RESUMO
A intervenção do Estado na economia e as políticas públicas governamentais costumam ser vistas nas economias periféricas como um dos principais fatores do processo de desenvolvimento. Segundo a maioria dos historiadores, o período do Estado Novo teve grande importância na evolução recente da economia brasileira, representando uma virada do sistema primário-exportador para o atual, baseado no setor industrial e no mercado interno. O artigo pretende testar essas hipóteses em termos quantitativos e qualitativos, comparando a evolução das finanças públicas brasileiras entre 1938 e 1945 com os oito anos anteriores e posteriores (de 1930 a 1937 e de 1946 a 1953).
PALAVRAS-CHAVE: História econômica do Brasil; Estado Novo; Vargas; orçamento público
ABSTRACT
State intervention in the economy and governmental public policies are usually regarded in peripherical economies as one of the main factors in the development process. According to most historians, the period of the Estado Novo had a great importance in the recent evolution of the Brazilian economy, representing a turning point from the primary-export system to the present one, based on the industrial sector and the internal market. The article intends to test these hypotheses in quantitative and qualitative terms, by comparing the evolution of Brazilian public finance between 1938 and 1945 with the previous and the ulterior eight-year periods (from 1930 to 1937, and from 1946 to 1953).
KEYWORDS: Economic history of Brazil; Estado Novo; Vargas; public budget
O desenvolvimento econômico autossustentado de países e regiões da periferia resulta via de regra em boa parte da intervenção do Estado, entre cujos instrumentos mais importantes merece ser destacada a política fiscal. A influência das finanças públicas sobre o processo de desenvolvimento se faz sentir tanto no lado da receita, através da carga tributária do setor privado, afetando sua capacidade de acumulação, como no das despesas governamentais - que representam um importante componente da demanda agregada. Tende a haver, portanto, um alto grau de correlação entre o crescimento do orçamento público e o desenvolvimento da economia como um todo, entendido como um processo não apenas de expansão quantitativa, mas também - e principalmente - de transformações qualitativas e estruturais.
Conforme a maioria dos historiadores, o período do Estado Novo (1937 a 1945) representou um importante marco na evolução recente da economia brasileira. Trata-se de uma época de grandes e profundas mudanças, na qual se acentuou a intervenção do Estado na economia. Dentro de tal contexto, parece óbvio que as finanças públicas, especialmente as do governo da União, tenham desempenhado papel de grande importância. O presente trabalho procura testar esta hipótese, em termos quantitativos e qualitativos, mediante uma comparação das finanças públicas do país entre 1938 e 1945, época de plena vigência do Estado Novo, com as dos oito anos anteriores (1930 a 1937) e dos oito anos posteriores (1946 a 1953).
Tomando por base os dados empíricos constantes do capítulo 12 das recém-publicadas Estatísticas Históricas do Brasil1, pretende-se analisar, sucessivamente, a evolução das receitas e das despesas governamentais no período mais longo, que vai do início dos anos trinta à primeira metade da década de 1950, com destaque para a fase do Estado Novo. Essa análise tem por objetivos, não apenas identificar e caracterizar as modificações havidas na época, como também detectar as suas principais causas e consequências. Mas, para alcançá-los, é preciso, em primeiro lugar, explicitar os aspectos específicos da conjuntura em que se insere o Estado Novo.
Não obstante sua inegável e duradoura importância política, o Estado Novo constitui apenas uma fase, ou uma etapa, dentro de um período mais amplo de nossa história econômica. Trata-se do período de transição entre uma economia primário-exportadora ainda predominantemente agrária, cujos contornos definitivos se gestaram em meados do século passado, e a economia urbana e industrial de nossos dias, voltada para o desenvolvimento do mercado interno. Os limites cronológicos deste período costumam ser situados, de um lado, no início da década de 1930, quando a economia primário-exportadora baseada no café entrou em definitivo colapso e, do outro, em meados dos anos cinquenta, quando, através da chamada industrialização pesada, tem início o período contemporâneo da economia brasileira.
