e Prática da educação, v.14, n.1, p.131-141, 2011. também discutem a educação de crianças com deficiência intelectual. Para Sierra et al. (2011)SIERRA, D.B. et al. Atendimento educacional especializado à pessoas com deficiência intelectual: contribuição da psicologia histórico-cultural. Revista Teoria e Prática da educação, v.14, n.1, p.131-141, 2011. e Sierra e Facci (2011)SIERRA, D.B. et al. Atendimento educacional especializado à pessoas com deficiência intelectual: contribuição da psicologia histórico-cultural. Revista Teoria e Prática da educação, v.14, n.1, p.131-141, 2011., a educação para esse público deve visar à compensação da deficiência e ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. As autoras ressaltam a importância da mediação do professor, ao propor e conduzir situações que estimulem o pensamento e a apropriação dos conceitos científicos. Na mesma direção, Freitas (2012)FREITAS, A.P. Um estudo sobre as relações de ensino na educação inclusiva: indícios das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v.18, n.3, p.411-430, 2012. discutiu as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de um aluno com deficiência intelectual no primeiro do ensino fundamental em uma escola pública regular. A autora analisou episódios relativos à participação do aluno em atividades cotidianas realizadas na sala de aula. Relatou que na interação com o meio (professor e colegas), o aluno realizava atividades inicialmente vistas como mecânicas (cópia do cabeçalho e rotina), mas que se tornaram significativas nas relações de ensino-aprendizagem. Observou, também, que o aluno participou de atividades de leitura de forma ativa, quando havia a constituição de sentido do texto lido. Prosseguindo essa análise, Monteiro e Freitas (2014)MONTEIRO, M.I.B.; FREITAS, A.P. Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades educacionais especiais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.40, n.1, p.95-107, 2014. propuseram reflexão sobre o papel dos professores e colegas no processo de aprendizagem e desenvolvimento desse aluno, no contexto da educação inclusiva. As autoras ressaltaram que as aquisições de aprendizagem por parte do aluno foram efetivadas nos processos interativos e de significação vivenciados na dinâmica da sala de aula.
Quando se aborda a questão das experiências educacionais, um aspecto relevante é o da avaliação do desenvolvimento. A distinção entre níveis de desenvolvimento (real e proximal), tal como proposta por Vygotsky (1984)VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., traz importante contribuição, com repercussão para a avaliação de pessoas com deficiência. O autor define o nível de desenvolvimento real como "[...] nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimentos já completados" (VYGOTSKY, 1984VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., p. 95). Refere-se, nesse caso, às ações que a criança consegue realizar de forma independente e que constituem "[...] funções que já amadureceram, ou seja, os produtos finais do desenvolvimento" (VYGOTSKY, 1984VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., p. 97). E define o nível de desenvolvimento potencial como aquele que é "[...] determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes" (VYGOTSKY, 1984VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., p. 97). A distância entre o que a criança consegue realizar sozinha (nível de desenvolvimento real) e o que consegue realizar com auxílio (nível de desenvolvimento potencial) caracteriza a zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky, 1984VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984.). Para Vygotsky:
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadureceram, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de 'brotos' ou 'flores' do desenvolvimento, ao invés de 'frutos' do desenvolvimento (VYGOTSKY, 1984VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., p. 97).
Vygotsky (1984)VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984. comenta que o nível de desenvolvimento real se constitui na base para os instrumentos de avaliação padronizados, visto que esses instrumentos avaliam o que o indivíduo consegue realizar de forma independente. Já o nível de desenvolvimento potencial é avaliado pelas ações da criança ao receber auxílios e apoios de alguém mais competente, que pode ser um adulto ou uma criança mais velha. Em relação ao desenvolvimento potencial, Wertsch (1985)WERTSCH, J.V. Vygotsky and the social formation of mind. Cambridge: Harvard University Press, 1985. considera que o construto foi elaborado para possibilitar o exame de funções em processo de maturação (botões ou flores do desenvolvimento), que permitem a obtenção de indícios sobre o provável curso desse desenvolvimento. Batista, Cardoso e Santos (2006)BATISTA, C.G.; CARDOSO, L.M.; SANTOS, M.R.A. Procurando "botões" de desenvolvimento: a avaliação de crianças com deficiência e acentuadas dificuldades de aprendizagem. Estudos de Psicologia, Natal, v.11, n.3, p.297-305, 2006., no estudo de crianças com alterações no desenvolvimento ao longo de interações de caráter educacional, identificaram habilidades restritas a um tipo de condição (ex: que ocorriam somente em um tipo de atividade), e/ou que ocorriam com pouca frequência (ex: aplicação correta de um conceito restrita a um momento específico). Assim, a noção de desenvolvimento potencial se aplica à busca de indícios de desenvolvimento, quando o processo ainda está incipiente. Essa busca é sempre difícil, uma vez que a metáfora relativa a "flores" e "frutos" não se aplica, diretamente, a sequências de ações em desenvolvimento, que, na perspectiva histórico-cultural, se organizam de formas variadas, geralmente não lineares (VAN DER VEER; VALSINER, 2006VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese 5. ed. Trad. Cecília C. Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2006.). Para Vygotsky (1984, p.98)VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., "[...] o estado de desenvolvimento mental de uma criança só pode ser determinado se forem revelados os seus dois níveis: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal".
