Open-access Aborto: um direito da mulher

PENSANDO O BRASIL

DESAFIO CONSTITUINTE

Aborto: um direito da mulher

Silvia Pimentel

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e vice-presidente da Pró-Mulher

Com a feminista francesa Gisèle Halimi, penso: "Sim, o meu corpo me pertence. Mas, se ele me pertence, é, acima de tudo, porque sou mais do que um corpo. Sou também uma razão, um coração, uma liberdade. Sou a responsável pela mais importante das escolhas de um ser humano: dar — ou não — a vida". E concordo com Jean Rostand, biólogo, da Academia Francesa, testemunha no processo de Bobigny em novembro de 1972, quando a lei francesa sobre o aborto foi contestada: "Respeitar a vida ê, parece-me, respeitar aquelas que dão a vida, e, em primeiro lugar, a mulher, que por tempos imemoriais tem sido objeto da vontade do homem ou da razão do Estado, e respeitar a sua liberdade — singularmente — a liberdade de dar a vida — parece-me indispensável para abrir à humanidade os caminhos da verdadeira vida humana...".

Constatando em meu país a dramática realidade de milhares de mulheres, que, por não poderem se valer da Saúde Pública, provocam interrupção de gravidez que não podem ou não querem assumir, das maneiras mais precárias e com sérios prejuízos para a sua saúde, quando não a própria morte, eu me indago: tem o Estado brasileiro o direito de considerar criminosa a mulher que não se julga em condições de pôr um filho no mundo? E respondo: Não! Esta é uma intervenção arbitrária, descabida. Um desrespeito a um direito fundamental da mulher: dar ou não dar a vida. Entretanto, se fosse constituinte, talvez não levantasse a questão. E por quê?

Muita cautela ao colocar o tema

Não conheço nenhuma Constituição que contenha dispositivos sobre o aborto. Na legislação comparada verifica-se que tem sido tratado como matéria de legislação ordinária. Este fato não impediria que fosse o aborto tratado constitu-cionalmente por nós, mas significaria um óbice significativo, pois muitos entenderiam ser juridicamente aberrante. Dentro do capítulo dos direitos e garantias individuais dos cidadãos poder-se-ia, por exemplo, introduzir preceito nos seguintes termos: "é direito de toda mulher interromper a gravidez que entenda não ter condições de suportar. A Saúde Pública garantirá, na prática, este direito, que será regulamentado por lei ordinária". Entretanto, razões de ordem prática, a meu ver, desaconselhariam esta discussão em nível constituinte, no momento.

Não só o conhecimento das dificuldades para a aprovação da lei do aborto em países como a Itália, França, Espanha e outros, mas o conhecimento dos votos das comissões e os de alguns relatores quando da apresentação de projetos em relação ao aborto, no Brasil, evidenciam que seria politicamente inábil levantar a questão do aborto, agora no Brasil, como tema constitucional.

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, analisando o Projeto de Lei n? 590-A, de 1983, da deputada Cristina Tavares, que não propôs a descriminali-zação do auto-abortamento e do aborto consentido, mas simplesmente buscou ampliar os espectros das indicações permissivas para os casos de aborto, quanto aos aspectos médicos, éticos e sociais; bem como o Projeto de Lei n? 1651, de 1983, do deputado Denisar Arneiro, mais ousado e que chega a propor a não punição "quando a gestante manifestar perante o juiz o desejo de não prosseguir na gravidez", dentre outras considerações, em seu parecer afirmou: "Se há o perigo do nascimento de crianças portadoras de graves males, a solução do problema não estará na transformação do país num imenso abortário. As medidas para prevenir esse risco apavorante devem ser tomadas no sentido da própria vida, e nunca na direção da morte". E, com o voto em separado, o deputado Valmor Giavarina ponderou: "Assim, em nome do Direito da Mulher pretende-se proclamar o 'Direito de Matar', desde que se o faça através de médico especializado transformado em carrasco de fetos".