Dentro desse marco temporal mais amplo, o Estado Novo aparece simultaneamente como uma fase de continuidade e de ruptura. Ele representa uma fase de continuidade porque muitas das suas características estruturais já se encontravam presentes na economia e na sociedade brasileira dos primeiros anos da década de 1930, conforme bem demonstrou Eli Diniz em seu estudo sobre o tema.2 E também porque várias das mesmas características se mantiveram, apesar das aparências em contrário, na fase subsequente do governo Dutra e, em alguns casos, até os nossos dias.3 Ao mesmo tempo, representou uma fase de ruptura, na medida em que foi nele que se consolidou, de modo profundo e irreversível, o intervencionismo do Estado na economia não mais apenas na condução da política econômica, mas também no desenvolvimento do próprio setor produtivo.4
Qualquer avaliação de sua performance econômico-financeira deve levar em conta, por outro lado, as peculiaridades da conjuntura internacional na qual surgiu e se desenvolveu o Estado Novo. Este regime se iniciou ainda na fase tênue e descontínua recuperação dos efeitos das crises de 1929-30 e se encena ao final da II Guerra Mundial, a qual, na maioria das economias periféricas e fortemente dependentes do comércio exterior, representou uma fase de relativa estagnação em face dos anos do pré-guerra e pós-guerra.
Foi a referida conjuntura e, particularmente, a situação de crise nas economias capitalistas centrais, seguida pela II Guerra Mundial, que possibilitou ao Brasil equacionar os problemas de sua Dívida Externa, primeiro através do esquema Oswaldo Aranha (contingenciamento dos desembolsos às receitas cambiais) e depois por meio do esquema Souza Costa (moratória branca por falta de saldos na Balança Comercial). Os pagamentos dessa dívida só foram reiniciados - com deságio - durante a guerra, graças à elevação dos preços de nossos produtos de exportação e à obtenção de crescentes saldos positivos na Balança Comercial.
Comparando a época do Estado Novo com os anos anteriores e posteriores, verifica-se que ela não apresentou comportamento dos mais brilhantes, quer em relação à fase de recuperação da crise (1930 a 1937), quer no que se refere aos anos de contínuo crescimento do pós-guerra. É verdade que esse crescimento se inicia já nos últimos anos do Estado Novo, mas tudo indica que este foi mais importante pelos seus efeitos e frutos a longo prazo do que por sua performance específica. A mesma verificação parece válida com respeito às finanças públicas.
Antes de passar à análise da evolução das mesmas, convém mencionar que a competência tributária da União, dos Estados e dos Municípios passou por poucas transformações na época. É verdade que durante todo o período aqui considerado (1930 a 1953) houve a vigência de nada menos que quatro Constituições: de 1891, 1934, 1937 e 1946. Mas a Constituição em vigor no Estado Novo, a de 1937, pouco inovou em matéria tributária em face das anteriores, particularmente com relação à de 1934. As maiores diferenças podem ser observadas entre as de 1937 e 1946, a qual permaneceria em vigor até o golpe de 1964. É importante notar ainda que várias modificações na competência tributária ocorreram nos intervalos entre uma Constituição e outra, e não através do enunciado das mesmas. Esse foi o caso, por exemplo, do Imposto de Renda, instituído como tributo federal no ano de 1924.
O comportamento das receitas e despesas da União, dos Estados e dos Municípios; todos em valores deflacionados, é apresentado, para o período de 1930 a 1953, na Tabela 1. Os dados se referem à receita arrecadada e à despesa realizada, e não a previsões orçamentárias. Como deflatores utilizaram-se os índices elaborados por Cláudio Haddad5 e pela Fundação Getúlio Vargas.6
Receita e Despesa da União, Estados e Municípios - 1930-1953 (Conto de réis e Cr$ 1.000 constantes de 1939)
Observando os dados da Tabela 1, verifica-se que tanto as receitas como as despesas da União sempre foram maiores que as dos Estados e dos Municípios, ultrapassando inclusive a soma de ambos até o início da década de 1940, e depois entre 1944 e 1949. Com relação às receitas, pode-se observar que a participação da União no total foi aumentando nos anos anteriores ao Estado Novo, mas diminuiu durante sua vigência, favorecendo os governos estaduais. Isto põe em xeque a tese segundo a qual teria havido, durante o Estado Novo, uma crescente centralização tributária por parte do governo federal.
Além de variarem em suas respectivas magnitudes, as receitas e despesas dos três níveis da administração pública apresentam comportamentos bastante diversos com relação às diferenças entre ambas. O maior equilíbrio entre elas tem ocorrido nos municípios, que inclusive apresentam, durante o período em pauta, frequentes situações de superávit ou de reduzido déficit. Exatamente o contrário se dá com os Estados e a União: nos primeiros, houve apenas dois anos de superávit, ambos durante o Estado Novo, enquanto no caso da União, o superávit aparece em quatro anos, todos posteriores ao término do mesmo.