Batista, Cardoso e Santos (2006)BATISTA, C.G.; CARDOSO, L.M.; SANTOS, M.R.A. Procurando "botões" de desenvolvimento: a avaliação de crianças com deficiência e acentuadas dificuldades de aprendizagem. Estudos de Psicologia, Natal, v.11, n.3, p.297-305, 2006. coletaram dados sobre habilidades em tarefas semelhantes às escolares e também fizeram anotações sistemáticas para identificação de exemplos de habilidades - a "busca de capacidades". A análise permitiu identificar exemplos de uso de indicadores de processos mentais superiores (raciocínio, memória, entre outras) em situações não formais de avaliação, consideradas como capacidades em vias de desenvolvimento. Segundo as autoras, o fato de as crianças serem observadas constantemente, realizando várias tarefas na companhia de colegas e terapeutas conhecidos e em um ambiente sem cobranças de desempenho, contribuiu para a identificação dessas capacidades.
De acordo com a definição de Vygotsky (1984)VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., os instrumentos de avaliação padronizados avaliam o nível de desenvolvimento real de uma pessoa, mas não permitem identificar exemplos de habilidades ainda em desenvolvimento. Com base em estudos sobre o tema, considera-se que, para buscar os indicadores de desenvolvimento potencial, é preciso criar situações que otimizem essa busca. Dentre os aspectos que vêm sendo destacados, incluem-se a escolha de contextos de interação com adultos e com parceiros em que sejam propostas atividades e temas significativos para a criança/adolescente, e que reduzam o risco de ansiedade relacionada à avaliação. Essa identificação de potenciais e indícios de desenvolvimento contribui, de forma significativa, para o trabalho dos profissionais da área da educação. A criança passa a ser vista como um ser em desenvolvimento, com dificuldades, mas também potencialidades.
Nesse sentido, o presente estudo teve o objetivo de buscar indicadores de desenvolvimento em crianças e adolescentes com dificuldades para aprender, com QI igual ou inferior a 70 no teste WISC-IV (compatível com o valor delimitado para o diagnóstico de deficiência intelectual), de modo a avaliar seu nível de desenvolvimento potencial.
2 Método
Foi adotada a abordagem qualitativa com realização de estudos de caso (LUDKE; ANDRÉ, 1988LUDKE, M.; ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas São Paulo: EPU, 1988.). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Unicamp, parecer 410.275). A pesquisadora apresentou a pesquisa aos pais ou responsáveis e aos profissionais da instituição escolar das crianças/adolescentes, para anuência e para solicitação de assinatura do TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
2.1 Participantes
Participaram do estudo cinco crianças e adolescentes na faixa etária entre seis e 16 anos e com QI igual ou inferior a 70 no teste WISC-IV. Essas crianças e adolescentes eram atendidos regularmente em um programa de educação não formal em um serviço universitário de saúde. Também participaram do estudo seus pais ou responsáveis, professores e outros profissionais da instituição escolar em que os participantes estavam matriculados. Para o presente relato, foi selecionado o estudo de dois casos.
2.2 Procedimento de coleta de dados
A coleta de dados envolveu as seguintes atividades:
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Entrevista semiestruturada com os pais/responsáveis e profissionais da instituição escolar em que as crianças/adolescentes estavam matriculados:
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A entrevista com os pais/responsáveis e profissionais da escola foi centrada nos indicadores de desenvolvimento da criança/adolescente participante do estudo, relativos a modos de participação social e processos mentais superiores. Todas as entrevistas foram gravadas (áudio).
