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Participação de Crianças com Desenvolvimento Típico e Com Transtornos do Espectro Autista em Situações de Brincadeiras na Educação Infantil, 2 2 Artigo derivado da Tese de Doutorado intitulada Perspectiva ocupacional da participação de crianças na Educação Infantil e implicações para a Terapia Ocupacional (Folha, 2019), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional (PPGTO) do Departamento de Terapia Ocupacional (DTO) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Financiamento: Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Participation of Children with Typical Development and with Autistic Spectrum Disorders in Play Situations in Early Childhood Education

RESUMO:

O brincar infantil é reconhecido como ocupação que favorece o desenvolvimento e a autonomia das crianças. Estudos realizados com crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) evidenciaram comprometimentos na participação no brincar. Este estudo objetivou descrever a participação de crianças com desenvolvimento típico e com TEA em situações de brincadeiras no contexto da Educação Infantil. Tratou-se de um estudo de abordagem qualitativa do tipo exploratória e descritiva que empregou a observação do comportamento do brincar na escola como instrumento de coleta de dados. Participaram da pesquisa seis crianças entre 4 e 5 anos, sendo três com desenvolvimento típico e três diagnosticadas com TEA. Embora o estudo não tenha tido a intenção de estabelecer comparações, os principais resultados apontaram diferenças entre os dois grupos. Crianças com TEA evidenciaram desenvolvimento do comportamento lúdico não condizente com a idade e um brincar concreto e com interação social ausente ou rudimentar. Esses resultados apontam para reflexões no contexto da Terapia Ocupacional para o desenvolvimento de estratégias que visem a participação das crianças na Educação Infantil, indicando a necessidade de promoção de oportunidades mediadas e/ou com brinquedos adaptados de acordo com os interesses das crianças com TEA.

PALAVRAS-CHAVE:
Participação; Brincar; Educação Infantil; Terapia Ocupacional; Transtornos do Espectro Autista

ABSTRACT:

Children’s play is recognized as an occupation that favors children’s development and autonomy. Studies carried out with children with Autistic Spectrum Disorder (ASD) showed impairments in participation in playing. This study aimed to describe the participation of children with typical development and with ASD in play situations in the context of Early Childhood Education. It was an exploratory and descriptive qualitative study that used the observation of playing behavior in school as an instrument of data collection. Six children between 4 and 5 years old participated in the research, three with typical development and three diagnosed with ASD. Although the study was not intended to make comparisons, the main results showed differences between the two groups. Children with ASD showed development of playful behavior not consistent with age and concrete play with absent or rudimentary social interaction. These results point to reflections in the context of Occupational Therapy for the development of strategies aimed at the participation of children in Early Childhood Education, indicating the need to promote mediated opportunities and/or with toys adapted according to the interests of children with ASD.

KEYWORDS:
Participation; Play; Early Childhood Education; Occupational Therapy; Autistic Spectrum Disorders

1 Introdução

As ocupações são ações humanas realizadas rotineiramente e dotadas de propósitos e significados. São experiências subjetivas, não reprodutíveis e contínuas na vida das pessoas, com significados pessoais e culturais (Clark & Zemke, 1996Clark, F., & Zemke, R. (1996). Occupational Science: The evolving discipline. F. A. Davis.; Wilcock, 1999Wilcock, A. A. (1999). Reflections on doing, being and becoming. Australian Occupational Therapy Journal, 46, 1-11. https://doi.org/10.1046/j.1440-1630.1999.00174.x
https://doi.org/10.1046/j.1440-1630.1999...
; Yerxa, 1993Yerxa, E. (1993). Occupational science: A new source of power for participants in occupational therapy. Journal of Occupational Science, 1, 3-9. https://doi.org/10.1080/14427591.1993.9686373
https://doi.org/10.1080/14427591.1993.96...
).

Com base na crença de que “as ocupações são combinações de tarefas que têm significado para a criança e que refletem expectativas, restrições e suportes do ambiente” (Case-Smith, 2001, p. 75Case-Smith, J. (2001). Development of childhood occupations. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 71-94). Mosby.) e de que as identidades infantis são moldadas a partir do que as crianças fazem (Abjornslett et al., 2015Abjornslett, M., Engelsrud, G. H., & Helseth, S. (2015). How children with disabilities engage in occupations during a transitional phase. Journal of Occupational Science, 22(3), 320-333. https://doi.org/10.1080/14427591.2014.952365
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), destacamos a relevância das ocupações nos cotidianos infantis, de crianças com desenvolvimento típico e atípico, residentes em comunidades de alto ou baixo nível socioeconômico.

As experiências vividas por essas crianças e as ocupações a elas propiciadas poderão ser estruturantes da representação feita por si mesmas, pela família e pela comunidade, daquilo que podem realizar. A Terapia Ocupacional reconhece que a participação nas ocupações é tanto processo quanto resultado do desenvolvimento humano e concebe que diversos fatores estão relacionados a ela, como questões relacionados à saúde, ao ambiente e ao contexto social. Essa participação pode ser influenciada pela presença de um quadro clínico que afeta o desenvolvimento, as habilidades e a participação social das crianças, como é o caso dos Transtornos do Espectro Autista (TEA), que podem proporcionar a existência de um repertório lúdico empobrecido, conforme já mencionaram estudos anteriores (Jarrold, 2003Jarrold, C. (2003). A review of research into pretend play in autism. Autism, 7, 379-390. https://doi.org/10.1177%2F1362361303007004004
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; Memari et al., 2015Memari, A. H., Panahi, N., Ranjbar, E., Moshayedi, P., Shafiei, M., Kordi, R., & Ziaee, V. (2015). Children with autism spectrum disorder and patterns of participation in daily physical and play activities. Neurology Research International, 1-7. http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906
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; Murdock & Hobbs, 2011Murdock, L. C., & Hobbs, J. Q. (2011). Picture me playing: increasing pretend play dialogue of children with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 41(7), 870-878. https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-6
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; Spitzer, 1997Spitzer, S. L. (1997). Play in children with autism: structure and experience. In L. D. Parham, & L. S. Fazio (Eds.), Play in occupational therapy for children (1a ed., pp. 351-374). Mosby.; Williams et al., 2001Williams, E., Reddy, V., & Costall, A. (2001). Taking a closer look at functional play in children with autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 31(1), 67-77. https://doi.org/10.1023/a:1005665714197
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).

