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POTENCIALIDADES DO PROJETO DE SOCIEDADE DOS DIREITOS HUMANOS E DA NATUREZA

Resumo

Este trabalho busca evidenciar duas construções teórico-políticas e culturais, os direitos humanos e os direitos da natureza, diante dos desafios e contradições da modernidade alicerçada no antropocentrismo e em uma racionalidade econômica instrumental. Considerando-os projetos de sociedade, buscou-se resgatar seus elementos caracterizadores, suas tensões e seu potencial emancipatório ante as contradições sociais, culturais e socioambientais decorrentes do modelo hegemônico de desenvolvimento. A hipótese dos autores é que esses dois projetos possam ser trabalhados de maneira integrada, buscando agregar e articular suas potencialidades emancipatórias, em vista de uma sociedade pautada na inter-relação entre os direitos humanos e os direitos da natureza. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, vinculada à observação empírica do processo dialético da práxis social em torno dos direitos humanos e dos direitos da natureza. Diante das análises e reflexões desenvolvidas, concluiu-se pela confirmação da hipótese, com a afirmação do projeto dos direitos humanos e da natureza, com sua potencialidade norteadora diante dos desafios contemporâneos de efetivação dos direitos humanos e da natureza.

Palavras-chave:
direitos humanos; direitos humanos e da natureza; direitos da natureza; projeto de sociedade

Abstract

This work seeks to highlight two theoretical-political and cultural constructions, human rights and nature’s rights, in the face of the challenges and contradictions of modernity based on anthropocentrism and an instrumental economic rationality. Considering them as projects of society, we sought to rescue their characterizing elements, their tensions and their emancipatory potential in the face of social, cultural and socio-environmental contradictions arising from the hegemonic model of development. The authors’ hypothesis is that these two projects can be worked on in an integrated manner, seeking to aggregate and articulate their emancipatory potential, in view of a society based on the interrelationship between human rights and nature’s rights. The methodology used was bibliographical research, linked to the empirical observation of the dialectical process of social praxis around human and nature’s rights. In view of the analyses and reflections developed, it was concluded that the hypothesis was confirmed, with the affirmation of the human rights and nature project, with its guiding potential in the face of the contemporary challenges of realizing human and nature’s rights.

Keywords:
human rights; human and nature’s rights; rights of nature; society project

Resumen

Este trabajo pretende poner de relieve dos construcciones teóricas, políticas y culturales, los derechos humanos y los derechos de la naturaleza, frente a los retos y contradicciones de la modernidad basada en el antropocentrismo y la racionalidad económica instrumental. Considerándolos como proyectos de sociedad, intentamos rescatar sus elementos caracterizadores, sus tensiones y su potencial emancipador frente a las contradicciones sociales, culturales y socioambientales resultantes del modelo hegemónico de desarrollo. La hipótesis de los autores es que esos dos proyectos pueden ser trabajados de forma integrada, buscando agregar y articular su potencial emancipatorio, con vistas a una sociedad basada en la interrelación entre los derechos humanos y los derechos de la naturaleza. La metodología utilizada fue la investigación bibliográfica, vinculada a la observación empírica del proceso dialéctico de la praxis social en torno a los derechos humanos y los derechos de la naturaleza. A la luz de los análisis y reflexiones realizadas, se confirmó la hipótesis, con la afirmación del proyecto de los derechos humanos y de la naturaleza, con su potencialidad orientadora frente a los desafíos contemporáneos para la realización de los derechos humanos y de la naturaleza.

Palabras clave:
derechos humanos; derechos humanos y de la naturaleza; derechos de la naturaleza; proyecto de sociedad

Introdução

Observando a realidade mundial e, de maneira mais próxima, a da América Latina e do Brasil, evidenciam-se constatações como a crescente desigualdade social, o predomínio do econômico sobre outros aspectos fundamentais da vida e a crise ambiental sem precedentes. Esse panorama demonstra a ação do antropocentrismo e do modelo econômico e de desenvolvimento hegemônico, que apontam, entre suas principais características, a vinculação a uma racionalidade econômica e instrumental com o desenvolvimento que não considera os direitos humanos e a desconsideração da natureza.

Todos esses aspectos levam ao que se tem apontado como uma crise da modernidade ou do paradigma da modernidade, indicando a necessidade de constituição de um novo modelo, que seja pós-moderno para alguns e, para outros, um paradigma ecocêntrico.

Nesse contexto, parece razoável apontar igualmente a possível crise dos projetos políticos tradicionais de sociedade: o liberalismo e o socialismo levando a uma provável emergência de novos projetos políticos de sociedade, que tragam em si algum elemento utópico ou norteador, que possam fazer face a essas contradições e aos desafios sociais, políticos e ambientais da realidade hodierna global.

Nessa perspectiva, dois processos têm se mostrado com potencial para conduzir elementos fundamentais de resposta a essa demanda (a busca e a necessidade de um projeto de sociedade emancipatório): o processo dos direitos humanos e, mais recentemente, o processo do que, na América Latina, foi nomeado direitos da natureza, pautando-se na ideia de reaproximação da humanidade com a natureza, cuja experiência sustentadora é a teoria do buen vivir (teoria do bem viver, em português).