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Observação sistemática dos atendimentos das crianças/adolescentes no programa de educação não formal:
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A pesquisadora participou das sessões regulares dos atendimentos de grupo do programa durante um semestre, a fim de se familiarizar com as crianças/adolescentes participantes do estudo e identificar habilidades sociais e cognitivas e indícios de desenvolvimento. Durante o semestre da coleta de dados, foram realizadas um total de 13 sessões de atendimentos regulares no programa. No final do semestre, a pesquisadora coordenou algumas sessões individuais e em grupo para complementar a coleta de dados. Todas as sessões de atendimento foram filmadas.
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2.3 Procedimento de análise de dados
A análise dos dados envolveu:
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Transcrição das entrevistas e elaboração de quadros com os modos de participação social e os processos mentais superiores relatados pelos entrevistados, de cada criança/adolescente.
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Exame das filmagens, com descrição dos modos de participação de cada criança/adolescente nas sessões regulares do programa de educação não formal e elaboração de um quadro referente a cada criança/adolescente, com indicadores de atenção e participação durante as sessões regulares do programa.
Também foi realizada a identificação de indicadores de desenvolvimento a partir da análise microgenética de episódios (GÓES, 2000GÓES, M.C.R. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Caderno CEDES, Campinas, v.20, n.50, p.9-25, 2000.). Buscou-se identificar e transcrever episódios significativos, centrados na apropriação de modos de participação social e no desenvolvimento de processos mentais superiores. Considerou-se como modos de participação social as interações com parceiros e com adultos e modos de participação em atividades relevantes em sua comunidade (alimentação, cuidados pessoais e colaboração em tarefas). Os processos mentais superiores identificados envolveram apropriação de saberes utilizados no cotidiano e de conhecimentos veiculados pela escola
3 Resultados
3.1 Caso 1
Roberta4 4 Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidades dos participantes do estudo. tinha nove anos e oito meses e QI na faixa entre 40-49. No período do estudo, durante a semana, morava com o pai e o irmão mais velho, na casa da mãe da madrasta. Também lá moravam outras sete pessoas (quatro adultos, uma idosa, duas crianças). Roberta passava os finais de semana com a mãe, na casa dos avós maternos. No período da coleta de dados, cursava o quarto ano do Ensino Fundamental em uma escola pública, estando no início do processo de alfabetização. Roberta mudou algumas vezes de escola devido às mudanças nos arranjos familiares. Nesse período, era também atendida por neuropediatra, fonoaudióloga e psicóloga.
No caso de Roberta, as entrevistas com os pais/responsáveis foram realizadas com a mãe e madrasta. As entrevistas com os profissionais da escola foram realizadas com a coordenadora pedagógica e com a professora da sala regular (nessa escola, tinha ingressado há um semestre). Nos quadros a seguir, são descritos os modos de participação social e os processos mentais superiores de Roberta.
No Quadro 1, em relação aos modos de participação social, constata-se que Roberta realiza algumas atividades de alimentação e cuidados pessoais com autonomia e outras com a ajuda da mãe ou da madrasta. Tem iniciativa e interesse de ajudar a mãe e a madrasta nas atividades domésticas. De acordo com o relato da madrasta, Roberta se mostra atenta e colaborativa nos momentos em que ela necessita da sua ajuda nas tarefas domésticas. Com base nos relatos, depreende-se que tem uma boa interação com as pessoas da casa, mostrando-se solícita e carinhosa.
Em relação à interação social, na escola, a professora e a coordenadora pedagógica relataram que com incentivo e após um período de adaptação na nova escola, Roberta passou a interagir com os colegas e participar no momento do recreio.
Desta forma, o desempenho de Roberta evidencia a apropriação de normas sociais, com utilização das mesmas em diferentes contextos, o que envolve atenção, memória e capacidade de adaptação. Mostra, também, exemplos de afetividade e responsividade na interação com adultos, fatores muito importantes para a aprendizagem.
No Quadro 2, pode-se observar que o desempenho de Roberta evidencia processos mentais superiores de atenção, memorização, raciocínio e expressão verbal em situações práticas de orientação espacial, noção de tempo e representação oral. Os relatos de apreensão de conceitos e representação gráfica indicam que a criança está tendo aquisições nas áreas de leitura e na escrita e de formação de conceitos, em situações de aprendizagem formal.