O período anterior ao Estado Novo foi de recuperação da execução orçamentária, tanto para a União quanto para os Estados e-Municípios. Durante o Estado Novo houve, em termos reais, uma estagnação no caso da receita e da despesa da União. Quanto aos Estados, houve uma estabilidade, mas em nível mais elevado do que o anterior, enquanto os municípios tiveram um relativo declínio, particularmente nos anos da II Guerra Mundial. Nos anos subsequentes a esta e ao término do Estado Novo, houve grandes avanços no custeio dos três níveis da administração pública brasileira.
Tanto em nível absoluto como em termos relativos, os maiores déficits sempre foram da União. Antes do Estado Novo, eles ultrapassaram 20% da receita em três anos: 1930 (por causa da revolução de outubro daquele ano), 1932 (o maior déficit do período como um todo, decorrente, em boa parte, da Revolução Constitucionalista de São Paulo) e 1935. Durante o Estado Novo, essa situação se repetiria em 1938 e em 1942 (neste último ano em decorrência da entrada do Brasil na guerra), e nos anos subsequentes, em 1946 e 1950 (com eleições em ambos). No tocante aos Estados, esse nível de déficit só foi alcançado em 4 anos (1930, 1931, 1934 e 1952). No caso dos municípios, nunca se chegou a este nível.
Não se desconhece o fato de que a União pode incorrer em déficits, por possuir capacidade de financiá-los. Os Estados e Municípios, por sua vez, só dispõem de pequena (ou nenhuma) capacidade de financiamento dos seus déficits orçamentários. Além disso, durante o Estado Novo, eles perderam sua autonomia político-administrativa em face da União. Todos os Estados passaram a ser governados por interventores nomeados pelo Governo Federal, perdendo, mesmo os mais fortes, a autonomia financeira que desfrutavam na República Velha. A sucessão dos déficits orçamentários federais foi, no entanto, antes uma decorrência involuntária da situação do país, do que fruto de uma política econômica consciente e deliberada.
Vale a pena registrar que, no caso da União, o déficit nunca foi desejado, e muito menos programado. Neste sentido, é interessante transcrever a seguinte declaração, taxativamente contrária, extraída do relatório de 1933 do Banco do Brasil:
“Por mais tumultuadas que sejam, no momento atual, as opiniões em matéria de ciência econômica - terreno em que são sustentadas as mais contraditórias teorias, e realizadas experiências as mais arriscadas - um ponto pacífico existe, no qual todos estão mais ou menos de acordo: a necessidade do equilíbrio orçamentário. Ainda não houve quem tivesse a coragem de afirmar que, gastando-se mais do que se ganha, se acumulam riquezas”.7
Embora tenha sido feito antes do Estado Novo, esse pronunciamento é da autoria de um dos principais responsáveis pelas finanças públicas daquela época, Artur de Souza Costa (1893-1957), que foi o ministro da Fazenda entre 1934 e 1945. E, o que é ainda mais importante, dele resultou uma série de medidas concretas na política fiscal, com vistas ao equilíbrio orçamentário, enumeradas num documento elaborado em 1943, provavelmente sob a inspiração do mesmo Souza Costa.8 O seguinte trecho do referido documento dá bem uma ideia do espírito que norteou as finanças públicas do governo da União no Estado Novo:
“Importantes reformas foram feitas na legislação tributária do país, com o que se elevou consideravelmente a receita da União. Foram tomadas providências continuadas e rigorosas no sentido de comprimir as despesas públicas federais, do que resultou continuamente uma notável compressão dos déficits orçamentários, causados, aliás, todos eles pela realização constante de obras públicas de grande valor reprodutivo”.9
Apesar desse posicionamento veementemente contrário aos desequilíbrios orçamentários, estes foram frequentes e grandes em todos aqueles anos (exceto em 1936 e 1944), levando alguns autores, como Celso Furtado e Albert Fishlow,10 a vislumbrar uma orientação “keynesiana” na política fiscal da época. Essa orientação, na verdade, nunca chegou a existir concretamente. Os déficits resultavam dos problemas decorrentes de uma conjuntura adversa e específica, e esses problemas sim tiveram uma existência bastante concreta.