Considerando que a participação infantil ocorre em contextos, a Educação Infantil se mostra como um dos principais contextos nos quais as crianças participam. No Brasil, a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica. Embora não seja uma etapa obrigatória, o último Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu como meta a universalização das matrículas de crianças de 4 e 5 anos em instituições formais de Educação Infantil (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
; Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Tanto a legislação brasileira vigente (Campos & Rosemberg, 2009Campos, M. M., & Rosemberg, F. (2009). Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. MEC, SEB.; Ministério da Educação e do Desporto, 1998Ministério da Educação e do Desporto. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Volume 1. MEC/Secretaria de Educação Fundamental. https://www.novaconcursos.com.br/arquivosdigitais/erratas/16461/21126/referencial-curricular-nacional-para-a-educacao-infantil-v-1.pdf
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; Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. http://www.seduc.ro.gov.br/portal/legislacao/RESCNE005_2009.pdf
http://www.seduc.ro.gov.br/portal/legisl...
) quanto estudos internacionais realizados no campo (Case-Smith et al., 2001Case-Smith, J., Rogers, J., & Johnson, J. H. (2001). School-based Occupational Therapy. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 757-779). Mosby.; Gartland, 2001Gartland, S. (2001). Occupational Therapy in preschool and childcare settings. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 731-755). Mosby.; Mulligan, 2012Mulligan, S. (2012). Preschool: I’m learning now! In S. J. Lane, & A. C. Bundy (Eds.), Kids can be kids: a childhood occupations approach (1a, pp. 63-82). F. A. Davis Company.; Ziviani & Muhlenhaupt, 2006Ziviani, J., & Muhlenhaupt, M. (2006). Student participation in the classroom. In S. Rodger, & J. Ziviani (Eds.), Occupational Therapy with children: understanding children’s occupations and enabling participation (1a ed., pp. 241-260). Blackwell Publishing.) concebem que a participação das crianças na Educação Infantil pode ser aferida a partir da participação em três eixos estruturantes das rotinas nesse contexto: o autocuidado, o aprendizado formal e o brincar.

Para Ferland (2006)Ferland, F. (2006). O modelo lúdico: o brincar, a criança com deficiência física e a terapia ocupacional. Roca., o brincar corresponde a uma ação subjetiva, na qual o prazer, a curiosidade, o senso de humor e a espontaneidade se encontram, caracterizando uma conduta escolhida livremente e da qual não se espera nenhum rendimento específico. Assim, o brincar envolve prazer, descoberta, domínio da realidade, criatividade e expressão. A autora considera que o brincar envolve diferentes componentes de desempenho, com destaque para os componentes sensoriais, motores, cognitivos, afetivos e sociais.

Com base nisso, terapeutas ocupacionais consideram, na abordagem do brincar infantil, que ele é um campo de atividades próprio da infância e que medeia o processo de adaptação e interação com o ambiente, funcionando como um caminho para a autonomia (Ferland, 2006Ferland, F. (2006). O modelo lúdico: o brincar, a criança com deficiência física e a terapia ocupacional. Roca.; Pahram, 1997Pahram, L. D. (1997). Play and Occupational therapy. In L. D. Parham, & L. S. Fazio (Eds.), Play in occupational therapy for children (1a ed., pp. 3-39). Mosby.).

Os TEA são reconhecidos pelo Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-5 (American Psychiatric Association [APA], 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSM-5 (5ª ed.). Artmed.) a partir de características essenciais, como o prejuízo persistente na comunicação social recíproca e na interação social (Critério A), os padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (Critério B), características presentes desde o início da infância e que desencadeiam limitações ou prejuízos no funcionamento diário das pessoas (Critérios C e D). As manifestações desse transtorno variam muito dependendo da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica, o que justifica a utilização do termo “espectro”.

Dados epidemiológicos mundiais estimam que um a cada 88 nascidos vivos apresenta TEA (Gomes et al., 2015Gomes, P. T. M., Lima, L. H. L., Bueno, M. K. G., Araújo, L. A., & Souza, N. M. (2015). Autismo no Brasil, desafios familiares e estratégias de superação: revisão sistemática. Jornal de Pediatria, 91(2), 111-121. https://doi.org/10.1016/j.jped.2014.08.009
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). A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2017)Organização Pan-Americana de Saúde. (2017). Folha informativa – Transtornos do espectro autista. Folha informativa atualizada em abril de 2017. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5651:folha-informativa-transtornos-do-espectro-autista&Itemid=1098
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informa uma prevalência de TEA, no Brasil, em uma a cada 160 crianças. Nos Estados Unidos, essa prevalência chega a uma a cada 59 crianças (Baio et al., 2014Baio, J., Wiggins, L., Christensen, D., Maenner, M. J., Daniels, J., Warren, Z., Kurzius-Spencer, M., Zahorodny, W., Rosenberg, C. R., White, T., Durkin, M. S., Imm, P., Nikolaou, L., Yeargin-Allsopp, M., Lee. L.-C., Harrington, R., Lopez, M., Fitzgerald, R. T., Hewitt, A.,… Dowling, N. F. (2014). Prevalence of Autism Spectrum Disorder among children aged 8 years – Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2014. Surveillance Summaries, 67(6), 1-2. http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.ss6706a1
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). O Governo do Canadá refere a prevalência de uma a cada 66 crianças com o transtorno no país (Government of Canada, 2019Government of Canada. (2019). Surveillance of Autism Spectrum Disorder (ASD). https://www.canada.ca/en/public-health/services/diseases/autism-spectrum-disorder-asd/surveillance-autism-spectrumdisorder-asd.html
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).