Programa de educação não formal
No semestre da coleta de dados, Roberta era atendida em grupo, pela Aprimoranda5 5 Participantes do Programa de Aprimoramento Profissional - PAP da FCM, Unicamp. No período do estudo, o Programa era coordenado, em âmbito estadual, pela Fundap, e também constituía curso de pós-graduação lato sensu junto à Unicamp. Consiste em programa de formação em serviço, com duração de um ano. No caso do presente estudo, trata-se do Programa: Psicologia do Desenvolvimento e Deficiência, para graduados em Psicologia, Fonoaudiologia ou Pedagogia. 1 (A1) e pela Aprimoranda 2 (A2). O grupo era composto por quatro crianças: Roberta, Leila, Lavinia e Lucinda.
Nas sessões do programa de educação não formal, durante o semestre da coleta de dados, Roberta interagia pouco com as crianças do grupo e com os adultos. Durante as discussões sobre as lendas do folclore (projeto temático por várias sessões), raramente falava. Era necessário que as aprimorandas ou a pesquisadora interviessem e direcionassem perguntas a Roberta para que a criança tivesse alguma participação. Em algumas atividades que envolviam produções artísticas, como modelagem de massinha, desenho e pintura, Roberta se mostrou envolvida e interessada na atividade.
Nos relatos dos anos anteriores, relativos à participação no serviço, Roberta era vista como quieta e pouco participativa. Por vários anos, houve problemas relativos à assiduidade: faltava muito e, quando comparecia, muitas vezes chegava atrasada. Isso não ocorreu no semestre que foi analisado no presente estudo.
Na busca por habilidades nesses atendimentos, foi possível identificar exemplos de atenção e participação apropriados durante as sessões: apropriação de conceitos (avesso/ direito) durante conversação sobre roupa; compreensão da rotina de atividade do grupo (ex: lembrar que não foi cantada a música própria de uma atividade); enunciação de preferências diante do grupo (ex: escolher uma música diferente das escolhidas pelas colegas); compreensão de texto (ex: respostas apropriadas relativas à lenda narrada anteriormente).
Análise microgenética de episódios
A seguir, são descritos trechos de um episódio das sessões individuais, coordenadas pela pesquisadora, a fim de permitir uma análise mais detalhada da participação de Roberta e evidenciar habilidades apresentadas pela criança e contexto em que ocorreram.
Episódio
Atividade: Jogo Aprendendo os opostos
Objetivo do jogo: O jogo é composto por 12 pares de peças com figuras em que há pares de desenhos, que só diferem em relação a um atributo (exemplo: alto e baixo). O objetivo é associar duas figuras opostas e encaixar as peças formando os pares. Todas as cartas estão dentro da caixa do jogo, com as figuras voltadas para cima, pouco embaralhadas. Em geral, a maior parte das figuras tem o mesmo cenário, cores e estilo de desenho semelhantes.
1º Par - fechado X aberto
Roberta seleciona um par correto de figura no meio das demais: A) menina e torneira aberta e B) menina (igual à da outra figura) e torneira fechada. A pesquisadora aponta as dimensões ("fechado" e "aberto"), dando modelo à criança.
2º Par - muito X pouco
Roberta pega duas cartas no meio das demais: A) vaso cheio de flores e B) vaso com uma flor. A criança responde corretamente às perguntas da pesquisadora sobre o atributo.
3º Par - dentro X fora
Roberta pega duas cartas: A) menina de fora da casa e B) menina dentro da casa. Após perguntas da pesquisadora, Roberta foca nas dimensões "porta aberta" e "porta fechada" e não nas dimensões destacadas nas normas do jogo (menina "dentro" e "fora").
4º Par - pesado X leve
Roberta pega duas cartas: A) menino segurando uma pedra e B) menino segurando uma pena. Roberta responde a pergunta da pesquisadora sobre a carta A:
R: Pegando uma pedra.
P: Isso, pegando uma pedra, um peso. Está difícil pegar esse peso?
R: Sim.
P: Está pesado?
R: Sim.
Em seguida, sem dicas, identifica a dimensão oposta (leve) na outa carta.
5º Par - dormindo X acordado
Roberta pega duas cartas: A) menino acordado e B) menino dormindo.