Foi fundamentalmente por causa deles que se alterou na·época, de forma profunda e definitiva, a estrutura da receita tributária do governo federal. O Imposto de Consumo aumentou sua participação em quase 50%, passando de 22% do total da receita da União, em 1938, para cerca de 32%, em 1945. No período subsequente, ele manteria esta elevada participação nas receitas. O Imposto sobre a Renda, por sua vez, passou da habitual participação de aproximadamente 6%, nos oito primeiros anos da década de 30, para cerca de 26% em 1945. No pós-guerra, ele confirmaria sua importância, alternando-se com o Imposto de Consumo na liderança das receitas da União. Já o Imposto sobre Importação perdeu bruscamente sua importância. Em 1938 ainda representava cerca de 27% das receitas da União; em 1945, passou a representar não mais do que 12%. Após a Guerra, manteve-se o decréscimo da importância deste tributo, não obstante a retomada das importações. Isso iria gerar sérias consequências na estrutura do financiamento público, privado de uma hora para outra dos aportes desse imposto.
Isto acabou dando ensejo a algumas importantes inovações no campo fiscal e tributário. Entre elas merece ser destacado o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional, instituído paralelamente ao orçamento da União para os anos de 1939 a 1943, cujos objetivos incluíam a criação de indústrias de base e a execução de obras públicas de valor estratégico. Esse plano, como o seguinte, o Plano de Obras e Equipamentos, instituído em 1944, são analisados mais adiante junto com suas respectivas fontes de financiamento. Por enquanto, cabe chamar a atenção para os aspectos monetários da política fiscal da época.
Como o principal objetivo fiscal do governo federal era a manutenção do equilíbrio entre a receita e a despesa, desde cedo começaram a ser cogitados mecanismos que permitissem financiar as despesas do esforço de guerra sem aumentar o déficit orçamentário, procurando simultaneamente reduzir ao mínimo o seu impacto inflacionário. Para tanto chegou a ser posto em prática em 1942 um “plano de financiamento da guerra”, elaborado pela Comissão de Pesquisa e Estudos Econômicos do gabinete do ministro da Fazenda, chefiada por Octávio Gouvea de Bulhões. Esse plano previa a emissão de Obrigações de Guerra, a serem subscritas compulsoriamente pelos contribuintes do Imposto de Renda, e de Letras do Tesouro, para serem vendidas aos bancos comerciais com vistas a antecipar a receita proveniente das citadas obrigações.11
Dois anos mais tarde - isto é, em 1944 - o governo federal instituiu um Imposto sobre Lucros Extraordinários, cuja finalidade, porém, era muito menos fiscal do que monetária. Sua criação se vincula, na verdade, à instituição dos chamados “certificados de equipamento” emitidos e vendidos pelo Banco do Brasil aos industriais e exportadores com vistas à reposição das máquinas sobreutilizadas durante a Guerra, devido à ausência de importações quer de novas quer de peças e acessórios para as existentes. Tratava-se de títulos nominativos resgatáveis em moeda estrangeira e que rendiam juros de 3% a.a. para seus portadores. As empresas que adquirissem esses certificados ficariam isentas do pagamento do referido imposto. Tratava-se no fundo de um mecanismo para esterilizar parte do impacto inflacionário decorrente da crescente disponibilidade de saldos positivos na balança comercial do país.12
Conforme foi assinalado na análise da execução orçamentária e da receita pública, o período do Estado Novo não demonstrou grande dinamismo tributário. As receitas estaduais cresceram, mas a receita da União revelou-se quase que constante nos anos extremos (1938 e 1945), sofrendo considerável decréscimo real entre 1939 e 1943.
Em decorrência, apesar de o déficit público ter-se mantido elevado em todos os anos, as despesas orçamentárias sofreram constrangimento permanente. A despesa realizada pela União através do Orçamento Geral da União atingiu em 1938 o ponto máximo da década de 30, só voltando a recuperar-se em 1946. A despesa dos Estados e do Distrito Federal elevou-se consideravelmente, enquanto a dos Municípios cresceu 28,9% entre 1937 e 1939, decrescendo posteriormente e voltando a recuperar-se apenas em 1948, na vigência da Constituição de 1946. A tão mencionada concentração de poderes políticos e econômicos nas mãos da União, em detrimento das Unidades da Federação, não se traduziu em maior capacidade de gastos ao nível do governo federal (se tomarmos em consideração apenas os orçamentos gerais nas três esferas de governo).