Estudos realizados com crianças que manifestam esse Transtorno evidenciaram restrições e comprometimentos de seu desempenho e de sua participação no brincar (Jarrold, 2003Jarrold, C. (2003). A review of research into pretend play in autism. Autism, 7, 379-390. https://doi.org/10.1177%2F1362361303007004004
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; Memari et al., 2015Memari, A. H., Panahi, N., Ranjbar, E., Moshayedi, P., Shafiei, M., Kordi, R., & Ziaee, V. (2015). Children with autism spectrum disorder and patterns of participation in daily physical and play activities. Neurology Research International, 1-7. http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906
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; Murdock & Hobbs, 2011Murdock, L. C., & Hobbs, J. Q. (2011). Picture me playing: increasing pretend play dialogue of children with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 41(7), 870-878. https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-6
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; Spitzer, 1997Spitzer, S. L. (1997). Play in children with autism: structure and experience. In L. D. Parham, & L. S. Fazio (Eds.), Play in occupational therapy for children (1a ed., pp. 351-374). Mosby.; Williams et al., 2001Williams, E., Reddy, V., & Costall, A. (2001). Taking a closer look at functional play in children with autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 31(1), 67-77. https://doi.org/10.1023/a:1005665714197
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).

Concebendo o brincar como uma ocupação estruturante dos cotidianos infantis (Bundy, 2012Bundy, A. (2012). Children at play: Can I play, too? In S. J. Lane, & A. C. Bundy (Eds.), Kids can be kids: a childhood occupations approach (1a ed., pp. 28-43). F. A. Davis Company.; Lynch & Moore, 2016Lynch, H., & Moore, A. (2016). Play as an occupation in occupational therapy. British Journal of Occupational Therapy, 79(9), 519-520. https://doi.org/10.1177/0308022616664540
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; Pahram, 1997Pahram, L. D. (1997). Play and Occupational therapy. In L. D. Parham, & L. S. Fazio (Eds.), Play in occupational therapy for children (1a ed., pp. 3-39). Mosby.; Stagnitti, 2004Stagnitti, K. (2004). Understanding play: The implications for play assessment. Australian Occupational Therapy Journal, 51, 3-12. https://doi.org/10.1046/j.1440-1630.2003.00387.x
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) e presente na vida das crianças, geralmente desde muito antes do ingresso em ambientes de escolarização formal, compreende-se que ele pode ser um indicador significativo para análise da participação de crianças com TEA na Educação Infantil.

Considerando o exposto, este estudo buscou responder à seguinte questão norteadora: Como se caracteriza a participação de crianças com desenvolvimento típico e com TEA em situações de brincadeiras na Educação Infantil? Para tanto, elegeu-se como objetivo analisar a participação no brincar de crianças com desenvolvimento típico e crianças com TEA no contexto da Educação Infantil.

2 Método

Nesta seção, discorre-se sobre o tipo de pesquisa e os aspectos éticos adotados, sobre os participantes do estudo, o instrumento e os procedimentos para a coleta de dados e, por fim, acerca da organização e da análise do material de investigação.

2.1 Tipo de pesquisa

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa do tipo exploratória e descritiva que busca apreender dados relacionados ao objeto de estudo a partir da observação e descrição do fenômeno investigado. A observação ocupa um lugar privilegiado nas abordagens de pesquisa no campo da Educação, sendo considerada o principal método de investigação, por possibilitar um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado (Marconi & Lakatos, 2005Marconi, M. A., & Lakatos, E. M. (2005). Fundamentos da metodologia científica. Atlas.; Severino, 2007Severino, A. J. (2007). Metodologia do trabalho científico. Cortez.).

A exigência de rigor para uma observação criteriosa fez com que adotássemos o método de Descrição Narrativa (Bentzen, 2012Bentzen, W. R. (2012). Descrições Narrativas. In W. R. Bentzen (Ed.), Guia para observação e registro do comportamento infantil (1ª ed., pp. 99-116). CENGAGE Learning.) para a apreensão dos dados relacionados aos comportamentos infantis. Esse método consiste no registro, de forma contínua e em detalhes, do que a criança faz e diz, por si só e em interação com outras pessoas, ambientes ou objetos. Nesse método, o vídeo ou áudio gravado (e sua posterior transcrição) pode ser usado sozinho ou em combinação com notas escritas para registrar uma análise permanente do comportamento da criança.

As principais vantagens desse método são listadas por Bentzen (2012)Bentzen, W. R. (2012). Descrições Narrativas. In W. R. Bentzen (Ed.), Guia para observação e registro do comportamento infantil (1ª ed., pp. 99-116). CENGAGE Learning.: 1. Flexibilidade do método e ausência de seletividade; 2. Fornecimento de um relato completo do que ocorreu durante o tempo que o observador esteve no fluxo de comportamento de uma criança; 3. Compreensão do contexto juntamente à análise do comportamento; 4. Entendimento dos comportamentos com base nas situações vivenciadas; e 5. Registro de todos os comportamentos, contextos e estilos sob condições naturais.

2.2 Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi enviado para apreciação ética pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos, tendo sido aprovado sob o Parecer n° 1.855.178.

2.3 Participa ntes

Este estudo teve a participação de seis crianças, sendo três com desenvolvimento típico e três diagnosticadas com TEA. Os critérios de inclusão que nortearam a seleção dos participantes da pesquisa para este estudo foram:

  • Crianças com desenvolvimento típico, na faixa etária de 4 a 5 anos de idade, que tivessem assiduidade e participação nas atividades da Educação Infantil e cujos responsáveis legais concordassem com a observação da criança, registrando seu aceite por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para pais.

  • Crianças com TEA, que tivessem laudo, cujos responsáveis legais concordassem com a observação da criança, registrando seu aceite por meio da assinatura do TCLE para pais. O Quadro 1 traz dados referentes às crianças participantes da pesquisa. Nomes de personagens infantis foram utilizados para preservar suas identidades:

Quadro 1
Crianças participantes da pesquisa

2.4 Instrumento e procedimentos pa ra coleta de dados

Para o contato com as crianças, optou-se por utilizar a observação como técnica de imersão em campo para coleta de dados. Como instrumento de coleta de dados, foi utilizado um roteiro de observação, contendo os ambientes para observação, para nortear os registros das descrições narrativas. Esses registros foram gravados em áudio, utilizando gravador, em tempo real à observação. A coleta de dados foi realizada de junho de 2017 a janeiro de 2018, de segunda à sexta, no turno da manhã em três instituições, no horário das 7h30min às 11h30min.

