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Socialismo 2000, ou: a arte do possível

SOCIALISMO, SOCIALISMOS

Socialismo 2000, ou: a arte do possível

Johano Strasser * * Tradução de Jürgen Brummel.

Deputado no Parlamento da República Federal de Alemanha e dirigente do Partido Social Democrata

Socialismo 2000: isto soa como o grito de guerra dos últimos incorrigíveis que, montados nos seus "rocinantes", se lançam ao ataque sem reparar que todos à sua volta, já há muito tempo, estão a bater em retirada. Soa como uma visão muito avançada do futuro, como uma antecipação audaciosa do futuro, apesar de a passagem do milênio estar iminente. Já nem faltam dez anos e o século XX, o século dos sonhos e pesadelos concretizados, chega ao seu termo. Que virá depois? Quais são as opções que nós temos verdadeiramente? Como é que queremos, como é que podemos configurar o mundo do próximo milênio? Haverá, no fundo, ainda uma utopia cultural, social, política, uma representação global da convivência dos homens, dos povos, que se estenda desde o passado até o próximo milênio?

O nosso tempo não está muito propício para os vôos da imaginação, pelo menos não quando ela se orienta para um mundo profundamente diferente e melhor, para uma ordem mais sensata das coisas, tal como ela foi pensada na tradição socialista. Fourier, Owen, Saint Simon, Marx, Bloch - quão profundo caíram de repente no esquecimento! Evaporou-se o espírito dos anos 60, cheios de esperança mas talvez também mais ingênuos. A própria razão, assim o parece a muitos contemporâneos, tem a culpa do nosso infortúnio múltiplo, uma sereia que nos acena como possibilidade aquilo que a condition humaine nunca e jamais permite, inimiga da vida, destruidora, ela própria que se apresenta como salvadora é a causa da mais profunda desumanidade. Não o sono da razão, mas o seu sonho, o sonho de um mundo melhor e racionalmente regulado - assim se costuma interpretar hoje em dia a palavra ambígua de Goya - procria monstros. Na penumbra pós-moderna, muitos perderam a orientação, perdem o ânimo, seguem, com esperança desesperada, os fogos fátuos que aqui e ali recrudescem, ou arranjam-se cinicamente com as realidades.

Mas, na verdade, o mundo é tudo menos estático. A ciência e a técnica abrem novos horizontes, inovações de base como a técnica dos semi-condutores e a biogenética começam a virar e revirar o mundo, o mercado mundial aperfeiçoa-se como mercado monetário e financeiro, o chavão da política interna mundial assume contornos palpáveis; sim, pela primeira vez desde há muitas décadas, a confrontação entre o Leste e o Ocidente surge como superável, o desarmamento como viável, a paz assegurada como possível, e mais dramático ainda: o que a maioria das pessoas no Ocidente julgou como quase já não possível -os sistemas comunistas do Leste revelam-se aptos para uma mudança endógena, começam (não por toda a parte e nem sempre de forma determinada) a se democratizar ou desmoronam-se com uma velocidade impressionante.

Será que esses são sinais de esperança, oportunidades históricas que apenas temos de aproveitar? Talvez, e talvez a série de derrotas ainda não seja suficientemente longa para daí se concluir a impossibilidade do projeto humanista, democrático, democrático-socialista. As utopias são resistentes, podem sobreviver a inteiras épocas glaciárias, em cantos remotos de bibliotecas, em canções de criança, em versos satíricos, em histórias da carochinha. Tão real - isto parece comprovar-se mais uma vez -não pode ser nenhum socialismo que a força explosiva da utopia não o possa afetar. E o capitalismo?

Ou será que talvez nem se trate da utopia de liberdade, igualdade e fraternidade (ou irmandade, como temos de acrescentar à luz de experiências sociais mais recentes)? Será que são cá como lá apenas as mesmas forças produtivas que criam para si a sociedade "moderna", "tecnocrata" a elas adequada? É possível que cá e lá isto não se consiga alcançar sem um pouco mais de democracia, de liberdade de opinião e de pluralismo das idéias, mas noutro ponto do globo, por exemplo no Terceiro Mundo, a democracia, a participação soberana dos povos na decisão poderia, ao invés, ser incômoda para nós no Norte rico desde planeta. O que será feito do progresso previsível, planejado nos gabinetes de administração, nos laboratórios de investigação e nos departamentos de marketing dos grandes conglomerados econômicos, e adotado de bom grado pela maior parte dos políticos, se por todo o lado os trabalhadores miseráveis invocarem o seu direito à vida, as suas pretensões de felicidade?

Que o progresso da ciência e da técnica, a extensão da produção e do consumo, alargue as oportunidades de liberdade, isto, hoje em dia - pelo menos na nossa sociedade - apenas uma minoria ainda consegue afirmar incondicionalmente. As mesmas pessoas que apreciam, e até por vezes recebem com júbilo, os progressos (no plural!), não raras vezes duvidam que todos estes pequenos progressos na sua soma ainda signifiquem progresso. As mesmas pessoas que encaram com ceticismo ou até com receio a evolução técnico-econômica, geralmente submetem-se a ela sem opor qualquer resistência: acresce-se ao ceticismo, ao pessimismo, o fatalismo do progresso.

Ao que parece não há alternativas à vista. Que o socialismo como idéia possa fornecê-las, quem é que ainda acredita nisso? A bancarrota do chamado "socialismo real" que hoje em dia é mais do que patente, revaloriza o capitalismo na consciência da maioria das pessoas. A alternativa errada - ou o capitalismo americano ou o socialismo soviético - ainda continua a apertar o garrote à imaginação; a supremacia do capitalismo parece evidente. Regra geral, nem sequer entram em linha de consideração possibilidades para além desta alternativa errada.

