Open-access Um brasileiro na democracia americana

Um brasileiro na democracia americana

Plínio de Arruda Sampaio

Economista e professor da PUC-SP

Acompanhei de perto a campanha eleitoral em que o democrata George MacGovern e o republicano Nixon competiram pela presidência dos Estados Unidos, em 1972. Recuperando as lembranças dos seis anos em que lá vivi, quero assinalar aqui os dois aspectos que mais me impressionaram no processo eleitoral americano: o primeiro refere-se àquilo que os americanos chamam de issues (pronuncia-se "íchus"). Issue é a palavra inglesa para designar "questão concreta em disputa entre grupos com interesses contrários"; o segundo diz respeito à forma de apresentar o pensamento dos candidatos majoritários durante a campanha (que se caracterizou mais pela mobilização dos centros de interesses dos vários setores da sociedade civil do que pelas grandes mobilizações de massas em comícios ou manifestações de rua).

Campanha centrada em torno de "questões concretas"

Na disputa Nixon x MacGovern, as questões concretas em debate (issues) eram: como pôr fim à guerra do Vietnã? que fazer com os milhares de desertores americanos exilados no Canadá? autorizar ou não a construção do gasoduto do Alaska até o Canadá? manter ou abandonar a política de transportar alunos brancos para escolas de freqüência predominantemente negra e vice-versa?

Vou explicar com um pouco mais de detalhe esta última questão, pois ela permite ver, com clareza, em que consiste um issue e como eles operam no curso da campanha eleitoral. Em inglês, essa questão chamava-se busing. Busing quer dizer: transportar alunos de escolas primárias e secundárias, em ônibus escolares, da casa para a escola e desta para casa.

A questão do busing colocava-se deste modo: em razão do terrível preconceito racial, as cidades americanas apresentam uma clara divisão: bairros de brancos e bairros de negros. Daí para o conflito é um passo. No governo do presidente Jonhson, a administração democrata estabeleceu uma política anti-segregacionista, que consistia em misturar a população das escolas. Desse modo, independentemente do bairro em que morassem, estudantes brancos e estudantes pretos teriam de conviver sob o mesmo teto, pelo menos durante o período escolar.

Nixon, que é racista, não apenas deixava de cumprir corretamente essa lei, como pretendia mesmo revogá-la. O issue, portanto, era esse: revogar ou manter a lei do busing. MacGovern declarou: "Sou a favor do busing por isto, por isso e por aquilo e, se eleito, vou aplicar a legislação pra valer". O Nixon disse: "Sou contra o busing, por tais e tais razões e, se reeleito, vou continuar fazendo tudo para revogar essa lei".

Pão, pão. Queijo, queijo. Nada de discursos inflamados, palavrório oco, frase para tirar palmas e provocar emoções. Questões concretas. Interesses definidos. Fórmulas específicas de solução, apresentadas e discutidas em detalhe. Tudo muito diferente desses programas e plataformas eleitorais aos quais estamos habituados no Brasil. Nestes, as questões são colocadas de um modo tão genérico, tão vago, que, uma vez eleito, o candidato pode fazer o que bem entender sem que ninguém possa pegá-lo na palavra, porque, na campanha, ele usou sempre expressões de duplo sentido.

Lá nos Estados Unidos, o eleitor não vai nessa conversa. Não adianta, por exemplo, falar "sou a favor da harmonia, da paz e da fraternidade entre as raças". Isto não passa de conversa mole, enquanto não se traduzir em providências concretas como: o busing; o estabelecimento de quotas obrigatórias para emprego de negros no serviço público e nas empresas privadas; a representação mínima de negros nos diretórios dos partidos, etc. Por exemplo, quem disser lá que é a favor de uma reforma agrária radical e não explicar, em detalhe — tim-tim por tim-tim —, o que quer dizer esse "radical", não tem a menor chance de ser levado a sério.

Articulação da sociedade civil

O segundo aspecto que me impressionou foi o processo de articulação dos interesses dos vários setores da sociedade na campanha eleitoral. Não há grandes comícios nem grandes passeatas. A campanha consiste em apresentações dos candidatos em almoços, jantares ou reuniões promovidos por entidades da sociedade civil, que reúnem mil, duas mil, no máximo, cinco mil pessoas. Nessas reuniões, o candidato expõe, em um discurso sério — quase sempre escrito — sua posição detalhada sobre os issues que mais interessam à entidade que o hospeda (exportadores, comunidade latino-americana, grupo dos judeus, banqueiros, metalúrgicos, pequenos visitantes, etc).

Os jornais e a televisão buzinam sua fala e as reações da platéia para todo o país, na hora mesma em que o evento está se realizando. Os colunistas políticos e os intelectuais passam então a esmiuçar as proprostas do discurso, pondo a nu todas as suas conseqüências. Nada de adjetivos tais como: proposta reacionária, esquerdizante, etc. Substantivos. Cifras. Assim: se a proposta do candidato X for aprovada, cada americano terá de pagar mais Y dólares de imposto; ou, o desemprego aumentará tanto; ou, ainda, o orçamento da Nova Iorque diminuirá em tantos por cento. Dados corretos, que ajudam o eleitor a ver claramente onde está o seu interesse. Na minha opinião, esse sistema assegura uma comunicação muito mais ampla entre os candidatos e o eleitorado. Nos comícios — que são o nosso meio privilegiado da comunicação eleitoral — o aspecto emocional prevalece sobre o mais. Um político matreiro, com um bom domínio da oratória, pode, então, dizer tudo e não dizer, na verdade, nada. Engana o povo, ganha os votos e, depois, de empoleirado no poder, faz o que bem entende.

Copiar a "democracia" americana?

Estou longe de achar que o regime americano é democrático. Na verdade, nenhuma sociedade capitalista tem condições de praticar a verdadeira democracia, porque a disparidade do poder econômico entre os que têm milhões e os que vivem de salários transforma a igualdade política em um mito legal. Mas, uma coisa é certa: o eleitor americano sabe, melhor do que o brasieliro, o que está escolhendo quando vota por um candidato. E isto se deve, a meu ver, a estas duas características do seu processo eleitoral: a uma disputa eleitoral em torno de questões concretas (issues) e não de princípios gerais colocados de um modo vago e retórico; e a uma campanha desenvolvida mais em torno dos centros de interesse dos vários setores da sociedade, do que em torno de núcleos geográficos (cidades, bairros) onde, supostamente, todos — ricos e pobres, patrões e operários, brancos e pretos — têm um mesmo e único interesse.

Em resumo, não se trata de reproduzir a democracia americana para construir uma democracia no Brasil, mas apenas de ver que todo processo eleitoral, quando baseado em "questões concretas" e em "interesses reais", permite ao eleitor uma escolha mais esclarecida. No quadro brasileiro de hoje, se conseguirmos organizar nossas campanhas eleitorais em torno de questões concretas e dos interesses concretos, em disputa entre os vários grupos e setores da sociedade, teremos avançado bastante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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