Cada criança era observada durante um turno escolar completo (quatro horas de duração). Em cada Unidade de Educação Infantil (UEI), foi realizada a observação de duas crianças, as quais frequentavam a mesma sala de aula: uma criança com desenvolvimento típico e uma criança com TEA. Contudo, as observações eram direcionadas a uma criança de cada vez. O tempo de início da observação era sempre a hora em que a criança adentrava a UEI, e o que demarcava o final da observação era a conclusão do almoço, o que sinalizava o fim do turno da manhã para as crianças. Foi realizada uma média de 20 dias de observação de cada criança. A definição do período de observação foi realizada por saturação, a partir da quantidade e da qualidade dos dados coletados serem considerados suficientes para responder aos objetivos do estudo.

Essa fase contou com a participação de três auxiliares de pesquisa, que receberam formação pela pesquisadora para a utilização do método de descrição narrativa em três encontros de formação sobre o método. Esses encontros envolveram o treino individual e coletivo para utilização do método, a fim de favorecer a padronização da observação e dos registros, entre todas as observadoras, garantindo a apreensão de informações de modo mais detalhado possível acerca da realidade observada.

Durante a coleta, cada auxiliar de pesquisa frequentava uma UEI específica e a pesquisadora se revezava com elas para frequentar todas as UEI alternadamente. Optou-se por esse procedimento para que as auxiliares de pesquisa pudessem se concentrar em crianças específicas e para que a pesquisadora pudesse conhecer de modo aprofundado todas as crianças participantes da pesquisa.

2.5 análise de dados

Para a organização e análise do material de investigação (anotações e transcrições dos registros gravados em áudio), foi utilizado o método de Análise de Conteúdo, definido por Bardin (2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70. como um conjunto de técnicas de análise da comunicação, que visam inferir conhecimentos relativos às mensagens emitidas pelas pessoas, por meio de procedimentos sistemáticos de descrição de conteúdos mencionados.

3 Resultados

Observou-se a presença de distintas situações de brincadeiras realizadas pelas crianças na rotina na Educação Infantil. Para efeitos de organização didática dos resultados deste estudo, denominaremos as formas mais presentes de brincar dirigido coletivo, brincar livre em sala de aula, brincar livre em área externa e criação espontânea de brincadeiras, conforme ilustra o Quadro 2. Este também expressa os resultados deste estudo, no que se refere à caracterização da participação das crianças nessas situações de brincadeiras, a qual foi denominada de três formas distintas: participação plena, participação ativa e participação restrita ou rudimentar. É pertinente destacar que essa denominação das formas de participação resultou da análise do conteúdo dos registros de observação.

Quadro 2
Resultados de pesquisa: Caracterização do brincar infantil de crianças com desenvolvimento típico e crianças com TEA

Partindo dessa caracterização, os excertos a seguir ratificam e justificam a denominação atribuída.

No que se refere ao brincar de crianças com desenvolvimento típico, foi possível observar uma participação plena, predominantemente em crianças com desenvolvimento típico, conforme ilustram os seguintes excertos das descrições narrativas relacionados ao brincar dirigido:

9h25 – A professora distribui brinquedos de encaixe para todas as crianças, dividindo um pouco para cada. Chico Bento manuseia as peças, observa e começa a encaixar as peças na vertical.

9h37 – As crianças estão próximas da mesa, sentadas nas cadeiras ou em pé. Chico Bento está em pé, encaixando as peças, refere ter montado um “carro voador”, e fazendo movimentos de voo com os braços. 9h54 – Chico Bento desmonta o carro e encaixa as peças de forma diferente, construindo um ônibus. Em seguida faz movimentos de corrida na mesa, deslizando o brinquedo montado. (Chico Bento, 22 de novembro de 2017)

9h41 – A professora distribui peças de encaixe nas mesas para que as crianças montem coletivamente. 9h45 – Magali escolhe as peças vermelhas de encaixe. Ela brinca com as peças, concentrando-se em montar o brinquedo. 9h55 – Magali deixa algumas peças caírem no chão, mas as recolhe em seguida. Quando o colega ao lado dela para de montar, Magali as pega para si e continua montando. 10h00 – Ela devolve as peças do outro colega e continua montando só com as suas. Um colega da mesa sugere que eles misturem as peças e montem um grande prédio, Magali concorda e eles começam a montagem. 10h20 – Com o intuito de deixar as montagens mais coloridas, Magali sugere aos amigos da mesa que troquem peças entre si, eles aceitam. (Magali, 30 de novembro de 2017)

Essa participação plena das crianças com desenvolvimento típico também foi observada durante o brincar livre, como ilustram os excertos que seguem:

8h38 – No quintal, Cebolinha tem um cubo em mãos. Ele o joga no chão e pisa em cima, empurrando e enterrando o cubo na areia. Uma colega desenterra o cubo, o joga novamente na areia e pisa também. Cebolinha desenterra o cubo e repete o processo e assim sucessivamente. Eles brincam de maneira participativa, ambos esperando o tempo necessário até sua vez chegar, não burlando regras estabelecidas na brincadeira, como apenas desenterrar depois do outro pisar no cubo. A liderança da brincadeira é dividida entre os dois, onde na vez de quem joga para cima o cubo, o outro indica onde ele deve cair, de forma que muda a forma do outro jogar. Eles estabelecem o quão alto deve ser jogado e o quão forte deve cair no chão. Em vários momentos durante a brincadeira, Cebolinha conversa com a colega explicando em que área o cubo deve cair, até onde deve ir, como se estabelecendo as regras da brincadeira e reforçando-as repetidamente. (Cebolinha, 10 de novembro de 2017)

9h12 – As crianças chegam ao parque, correm pelo espaço, usam os brinquedos. Magali senta-se no balanço e balança-se, segurando na corda; anda por cima dos pneus, equilibrando-se, corre dos colegas, em volta dos brinquedos. Magali sorri, brinca sozinha na maior parte do tempo, varia as brincadeiras. 9h29 – A professora convida as crianças para brincarem de “boca de forno”, elas aceitam e pulam alegres. Magali está atenta aos comandos. A professora dá comandos como “imitem um palhaço”, Magali encena, colocando um nariz de palhaço, mantém um sorriso largo e anda pelo espaço como se fizesse palhaçadas, joga-se no chão, faz cócegas nos colegas. O próximo comando é de permanecerem em tatames das cores que a professora escolhe, “todo mundo no tatame amarelo”, “agora todo mundo no tatame azul”. Magali e os colegas correm, alguns caem tentando permanecer em pé nos tatames, quando não há mais espaço. A professora ainda lança comandos para subirem em brinquedos, Magali atenta, realiza todos os comandos. (Magali, 29 de novembro de 2017)