Muita gente pensa que o socialismo, ainda que ele seja o mais democrático, pertence ao século XIX, quando muito à primeira metade do século XX. Onde ainda existiria e suscitaria a atenção, seria artificialmente mantido vivo ou tiraria proveito da indolência das pessoas - um anacronismo ridículo ou uma brincadeira intelectual. Impossível de deter, ao que parece, o capitalismo, freqüentemente presumido morto, também irrompe onde uma ideologia hostil no poder lhe impediu durante muito tempo o acesso. Parece não apenas que a Revolução Francesa se revela - assim observou recentemente François Furet - como o futuro da Revolução Russa, mas também que finalmente é sim o capitalismo, ou uma versão estatizada dele, e não o comunismo, o herdeiro do "socialismo real". Que a idéia do socialismo estivesse morta, já era fato consumado para muitos dos seus adversários, quando o Bloco do Leste ainda era o Bloco do Leste e seus governantes ainda julgavam poder anunciar grandes vitórias. Agora, depois de se ter esboroado o domínio comunista em quase toda a Europa Central e a Europa do Leste, mesmo os antigos socialistas redigem quase exclusivamente homenagens póstumas. Os mais esclarecidos dentre os depreciadores do socialismo, decerto, admitem por vezes que ele possuirá durante algum tempo uma função, um direito de existência, mas isto - também eles dizem - acabou definitivamente o mais tardar agora: o projeto socialista - também na sua variante social-democrata - estaria historicamente esgotado, já não seria contemporâneo, seria antiquado, sem futuro nem remédio.

"Quem analisa movimentos políticos apenas sob o ponto de vista de questões atuais de momento e de poder", assim escreveu Kurt Biedenkopf já em 1974, "chegará à constatação de que embora o socialismo tenha tido uma função concreta, esta entretanto está cumprida."1 1 Kurt Biedenkopf, Fortschrill in Freibeit, München 1974, pág. 104. E quase dez anos depois, pode ler-se em Ralf Dahrendorf: "Quem quererá negá-lo: o programa social-democrata é atrativo. Aliás, não é (...) o programa de um partido qualquer. É antes sim o tema de uma época, de um século talvez. É, além disso, o tema das melhores possibilidades desta época. Como tal é atrativo. Só que é um tema de ontem."2 2 Ralf Dahrendorf, Die Chancan der Krise, Stuttgart 1983, pág. 23. E após a profunda mudança no Leste, repetiu a sua tese do fim do socialismo pondo logo, por razões de facilidade, sociais-democratas e comunistas no mesmo saco.

Para muitos contemporâneos, afirmações desse tipo são imediatamente plausíveis, não carecem de fundamentação. Honra para os dois autores citados pois fundamentam a sua apreciação, embora a grande maioria dos seus leitores provavelmente também de antemão lhes daria o seu consentimento. Quem, no entanto, analisar mais em pormenor as fundamentações'e examinar a sua solidez, deter-se-á quase forçosamente, dificilmente conseguindo evitar que lhe surjam dúvidas no sentido de saber se o socialismo realmente chegou ao seu termo, se é historicamente ultrapassado.

Kurt Biedenkopf motiva a sua sentença de morte ao socialismo alegando que "a questão social do século XIX está resolvida em termos de princípio em todos os países ocidentais e -pelo menos na República Federal da Alemanha - também em termos materiais". "As instituições que garantem a segurança social e a ausência da necessidade", escreve este autor, "estão praticamente perfeitas. As injustiças no âmbito da repartição dos rendimentos e da riqueza estão reduzidas ao mínimo."3 3 Idem. Dahrendorf, pelo contrário, acha a razão da morte do ideal socialista não no fato de o socialismo ter cumprido a sua tarefa, mas sim no fato de já não existirem as condições econômicas gerais sob as quais a política socialista apenas é viável: "Sem crescimento não há nenhuma sociedade social-democrata... Todas as instituições da sociedade social-democrata são erguidas à volta do crescimento econômico."4 4 Op. cit., pág. 18.

Encontramos aqui o conhecido fenômeno de afirmações que, à luz das pressuposições marcadas pelo espírito da época, surgem como imediatamente plausíveis, perdem a sua plausibilidade logo que devam ser fundamentadas com argumentos. Em face do desemprego maciço e da diferença abismal novamente crescente entre pobres e ricos - no seio das sociedades industrializadas do Ocidente, e ainda mais em relação aos países do Terceiro Mundo - não se pode dizer de forma alguma que os problemas sociais estejam resolvidos no seu cerne, e que, no fundo, já não existam injustiças de repartição. Tal como antes, há enormes diferenças, em nada justificáveis, a nível dos rendimentos, tal como antes assistimos a uma repartição da riqueza escandalosamente injusta. Mas não se trata apenas de rendimentos e riqueza: injustiças de repartição existem também em relação à disposição do tempo livre, ao acesso à informação, às oportunidades de formação. É verdade que a classe operária como um todo já não está desfavorecida de forma mais ou menos igual, como ainda ocorreu no século XIX. Hoje em dia temos, para além da dicotomia entre trabalho e capital, de proceder a outras diferenciações: entre a situação social de homens e mulheres, entre empregados e desempregados, entre empregos seguros e bem pagos e empregos inseguros e mal pagos, entre aqueles que tiveram a sorte de iniciar a sua vida profissional nos anos 60 e aqueles que saem hoje das escolas e universidades. Mas a grande tarefa do socialismo democrático, que consiste em criar, se possível para todos, condições iguais para participar na vida política social e cultural, continua tal como antes na ordem do dia.