Pretende-se, neste texto, resgatar alguns dos elementos caracterizadores desses dois processos ou desses projetos de sociedade, analisando seu potencial emancipatório, em vias de uma transformação necessária, diante das contradições apontadas. Acreditam os autores na hipótese de que se trata de dois projetos que dialogam entre si em suas realidades e alternativas emancipatórias, em vista de uma sociedade pautada na interdependência entre os direitos humanos e os direitos da natureza. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, vinculada à observação empírica do processo dialético da práxis social em prol dos direitos humanos e dos direitos da natureza.

Em primeiro lugar, destacou-se o processo de constituição dos direitos humanos, sua perspectiva coletiva, as tensões e disputas em torno desses direitos e de sua efetividade, bem como sobre suas potencialidades como um projeto emancipatório de sociedade. Na sequência, o texto ocupa-se dos direitos da natureza que vêm sendo construídos pela experiência dos povos tradicionais, sob o olhar de uma nova racionalidade, a racionalidade socioambiental, cuja centralidade está no universo, que grita por cuidado, porque já não mais suporta ser explorado pelo modelo capitalista de produção extrativista. Por fim, analisam-se elementos para a aproximação e a articulação desses dois campos, apontando alguns norteamentos para uma política dos direitos humanos e da natureza.

1 O processo e a constituição dos direitos humanos como projeto de sociedade

Parte-se, aqui, da constatação de uma disputa em torno da compreensão epistemológica sobre os direitos humanos, o que evidencia uma busca por reduzir o potencial político e transformador desses direitos, o que permite inferir sua relevância para uma possível transformação das relações de poder nas sociedades contemporâneas.

1.1 Os direitos humanos como construção coletiva da sociedade

Ponto inicial a ser destacado é que os direitos humanos são o resultado de um processo social-histórico (CASTORIADIS, 1982CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. 2. ed. Tradução: Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.) e que suas bases, a partir da modernidade, podem ser consideradas em decorrência da estruturação e do avanço do capitalismo, com suas contradições sociais intrínsecas.

Assim, por um lado, desde o século XVII, na Europa, dá-se com John Locke a afirmação do indivíduo diante do poder do Estado, o que se desenvolveu como base para os valores liberais, na defesa da propriedade, da vida e da liberdade (MELLO, 1991MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, F. C. (org.). Os clássicos da política. v. 1. São Paulo: Ática, 1991.). Em outra direção, e mediante as contradições que avançavam com o capitalismo, evidenciadas na forte desigualdade social, configuram-se, pelo menos desde meados do século XVIII, lutas populares e sociais, tendo à frente os trabalhadores, e apoiadas por outros atores sociais, em prol de justiça social e igualdade diante das desigualdades (ROUSSEAU, 1985ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução: Iracema G. Soares e Maria C. R. Nagle. Brasília, DF: UnB, 1985.).

Essas lutas continuaram, e até o início do século XX vivenciaram-se momentos de avanços, inclusive com processos revolucionários, como o da Comuna de Paris, em 1871, mas também de retrocessos, com contraofensivas dos poderes instituídos. Fato é que, durante todo aquele período, observaram-se a organização e as lutas dos trabalhadores, que já não estavam limitadas à Europa, mas que foram se espalhando pelo mundo, até que a Revolução Russa de 1917 levou à criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como resultado da articulação de países liberais para evitar uma mobilização mais radical dos movimentos de trabalhadores, que finalmente reconhecia como direitos as reivindicações seculares de movimentos e lutas.

Ora, outras articulações e movimentos em torno de grupos ou parcelas da sociedade, também decorrentes de situações históricas de opressão, discriminação e vulnerabilidades, foram levando a lutas específicas que, mesmo tendo início em alguma realidade local, regional ou nacional, logo encontravam ressonância em outras partes do mundo, pela similitude dos processos de opressão e de busca de manutenção do poder pelo mundo. Entre estas, destacam-se como exemplo as lutas das mulheres, buscando reconhecimento e igualdade de gênero, em um mundo dominado pelos homens, por meio de uma cultura machista.

Outro campo de lutas opunha-se à discriminação racial dos negros e, posteriormente, de outros povos, em várias partes do mundo, algo que levou ao reconhecimento da igualdade racial dos povos e de suas culturas. Do mesmo modo, seria possível apontar outros campos de lutas e reivindicações de direitos, como o que se estabeleceu em torno da questão ambiental, assim como setores da sociedade – crianças, idosos e outros – que seriam reconhecidos no contexto dos direitos humanos, seja na Declaração Universal de 1948, seja em documentos posteriores da ONU e/ou em Estados nacionais.

Entretanto, o que se pode reafirmar a partir dessas indicações é que o processo de constituição dos direitos humanos é sócio-histórico e coletivo, não se limitando ao momento de reconhecimento jurídico-institucional, que é apenas parte desse processo, que continua em aberto e dependendo da mobilização coletiva para sua implementação e efetivação.