Se, por um lado, verifica-se a necessidade de este tema ser debatido em profundidade por toda a sociedade e que este momento seria propício, face à motivação presente no sentido de se buscar um novo ordenamento jurídico-social, por outro lado, o nível emocional constatado poderia provocar reação contrária, estabelecendo-se preceito constitucional de proteção à vida, desde a concepção! Vale lembrar que os constituintes de 1946, pressionados pela Igreja Católica, aprovaram artigos quanto à indissolubilidade do casamento, dificultando assim, e em muito, a modificação da lei ordinária do Código Civil Brasileiro que trata da matéria. Só em 1977, votou-se a Lei do Divórcio. Em relação ao aborto, a posição da Igreja não seria nada menos firme e atuante.

O que diz o novo Código Penal

O Código Penal atual estabelece pena de detenção de um a três anos para a gestante que provocar aborto em si mesma ou consentir que este seja provocado. Só não pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resulta de estupro. O Código Penal está em fase de modificação. A partir de 1? de janeiro passado passou a vigorar nova Parte Geral, e sua Parte Especial encontra-se em antepro-jeto no Ministério da Justiça.

Para se ter uma idéia da concepção dos nossos juristas face ao tema do aborto, vale relembrar que introduziram algumas novidades interessantes: diminuição da pena e aborto piedoso. No caso de aborto consensual, por exemplo, a pena foi diminuída para a de detenção de três meses a um ano. E foi criada a figura do aborto piedoso, passando a não constituir crime o aborto praticado por médico quando há fundada possibilidade atestada por dois médicos de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas e mentais.

Sugestões desconsideradas

Entendendo serem estes avanços ainda insuficientes, apresentei, conforme Portaria Ministerial n? 304, de 17 de junho de 1984, que solicitou críticas e sugestões ao antepro-jeto, a seguinte contribuição: "O juiz pode deixar de aplicar a pena sempre que constatar ter sido o aborto praticado por motivo de relevante valor social ou moral". Juntamente com as demais sugestões recebidas pelo Ministério, esta foi encaminhada à Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto e foi, totalmente, desconsiderada. Em contato pessoal com um dos membros do"grupo, escutei ser inviável qualquer proposta do gênero, e não valer a pena insistir!

Vale destacar episódio ocorrido recentemente no Rio de Janeiro. A deputada Lúcia Arruda apresentou à Assembléia Legislativa projeto de lei que estabelece a obrigatoriedade, a rede dos serviços de saúde do Estado, de atendimento médico para a prática do aborto nos casos já previstos na lei penal, estupro e risco de vida da gestante. Após aprovação do Legislativo e sanção do Executivo, bem como regulamentação por parte da Secretaria da Saúde, o cardeal Dom Eugênio Sales enviou carta ao governador Leonel Brizola solicitando a revogação da lei por considerá-la estimuladora de abortos. E, como resposta, o governador, imediatamente, propôs à Assembléia a revogação da lei que acabara de sancionar, enquanto o secretário da Saúde revogava a Resolução regulamenta-dora. A mensagem de revogação do sr. Brizola encontra-se em trâmite na Assembléia Legislativa.

Finalizando, a enquete sobre o aborto realizada pela Abril Vídeo em São Paulo, a 8 de março último, Dia Internacional da Mulher, quando 17 652 responderam ser contra o aborto e 10044 ser a favor, demonstra, também, o estágio em que a sociedade se encontra face ao tema.

Ainda imatura e emocional a discussão, se distantes estamos da modificação da lei penal, mais remota ainda é a possibilidade de se estabelecer preceito constitucional sobre o direito da mulher de interromper gestação não desejada.

Entretanto, a grandeza das dificuldades não as torna insuperáveis. Obriga, sim, a uma ação organizada e articulada em nível nacional, que viabilize um amplo e fundo debate a respeito do aborto, o que exige a definição de um cronograma de ações e de metas. *

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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