10h10 – A professora anuncia que eles podem pegar um brinquedo, as crianças gritam e saem correndo para a caixa de brinquedos. Chico Bento anda até a caixa, observa os brinquedos, pega um carrinho, abaixa-se com os joelhos no chão e a coluna flexionada, e arrasta-o no chão com as duas mãos no carro. 10h13 – Chico Bento senta-se sob o carro, com os joelhos flexionados, volta a sentar-se no chão, arrasta o carro com as duas mãos, percorre o espaço da sala e corredor, em velocidade acelerada com o carro. Arrasta o carro na parede, coloca o carro em cima de outro carro e arrasta o debaixo sob o chão da sala. 10h20 – Chico Bento ainda brinca com o carro, arrastando-o pela sala, fazendo som de motor “vruuuummm”. 10h32 – Chico Bento vai para debaixo da mesa, deixa o carro no chão da sala, observa as meninas brincando com panelinhas e pede para brincar, elas permitem, ele auxilia no preparo das comidas, manuseia alguns utensílios, divide o espaço com elas, conversa sobre o que será preparado. (Chico Bento, 11 de dezembro de 2017)

Uma atividade observada com frequência no comportamento das crianças com desenvolvimento típico na UEI foi a criação espontânea de brincadeiras, o que ocorreu em momentos variados, tal como evidenciam os excertos das descrições narrativas a seguir:

8h25 – Chico Bento e um colega terminaram de almoçar e, enquanto aguardam os demais colegas terminarem, observam um cartaz com desenhos infantis na parede da UEI e brincam de apontar os alunos da classe nele. Riem juntos. (Chico Bento, 14 de novembro de 2017)

9h34: Os alunos estão sentados no chão, enquanto a professora procura um DVD para colocar para eles assistirem. Uma colega fica de pé em frente a Cebolinha, girando. Ele então começa a fazer movimentos com o dedo indicador, indicando para girar, como se ele controlasse o giro dela sob com um poder mágico, os dois rindo. (Cebolinha, 10 de novembro de 2017)

8h31 – As crianças estão próximas da mesa aguardando a professora para iniciarem a contação de histórias, algumas sentadas e outras em pé. Chico Bento está em pé com um livro grande aberto na vertical, empilhando outros livros dentro e em cima, aparentando formar uma caixa ou casa. Dois colegas se aproximam, interessados, e ele os convida para auxiliarem na construção. Os três montam uma casa com os livros. (Chico Bento, 22 de novembro de 2017)

No que se refere ao brincar das crianças com TEA, observou-se motivação para o envolvimento e uma participação ativa em diversos momentos de brincar livre, ainda que com um repertório lúdico empobrecido ou repetitivo. Os excertos a seguir ilustram essas situações:

9h10 – A professora anuncia o momento de ir para o parque, e as crianças se organizam em fila na porta da sala. Todos caminham em trenzinho para o quintal. Franjinha, logo ao chegar no quintal, pega um pedaço de lajota quebrada e o enche de areia. Depois a professora recolhe a lajota, dizendo a ele que ele pode se machucar. Ela dá a ele um bilboquê, mostrando como ele deve brincar, mas ele o pega e o enche de terra. A professora então retira dele novamente. (Franjinha, 28 de agosto de 2017)

9h27 – Cascão vê um telefone em cima da mesa, que outras crianças usam para brincar. Ele caminha até a mesa onde há o telefone, tira o telefone do gancho e o coloca no ouvido. Aperta os botões, com a outra mão, simulando ligação e emite ruídos semelhantes a grunhidos. (Cascão, 28 de junho de 2017)

9h30- A professora conduz Mônica, de mãos dadas, até o quintal. Ao chegarem ao parque, as crianças se distribuem nos brinquedos. Mônica caminha para a região dos brinquedos também, mas fica somente parada em frente à casinha. Uma colega pega em Mônica, convidando-a para brincar, Mônica se esquiva. Anda ao redor da casinha apenas. 9h40 – A colega a convida para dentro da casinha e ela aceita. Outras crianças entram também. As crianças entram e saem da casinha, conversam e brincam de faz de conta. Mônica permanece dentro da casinha por aproximadamente dez minutos, andando em círculos, sem interagir com as demais crianças. (Mônica, 24 de agosto de 2017)

No que se refere às crianças com TEA, foi observada, predominantemente, uma participação restrita ou rudimentar no brincar, como se pode constatar por meio dos excertos a seguir, que relatam sobre situações de brincar dirigido:

8h34 – As crianças se sentaram nas mesinhas e a professora distribuiu jogos. Franjinha está numa mesa com mais três alunos. O jogo da mesa deles é o jogo da memória, as outras crianças jogam e Franjinha manuseia algumas peças, mas logo deita a cabeça na mesa. 8h40 – Os jogos foram trocados. Na mesa de Franjinha, é o dominó. Franjinha apenas segura as peças, uma das meninas da mesa monta o dominó. (Franjinha, 29 de agosto de 2017)

8h54 – As crianças brincam com massa de modelar. As crianças constroem objetos com massa de modelar, enquanto Franjinha apenas segura a massinha nas mãos. Passados aproximadamente três minutos, Franjinha começa a tirar pedacinhos da massa de modelar, fazendo pequenas bolinhas, porém mais observa os colegas do que, efetivamente, modela. (Franjinha, 28 de agosto de 2017)

Durante o brincar livre, essa participação restrita ou rudimentar também foi observada, tanto em sala de aula quanto em área externa (quintal):

8h35 – Mônica anda pela sala, por toda a sua extensão até o armário de brinquedos. Nele, pega uma bicicleta verde, a leva até a mesa e, em seguida, a devolve ao local. Pega um carro azul e a bicicleta verde novamente, os leva para cima da mesa. Manuseia o carro, deslizando-o suas rodas pela superfície da mesa, para frente e para trás. Repousa o dorso da mão em um dos bancos do carro, toca no carro revezando os dedos. Alterna o manuseio da bicicleta e do carro. Os levanta até a linha média dos olhos e os devolve para a mesa, alternadamente. Repete essa ação cerca de sete vezes. (Mônica, 30 de agosto de 2017)