Justiça, igualdade de oportunidades, fundamentação social da democracia, respeito da dignidade humana em todos os setores sociais em todo o mundo - estes não são temas de uma época que já deixamos para trás, mas são temas de primeira atualidade. Os objetivos fundamentais do socialismo democrático não estão, pois, de forma alguma ultrapassados. O que está superado é o grande contra-projeto sistemático, a alternativa "científico-socialista" ao capitalismo com a sua pretensão absurda de uma direção consciente, profundamente planejada de todo o processo de evolução social. Ultrapassada está a tentativa de substituir o mecanismo de mercado pela mão visível da burocracia. A grande e sangrenta experiência ensaiada nas últimas décadas na União Soviética e nos Estados associados à sua esfera de poder basta para falsificar este modelo. Neste, mas apenas neste sentido pode-se concordar com Joseph Huber: "O socialismo como tal acabou. O socialismo não será novamente revisto, ele anula-se a si próprio."5 5 Joseph Huber, Geistig erstarrt, moralisch erschöpft. Der Sozialismus wird nicht noch einmal revidiert, er hebt sich auf, em: Süddeustsche Zeitung de 21/22 de Outubro de 1989. Porém ainda fica por provar se Huber tem razão quando segue argumentando que estaria esgotado "o impulso de uma filosofia política velha de duzentos anos e inspirada pelo ideal de procurar através da igualdade social dos homens a sua felicidade na Terra." O autor facilita demasiado sua tarefa ao articular a questão da maior igualdade social com a pretensão, certamente pouco séria, de produzir a felicidade mundana. No entanto, é mais do que apenas improvável que a questão da igualdade social deixará de desempenhar qualquer papel num mundo onde se verifica um acentuado desnível em termos de bem-estar entre o Norte e o Sul, entre o Oeste e o Leste e no seio das diversas sociedades. E, face ao exemplo sueco, também não se poderá afirmar - a não ser que se fique arraigado a um pensamento de tipo tudo-ou-nada politicamente estéril -que a igualdade se teria revelado pura e simplesmente "como horizonte utópico inalcançável". Assim, Huber acaba por se corrigir a si próprio no fim do mesmo artigo, na medida em que exclui da sua sentença global a "tradição de um socialismo liberal e democrático", tradição esta que vem há muito competindo com o comunismo.6 6 Huber, op. cit. Efetivamente, mesmo se - por motivos transparentes - os autores conservadores gostassem de suscitar esta impressão, o desmoronamento do chamado "socialismo real" não é, de modo nenhum, sinônimo do fim da social-democracia e da sua tradição específica.

Mas, ainda que os sociais-democratas não tenham razão nenhuma para renegar os seus valores fundamentais e os seus objetivos, existem, no entanto, motivos suficientes para refletir de novo sobre se os caminhos pelos quais se procurava atingir esses objetivos têm sido sempre os melhores. Nesse sentido, a reflexão sobre o argumento desenvolvido por Dahrendorf é também valiosa para os socialistas democratas. Na verdade, desde meados dos anos 70, pelo menos, acumulam-se indícios da necessidade de rever, numa série de pontos, o modelo político social-democrata até então dominante. Nesse sentido, constituem sem dúvida um problema não apenas as taxas de crescimento modificadas a longo prazo. A atual situação de mudanças econômicas revelou também outros pontos fracos de um modelo político que Dahrendorf designa não injustamente como o social-democrata, embora não poucas das suas determinantes também se encontrem no modelo político capitalista iluminado. Na verdade, hoje em dia não apenas o modelo dominante da política social-democrata chega a seus limites, mas também o modelo da evolução social do industrialismo e com ele todos os modelos políticos que nele se assentam: por conseqüência, também a tradicional política burguesa tal como ela é praticada na República Federal da Alemanha pelos partidos da união CDU - CSU e pelos liberais.

O que aconteceu? Durante os últimos quinze a vinte anos, desenvolveu-se, nos países industrializados com modos de produção capitalistas, com crescente intensidade e propagação, uma consciência face aos efeitos da repercussão social e ecológica do progresso técnico-econômico. Cada vez mais pessoas percebem, com pavor, que estamos destruindo os fundamentos naturais da nossa existência, que conseguimos cada vez menos organizar um "ambiente social" apropriado para o homem, que o progresso técnico-econômico, tal como consquistou o mundo a partir da Europa, conduziu a um sistema de pressão de necessidades e eficiência práticas que ameaça no seu cerne a democracia, a humanidade e a liberdade. As grandes expectativas de liberdade que o homem moderno associou à extensão do domínio técnico da natureza (e que durante décadas pareciam ter-se confirmado grosso modo) começam a vacilar. Cada vez menos pessoas conseguem acreditar que o aperfeiçoamento do controle do homem sobre a natureza e o permanente aumento de produção e consumo, sejam o caminho ideal para a felicidade e a liberdade. Os limites sociais do crescimento, a que chamou atenção Fred Hirsch7 7 Cf. Fred Hirsch, Social Limits of Growth, Cambridge/Mass. 1976, London 1977 (al. Reinbek 1981). , desativam em crescente medida o princípio capitalista-industrialista "Esperança", de acordo com o qual o consumo de elite de hoje será o consumo de massas de amanhã. E fazem-nos tropeçar com a verdade simples de que o tratamento da matéria e a transformação energética, ou seja aquilo a que chamamos trabalho e produção e com que criamos o nosso bem-estar ímpar, aceleram o processo de produção de entropia, diminuem as perspectivas de vida dos nossos filhos e netos, esgotam cada vez mais depressa o capital que, em milhões de anos, se desenvolveu na terra por insolação.

Da história do Ocidente conhecemos a relação entre apocalipse e utopia. Também, hoje, ambos se encontram novamente lado a lado, o medo paralisante do futuro e a sensação do novo início. Ainda há pouco pareciam obscuros todos os horizontes, ameaçavam abater-se sobre nós catástrofes de todos os lados, e eis que de repente se rasga o horizonte, acontece perante os nossos olhos o que desde há muito já não era considerado possível, concentram-se de novo as nossas forças utópicas. Em tempos de necessidade e de mudança os homens têm, frequentemente, tendência para se juntarem à volta de velhos deuses, ou então, se já não podem acreditar neles, para esquecer o seu medo, a sua incerteza, através de uma azáfama obstinada e de diversões febrilmente apressadas. Os tempos de necessidade e mudança são, no entanto, também tempos de utopia, de sonhos individuais ou coletivos de uma outra, de uma melhor ordem do mundo. Embora hoje pareça que uma parte do velho mundo vença a outra parte antagonicamente ligada a ela, talvez possamos esperar que não se trate de abandonar definitivamente a frustrada experiência stalinista, abrindo ao capitalismo o resto do mundo, mas sim de romper, também o Ocidente vitorioso, as estruturas incrustadas e de ativar um novo pensamento. O fato de atualmente se refletir pouco, em sondagens e estudos sociológicos, sobre tais expectativas, não pode significar que elas não existam. Também na nossa época, obcecada pelo mensurável e contável, que tolo é quem considera como real apenas aquilo que é mensurável e contável.