Ademais, o governo federal distribuiu seus escassos recursos orçamentários através dos canais tradicionais. A participação dos ministérios na despesa orçamentária não sofreu alterações expressivas. Deve-se destacar, porém, a criação de novos ministérios - o da Aeronáutica, em 1941, e o do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1930 -, ambos de importância crescente no decorrer do Estado Novo. Enquanto o primeiro, recebendo dotações antes atribuídas ao Ministério da Guerra, passou a representar cerca de 6% da despesa orçamentária, o Ministério do Trabalho viu sua participação aumentar de níveis inferiores a 1% para mais de 3% do orçamento da União. Por sua vez, a despesa do Ministério da Marinha cai dos elevados níveis de 10 e 11% em 1937 e 1938 para valores que representam em torno de 7% das despesas totais. O Ministério da Guerra, exceção feita a 1942, absorve menos de 20%, níveis semelhantes ao das fases pré e pós-Estado Novo. Finalmente, o Ministério da Viação e Obras Públicas, principal unidade de despesa da União entre 1930 e 1953, sofre uma queda brusca na sua participação, passando das costumeiras taxas superiores a 20% para cerca de 18%. Só na década de 1950 voltaria esse ministério às primeiras posições na estrutura das despesas.
O período do Estado Novo, e a rigor todo o extenso primeiro governo de Getúlio Vargas, padecem de um paradoxo orçamentário. As cartas constitucionais de 1934 e 1937 modernizaram a estrutura da receita pública, adequando a base tributária ao crescente peso das atividades econômicas de mercado interno e à expansão dos setores urbano-industriais. No entanto, a crise no comércio internacional e o pequeno crescimento do nível geral de atividades impediram que o orçamento registrasse transformações expressivas no gasto público. A Tabela 2 resume este quadro de relativa imobilidade. A despesa total das três esferas do governo representava uma fração decrescente do PIB. A relação despesa total/PIB caiu de 19,32% em 1938 a 15,96% em 1945. Já vinha caindo desde o início da década de 1930, quando se situava em torno dos 20%. Recuperou-se ligeiramente no pós-guerra, sem nunca atingir 17,5% até 1953. Isto significa que o Estado “compra” uma parcela decrescente do PIB, ou, o que é o mesmo, vê decrescer sua capacidade de intervenção direta na economia, através do orçamento.
Participação da Despesa da União, Estados e Municípios no Produto Interno Bruto (Contos de réis e Cr$ 1.000 correntes)
Considerando separadamente as três esferas de governo, a diminuição do poder de gasto da União aparece com clareza. Entre 1938 e 1945 a relação despesa da União/PIB caiu de 11,50% para 8,50%. Já os Estados e o Distrito Federal mantêm esta relação em torno de 6%, enquanto os municípios sacrificam bastante suas despesas orçamentárias depois de 1943.
A perda da capacidade de gasto da União aparentemente colide com as interpretações correntes acerca do governo Vargas. De fato, é comum atribuir-se ao regime pós-30 um deliberado aumento da atividade econômica pública. A proliferação da regulamentação estatal visando à proteção de produtos estratégicos, o próprio interesse do governo no desenvolvimento da infraestrutura básica e de projetos industriais localizados (siderurgia, transportes) são considerados sinais eloquentes do intervencionismo estatal. Ademais, a participação do país na II Guerra Mundial por si só representou um considerável comprometimento de recursos públicos. Qual o respaldo tributário para tal intervencionismo se, como foi visto, a receita e a despesa da União tiveram comportamento modesto?
A resposta a esta questão requereria considerar o significado do governo Vargas, analisando tanto a relação entre Estado e industrialização e entre burguesia industrial e Estado,13 quanto a própria maneira pela qual o Estado organiza a atividade econômica pública. :É este último aspecto que cabe destacar no âmbito do presente trabalho.
Um bom ponto de partida para a reflexão em torno das finanças públicas na Segunda República é a constatação de que a União vai alargando sua capacidade de intervenção econômica, à margem do orçamento geral. O governo multiplicou as entidades da administração descentralizada, então denominadas organizações paraestatais.14 Muitas delas auferiam receitas próprias, com a venda de mercadorias e serviços, ou eram dotadas de recursos parafiscais alocados a programas específicos. As organizações paraestatais multiplicaram o poder de intervenção do governo, sem, no entanto, terem repercutido diretamente no Orçamento Geral da União. Dinamizaram políticas setoriais de governo, constituindo uma modalidade não ortodoxa de financiamento público.