1.2 A disputa em torno da compreensão sobre direitos humanos

Anteriormente, destacaram-se as origens liberais e socialistas na própria constituição dos direitos humanos, algo apontado por Bobbio (1992BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução: Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.) como direitos incompatíveis, apesar do consenso alcançado no texto de 1948. Entretanto, a despeito da inviabilidade política, que se evidenciou na ONU, de aprovação de um único pacto após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a afirmação da indivisibilidade e interdependência entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, isto é, entre os direitos reafirmados nos dois pactos internacionais, foi ressaltada na Proclamação de Teerã (1968) e na Declaração de Viena (1993).

Assim, percebe-se uma divisão política na forma de compreensão dos direitos humanos que se manifesta na ONU e seus Estados-membros, a ponto de se falar em visões hegemônica e contra-hegemônica dos direitos humanos (SANTOS, 2013SANTOS, B. S.; CHAUÍ, M. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.), levando a diferentes construções epistemológicas que fundamentarão essas disputas.

Na visão hegemônica, tem-se a manutenção da separação, com priorização dos direitos civis e políticos, ou seja, de sua visão liberal, levando a uma abstração do conjunto desses direitos, já criticada por Marx (2010MARX, K. Sobre a questão judaica. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.). Por outro lado, na visão contra-hegemônica, aborda-se a perspectiva de uma construção coletiva e sócio-histórica dos direitos humanos, considerando-os em sua articulação, integração, indivisibilidade e interdependência fundamentais, o que remete, também, a um processo aberto e plural, como já apontado.

A essas duas visões somam-se outras, como a visão legalista, que reduz os direitos humanos ao campo jurídico, e uma visão estrategicamente equivocada, vinculando os direitos humanos à “defesa de bandidos”, esta, infelizmente, ainda muito presente no Brasil, mesmo que tenha sido disseminada desde o início do regime militar de 1964, atendendo aos interesses da ditadura. Essas últimas compreensões, somadas à visão hegemônica, buscam reduzir o potencial transformador e emancipatório dos direitos humanos, quando considerados de maneira ampla e contra-hegemônica.

Entretanto, essa visão contra-hegemônica, apresentada também como emancipatória, pode ser associada e articulada a um projeto político de sociedade, o que ressalta a dimensão política dos direitos humanos e permite compreender as disputas em torno de sua implementação ou não.

1.3 As disputas e articulações em torno da efetividade (ou não) dos direitos humanos

Pode-se perceber que o acesso a todos os direitos, por todos e todas, ocasionaria uma mudança significativa na estrutura social ou na organização das relações sociais, sobretudo em sociedades marcadas pela desigualdade. Será exatamente em razão da compreensão dessa potencialidade que se estabelecerão disputas na sociedade em torno da efetivação ou não desses direitos e em qual amplitude.

Assim, a disputa já evidenciada na seara epistemológica é mais amplamente uma disputa pelo poder no campo do saber, o que indica que ela se associa a outras dimensões de poder na sociedade: à política, à econômica, à jurídica, à cultural etc. As diferentes compreensões sobre direitos humanos daí decorrentes levam à defesa de processos, mais restritos ou mais amplos, de efetivação desses direitos.

Há que se considerar que a busca por ampliar ou restringir o processo de constituição e de efetivação dos direitos humanos ocorre de maneira articulada em todos esses espaços de disputa pelo poder na sociedade. Assim, uma compreensão restrita ou limitada dos direitos humanos, por exemplo, priorizando os direitos civis e políticos, tentará justificar-se no campo teórico, com consequências sobre os campos político, jurídico, cultural, econômico e social. Por outro lado, uma compreensão ampla desses direitos, considerando sua integralidade e sua construção social, buscará confrontar aquelas mais restritivas igualmente em todos esses espaços.

Assim, em sociedades com grande desigualdade, uma elite terá acesso aos direitos humanos, ao passo que a maioria da população terá seus direitos restringidos ou negados, evidenciando o predomínio da visão hegemônica, essencialmente restritiva e liberal.

Entretanto, o predomínio da visão hegemônica sobre direitos humanos não significa que percepções e práticas contra-hegemônicas não estejam presentes em determinada sociedade. Essas visões e práticas confrontam-se em todos os espaços de poder, sendo a disputa em torno dos direitos humanos essencialmente política.

É assim que se torna possível entender ações, compreensões e práticas em prol da afirmação e do fortalecimento de algumas pautas ou dimensões dos direitos humanos, como aquelas relacionadas à afirmação das diferenças de gênero ou culturais ou aquelas associadas à questão racial ou ambiental. Todas essas são realidades nas quais se evidencia um processo dialético, com confrontações envolvendo diversos atores, mas podendo gerar avanços e retrocessos.

1.4 Direitos humanos como projeto de sociedade: reafirmando potencialidades

É nesse contexto de disputas em torno dos direitos humanos que parece ainda mais fundamental afirmar a perspectiva política desses direitos e a potencialidade de sua compreensão como um projeto de sociedade.