"Olha-se para o futuro como para a boca de um canhão", escreveu Peter Rühmkorf há alguns anos num poema, e o seu colega Günter Kunert secundou: "Perder a esperança é como mandar uma carta sem endereço. Não distribuída e destinada a ninguém." Quem negará que eles dessa forma falaram do coração deprimido do nosso tempo? E, porém, aqui se aborda apenas uma face, a face paralisante do nosso medo. Que já não se possa continuar assim por muito tempo, disso pode-se também tirar a conclusão de que temos de ousar dar o passo para terra nova, tal como aliás já aconteceu a leste de nós. Também a época do renascimento, dos grandes descobrimentos, foi para muitos contemporâneos uma época de medo. Não poucos estavam, convictos que o fim do mundo estaria iminente, ouviram as trompetas do Juízo Final. Tal como Jean Delumeau provou, a expectativa do iminente fim do mundo era quase epidêmica na segunda metade do século XV e no século XVI8 8 Jean Delumeau, Angst im Abendland, Rowohlt, Reinbek 1989. . E ainda assim, foram, na mesma época, empreendidas as grandes viagens dos descobrimentos, pensou-se o Novo, a utopia de uma Europa humanista, de um mundo moralmente ordenado e de uma cultura liberta de superstição e ingerência teológica. Na Alemanha volta o mesmo estado de espírito, oscilante entre o apocalipse e a utopia, nas primeiras décadas após a fundação do Reich de Bismarck, época essa da industrialização impetuosa e da "Grande Depressão", da propaganda pietista-protestante do fim do mundo e da expectativa da revolução social-democrata, época esta que Lucian Hölscher designou como o "Cabo das Tormentas da história alemã"9 9 Lucian Hölscher, Weltgerichl oder Revolution. Protestantische und sozialistische Zukunftsvorslellungen im deulschen Kaiserreich, Stuttgart 1989. .

Certo: a ameaça com que lidamos hoje em dia é de natureza diferente daquela que causou medo e terror aos homens na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, e também não é equiparável àquela que nos finais do século XIX originou uma atmosfera apocalíptica ou uma impaciência utópica. Uma coisa pelo menos está certa: para nós, filhos de um processo de secularização já irreversível, não se trata mais de uma fatalidade inevitável, de um fim do mundo que, assim se supôs, derivava do julgamento insondável de Deus, mas sim de uma série de obras catastróficas do homem: fome e miséria no Terceiro Mundo, escalada armamentista e um iminente holocausto nuclear, envenenamento ambiental, Chernobyl, desemprego em larga escala. Mas até contra esses perigos mais maciços e mais reais se ergue o impulso utópico. Ainda que a experiência de duas guerras mundiais, do fascismo e do stalinismo nos tenha cortado as asas, não está completamente exterminada a crença de que a história ainda possa enveredar por um caminho diferente daquele que se delineia perigosamente, quanto mais não seja porque ainda continuam vivas algumas recordações do futuro que nos foi prometido no nosso sonho: "No meu tempo, em mil anos será importante a música e não a contabilidade, a vida e não o negócio, a floresta e não a assiduidade, a obra e não o sucesso."10 10 Josef Luitpold, Zu meiner Zeit, em: Unter Tage, über Tage, Gedichte aus der Arbeitswelt, ed. por Walter Köpping, Frankfurt/M. 1986, pág. 153.

Ter um espírito contemporâneo crítico significa ser filho da época sem ter se entregue para a vida e para a morte ao espírito da época, encontrar o seu lugar aqui e agora e porém não ser totalmente deste mundo mal ordenado e suscetível de ser melhorado. Da tensão entre utopia e realidade deve nascer, também hoje em dia, o Novo capaz de banir o previsivelmente terrível. Desde há quase duzentos anos, este Novo se chama 'socialismo'. Este nome pode parecer a muitos como já não adequado ao tempo, dado que estiveram associadas a ele pretensões que se revelaram como ilusões, e porque teve de responder por circunstâncias que contradiziam todos os preceitos da humanidade. Mas o que se passa com o socialismo, com o objetivo primordial designado com esse nome na história recente? Aqueles que nos dizem que agora isso também teria definitivamente acabado têm, decerto, o espírito da época do seu lado, mas não os melhores argumentos. É que fazer crer que cada um por si, os indivíduos e os povos possam se salvar, que no um-contra-o-outro concorrencial de acordo com as leis do mercado ou segundo as regras da lei do mais forte, afinal, ainda se possa conduzir tudo para o bem - isto apenas é possível com aquelas pessoas que não querem ver os problemas. Os grandes problemas do nosso tempo exigem soluções coletivas, ou seja, soluções que, pela sua natureza, sejam antes socialistas do que liberalistas. Isto diz respeito tanto à proteção do meio ambiente como à solução do desemprego. Isto vale, ceteris paribus, também para os problemas entrelaçados a nível transnacional e. internacional. A luta dos povos e das nações pela sobrevivência tem uma chance de êxito já não como luta, mas apenas sob a forma de cooperação. O conceito social-democrata da aliança de segurança, por exemplo, assenta-se nesta compreensão, ou seja, a de que a segurança já não mais se alcança pelo armamento de um contra o outro, e que só é possível de se organizar pela conjugação das forças. Essa é uma parcela concreta da utopia, necessária porque afasta as necessidades da época, parcela essa que já hoje, e a despeito de todas as adversidades, começa a desenvolver o seu efeito prático.

Mas todas essas soluções coletivas devem ser de natureza a que respeitem o direito de cada homem, a sua dignidade, a sua individualidade, que não nivelem a pluralidade, mas que deixem um espaço de desenvolvimento às diferenças individuais e às diferenças específicas dos diversos grupos. Em muitos setores da sociedade (do nosso tipo altamente industrializado), já não surge hoje, como imediatamente plausível, a necessidade de regulações macro-sociais ou estatais. Isso tem muitos motivos: a burocratização do Estado, dos partidos e dos sindicatos e a restrição, excedendo largamente a medida inevitável em termos organizativo-sociológicos, da autodeterminação e da participação na gestão a nível dos grandes entes coletivos; os planejamentos contrários às necessidades dos homens, às suas angústias e às suas esperanças; a "colonização do habitat" como Habermas a chamou; mas também o movimento contrário da diferenciação saliente dos estilos de vida - mesmo se, melhor analisado, se tratar aqui freqüentemente apenas de um repertório sujeito à moda, de papéis e imagens próprias estandardizados - e da crescente individualização ou separação em pequenas comunidades, Numa tal situação, as estratégias necessárias para encontrar soluções coletivas apenas são concretizáveis se resultam de complicados e morosos processos de formação de consciência e de vontade, organizados de forma participativa, e se levam muito em consideração as diferentes necessidades, experiências e estados de consciência dos homens.