8h00 – A professora orienta que cada criança pegue um brinquedo e se sente em uma das mesas para brincar com ele. Todas as crianças levantam-se e começam a caminhar em direção a um grande cesto de brinquedos que fica em um canto da sala. Cada uma escolhe um brinquedo e se senta em uma das mesas. Franjinha caminha junto com as crianças em direção à região da sala que tem as mesas e cadeiras, sem pegar nenhum brinquedo. Ele se senta em uma cadeira encostada na parede, fora das mesas. Senta-se de pernas cruzadas sobre a cadeira, enquanto as crianças brincam nas mesas. Ele fica sentado, calado, sozinho, olhando para as mesas onde as crianças brincam, próximo a ele. 8h07 – Franjinha continua olhando as crianças brincando. A professora percebe que ele está sentado sem brinquedo e o questiona: “Franjinha, onde está o seu brinquedo?”. Ele a olha e sorri, sem nada responder. Ele sentado sem brinquedo, calado, apenas olhando as crianças que brincam. (Franjinha, 17 de agosto de 2017)

4 Discussão

Para a discussão dos resultados, esta seção foi dividida em duas partes: 1) Como caracterizar a participação de crianças em situações de brincadeiras na Educação Infantil: uma análise a partir da atitude lúdica; e 2) A participação de crianças com desenvolvimento típico e com transtorno do espectro autista em situações de brincadeiras: o que sugerem as diferenças?

4.1 Como caracterizar a pa rticipa ção de crianças em situações de brincadeiras na educação infantil: uma análise a pa rtir da atitude lúdica

É possível constatar que o brincar simbólico e o brincar compartilhado foram observados predominantemente nas crianças com desenvolvimento típico, e a modalidade denominada de criação espontânea de brincadeiras foi observada exclusivamente nessas crianças. O brincar simbólico refere-se à forma de brincar caracterizada pelo faz de conta e pela abstração, sinalizando habilidades cognitivas desenvolvidas e consolidadas para representar as vivências cotidianas, com imaginação e criatividade, por meio do brincar.

Observa-se, também, que as crianças com desenvolvimento típico manifestaram comportamentos que não foram observados em crianças com TEA, tais como iniciativa, liderança e interação social durante o brincar. Para efeitos de análise desses comportamentos observados, escolheu-se o referencial de Ferland (2006)Ferland, F. (2006). O modelo lúdico: o brincar, a criança com deficiência física e a terapia ocupacional. Roca., a respeito do comportamento lúdico, o qual tem sua evolução concebida em três etapas distintas, descritas no Quadro 3.

Quadro 3
Caracterização da evolução do comportamento lúdico

Com base nesse referencial, este estudo permite discutir alguns resultados:

  • • A atitude lúdica de crianças com TEA foi identificada compatível com a segunda etapa da evolução do comportamento lúdico, evidenciando necessidade de sua promoção.

  • • O repertório lúdico pessoal de crianças com TEA também se mostrou em estágio diferenciado de desenvolvimento quando comparado ao repertório das crianças com desenvolvimento típico, o qual se mostra condizente com a faixa etária apresentada pelas crianças.

  • • A atitude lúdica de crianças com desenvolvimento típico foi identificada compatível com a terceira etapa da evolução do comportamento lúdico e, consequentemente, condizente com a sua faixa etária.

  • • Esse comportamento lúdico condizente com a faixa etária pode justificar as condições e as habilidades necessárias requeridas para a participação plena dessas crianças nas situações de brincadeiras.

  • • Essas constatações sugerem implicações para intervenções profissionais de Terapia Ocupacional que possam beneficiar a participação dessas crianças em situações de brincadeiras. Estudos realizados já tiveram esse enfoque. No que se refere à participação no brincar em ambientes de escolarização formal, pesquisas realizadas com crianças com TEA sugerem que essas crianças costumam ter maior participação no brincar quando possuem um adulto que faça a mediação entre elas e as brincadeiras (Klinger & Souza, 2015Klinger, E. F., & Souza, A. P. R. (2015). Análise clínica do brincar de crianças do espectro autista. Distúrbios da Comunicação, 27(1), 15-25. https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/view/17872
    https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/...
    ; Memari et al., 2015Memari, A. H., Panahi, N., Ranjbar, E., Moshayedi, P., Shafiei, M., Kordi, R., & Ziaee, V. (2015). Children with autism spectrum disorder and patterns of participation in daily physical and play activities. Neurology Research International, 1-7. http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906
    http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906...
    ; Murdock & Hobbs, 2011Murdock, L. C., & Hobbs, J. Q. (2011). Picture me playing: increasing pretend play dialogue of children with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 41(7), 870-878. https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-6
    https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-...
    ). Dentre os elementos que podem influenciar a participação infantil, conforme pesquisas anteriores (Hemmingsson et al., 2003Hemmingsson, H., Borell, L., & Gustavsson, A. (2003). Participation in school: school assistants creating opportunities and obstacles for pupils with disabilities. OTJR: Occup Particip Health, 23(3), 88-98. https://doi.org/10.1177/153944920302300302
    https://doi.org/10.1177/1539449203023003...
    ; Mulligan, 2012Mulligan, S. (2012). Preschool: I’m learning now! In S. J. Lane, & A. C. Bundy (Eds.), Kids can be kids: a childhood occupations approach (1a, pp. 63-82). F. A. Davis Company.; Shepherd, 2012Shepherd, J. (2012). Self-care: a primary occupation. In S. J. Lane, & A. C. Bundy (Eds.), Kids can be kids: a childhood occupations approach (1a ed., pp. 125-158). F. A. Davis Company.), constam: a) a existência de deficiências; b) ambientes que não sejam promotores do desenvolvimento; e c) adultos responsáveis por mediar essas ocupações e que as desenvolvem pelas crianças.