Desde o fim do século XX tem-se analisado e discutido se os direitos humanos seriam um projeto norteador para as sociedades, mas, apesar da indicação positiva a essa questão em Marcel Gauchet (2002GAUCHET, M. La démocratie contre elle-même. Paris: Gallimard, 2002.) e em Gustav Massiah (2011MASSIAH, G. Une stratégie altermondialiste. Paris: La Découverte, 2011.), e com certas condicionantes em Boaventura de Sousa Santos (2006SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.), fato é que não se tem avançado muito teórica e politicamente diante dessa possibilidade, como registrado em Pinto (2014PINTO, J. B. M. Os direitos humanos como um projeto de sociedade emancipador. In: SEMINÁRIO NACIONAL DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E DESENVOLVIMENTO, 1, 2012, Aracaju. Anais [...]. Aracaju: Instituto Braços, 2014. p. 315-344.; 2015PINTO, J. B. M. Os direitos humanos como um projeto de sociedade. In: PINTO, J. B. M.; SOUZA, E. G. (org.). Os direitos humanos como um projeto de sociedade: desafios para as dimensões política, socioeconômica, ética, cultural, jurídica e socioambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 5-33.; 2018PINTO, J. B. M. (org.). Direitos humanos como projeto de sociedade: caracterização e desafios. v. 1. Belo Horizonte: Instituto DH, 2018.).

Que os direitos humanos sejam resultado de um processo sócio-histórico e coletivo, aberto a novas realidades que envolvam o humano, como a ambiental, evidenciada nas últimas décadas em função da crise que apontou novas contradições do modelo econômico e de desenvolvimento hegemônico, já seria algo a ser ressaltado em termos de potencialidade.

Entretanto, por sua correlação política já pontuada, e pelas práticas sociais e de lutas por acesso a esses direitos, vivenciadas de diferentes maneiras em realidades concretas pelo mundo, pode-se destacar a potencialidade desse projeto dos direitos humanos, compreendidos em sua dimensão ampla, para o enfrentamento das tensões e contradições resultantes do modelo econômico e de desenvolvimento hegemônico, viabilizando, no próprio processo dialético, o avanço da emancipação social e política e do acesso efetivo a esses direitos por todas e todos.

O projeto dos direitos humanos, tendo se constituído no social-histórico e conquistado reconhecimento institucional, sem se limitar a este, e abarcando dialeticamente valores de diferentes projetos de sociedade, traz em si a potencialidade e as condições para ser um norteador amplo diante da perspectiva adversarial da política (MOUFFE, 2011MOUFFE, C. En torno a lo político. Tradução: Soledad Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2011.), como fica evidenciado na explicitação de suas características por Pinto (2015, p. 27PINTO, J. B. M. Os direitos humanos como um projeto de sociedade. In: PINTO, J. B. M.; SOUZA, E. G. (org.). Os direitos humanos como um projeto de sociedade: desafios para as dimensões política, socioeconômica, ética, cultural, jurídica e socioambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 5-33.):

Primeira, é um projeto que articula e integra as bases de diferentes projetos de sociedade que o precederam, sendo, portanto, plural. Segunda, os direitos humanos, enquanto projeto de sociedade, não se limitam a sua estrutura institucional e internacional, mas estão vinculados às produções sócio-históricas globais, envolvendo, portanto, construções locais, nacionais e internacionais dos poderes sociais e dos estados nacionais. Terceira, é um projeto ético e político e, como tal, um projeto de organização da sociedade, envolvendo todas as dimensões fundamentais do ser humano e de suas relações no mundo. Quarta, apesar de seu aspecto direcional e utópico, ele é um projeto multidimensional e aberto, que se desenvolve enquanto um processo. Quinta, o projeto dos direitos humanos é uma síntese dialética, que integra e supera os projetos de sociedade precedentes. Sexta, como todo projeto amplo de sociedade, o projeto dos direitos humanos suporta uma dimensão ideológica, ao mesmo tempo em que se vincula a um processo de implantação e efetivação na sociedade. Sétima, tem um forte potencial emancipatório que exige, para sua efetivação, metodologias e compreensões adequadas dos direitos humanos. Oitava, sua adequação a questões fundamentais e aos movimentos sociais próprios de seu tempo. E nona, o envolvimento e a identificação da grande maioria dos grupos e movimentos sociais emancipatórios pelo mundo, assim como de boa parte das pessoas, individualmente e de instituições de toda sorte, com a luta pelos direitos humanos.

Essas características ressaltam as potencialidades dos direitos humanos como projeto político de sociedade, ao mesmo tempo que evidenciam sua abertura para uma construção conjunta com outros projetos igualmente emancipatórios e contra-hegemônicos que possam vir a fortalecer as possibilidades de avanço efetivo no acesso a todos os direitos por todas e todos pelo mundo.

2 Direitos da natureza – um projeto socioambiental em construção

Neste ponto, os autores dedicam-se a visitar, em uma leitura ecocêntrica, o processo de construção dos direitos da natureza pelo diálogo de saberes que vem reconfigurando uma nova racionalidade, a racionalidade ambiental, cujo campo de debate perpassa uma crítica ao modelo de racionalidade ocidental que, sem sombra de dúvidas, desde sua origem, conta com a resistência dos povos tradicionais à cristalizada ideia de separação entre humanidade e natureza, que, por consequência, descartou a pluralidade de saberes que formam a substância da racionalidade ambiental.