Além disto, há evidências de que, no período do Estado Novo, ocorreu uma desmedida expansão da atividade creditícia do Banco do Brasil, amparada não apenas em recursos bancários correntes. Os depósitos à vista captados em nome da União, e a pura e simples expansão da base monetária facultada pela articulação privilegiada entre o Banco do Brasil e o Ministério da Fazenda, potencializaram a dimensão creditícia da atividade pública.15 Tal procedimento está afeto antes à política financeira do que propriamente às finanças públicas, vale dizer, deve-se privilegiar aqui a dimensão financeira e não a fiscal (gastos e receitas) do governo. Contudo, convém salientar que há subsídios implícitos no crédito público, que não são (nem poderiam ser) consignados ao Orçamento Geral da União. As repercussões inflacionárias desta política, por sua vez, com certeza contribuíram para diminuir a receita tributária em valores reais, já que a arrecadação é pouco sensível à elevação de preços.
Afora estas modalidades de intervenção, o governo instituiu dois orçamentos de natureza claramente fiscal, e não obstante situados à margem do Orçamento Geral da União: o Orçamento de Guerra e os Orçamentos dos Planos.
O plano de financiamento de guerra, já mencionado, foi montado em 1942, para atender às despesas decorrentes do envolvimento do Brasil na II Guerra. Os orçamentos vinculados a planos de obras públicas, também mencionados, foram igualmente fixados à margem do Orçamento Geral da União. O governo federal regulamentara em 1937 a venda de letras de exportação, instituindo uma taxa de 3% (elevada em 1938 para 6%) para formação de um fundo de câmbio a ter aplicação decidida posteriormente. O fundo viria a ser o principal sustentáculo do Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional, criado em 19.1.1939.
As despesas, por sua vez, eram regidas por normas distintas das prevalecentes no Orçamento Geral da União, e executadas através dos ministérios. Na medida em que não existe um detalhamento por programas ou funções, fica-se sem saber o efetivo destino destes recursos extraordinários; ou seja, o que distinguiu sua aplicação das aplicações dos recursos orçamentários correntes. Há apenas a indicação genérica de que os gastos com pessoal não poderiam absorver mais de 15 ou 20% dos recursos do Plano Especial, o que conferiria ao mesmo a característica dominante de plano de investimentos.
De qualquer forma, a emergência da guerra fez com que os recursos fossem em grande parte (58%) canalizados para a defesa nacional. Somadas às vultosas verbas do Orçamento de Guerra, estes recursos explicam o inusitado decréscimo da participação dos gastos do Ministério da Guerra no orçamento nacional em período de intensa atividade bélica: o gasto militar foi financiado em grande parte por orçamentos paralelos. Por gasto militar entenda-se aqui não apenas o convencional: munições, armamentos, alimentação, soldos etc. Muitos programas de infraestrutura, como portos, estradas, aviação civil, foram considerados indispensáveis à segurança nacional e incluídos como despesa militar nos orçamentos especiais. Daí também a queda da despesa em obras alocadas no Orçamento Geral ao Ministério de Viação e Obras Públicas.
Ao Plano Especial sucedeu o Plano de Obras e Equipamentos, programado para vigorar no quinquênio 1944-48, mas suspenso em 1946 pelo governo que sucedeu à ditadura Vargas. No triênio em que vigorou, as despesas. efetivas somavam Cr$ 2.810 milhões. O sistema de sustentação financeira foi semelhante ao do primeiro plano, com preponderância de taxas sobre operações cambiais. Já as despesas efetivas distribuíram-se pelos diversos ministérios, com participação importante do Ministério de Viação e Obras Públicas, que absorveu 59,5% das mesmas.
O Orçamento de Guerra implicou vultosas despesas de Cr$ 6.391 milhões ao longo do período 1942-45. O Plano Especial de Obras e Aparelhamento da Defesa e o Plano de Obras e Equipamentos representaram gastos de aproximadamente Cr$ 5.644 milhões correntes, entre 1939 e 46. Somando os orçamentos dos Planos e o Orçamento de Guerra (Tabela 3), obtemos um montante de recursos que equivale a 21,l% da despesa orçamentária da União no período. Se nos ativermos ao período 1939-45, excluindo o ano de 1946, a relação entre orçamentos extraordinários e o Orçamento Geral da União subirá a 26%. Em alguns anos (1933, 1944) os orçamentos extraordinários chegaram a assumir despesas equivalentes a 40% da despesa do Orçamento Geral da União.