A não compatibilidade do desenvolvimento do comportamento lúdico das crianças com TEA com a faixa etária também alerta terapeutas ocupacionais para a necessidade de maiores investimentos na promoção de oportunidades e mediação para que essas crianças tenham uma participação efetiva, com motivação, iniciativa e interação social nas situações de brincadeiras nos ambientes escolares, como um dos objetivos de aprendizagem da Educação

Infantil e que tende a reverberar por toda a vida social dessas crianças (Gartland, 2001Gartland, S. (2001). Occupational Therapy in preschool and childcare settings. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 731-755). Mosby.; Graham et al., 2014Graham, N., Truman, J., & Heather, H. (2014). An exploratory study: expanding the concept of play for children with severe cerebral palsy. British Journal of Occupational Therapy, 77(7), 358-365. https://doi.org/10.4276/030802214X14044755581781
https://doi.org/10.4276/030802214X140447...
).

A centralidade do brincar nas práticas de Educação Infantil já foi abordada em pesquisas anteriores (Gartland, 2001Gartland, S. (2001). Occupational Therapy in preschool and childcare settings. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 731-755). Mosby.; Rodger & Ziviani, 1999Rodger, S., & Ziviani, J. (1999). Play-based Occupational Therapy. International Journal of Disability, Development and Education, 46(3), 337-365. https://doi.org/10.1080/103491299100542
https://doi.org/10.1080/103491299100542...
; Sant’anna, 2016Sant’anna, M. M. M. (2016). Formação continuada em serviço para professores da Educação Infantil sobre o brincar [Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista]. Repositório da Unesp. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/136356/santanna_mmm_dr_mar.pdf?sequence=3&isAllowed=y
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
). Destaca-se que a promoção do brincar de crianças com TEA assume, portanto, no contexto da Educação Infantil, um lugar de protagonista para o desencadeamento de aprendizados cada vez mais complexos por essas crianças.

4.2 A pa rticipa ção de crianças com desenvolvimento típico e com transtorno do espectro autista em situações de brincadeiras: o que sugerem as diferenças?

Este estudo não teve como objetivo mensurar a participação ou estabelecer comparações estatisticamente significativas entre os grupos observados, mas pretendeu conhecer as formas de brincar desses grupos, a partir de uma abordagem descritiva e compreensiva. Contudo, é inevitável perceber diferenças entre os comportamentos dos dois grupos observados durante as situações de brincar, a partir dos resultados apresentados, tais como:

  • • diferenças de desenvolvimento do comportamento lúdico;

  • • diferenças de respostas diante das mesmas oportunidades para o brincar;

  • • diferenças de compreensão e atendimento a comandos fornecidos em brincadeiras orientadas;

  • • o brincar espontâneo observado nos comportamentos das crianças com desenvolvimento típico sugere um repertório lúdico de maior complexidade;

  • • diferenças quanto ao perfil do brincar, de modo que, na observação das crianças com TEA, predominaram brincadeiras concretas e solitárias com menor variação e, na das crianças com desenvolvimento típico, predominaram as brincadeiras simbólicas e compartilhadas, com maior variedade de brincadeiras.

Com base no referencial de Ferland (2006)Ferland, F. (2006). O modelo lúdico: o brincar, a criança com deficiência física e a terapia ocupacional. Roca., é possível observar que a atitude lúdica de crianças com TEA pode ser associada à segunda etapa da evolução do comportamento lúdico, evidenciando não compatibilidade com a faixa etária apresentada pelas crianças. O repertório lúdico pessoal de crianças com TEA também se mostrou em estágio diferenciado de desenvolvimento quando comparado ao repertório das crianças com desenvolvimento típico, o qual se mostra condizente com a faixa etária apresentada pelas crianças.

Já a atitude lúdica de crianças com desenvolvimento típico foi identificada compatível com a terceira etapa da evolução do comportamento lúdico, e, consequentemente, condizente com a sua faixa etária. Esse comportamento lúdico condizente com a faixa etária pode justificar as condições e as habilidades necessárias requeridas para a participação plena dessas crianças nas situações de brincadeiras. Isso sugere que as crianças com TEA necessitam de condições ambientais e atitudinais para a promoção de sua participação no brincar, no âmbito da Educação Infantil. Alguns desses aspectos já foram abordados por outras pesquisas no campo e sugerem resultados compatíveis com os nossos achados (Klinger & Souza, 2015Klinger, E. F., & Souza, A. P. R. (2015). Análise clínica do brincar de crianças do espectro autista. Distúrbios da Comunicação, 27(1), 15-25. https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/view/17872
https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/...
; Memari et al., 2015Memari, A. H., Panahi, N., Ranjbar, E., Moshayedi, P., Shafiei, M., Kordi, R., & Ziaee, V. (2015). Children with autism spectrum disorder and patterns of participation in daily physical and play activities. Neurology Research International, 1-7. http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906
http://dx.doi.org/10.1155/2015/531906...
; Murdock & Hobbs, 2011Murdock, L. C., & Hobbs, J. Q. (2011). Picture me playing: increasing pretend play dialogue of children with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 41(7), 870-878. https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-6
https://doi.org/10.1007/s10803-010-1108-...
; Williams et al., 2001Williams, E., Reddy, V., & Costall, A. (2001). Taking a closer look at functional play in children with autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 31(1), 67-77. https://doi.org/10.1023/a:1005665714197
https://doi.org/10.1023/a:1005665714197...
).

O brincar simbólico refere-se à forma de brincar caracterizada pelo faz de conta e pela abstração, sinalizando habilidades cognitivas desenvolvidas e consolidadas para representar as vivências cotidianas, com imaginação e criatividade, por meio do brincar, o que pode estar também relacionado ao desenvolvimento do comportamento lúdico não compatível com a faixa etária das crianças com TEA (Fiaes & Bichara, 2009Fiaes, C. S., & Bichara, I. D. (2009). Brincadeiras de faz-de-conta em crianças autistas: limites e possibilidades numa perspectiva evolucionista. Estudos de Psicologia, 14(3), 231-238. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2009000300007
https://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X200...
; Hobson et al., 2013Hobson, J., Hobson, R. P., Malik, S., Bargiota, K., & Caló, S. (2013). The relation between social engagement and pretend play in autism. British Journal of Developmental Psychology, 31, 114-127. https://doi.org/10.1111/j.2044-835x.2012.02083.x
https://doi.org/10.1111/j.2044-835x.2012...
; Rutherford & Rogers, 2003Rutherford, M. D., & Rogers, S. J. (2003). Cognitive underpinnings of pretend play in Autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 33(3), 289-302. https://doi.org/10.1023/a:1024406601334
https://doi.org/10.1023/a:1024406601334...
; Rutherford et al., 2007Rutherford, M. D., Young, G. S., Hepburn, S., & Rogers, S. J. (2007). A longitudinal study of pretend play in autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 37(6), 1024-1039. https://doi.org/10.1007/s10803-006-0240-9
https://doi.org/10.1007/s10803-006-0240-...
).