2.1 Meio ambiente e direitos da natureza

Enrique Leff, no campo da epistemologia ambiental, busca reconstruir a ideia de ambiente a partir da hipótese de que ele foi exterminado pelo que chamou de círculo da racionalidade das ciências. Assim, para o autor, quando se fala de ambiente, está-se no campo da complexidade do mundo e, por isso, trata-se de “um saber as formas de apropriação do mundo e da natureza, através das relações de poder inscritas nas formas dominantes do conhecimento” (LEFF, 2012, p. 16LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.). Fazendo o percurso da complexidade do conhecimento, o autor chega ao que denominou “saber ambiental” nesse processo de complexidade.

A década de 1960, conhecida como marco da crise ambiental, sob o olhar da ciência, transforma o ambiente em um objeto de conhecimento disputado por pelo menos duas compreensões distintas. A primeira é a ideia antropocêntrica de que o ambiente é formado por bens ambientais que precisam ser protegidos. Contudo, está-se falando de bens, coisas que carecem de cuidado em benefício das exigências humanas e, por isso, justifica-se o crescimento econômico extrativista sem precedente.

A segunda ideia é a de que, sendo a natureza portadora de vida, ganha importância a proteção de sua existência, o que se distancia e muito da primeira ideia, porque aqui se consagra a compreensão de que todos os seres vivos são portadores de dignidade e, portanto, portadores do direito fundamental à vida. Nesse contexto é que vem sendo constituída a racionalidade socioambiental como espaço justificador do direito à vida da humanidade e da natureza. Aqui, vale recordar Rios (2020RIOS, M. Tudo está interligado: o rio, a comunidade e a terra. In: LACERDA, L. (org.). Direitos da natureza: marcos para a construção de uma teoria geral. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. p. 113-130.) para compreender que a resistência da radicalidade dos povos tradicionais está centrada na ideia de que tudo está interligado: a terra, a comunidade e a natureza, e tem-se a compreensão que se distancia da ideia de separação entre cultura e natureza.

A autora defende a ideia de que os povos tradicionais anunciam e acreditam que “podemos amar a natureza a ponto de mudar a direção do coração para o cuidado da Casa Comum” (RIOS, 2020, p. 114RIOS, M. Tudo está interligado: o rio, a comunidade e a terra. In: LACERDA, L. (org.). Direitos da natureza: marcos para a construção de uma teoria geral. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. p. 113-130.), qual seja, o universo.

Leff (2012, p. 17LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.) compreende que, pensando sob essa ótica, tem-se uma mudança do ponto de leitura, até então aprisionado, com a pretensão de “subscrevê-lo, codificá-lo e administrá-lo dentro dos padrões da racionalidade científica e econômica da modernidade”.

Na mesma direção, Santos (2002SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, out. 2002.) apresenta a sociologia das ausências e das emergências, na contramão da modernidade, e reconhece que as ausências da modernidade e de conhecimentos tradicionais e culturais – aqui alargados pelos autores –, para a convivência dessas populações com a natureza de modo harmonioso, resistiu à ausência moderna apontada na atualidade como condição epistemológica para o reconhecimento dos direitos da natureza. Nesse sentido, pode-se concluir, segundo Santos (2002SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, out. 2002.), que o trabalho da tradução dessa resistência é fundamental para a construção de alternativas à crise ecológica ambiental que se atravessa.

Afirma o autor que “a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental reconhece e considera importante” (SANTOS, 2002, p. 237SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, out. 2002.). Nesse contexto, ele propõe “combater o desperdício que se nutrem as ideias que se proclamam que não há alternativas” (SANTOS, 2002, p. 238SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, out. 2002.). Assim, trata-se de duas lutas, direitos humanos e direitos da natureza, que partilham do mesmo processo de exclusão reconhecido pelo autor como campos de disputas teóricas e práticas, mas, ao mesmo tempo, como resistência ao mesmo modelo de racionalidade antropocêntrica que fortalece a cada minuto a crise ambiental.

Nesse contexto, Leff (2012LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.) propõe repensar o conceito de ambiente, que, segundo ele, requer articulação entre as ciências para gerar um princípio geral, um método integrador do conhecimento disciplinar com vistas a um saber que ultrapassa o campo das ciências e questiona a racionalidade moderna. Tal pensamento remete à ideia de que se trata de um espaço – o ambiente – tratado pela ciência como portador de bens a serem protegidos, como assim reconhece o Direito Ambiental, cuja identidade está ausente do conhecer moderno e, portanto, carece da necessidade de revisão a partir da tese de que se trata de um espaço que está fora das ciências, está no campo da interdisciplinaridade científica, não é objeto de uma ciência, mas, sim, espaço de encontro, de diálogo entre elas.