Inicialmente Roberta faz a distinção entre "sol" e "lua". A pesquisadora pergunta novamente:
P: O que o menino está fazendo? Pesquisadora aponta a carta A.
R: Levantando.
Em seguida, Roberta responde as mesmas perguntas da pesquisadora para carta B e identifica o atributo relevante ("dormindo").
6º Par - em cima X embaixo
Roberta pega duas cartas: A) gato no chão e B) gato em cima de uma cadeira.
Roberta identifica as dimensões "fora do banco" - A e "sentado" - B para a posição do gato, sem mencionar os termos do próprio jogo ("em cima" e "embaixo").
7º Par - baixo X alto
Roberta pega uma carta de uma construção baixa e outra de um elefante. Logo em seguida, sem dica, devolve o elefante para o monte e pega a carta de uma construção alta.
Roberta identifica o atributo relacionado ao tamanho das construções ("grande" e "pequeno") sem dicas da pesquisadora. Não utiliza os termos do próprio jogo ("alto" e "baixo").
8º Par - grande X pequeno
Roberta pega duas cartas: A) rato e B) elefante.
Roberta identifica as dimensões "grande" e "pequeno", após a pesquisadora indicar o atributo a ser observado (tamanho).
9º Par - magro X gordo
Roberta pega a carta de um palhaço magro e de um menino. Logo em seguida, devolve a carta do menino para o monte e pega a carta de um palhaço gordo.
Roberta inicialmente identifica uma diferença que não é relevante na carta do palhaço gordo (chapéu) e a pesquisadora apresenta a dimensão relevante ("gordo"). Em seguida, depois de pergunta da pesquisadora, identifica a dimensão oposta na outra carta ("emagrecido").
10º Par - feliz X triste
Roberta pega duas cartas com a figura de meninos em cenários diferentes (que não formavam par). Após a pesquisadora perguntar se formavam um par, Roberta diz que não e pega a carta de um menino com expressão de alegria (sorriso) e outro com expressão de tristeza.
Roberta identifica as dimensões "feliz" e "triste", após pergunta da pesquisadora.
11º Par - frio X calor
Roberta pega duas cartas: A) menino vestido com roupas de frio e B) menino vestido com roupa de calor.
Roberta responde às perguntas da pesquisadora e identifica aspectos variados do vestuário dos meninos. Com ajuda da pesquisadora identifica que o menino usa short, blusa cavada e chinelo quando está "sol" referindo-se ao calor. Em seguida, responde à pergunta da pesquisadora em relação à carta A:
P: Quando que a gente usa essa roupa que ele está usando? (Carta A).
R: Não sei.
P: Ele está de cachecol, de blusa de manga comprida, de calça e de bota. Quando que a gente usa roupa assim?
R: No inverno. Resposta apropriada à pergunta feita pela pesquisadora.
12º Par - dia X noite
Restaram duas cartas sobre a mesa: A) figura de uma lua e várias estrelas e B) figura de um sol.
Inicialmente Roberta nomeia as figuras de cada carta e, com a intervenção da pesquisadora, identifica as dimensões "noite" e "dia", esta última com o nome de "manhã".
Análise do episódio: Para atender ao objetivo do jogo, é necessário identificar pares de figuras que são semelhantes em tudo, menos em um atributo, que é apresentado por duas dimensões opostas (ex: atributo: quantidade, dimensões: muito e pouco). As tarefas envolvidas são: identificar o par, e, em seguida, identificar as dimensões em que o atributo varia nas duas figuras. Roberta tem facilidade em identificar os pares e, quando erra, corrige-se e busca o par, com exceção do par "feliz e triste", em que se corrige após dica da pesquisadora. Esse desempenho mostra capacidade de percepção visual e atenção para identificar as semelhanças de cenários.
Em relação à identificação do aspecto em que as figuras diferiam, Roberta apresenta diferentes desempenhos ao longo do jogo. Roberta identifica o atributo central de alguns pares; algumas vezes, sem a ajuda da pesquisadora e, outras, após pistas ou apresentação parcial da resposta. Em alguns pares, Roberta identifica a dimensão que varia, mas não usa os termos do jogo. No 9º par, Roberta não responde de acordo com os termos do jogo (magro), mas usa uma palavra apropriada ao contexto (emagrecido). Observa-se, em todo esse conjunto de ações da criança, a presença de compreensão, raciocínio, abstração a partir de estímulos visuais, atenção, concentração e persistência na tarefa.