Concordo com Jürgen Habermas que, recentemente, num congresso sobre o futuro do Iluminismo, afirmou: "A crença em sujeitos de grande formato e na direção de grandes sistemas desmoronou-se. Até os movimentos sociais são hoje em dia um motor para a diversificação e a individualização. Porém, o louvor da pluralidade, a apologia do ocasional e do privado, a celebração da ruptura, da diferença e do momento, a insurreição das periferias contra os centros, o recurso ao extraordinário contra o trivial - tudo isso não deve se converter em subterfúgio perante os problemas que, se possível ainda, só podem ser resolvidos à luz do dia, apenas de forma cooperativa, e apenas com a última gota de uma solidariedade quase exangue."11 11 Jürgern Habermas, Die neue Intimitat Zwischen Politik und Kultur, em: Rüsen/Iämert/Glotz (ed.), Die Zukunft der Aufklärung, Frankfurt/M. 1988, pág. 66.

As grandes utopias perderam o seu fascínio, em parte porque na tentativa de concretizá-las foram completamente desfiguradas, em parte porque nesse processo foi pela primeira vez revelada a desumanidade nelas oculta. Os projetos globais de sistemas, concebidos a partir do ângulo de visão de estrategos sociais sentados em tronos nas altas esferas, inspirados no espírito da geometria ou numa dialética histórica completamente desinteressada de destinos individuais, já não despertam a imaginação, já não aquecem os corações das pessoas. Isto vale também e sobretudo para as representações ortodoxas do socialismo.

Penso porém que, no fundo, continua sempre a ser válida a alternativa repreendedora apresentada por Rosa Luxemburgo ao seu tempo em declínio: socialismo ou barbárie. Mas qual o socialismo que devemos ou que temos de escolher para não nos entregarmos ao barbarismo, para não preparar para nós e para os nossos próximos um fim bárbaro?

Desde há muito tempo deixou de ser viável, para os socialistas, teóricos, conceber os problemas diversificados que levaram o mundo moderno à beira da catástrofe apenas como um problema da organização capitalista da produção e da sociedade. Tornou-se demasiado óbvio que mesmo onde foi abolido o capitalismo (privado), e instalada uma economia estatal, surgiram - freqüentemente de forma até mais maciça do que no ocidente capitalista - os mesmos problemas ou pelo menos semelhantes. A crise do industrialismo, que vivemos atualmente, não significa apenas uma crise do capitalismo em combustão lenta, mas contribui também para a crise das formas e representações tradicionais do socialismo.

Durante mais de um século, o socialismo de inspiração marxista considerou como fraqueza essencial do capitalismo o fato dele dever forçosamente se converter em espartilho das forças produtivas, e, em conseqüência, sempre esperou da reconfiguração socialista da sociedade a libertação das forças produtivas e um novo aumento gigantesco da produção com base na racionalização extremada do trabalho. Hoje sabemos que o crescimento da prosperidade, no sentido tradicional, conhece limites naturais e sociais, e que a moderna técnica não traz só benefícios mas também enormes perigos. Conseqüentemente devem ser revistas as nossas representações de progresso, inclusive as do socialismo.

Mesmo Marx já havia visto que as forças produtivas podem se converter em forças destrutivas - sim, na maioria das vezes até o são simultaneamente. Todavia, ele não desenvolveu sistematicamente essa compreensão correta e fundamental. Para ele, a função mais decisiva da política socialista consistia na modificação das relações de produção, isto é, das condições gerais nos níveis social, jurídico e político da economia. Hoje em dia sabemos, ou podemos saber, que embora isso seja necessário também do novo ponto de vista crítico face ao industrialismo, por si só, no entanto, não é de modo algum suficiente, e que o resto da tarefa também não se resolve automaticamente se apenas se modificarem radicalmente as relações de produção. O modo de produção, como um todo, deve ser melhor adaptado às condições naturais e sociais da convivência humana. Á decisão em favor deste ou daquele tipo de técnica, em favor desta ou daquela forma de organização do trabalho, em favor desta ou daquela linha de produto, engendra múltiplos efeitos sobre a base natural da vida e sobre a convivência social dos homens. A técnica não é pura e simplesmente neutra, ela não se desenvolve de forma quase-natural. Ao mais tardar desde a implantação da tecnologia nuclear, deixou de ser possível sustentar a tese da inocência das forças produtivas.

Isso diz respeito igualmente à força produtiva "ciência". A libertação da ciência, da tutela de igreja e príncipes, constitui um grande êxito do iluminismo europeu. Mas o cientificismo ingênuo do século XIX e a estreita ligação do poder econômico e político à ciência conduziram a que, sob a bandeira da liberdade científica, se autonomizasse em larga medida um subsetor da sociedade, subtraindo-se a qualquer responsabilidade social. Em nome da liberdade científica, exércitos inteiros de cientistas empenham-se, hoje em dia, em desenvolver armas de extermínio sempre mais sofisticadas e eficientes, em alterar o código genético de plantas e animais, em preparar para exploração gigantescas fontes energéticas, em sintetizar um grande número de substâncias novas - todos são projetos cujo caráter perigoso penetra cada vez mais na nossa consciência, e cujos efeitos eventualmente desastrosos teremos de pagar, nós, nossos filhos e netos. A vinculação da ciência a objetivos humanos e sociais, portanto o abandono do postulado ilusório do "caráter avalorativo" da ciência, revela-se hoje como imprescindível se nós, enquanto homens, queremos sobreviver de uma forma digna do homem. Isso é em primeiro lugar uma questão de formação de consciência dos próprios cientistas e, conseqüentemente, também uma questão pedagógica. Além disso, é uma questão dirigida à nossa imaginação política, à nossa capacidade de criar novas instituições de controle e autocontrole. Que isso seja difícil, ninguém desejará pôr em dúvida. Mas recordemos: Auschwitz não teria sido possível sem o cientista alemão 'avalorativo', ou seja, educado para a irresponsabilidade ética e social, e o desenvolvimento da bomba atômica ocorreu porque milhares de cientistas rejeitaram como impertinência 'anticientífica', a questão do sentido da sua atividade.