Nesse sentido, segundo Leff (2012LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.), o conceito de ambiente é construído a partir da exterioridade do conhecimento, ele se constrói ignorando o real, seu outro modo de conhecer e, assim, terá de se afastar da positividade de seu conhecimento. E, aqui, o caminho a ser trilhado passa por uma estratégia de poder no processo de apropriação da natureza. O saber ambiental, nessa perspectiva, “impede a conversão da crítica em dogma e permite que se continue a questionar o saber a partir de todas as frentes e projetá-lo para todos os horizontes” (LEFF, 2012, p. 19LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.). E, assim, afirma o autor, ser a epistemologia ambiental “uma política do saber que tem por ‘finalidade’ dar sustentabilidade a vida” (LEFF, 2012, p. 20LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.). Assim é que se tem a oportunidade de reconhecimento do ausente que é trazido à presença, redirecionando a ideia de que um futuro sustentável nasce de um novo saber que mora na externalidade científica, constrói-se uma nova racionalidade, e é assim que a história se abre para um futuro sustentável.

Os direitos da natureza, nesse contexto, estão sendo espaço de emergências pelo reconhecimento de três ideias principais: (a) de que foram pensados como ausentes; (b) de que são agora trazidos para o espaço da emergência porque a resistência sempre é marca da tradicionalidade; e (c) o déficit da crise ambiental reconhecida pela própria modernidade trouxe o debate à tona. Dessa maneira, Acosta (2016ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.) constrói uma alternativa ao antropocentrismo na teoria do bem viver que busca reconhecer nas populações tradicionais potencialidades para trazer uma nova oportunidade de mundo ecologicamente sustentável, cuja força motriz é a sustentabilidade da vida, de todas as vidas, da humanidade e da natureza.

Para o autor, o bem viver é “uma tarefa de (re)construção que passa por desarmar a meta universal do progresso em uma versão positivista e do desenvolvimento enquanto direção única de saber em sua visão mecanicista do crescimento econômico” (ACOSTA, 2016, p. 77ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.). Assim, a aposta da modernidade em um modelo de racionalidade que acredita que o mundo com uma única direção dá força a um modelo econômico extrativista, está vencida e, portanto, buscar novas alternativas, como a do bem viver, além de ser possível, acaba por redirecionar a principiologia moderna, reconhecendo a centralidade da vida, em primeiro lugar, e a partir dessa centralidade serão possíveis novas alternativas de cuidado com a natureza e com a humanidade. Enfim, no bem viver “está implícito um grande passo revolucionário que nos leva a caminhar de visões antropocêntricas a visões sociobiocêntricas, assumindo as consequências políticas, econômicas, culturais e sociais desta transição” (ACOSTA, 2016, p. 107ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.).

Em síntese, enquanto Leff se dedica a desmontar os significados únicos, o moderno, dos conceitos, por exemplo, do ambiente, para chegar à alternativa de um novo saber ambiental, Acosta parte do mesmo cerne – exclusão social das populações tradicionais e, portanto, de saberes que acabam por fazer o divórcio entre humanidade e natureza, para uma alternativa econômico-social e ecológica de outra possibilidade de mundo.

São contextos abertos, portanto, à construção de alternativas econômicas e socioambientais que, mesmo considerando as inúmeras dificuldades de construção e implementação, têm, tanto no campo dos direitos humanos quanto no campo dos direitos da natureza, experiências emancipatórias, conforme a compreensão de Santos, que inscrevem, na contramão da história ocidental, alternativas que vão dando corpo ao socioambientalismo inclusivo das diversas culturas e saberes.

2.2 Experiências socioambientais conformadoras da lógica de saber, conhecer e proteger da natureza

A lógica de saber, conhecer e proteger a natureza tem como pilar um modelo de conhecimento que se distancia em muito do conhecer que sustenta a lógica moderna. O conhecer moderno tem como cerne a ideia de que o mundo tem uma única direção, uma única visão, que caracteriza a sustentabilidade de sua existência, qual seja: a direção mercadológica. Já o conhecer ecológico tem como cerne a complementariedade entre natureza e humanidade.

A lógica ecológica, reconhecida por Santos, Leff e Acosta, tem sua jovem história de afirmação pela racionalidade ambiental, cujo pilar é a ecologia de saberes em diálogo permanente, plural, e, nesse contexto, para Leff (2012LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez, 2012.), a ciência tem como desafio a articulação de saberes, culturas e experiências que estão sendo construídas nos campos do Legislativo e do Judiciário e no diálogo interdisciplinar entre as diversas áreas de conhecimento. É nessa paisagem que Acosta apresenta a teoria do bem viver. Leff, por sua vez, apresenta o saber ambiental e, por fim, Santos discorre sobre a sociologia das emergências e o trabalho de tradução pelo que denominou ecologia de saberes.

Essa construção teórica, oriunda do reconhecimento da ecologia de saberes, tem fortalecido sobremaneira diversas experiências emancipatórias em pelo menos três direções: legislativa, jurídica processual e teórica, marcadas pelo protagonismo dos cidadãos das comunidades tradicionais, de pesquisadores, de tribunais constitucionais e parlamentos.