3.2 Caso 2
Fábio tinha 12 anos e cinco meses e QI na faixa entre 40-49. No período do estudo, morava com os pais. Tinha uma irmã mais velha que morava sozinha. No período da coleta de dados, cursava o quinto ano do Ensino Fundamental em uma escola pública, estando no início do processo de alfabetização. Nesse período, era também atendido por neurologista infantil em um serviço público de saúde.
No caso de Fábio, a entrevista com os pais/responsáveis foi realizada com a mãe e a entrevista com os profissionais da escola foi realizada com a professora de educação especial. Nos quadros a seguir, são descritas as habilidades sociais e cognitivas de Fábio.
No Quadro 3, é possível observar que, em relação aos modos de participação social, Fábio realiza várias atividades relacionadas à alimentação e aos cuidados pessoais, com supervisão da mãe, e as mesmas atividades, de modo mais complexo, na escola. Nesses exemplos, é identificado um contraste entre a reduzida autonomia propiciada em casa e a maior autonomia na escola, o que mostra a importância de identificar, além das habilidades presentes, os contextos que as propiciam ou dificultam.
Em relação à interação social, Fábio é descrito como afável tanto em casa como na escola, e a professora relata o início de respostas assertivas para requisição de objetos. A afabilidade de Fábio facilita o contato e a interação com ele e, portanto, favorece relações de ensino. Por outro lado, sua forma de atuação relativamente passiva pode estar ligada a poucas demandas e iniciativas, e levar à redução das oportunidades de ensino. Nesse sentido, é relevante o relato de aumento da assertividade, identificado pela professora de educação especial.
No Quadro 4, é possível observar que, de acordo com o relato da professora de educação especial, o desempenho de Fábio, nos processos mentais superiores, mostra alguns conhecimentos relativos a leitura e escrita (ex: escrita do próprio nome, reconhecimento das letras do alfabeto) e aritmética (ex: adições e subtrações com uso de material concreto). O adolescente domina alguns conhecimentos práticos e tem algumas habilidades de representação oral (ex: conversa sobre temas atuais, transmissão de recados).
Programa de educação não formal
No semestre da coleta de dados, Fábio era atendido em grupo pelas Aprimoranda 1 (A1) e pela Aprimoranda 2 (A2). O grupo era composto por quatro adolescentes: Fábio, Luciano, Nelson e Robson.
Nos atendimentos do programa, Fábio apresentava dificuldade para manter a atenção e a concentração na maior parte das atividades desenvolvidas. Eram observados exemplos de conversas descontextualizadas e desvio da atenção para outros objetos e assuntos que não os envolvidos na atividade proposta. Sua participação era maior quando as atividades propostas envolviam os seguintes temas: futebol e programas de televisão.
Na busca por habilidades nesses atendimentos, foi possível identificar exemplos de atenção e participação apropriados durante as sessões de atendimento: apropriação de conceitos (status de ganhador/perdedor) em conversação sobre resultado de jogos de futebol; memorização do placar do jogo do seu time de futebol; apropriação de conceitos (dia da semana) e compreensão de partes da estória apresentada na sessão anterior por meio de vídeo.
Análise microgenética de episódios
A seguir, é descrito um episódio das sessões do programa, a fim de permitir uma análise mais detalhada da participação de Fábio e evidenciar habilidades apresentadas pelo adolescente e o contexto em que ocorreram.
Episódio
Atividade: Brincadeira com jogo da memória adaptado às peças de sequência lógica
Durante o atendimento do programa, a Aprimoranda 1 e a pesquisadora trabalharam com sequência lógica. No final da atividade, Fábio demonstra interesse em utilizar as peças de madeira da sequência lógica para jogar memória. A pesquisadora seleciona duas peças com figuras semelhantes, de cada sequência lógica, totalizando oito peças e quatro pares diferentes, com as seguintes figuras: flor, embrulho de presente, bolo de aniversário e árvore de natal. As peças são dispostas sobre a mesa, de modo que as figuras ficam voltadas para baixo.
No relato a seguir, as peças são identificadas pelo nome das figuras, seguido pelos números 1 ou 2, que indicam a ordem em que as peças foram viradas pela primeira vez pelos jogadores (ex: "flor 1" é a peça com desenho da flor que foi a primeira a ser virada por um jogador). As viradas, por jogador, são apresentadas na sequência em que ocorreram.