A teoria socialista vê-se hoje confrontada com a tarefa de refletir de novo sobre a relação do homem (dos homens) com a natureza, com a ciência e a técnica, e com a (macro) organização da sociedade. Neste âmbito, essa teoria deveria partir de uma antropologia que levasse a sério, de igual modo, o homem como indivíduo e ser social, como ser racional e ser natural. A partir dessa perspectiva devem ser então desenvolvidas as imagens concretas de uma técnica que deixe de se encontrar na natureza "como um exército de ocupação no território do inimigo" (Ernest Bloc), que sirva ao desenvolvimento criativo e autodeterminado das faculdades humanas, e que não converta o homem em escravo de números de produção fetichizados. O mesmo ponto de partida antropológico poderia, e deveria, conduzir-nos a dirigir a nossa imaginação social para a tarefa de ordenar todos os âmbitos da sociedade de forma a que fosse alcançado o máximo de transparência e de possibilidade de participação real, sendo simultaneamente respeitados os limites econômico-temporais.

Um tal socialismo antropologicamente racionalizado e ecologicamente esclarecido teria de se afastar definitivamente do sonho tecnocrata de um planejamento e um dirigismo estatalcentralistas da economia. A tentativa de superar as irracionalidades e desumanidades do capitalismo, e também sua tendência para a concentração e centralização do poder econômico, pode ser considerada como historicamente refutada. O mecanismo de mercado, enquanto instrumento de direção sutil da economia nacional, é insubstituível. O fiasco da economia de administração central provou-o claramente. É certo que ela pôde, em virtude da concentração de todos os recursos, lançar "sputniks" ao espaço, porém esse sistema grosseiro não conseguiu satisfazer as variadas e inconstantes necessidades dos homens. O que importa é conservar e permitir o desenvolvimento dos efeitos positivos do mecanismo de mercado sem se expor aos efeitos destrutivos de um radicalismo do mercado. Domesticar o mercado em termos sociais e ecológicos, contrariar a sua tendência inerente à auto-anulação pela concentração do capital e pelo domínio do mercado, eis a tarefa difícil. Uma panacéia não existe. Somos dependentes do trial and error, de uma série de propostas imperfeitas de natureza 'social-democrata' que, porém, em face dos puros projetos de sistemas, têm a clara vantagem de serem 'vivíveis'.

Utilizar cuidadosamente os recursos naturais, evitar o desperdício burocrático, adaptar os sistemas de performance às necessidades dos homens e apresentar possibilidades eficazes de participação dos cidadãos na configuração das condições de vida - tudo isso exige forçosamente que se renegue o gigantismo de aparelhos privados e públicos e se retorne à produtividade social de pequenas unidades. A economia circulatória deve ser o objetivo, ou seja, a integração de todos os processos econômicos nos círculos naturais ativados e conservados pela afluência eterna - assim pensa o homem - de energia solar ao ecossistema Terra.

Existem muitos meios que podem contribuir para domesticar de forma social e ecológica a economia. As clássicas prestações compensatórias concedidas pelo Estado social integram estes meios, do mesmo modo que encargos ambientais juridicamente vinculados ou a ecologização conseqüente do sistema fiscal. E também o tema de democratização da economia se reveste, sob este aspecto, de nova atualidade. Que a antiga reivindicação do movimento operário da "socialização das forças produtivas", pelo menos sob a forma da nacionalização, não seja mais algo sensato, deveria, entretanto, estar claro para todos os socialistas teóricos. Mas como é que poderá ser configurada uma democratização da economia que não conduza ao impasse da economia de administração burocrática centralizada? Duas hipóteses que se revelaram como empiricamente viáveis consistem na gestão participativa e na formação de capital nas mãos dos trabalhadores. No caso da gestão participativa será decisivo conceder um direito de participação na deliberação e na decisão a todas as pessoas afetadas pelas decisões empresariais, ou seja, ao pessoal da empresa, aos habitantes da vizinhança, aos consumidores, da mesma forma como aos proprietários do capital. Em relação à participação dos trabalhadores no capital produtivo, as experiências suecas feitas com os fundos de capital poderiam fornecer uma importante orientação. Também uma "socialização", ou "neutralização do capital" (Ota Sik), sob forma de empresa de utilidade pública ou de cooperativa, e mais abrangente que a gestão participativa, é perfeitamente compatível com a economia de mercado, dado que não neutraliza o pressuposto decisivo da autonomia dos sujeitos econômicos no mercado. A fim de poder concretizar um critério de sucesso econômico, alargado pela dimensão social e econômica, é evidentemente necessária também a respectiva determinação dos pontos programáticos básicos da política de pesquisa, de desenvolvimento, de investimento e de incentivo ao investimento do setor público. No sentido da democracia seria desejável que as decisões a esse respeito pudessem ser tomadas através de eleições, com base numa larga discussão pública e em alternativas nítidas entre os partidos. Nenhuma economia moderna pode existir sem um tal "planejamento global". A única questão é a de saber se é levado a cabo de forma democrática ou a portas fechadas nos gabinetes da administração dos grandes consórcios, dos grandes bancos e da burocracia competente.

Um socialismo antropologicamente racionalizado e ecologicamente esclarecido tem de afastar da visão do futuro uma tutela global de todos os membros da sociedade por parte do Estado-providência. Tanto na economia como também no âmbito dos serviços sociais, verifica-se uma crescente dependência dos homens relativamente a prestações alheias e, paralelamente, uma decrescente capacidade de iniciativa própria e de resolução auto- organizada dos problemas. Aqui reside uma tendência perigosa para a liberdade com respeito a qual, em virtude de ser relativamente recente, até agora foi (pelo menos entre os socialistas) atribuída pouca atenção. Na base de uma proteção, suficiente e igual para todos, contra os riscos fundamentais da vida, deve ser futuramente atribuído um espaço mais largo à política social preventiva e à organização em pequena escala da resolução dos problemas por iniciativa própria, bem como a modelos combinados de prestação de trabalho profissional e participação dos interessados ou de leigos.