A não compatibilidade do desenvolvimento do comportamento lúdico das crianças com TEA com a faixa etária sugere a necessidade de maiores investimentos na promoção de oportunidades e mediação para que essas crianças tenham uma participação efetiva, com motivação, iniciativa e interação social nas situações de brincadeiras nos ambientes escolares, sendo um dos objetivos de aprendizagem da Educação Infantil e que tende a reverberar por toda a vida social desses sujeitos.

Alguns estudos de Terapia Ocupacional na Educação Infantil, sob uma perspectiva ocupacional (Case-Smith et al., 2001Case-Smith, J., Rogers, J., & Johnson, J. H. (2001). School-based Occupational Therapy. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 757-779). Mosby.; Gartland, 2001Gartland, S. (2001). Occupational Therapy in preschool and childcare settings. In J. Case-Smith (Ed.), Occupational Therapy for Children (4a ed., pp. 731-755). Mosby.; Mulligan, 2012Mulligan, S. (2012). Preschool: I’m learning now! In S. J. Lane, & A. C. Bundy (Eds.), Kids can be kids: a childhood occupations approach (1a, pp. 63-82). F. A. Davis Company.) podem sugerir impactos dessas diferenças para a participação infantil na educação escolar, influenciando também na participação social e na aprendizagem formal das crianças. Como implicações para a Terapia Ocupacional, esses resultados permitem reflexões sobre possíveis influências que afetam essa participação diferenciada e que podem ser minimizadas, tais como modificações ambientais, necessidade de mediação, adaptação das propostas lúdicas e fornecimento de maior variedade de materiais para o desenvolvimento do brincar, como sinalizam estudos da área.

Não se pretende defender a ideia de que as crianças com TEA precisem desenvolver um brincar semelhante ao das crianças com desenvolvimento típico, visto que o conceito de brincar independe de metas ou objetivos externamente delineados (Ferland, 2006Ferland, F. (2006). O modelo lúdico: o brincar, a criança com deficiência física e a terapia ocupacional. Roca.; Lynch & Moore, 2016Lynch, H., & Moore, A. (2016). Play as an occupation in occupational therapy. British Journal of Occupational Therapy, 79(9), 519-520. https://doi.org/10.1177/0308022616664540
https://doi.org/10.1177/0308022616664540...
; Pahram, 1997Pahram, L. D. (1997). Play and Occupational therapy. In L. D. Parham, & L. S. Fazio (Eds.), Play in occupational therapy for children (1a ed., pp. 3-39). Mosby.; Stagnitti, 2004Stagnitti, K. (2004). Understanding play: The implications for play assessment. Australian Occupational Therapy Journal, 51, 3-12. https://doi.org/10.1046/j.1440-1630.2003.00387.x
https://doi.org/10.1046/j.1440-1630.2003...
). Considera-se, porém, que as diferenças constatadas por meio dos resultados deste estudo apontam para prejuízos da participação dessas crianças nesta ocupação tão estruturante das rotinas infantis, que é o brincar. Por isso, destaca-se a importância do planejamento de estratégias que possam oportunizar a elas o que neste estudo é denominado de “participação plena”. Assim, diante do fornecimento de condições e estratégias para favorecer a participação de crianças com TEA nas situações de brincadeiras, compreende-se que o brincar, como um dos objetivos das práticas de Educação Infantil, pode corroborar para a implementação da perspectiva educacional inclusiva.

5 Conclusões

Este estudo dedicou-se à caracterização e à análise da participação no brincar de crianças com desenvolvimento típico e crianças com TEA no contexto da Educação Infantil. Os principais resultados apontaram para diferenças nessa participação, no sentido de que crianças com o Transtorno evidenciaram desenvolvimento do comportamento lúdico não condizente com a faixa etária apresentada e um brincar mais concreto, solitário e com interação social ausente ou rudimentar.

Esses resultados explicitam as contribuições deste estudo, como avanços no estado da arte do conhecimento sobre o brincar de crianças com TEA. Para a Educação Especial, é inquestionável a relevância do conhecimento dessas formas diferenciadas de desenvolvimento do comportamento e do repertório lúdico, bem como a compreensão acerca da diversidade implicada no ato de brincar. Considerando que a Educação Especial na perspectiva inclusiva deve ser transversal a todos os níveis e a todas as etapas da Educação e que a Educação Infantil deve ter o brincar como eixo comum em todas as suas esferas, esta pesquisa promoveu o encontro entre essas temáticas, alinhavando a necessidade de percepção docente e da equipe multiprofissional acerca da diversidade implícita no brincar.

Este estudo desvela, portanto, debates acerca da necessidade de criarem-se estratégias que sejam inclusivas a partir das situações de brincadeiras na Educação Infantil. Os resultados apontam, também, para importantes reflexões no contexto da Terapia Ocupacional para o favorecimento da participação infantil no brincar no contexto da Educação Infantil, indicando a necessidade de promoção de oportunidades mediadas e com brinquedos adaptados ou coerentes com os interesses das crianças com TEA e fomentando, cada vez mais, a sua inclusão escolar.

  • 2
    Artigo derivado da Tese de Doutorado intitulada Perspectiva ocupacional da participação de crianças na Educação Infantil e implicações para a Terapia Ocupacional (Folha, 2019), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional (PPGTO) do Departamento de Terapia Ocupacional (DTO) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Financiamento: Universidade do Estado do Pará (UEPA).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2021
  • Revisado
    04 Nov 2021
  • Aceito
    10 Dez 2021
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