Fábio começa a jogar.
F: 1ª jogada - Embrulho de presente 1 e flor 1
P: 2ª jogada - Bolo de aniversário 1 e flor 2
F: 3ª jogada - Flor 1 e flor 2 - forma o par
F: 4ª jogada - Embrulho de presente 2 e embrulho de presente 1 - forma o par
F: 5ª jogada - Bolo de aniversário 2 e bolo de aniversário 1 - forma o par
F: 6ª jogada - Árvore de natal 1 e árvore de natal 2 - forma o par com as peças que restaram na mesa.
Análise do episódio: Na 3ª jogada, Fábio forma o seu primeiro par, mostra atenção às duas jogadas anteriores e memorização da posição da peça flor 1, virada por ele na 1ª jogada e a posição da flor 2, virada pela pesquisadora na 2ª jogada.
Na 4ª e 5ª jogada, vira uma figura pela primeira vez (4ª - embrulho de presente 2; 5ª - bolo de aniversário 2) e demonstra atenção às jogadas anteriores e memorização da posição dos seus pares, virados respectivamente na 1ª e 2ª jogada. Nessas duas jogadas, Fábio utiliza a estratégia de primeiro virar a peça desconhecida para, em seguida, tentar pareá-la com a peça conhecida.
Ao longo desse episódio mostrou capacidade de memória visual, raciocínio, retenção e recuperação de informações, atenção e persistência na tarefa. Essas habilidades são relevantes em uma criança considerada como difícil de obter envolvimento e participação nas atividades.
4 Discussões
A busca de indicadores do desenvolvimento, de acordo a noção de desenvolvimento potencial de Vygotsky (1984)VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984., está voltada para funções em vias de desenvolvimento, avaliado a partir da observação das ações da criança/adolescente em momentos em que recebe auxílios e apoios de alguém mais competente. Como se trata de habilidades em vias de desenvolvimento, cabe lembrar que elas, muitas vezes, caracterizam-se por serem infrequentes, de ocorrência assistemática e muito dependentes do contexto (podem, por exemplo, ocorrer em uma situação com um jogo preferido pelo participante e não ser observadas em jogo análogo). Dessa forma, para capturar esses indicadores, foi preciso observar essas crianças e adolescentes por um tempo prolongado e em um ambiente propício a seu aparecimento. Como resultado, foi possível identificar exemplos envolvendo compreensão, expressão verbal, apropriação de conceitos e de conhecimentos, processamento de informações, e modos de participação social apropriados a diferentes contextos.
No caso de Roberta, foi possível identificar momentos de interação apropriada na família, escola e programa de educação não formal, bem como exemplos de aquisição de conhecimento, em consonância com as considerações de Monteiro e Freitas (2014)MONTEIRO, M.I.B.; FREITAS, A.P. Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades educacionais especiais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.40, n.1, p.95-107, 2014. sobre a importância de relações significativas para a aprendizagem. Como Roberta era vista como tímida e pouco participativa, foi um desafio identificar habilidades, o que foi possível em momentos de interação privilegiada com adultos, em que mostrou exemplos de atenção, raciocínio e pensamento conceitual. No caso de Fábio, descrito como distraído e desatento durante a maior parte das sessões, após uma busca cuidadosa, foram identificado exemplos de competências envolvendo raciocínio, memorização e apropriação de conceitos.
No que se refere aos apoios recebidos ao longo da participação no programa de educação não formal, constatou-se que eles poderiam provir dos adultos ou dos parceiros. Quanto aos adultos, podem ser destacadas as intervenções diretas, durante as atividades, na forma de instrução, dicas (com pistas para favorecer a evocação de conhecimentos anteriores), aprovação e indicação de erros, de forma cuidadosa e sem conotação de punição. Além disso, pode-se considerar que os adultos atuaram de forma a propiciar o surgimento de habilidades ao escolher atividades em sintonia com os interesses dos participantes, com formato de cooperação (e não de competição). Muitas vezes, não se observava uma relação direta e imediata entre as ações de ensino por parte dos adultos e a apropriação de conhecimentos por parte da criança. Foram identificados muitos exemplos em que, depois de várias sessões, era observado o aparecimento de uma habilidade que provavelmente tinha relação com um exemplo de ensino, ocorrido em uma ou mais sessões anteriores, para a qual não tinha sido observada uma resposta. Entretanto, é difícil estabelecer essas relações, pois, quanto maior o intervalo de tempo transcorrido, mais vivências ficam interpostas entre um exemplo de intervenção dos adultos e uma possível apropriação pela criança/adolescente. Considera-se que a tarefa central não é a de traçar diretamente as relações entre essas influências, mas procurar entender contextos em que conhecimentos são veiculados e passam a ser apropriados, de diferentes formas, pelos participantes.