Embora seja muito importante criar, precisamente também no âmbito de uma estratégia social preventiva, mais igualdade no que diz respeito às condições materiais e culturais da vida, ou seja, riqueza, rendimento, tempo livre, oportunidades de formação e informação, distribuindo assim mais justamente as oportunidades de participação cultural e política, o objetivo último, no entanto, não reside na igualdade mas sim na multiplicidade, numa multiplicidade de manifestações individuais da vida que se revelam umas para as outras menos como restritivas do que como profícuas. Nesse sentido vale também hoje a máxima de Adorno que diz que devemos pensar o estado melhor "como aquele em que se pode ser diferente sem ter medo".

A viragem ecológica do socialismo não significa nem renegação da técnica e regresso às formas de vida pré-industriais, nem exclusivamente renúncia e ascese. Trata-se, pelo contrário, de desenvolver uma técnica mais sutil e mais adequada às necessidades humanas e de aplicá-la, bem como de se libertar da ilusão de que o aumento contínuo do volume de bens e serviços (mesmo com uma distribuição mais justa!) forçosamente ocorreria de forma paralela ao aumento do bem-estar dos homens. Nas sociedades industriais desenvolvidas, as reservas ainda não esgotadas de aumento do bem-estar já não residem tanto no aumento do consumo, mas antes na multiplicação das possibilidades de práticas autodeterminadas e de livre disposição do tempo. Aqui se tornam visíveis os contornos de uma nova sociedade de excesso que corresponde à deslocação, comprovada por Inglehart, para padrões de valores "pós-materialistas"12 12 Cf. Ronald Inglehart, Kultureller Umbruch. Wertwandel in der westlichen Welt, Frankfurt/New York 1989. , e que, contrariamente à velha concepção assentada no aumento de produção e consumo, pode fornecer uma base segura para uma convivência pacífica de homens livres, inclusive face aos limites ecológicos e aos limites sociais evidenciados por Fred Hirsch. Todavia, para esse efeito um socialismo ecologicamente esclarecido deve aproveitar as possibilidades técnicas para o aumento da produtividade do trabalho, e conseqüentemente para a redução do tempo da vida ativa, que não conduzam a uma desvalorização ainda maior do trabalho e à intensificação da poluição do ambiente.

Porém - e isto já se pode prever hoje em dia - a libertação do homem face ao trabalho e a criação de um país das mil maravilhas em que a produção é inteiramente automatizada (um sonho que o capitalismo e o socialismo sonharam em conjunto durante muito tempo) seriam alcançadas a um preço demasiado elevado: extrema dependência de aparelhos anônimos, maior consolidação de um poder não controlável, ou dificilmente controlável, em termos democráticos, e imensos riscos cuja superação poderia ser conseguida, quando muito, através de um número de meios de prevenção e de segurança anti-econômico e anulador da liberdade. Além do mais, devemos perguntar a nós próprios que sentido racional teria se a força criativa do homem, que por natureza é um ser produtivo e criativo, fosse privada de qualquer oportunidade de se provar útil no trabalho, prosseguindo-se na intenção de unicamente proporcionar a ela mais e mais possibilidades de aplicação subsidiária no tempo livre.

Por conseqüência, não a libertação face ao trabalho mas a libertação do trabalho deve constituir o objetivo primordial de um socialismo que retira sua força utópica das nossas dolorosas experiências históricas. Nesse contexto deve entender-se trabalho, no sentido lato, como atividade criativa, ou seja, incluindo todas aquelas formas sem fins lucrativos como o trabalho próprio, o auxílio mútuo na vizinhança, a atividade em grupos de iniciativa individual e em projetos caritativos etc. Na medida em que se aproveitarem as possibilidades de uma redução racional do horário de trabalho na atividade profissional, poderá ser alargado o espaço para atividades livres; simultaneamente, o desenvolvimento da atividade livre poderá tornar supérflua uma parte das prestações profissionalizadas de trabalho, e conseqüentemente a atividade profissional. Apenas numa tal perspectiva econômica dual podem ser superados os desvarios da economia capitalista- industrialista e desbloqueadas as grandes possibilidades de liberdade da sociedade moderna.13 13 As representações político-sociais aqui esboçadas encontram-se expostas em pormenor em: J. Strasser / K. Traube, Die Zukunft des Fortschritts, Bonn 1981, e em: J. Strasser, Grenzen des Sozialstaats?, Köln, 1983.

Até agora, sempre se falou em primeiro lugar em nós, daquilo que nós podemos e devemos modificar na nossa própria sociedade, qual o modelo de desenvolvimento que deveríamos levar adiante no futuro para que o progresso possa continuar a ser, ou melhor, se converter em progresso para mais liberdade, mais humanidade, mais qualidade de vida.

Será que assim me tornei culpado de provincianismo típico, de incapacidade de olhar para além do meu próprio nariz? Terei assim negligenciado de modo imperdoável os interesses da maioria dos homens, em especial do chamado "Terceiro Mundo"? Acho que não. Estou firmemente convencido que não podemos fazer nada melhor para os homens do "Terceiro Mundo" do que modificar o nosso próprio modo de vida, a nossa própria forma de atividade econômica, o nosso próprio modelo evolutivo. Naturalmente, isso não pode hoje em dia ocorrer apenas dentro do quadro nacional. A Comunidade Européia como espaço de configuração política e, conseqüentemente, a necessidade de harmonizar a política social pelo menos no âmbito da Europa ocidental, ganham sempre maior importância. Só se nós, porém, encararmos de forma determinada essa tarefa, então as outras medidas necessárias alcançarão também o seu pleno sentido: o desendividamento dos países do "Terceiro Mundo", a alteração da ordem econômica mundial, a sua regionalização, o fortalecimento da ONU, a modificação da política do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e do GATT, e a extensão e reorientação do auxílio ao desenvolvimento etc. Quem apenas tiver à mão a fórmula "continuemos assim" para a sua própria sociedade, o que poderá aconselhar aos outros e como poderá ajudar os outros?