Despesas no Orçamento da União, Orçamento de Guerra e Orçamento dos Planos 1939-1946 (1000 contos de réis e Cr$ 1.000.000 correntes)
O resultado final transparece na Tabela 4, em que são apresentados o total de gastos da União (abrangendo todos os orçamentos) como proporção do PIB. Se antes, como vimos, a relação despesas da União (consideradas apenas as despesas do Orçamento Geral da União)/PIB decrescera a valores em torno de 8% , bem abaixo dos 10 ou 11% prevalecentes no início da década de 30, agora a despesa total passa a representar novamente 10 a 11% do PIB. Ou seja, a multiplicação de orçamentos possibilitou a manutenção da capacidade de gastos da União, mesmo em uma situação de crise tributária. Eliminados os orçamentos paralelos, a partir de 1946, a relação despesas da União/ PIB caiu a níveis bastante inferiores aos do início do governo Vargas.
Despesas nos Orçamentos e Produto Interno Bruto (1000 contos de réis e Cr$ 1.000.000 correntes)
O sistema de diversificação orçamentária cumpriu um duplo papel. De um lado, viabilizou o esforço de guerra com um mínimo impacto inflacionário16 e viabilizou em geral os. gastos públicos quando a receita tributária entrara em colapso. De outro, liberou o governo das estritas injunções provenientes do Orçamento Geral, entre as quais o elevado peso do gasto com funcionalismo. Não se trata apenas de considerar os orçamentos especiais como um adicional de 20, 30 ou 40% aos recursos da União. Eles representaram - o que é importante - receitas na margem, ou seja, recursos disponíveis quando o custeio da máquina administrativa tradicional já estava provido. Podem ser considerados recursos livres para investimento e/ou defesa nacional.
O período do Estado Novo representou um momento de transição também na esfera das finanças públicas. A década de 1930 encontrara um Estado mal aparelhado para fazer frente às políticas econômicas contra-restadoras dos efeitos da crise econômica. A queda do Imposto de Importação não foi compensada pelo aumento das demais receitas tributárias, apesar de a estrutura tributária haver aberto espaço desde os anos 20 para tributo (como o Imposto de Renda) ligados às atividades de mercado interno.
As cartas constitucionais de 1934 e 1937 fixaram uma estrutura tributária moderna e coerente com a expansão das atividades econômicas urbano-industriais, mas não atenuaram a asfixia de recursos públicos. O quadro agravou-se ainda mais quando da aceleração inflacionária da década de 1940.
A alternativa adotada pelo governo Vargas desde o início dos anos 30 consistiu em diversificar as fontes de receitas, localizando-as fora do orçamento da União e vinculando-as a programas de gasto específicos. Foi o caso dos fundos especiais alocados a produtos determinados (café, cana-de-açúcar) e também o caso dos programas especiais executados durante o Estado Novo.
Estes fundos e programas representaram uma nova maneira de executar políticas econômicas, por meio de instrumentos parafiscais. Significaram, no caso dos fundos, uma particularização da receita pública. Ela deixa de ser considerada receita geral da União; é arrecadada junto aos produtores (embora com ônus fiscal transladado a todos os contribuintes) e a eles destinada, sob o título de “política de proteção dos preços”. E significaram, no que diz respeito aos programas, receitas geradas tendo em vista destinação específica; vale dizer, uma vez -programados os gastos, buscou-se receita suficiente para cobri-los.
O governo federal supostamente permaneceu nos limites da ortodoxia orçamentária. O equilíbrio orçamentário sempre foi o alvo visado, e os déficits nunca foram intencionais. Até mesmo os orçamentos paralelos visavam ao equilíbrio entre receitas e despesas. Além disto, eram controlados por regulamentação especial e submetiam-se ao crivo do Tribunal de Contas. Mesmo operando com o poder legislativo fechado, e, portanto, na ausência de fiscalização parlamentar, o regime ditatorial seguiu regras, à sua moda.
A ortodoxia, no entanto, é parcial. A multiplicação de receitas extraorçamentárias desfez a identidade entre receita pública e receita geral; em suma, descaracterizou a própria definição jurídica de impostos. Getúlio Vargas talvez possa ser considerado pioneiro na utilização da receita tributária como “instrumento de desenvolvimento econômico”. As implicações deste procedimento, que perpassa o segundo governo Vargas e o período Kubitschek, projetando-se até hoje no sistema tributário nacional, são essenciais para explicar as relações entre Estado e desenvolvimento econômico no Brasil.