Batista, Cardoso e Santos (2006)BATISTA, C.G.; CARDOSO, L.M.; SANTOS, M.R.A. Procurando "botões" de desenvolvimento: a avaliação de crianças com deficiência e acentuadas dificuldades de aprendizagem. Estudos de Psicologia, Natal, v.11, n.3, p.297-305, 2006. indicaram alguns aspectos dos grupos de convivência que provavelmente contribuíram para o aparecimento de habilidades, incluindo: a familiaridade com as crianças e os adultos do grupo, a diversidade de atividades propostas e a ausência de cobranças formais em relação ao desempenho. Proposta de trabalho em grupo com essas características é descrita por Batista e Laplane (2007)BATISTA, C.G., LAPLANE, A.L.F. Modalidades de atendimento especializado: o grupo de convivência de crianças com deficiência visual. In: MASINI, E.F.S. (Org.). A pessoa com deficiência visual: um livro para educadores. São Paulo: Vetor, 2007., que salientam que, nesse espaço, as crianças e adolescentes têm oportunidade de vivenciar diferentes experiências de interação e ocupar novos papéis. Ainda de acordo com as autoras, nos grupos, as atividades são voltadas para o interesse dos participantes, não há as exigências de desempenho da escola regular e o foco é posto nas competências e capacidade dos seus integrantes (e não nas suas limitações). A compreensão desses contextos de desenvolvimento favorece a compreensão de cada caso e traz subsídios para o planejamento das intervenções apropriadas.
Além das observações diretas, o contato com pessoas relevantes na vida dos participantes, incluindo o ambiente familiar (entrevista com os pais/responsáveis) e o escolar (entrevista com os profissionais da escola), contribuiu para uma compreensão mais abrangente de cada caso. Nas entrevistas com familiares, foram evidenciados exemplos de promoção de autonomia e, também, de modos de atuação que dificultavam essa autonomia. Foi, também, possível identificar múltiplos exemplos de apropriação de conhecimentos e modos de participação, que permitem a obtenção de um quadro mais abrangente de cada caso. O mesmo foi possibilitado pelas entrevistas com os profissionais da instituição escolar.
5 Conclusões
Os dados sugerem que, ao se enfatizar a busca de indicadores de desenvolvimento, pode-se obter uma visão abrangente de cada caso, de forma a contemplar, para além das limitações, as potencialidades das crianças e dos adolescentes. Ao observar essas crianças e adolescentes por um tempo prolongado, em um ambiente ao qual estavam familiarizadas, foi possível identificar várias habilidades relacionadas aos conhecimentos escolares, incluindo atenção, memória, raciocínio, compreensão e expressão verbal, bem como envolvimento na tarefa por períodos de tempo consideráveis, e modos de participação social apropriados a diferentes contextos. A presença dessas habilidades, mesmo que não mantidas para todas as tarefas, sugere pistas para o planejamento pedagógico e organização de serviços.
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4
Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidades dos participantes do estudo.
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5
Participantes do Programa de Aprimoramento Profissional - PAP da FCM, Unicamp. No período do estudo, o Programa era coordenado, em âmbito estadual, pela Fundap, e também constituía curso de pós-graduação lato sensu junto à Unicamp. Consiste em programa de formação em serviço, com duração de um ano. No caso do presente estudo, trata-se do Programa: Psicologia do Desenvolvimento e Deficiência, para graduados em Psicologia, Fonoaudiologia ou Pedagogia.
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Apoio Financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes) - 12 meses de bolsa de mestrado
Referências
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- BATISTA, C.G., LAPLANE, A.L.F. Modalidades de atendimento especializado: o grupo de convivência de crianças com deficiência visual. In: MASINI, E.F.S. (Org.). A pessoa com deficiência visual: um livro para educadores. São Paulo: Vetor, 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
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Recebido
21 Set 2015 -
Revisado
03 Ago 2016 -
Aceito
06 Set 2016