No campo legislativo, tem-se o reconhecimento dos direitos da natureza pelas constituições do Equador (2008), da Bolívia (2009), dos municípios de Bonito (2018) e Paudalho (2019), ambos no estado de Pernambuco, Florianópolis (SC) (2019) e Serro (MG) (2022). Nesse sentido, o diferencial da Constituição do Equador (2008) acabou por fortalecer o Estado Democrático de Direito daquele país. Na interpretação de Maldonado-Torres (2019, p. 104MALDONADO-TORRES, N. Da colonialidade dos direitos humanos. In: SANTOS, B. S.; MARTINS, B. S. O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 93-120. (Epistemologias do Sul, v. 2).), é o reconhecimento de que “para os povos andinos, a natureza, longe de ser um recurso natural incondicionalmente disponível e apropriável, é a terra mãe [Pachamama, em quéchua], origem e fundamento da vida”. A da Bolívia, por sua vez, segue a mesma direção, reconhecendo a Pachamama em referência à experiência histórica dos povos indígenas daquele território, em sua organização social Suma Qamana (viver bem). Essas experiências passaram a encorajar a luta local brasileira, como os municípios de Bonito, Paudalho, Florianópolis e Serro sob o manto dos princípios da harmonização e da interdependência entre humanidade e natureza.

No campo jurídico-processual, destacam-se, entre outras, a decisão histórica da Corte Constitucional Colombiana, em 2018, reconhecendo a Amazônia Colombiana como portadora de direitos intrínsecos, e o Parlamento Neozelandês, em 2017, que reconheceu o Rio Whanganui como sujeito de direitos, cujo fundamento se formou com a experiência do povo Maori em sua relação com o rio, espaço sagrado e, portanto, digno de direitos intrínsecos. Por último, a decisão da Espanha, que reconhece status de pessoa ao Mar Menor (2022), constitui um precedente importante no cenário europeu, porque tem como centralidade a proteção do ecossistema. Por fim, no campo acadêmico-científico, há diversas pesquisas em direção ao reconhecimento dos direitos da natureza.

Assim, pode-se afirmar que há uma nova história em construção sobre a sobrevivência do mundo, fortemente ameaçado pela racionalidade instrumental e pela ciência moderna, segundo a qual a natureza é objeto de exploração econômica, o que tem sido fortemente questionado a partir dessa perspectiva contra-hegemônica em defesa da natureza.

3 O projeto dos direitos humanos e da natureza: um projeto político fortalecido

Os aspectos supra-apontados evidenciam o potencial dos direitos humanos e dos direitos da natureza como constituidores de novas formas de compreensão e de atuação no mundo, com maior valorização da vida dos seres humanos e da natureza em geral.

Entretanto, pôde-se constatar que a defesa de todo ser humano e da natureza é objeto também de conflitos, tensões e contestações por aqueles que buscam manter o modelo econômico e de desenvolvimento hegemônico, que tem levado a contradições decorrentes exatamente – e em sentido oposto – da exploração do ser humano e da natureza, com forte desigualdade social e exclusão de boa parte da população mundial ao acesso a direitos mínimos, e com uma crise ambiental que, não sendo efetivamente confrontada, levará à destruição paulatina da vida, da natureza e dos seres humanos.

Nesse processo de confrontações, o projeto dos direitos humanos, apesar de sua potencialidade emancipatória, encontra resistências e somente pode avançar em seu potencial contra-hegemônico se for mais claramente assumido como projeto político amplo, com possibilidade de transformação radical das relações políticas, sociais, de trabalho e outras, nas diferentes sociedades. A luta pela vida, pela natureza e pela humanidade apresenta-se, nessa paisagem, com potencial importante na construção de um novo projeto de sociedade.

Por outro lado, sendo um projeto que pode captar novas demandas e reivindicações emancipatórias da sociedade, e considerando os avanços das lutas, sobretudo a partir da América Latina, por reconhecimento e garantia dos direitos da natureza e da intra e interculturalidade, atualmente o projeto dos direitos humanos pode ser fortalecido se trabalhado em articulação com o projeto, também político, do bem viver, que implica a defesa intransigente dos direitos da natureza.

Assim, é possível e mais adequado falar, agora, em um projeto dos Direitos humanos e dos direitos da natureza, ou simplesmente, em um projeto dos direitos humanos e da natureza. Essa articulação de propósitos, de concepções de vida, em um único projeto, poderá ocasionar o fortalecimento de ambos, com maior reconhecimento dos limites da perspectiva antropocêntrica, para alcançar uma sociedade socioambiental ou ecocêntrica, mas também com o reconhecimento de que cabe ao próprio ser humano e suas instituições, inclusive as do Estado, garantir a promoção, a defesa e a proteção da vida de todos os seres vivos, dos quais o ser humano é parte fundamental, junto com os outros, para as presentes e futuras gerações.

Nesse sentido, tem-se um projeto fortalecido, que congrega outros atores e outros valores, com as perspectivas políticas, mas também ética e culturalmente ampliadas, levando a uma revalorização do econômico, não em confronto, mas em correlação com a vida. Portanto, esses são desafios e possibilidades que se colocam para a humanidade e para as sociedades no contexto atual.