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1
M. C. Silva e N. A. Beres, “Finanças Públicas”, Estatísticas Históricas do Brasil, RJ, IBGE, 1987, pp. 555-582.
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2
Eli Diniz, “O Estado Novo: Estrutura de Poder e Relações de Classe”, in Boris Fausto (Org.), O Brasil Republicano - Sociedade e Política (1930-64), vol. 10 da História Geral da Civilização Brasileira, São Paulo, DIFEL, 1981, pp. 77-120.
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3
Com relação à fase subsequente ao Estado Novo, P. S. Malan & outros falam de uma “súbita passagem de um regime centralizador e autoritário, que conferia escassa autonomia para os Estados, para um regime liberal-autoritário e extremamente ortodoxo do ponto de vista da política econômica, que se instalou ... sob a égide da Constituição liberal de 1946 ... Cf. Política Econômica Externa e Industrialização no Brasil (1939-52), Rio de Janeiro, IPEA, 1977, pp. 217-218. Os grifos são nossos.
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4
Veja-se a esse respeito, entre outros, os trabalhos de Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970), Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1971, cap. II; Tamáz Szmrecsányi, O Planejamento da Agroindústria Canavieira do Brasil (1930- 1975), São Paulo, Editora Hucitec, 1979, cap. III; e Sonia Draibe, Rumos e Metamorfoses - Estado e Industrialização no Brasil: 1930/1960, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, cap. I.
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5
Haddad, C. Crescimento do Produto Real no Brasil, 1900-1947, Rio de Janeiro, FGV, 1978.
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6
Contas Nacionais do Brasil - Novas Estimativas”, Conjuntura Econômica, XXIII (10), outubro, 1969, esp. p. 55.
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7
Apud A. V. Villela & W. Suzigan: Política de Governo e Crescimento da Economia Brasileira, 1889-1945, Rio de Janeiro, IPEA, 1973, p. 185.
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8
Trata-se do capítulo sobre finanças públicas de uma obra coletiva e retrospectiva do Estado Novo, a qual só chegou a ser publicada muito recentemente: Simon Schwartzman (org.), Estado Novo, um Auto-Retrato (Arquivo Gustavo Capanema), Brasília, Editora da UnB, 1983.
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9
Op. cit., p. 125.
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10
Respectivamente na Formação Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura (1959), e no ensaio sobre “Origens e Consequências da Substituição de Importações no Brasil”, Estudos Econômicos, 2(6), dez., 1972.
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11
Cf. A. V. Villela e W. Suzigan, op. cit., pp. 220-221.
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12
Idem, p. 222.
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13
A relação entre burguesia e governo Vargas no período do Estado Novo é discutida por Eli Diniz em “O Estado Novo: Estrutura de Poder. Relações de Classe”, op. cit.
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14
O governo federal classificava as organizações paraestatais nas seguintes categorias: Crédito - Caixas Econômicas Federais -- Instituto de Resseguras do Brasil; Sociedades mistas - Departamento Nacional do Café - Instituto do Açúcar e do Álcool - Instituto Nacional do Mate - Instituto Nacional do Sal - Instituto Nacional do Pinho; Transportes - Administração do Porto do Rio de Janeiro - Estrada de Ferro Central do Brasil - Lóide Brasileiro - Serviço de Navegação da Amazônia e Administração do Porto do Pará; Previdência e Assistência Social - diversos Institutos de Pensão e Assistência; Cultura - Ordem dos Advogados do Brasil - Associação Brasileira de Imprensa - Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura. Cf. Schwartzman, S. (org.). Estado Novo, um Auto-Retrato. Brasília, CPDOC/FGV, Ed. Universidade de Brasília, 1982.
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15
A questão está bem documentada em Malan et alii, Política Econômica Externa e Industrialização no Brasil (1939/52), op. cit.
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16
Devemos considerar que, embora a inflação se elevasse durante a guerra, ela está claramente associada à política de crédito do governo e, em menor medida, à pressão em cruzeiros dos excedentes cambiais acumulados devido à impossibilidade de importar. Ver a respeito Malan et alii, op. cit.
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Os autores agradecem as críticas e sugestões que lhes foram encaminhadas pelos colegas José Roberto Afonso e Fernando Resende, do IPEA, algumas das quais foram aproveitadas na presente versão.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Jan 2024 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 1990