3.1 Norteamentos iniciais para uma política de direitos humanos e da natureza

Como indicado, o projeto dos direitos humanos e da natureza tem um potencial forte para o enfrentamento das contradições e tensões atualmente vivenciadas em função do modelo econômico e de desenvolvimento hegemônico. Porém, as sociedades específicas, em âmbito local, regional e nacional, têm o desafio de avançar na compreensão do significado da implementação de uma política dos direitos humanos e da natureza, para cada sociedade e para o planeta, e em uma perspectiva inversa, na compreensão, também, dos riscos da não implementação dessas mudanças.

Não sem conflitos, alguns países têm avançado em suas políticas de direitos humanos, assim como em suas políticas para a garantia dos direitos da natureza. Entretanto, o desafio está em pensar e implementar a integração dessas políticas públicas, o que exige avanços na compreensão mais adequada dos direitos humanos, mas também na percepção da relevância da natureza nas sociedades, para que esse avanço epistemológico e cultural – que normalmente se dará pela explicitação e confrontação das contradições pelos grupos e movimentos organizados da sociedade – possa traduzir-se, também, em avanços político-jurídicos e institucionais.

Por sua vez, sendo um processo dialético, será o avanço da percepção política do potencial emancipatório do projeto de sociedade que poderá levar à ampliação das potencialidades de enfrentamento dos modelos divergentes que têm desconsiderado a vida do ser humano e da natureza.

Somente o avanço dessa percepção política em favor da vida poderá evitar retrocessos em termos de direitos humanos e de proteção ambiental. Veja-se o exemplo da população brasileira e do governo Bolsonaro, que desde o processo eleitoral já dava sinais claros de uma postura que associava estratégias de populismo de direita (MOUFFE, 2018MOUFFE, C. For a left populism. London-New York: Verso, 2018.), com a divulgação de informações falsas. Porém, a população que o elegeu não foi capaz de perceber a amplitude das consequências do que apoiava ou, simplesmente, colocou a racionalidade instrumental e o interesse econômico acima de outros valores, como aqueles defendidos pelo projeto dos direitos humanos e da natureza.

Assim, diante de políticas públicas e governos atuando em forte dissociação com os direitos humanos e da natureza é que se evidencia mais claramente a relevância de outro projeto de sociedade atento à preservação da vida, dos seres humanos e da natureza, o que se defende, que poderá se concretizar mais efetivamente com o projeto dos direitos humanos e da natureza.

Desse modo, assim como no Brasil pós-Bolsonaro, os governos em geral, pela América Latina e pelo mundo, têm o desafio e a possibilidade de implementar um projeto político integrado de direitos humanos e natureza, o que deverá permitir, em médio e longo prazos, políticas públicas que garantam a transversalidade dos direitos humanos e da questão ambiental, fazendo que essa política em prol da vida se fortaleça na sociedade, levando à manutenção de políticas públicas que passem a ser políticas de Estado, isto é, que sejam integradas pelo conjunto das instituições públicas, ampliando sua observância e o acesso por todos e todas.

Considerações finais

Partindo de algumas contradições do processo de desenvolvimento proposto pela modernidade, que levou, fundamentalmente, à desigualdade social pelo mundo e à crise ambiental, decorrente do modelo e da racionalidade instrumental econômica como norteadores, buscou-se resgatar elementos caracterizadores de dois processos, considerados também projetos de sociedade: o dos direitos humanos e o dos direitos da natureza, considerando suas potencialidades emancipatórias, sobretudo quando analisados como interdependentes.

Em um primeiro momento, analisou-se o processo de constituição dos direitos humanos e algumas de suas tensões e disputas sociais, até se concretizar como referência normativa para a sociedade contemporânea, com base nos documentos internacionais da ONU e da assimilação desses valores na grande maioria dos ordenamentos jurídicos pelo mundo.

Apontaram-se, ainda, as disputas em torno da compreensão desses direitos, muito relacionadas à busca de limitação ou de ampliação de sua efetividade, para, finalmente, destacar os avanços em termos de potencialidade dos direitos humanos, quando encarados a partir da perspectiva de um projeto emancipatório de sociedade, assumindo e superando dialeticamente a potencialidade de projetos políticos precedentes.

Em um segundo momento, tratou-se dos direitos da natureza também como um projeto de sociedade, que vem se estabelecendo sobretudo a partir das construções decorrentes dos povos tradicionais da América Latina, buscando o estabelecimento do cuidado com a natureza, sob uma perspectiva ecocêntrica, norteada por uma racionalidade socioambiental e do cuidado com a Terra, nossa Casa Comum, integrando e valorizando as culturas e saberes promotores dessa nova compreensão, principalmente no contexto de crise ambiental. Também este será um projeto em confrontação com o antropocentrismo e sua racionalidade econômica instrumental, o que indicará tensões, disputas e a necessidade de articulação e integração com outras perspectivas contra-hegemônicas e emancipatórias.

Conclui-se destacando a relevância e a potencialidade de se considerar a articulação entre o processo de luta pelos direitos humanos e do processo dos direitos da natureza, com base na filosofia do bem viver, para a constituição e a articulação de um projeto mais amplo e fortalecido: o projeto de sociedade dos direitos humanos e da natureza.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2022
  • Aceito
    17 Maio 2023
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