Apenas tendo uma visão de um futuro digno de ser vivido, podemos fundar esperanças. Sonhar contra a tendência negativa do tempo, esta a primeira necessidade. Depois, forçar o sonho fugidio do mundo a regressar à confrontação com a realidade. Julgar possível o que ainda não existe, e ambicionar o que se revela como possível - portanto, a arte do possível, também no futuro, constituirá a essência da política. Mas será que a política aqui esboçada poderá existir face ao fascínio ainda poderoso irradiado pelo mais alto, mais rápido, mais longe, maior, pelas grandes soluções, pela passagem das fronteiras? Será que ela conseguirá se impor contra aqueles cínicos que, embora tenham há muito perdido a crença nos velhos deuses, tiram, no entanto, proveito próprio do fato de fazerem outros crer nesses deuses?

Ela o conseguirá, se puder tornar manifestas as novas possibilidades de sentido e de felicidade numa utopia concreta da melhor vida. Ela o conseguirá, ao meu ver, se ficar consciente do seu próprio pathos, o pathos da prática autodeterminada, da livre disposição do tempo, se souber despertar o entusiasmo em favor da aventura coletiva do aperfeiçoamento, e se conseguir materializar este pathos numa estética pós-prometéica! O esclarecimento e a emancipação podem fornecer uma orientação no nevoeiro sentimental da indústria da diversão pós-moderna, apenas se eles se materializarem, se eles se dirigirem à razão e ao sentimento, se eles souberem também exprimir o analiticamente compreendido em imagens, símbolos e metáforas, se o progresso voltar a falar uma linguagem que não saiba apenas impressionar a razão mas também tocar o coração.

Para onde se move a nossa sociedade, para onde se move a humanidade inteira, isso também constitui sobretudo uma questão cultural. O grande movimento do progresso social, que teve o seu início no movimento operário, mas que sempre foi também algo mais - ou seja, um movimento cultural - será que poderá se subtrair ao fascínio do decrépito modelo evolutivo industrialista, será que tem a força de engendrar novas imagens fascinantes de um futuro mais humano, será que é capaz de um socialismo democrático sublimado pela experiência e amadurecido pelas próprias derrotas?

Não! Nunca!, gritam para nós os Senhores da Verdade, os filhos do seu tempo, que se julgam realistas porque consideram tudo o que ainda não foi medido e contado como puramente impossível: O socialismo está morto! Como poderemos contestá-los? Apenas ao estabelecermos fatos, ao desenvolvermos uma outra prática de orientação contrária ao rumo catastrófico, ao tornarmos aquilo que foi declarado impossível, cã e lá e cada vez mais, real. Para que seja existente e visível aquilo que ainda há de vir, para que no presente se ilumine o futuro, forçando assim os crentes em fatos a chegar à compreensão de que sempre é possível mais do que o real.

  • 1 Kurt Biedenkopf, Fortschrill in Freibeit, München 1974, pág. 104.
  • 2 Ralf Dahrendorf, Die Chancan der Krise, Stuttgart 1983, pág. 23.
  • 5 Joseph Huber, Geistig erstarrt, moralisch erschöpft. Der Sozialismus wird nicht noch einmal revidiert, er hebt sich auf, em: Süddeustsche Zeitung de 21/22 de Outubro de 1989.
  • 7 Cf. Fred Hirsch, Social Limits of Growth, Cambridge/Mass. 1976, London 1977 (al. Reinbek 1981).
  • 8 Jean Delumeau, Angst im Abendland, Rowohlt, Reinbek 1989.
  • 9 Lucian Hölscher, Weltgerichl oder Revolution. Protestantische und sozialistische Zukunftsvorslellungen im deulschen Kaiserreich, Stuttgart 1989.
  • 10 Josef Luitpold, Zu meiner Zeit, em: Unter Tage, über Tage, Gedichte aus der Arbeitswelt, ed. por Walter Köpping, Frankfurt/M. 1986, pág. 153.
  • 11 Jürgern Habermas, Die neue Intimitat Zwischen Politik und Kultur, em: Rüsen/Iämert/Glotz (ed.), Die Zukunft der Aufklärung, Frankfurt/M. 1988, pág. 66.
  • 12 Cf. Ronald Inglehart, Kultureller Umbruch. Wertwandel in der westlichen Welt, Frankfurt/New York 1989.
  • 13 As representações político-sociais aqui esboçadas encontram-se expostas em pormenor em: J. Strasser / K. Traube, Die Zukunft des Fortschritts, Bonn 1981,
  • e em: J. Strasser, Grenzen des Sozialstaats?, Köln, 1983.
  • *
    Tradução de Jürgen Brummel.
  • 1
    Kurt Biedenkopf,
    Fortschrill in Freibeit, München 1974, pág. 104.
  • 2
    Ralf Dahrendorf,
    Die Chancan der Krise, Stuttgart 1983, pág. 23.
  • 3
    Idem.
  • 4
    Op. cit., pág. 18.
  • 5
    Joseph Huber, Geistig erstarrt, moralisch erschöpft. Der Sozialismus wird nicht noch einmal revidiert, er hebt sich auf, em: Süddeustsche Zeitung de 21/22 de Outubro de 1989.
  • 6
    Huber, op. cit.
  • 7
    Cf. Fred Hirsch, Social Limits of Growth, Cambridge/Mass. 1976, London 1977 (al. Reinbek 1981).
  • 8
    Jean Delumeau, Angst im Abendland, Rowohlt, Reinbek 1989.
  • 9
    Lucian Hölscher,
    Weltgerichl oder Revolution. Protestantische und sozialistische Zukunftsvorslellungen im deulschen Kaiserreich, Stuttgart 1989.
  • 10
    Josef Luitpold, Zu meiner Zeit, em:
    Unter Tage, über Tage, Gedichte aus der Arbeitswelt, ed. por Walter Köpping, Frankfurt/M. 1986, pág. 153.
  • 11
    Jürgern Habermas, Die neue Intimitat Zwischen Politik und Kultur, em: Rüsen/Iämert/Glotz (ed.),
    Die Zukunft der Aufklärung, Frankfurt/M. 1988, pág. 66.
  • 12
    Cf. Ronald Inglehart,
    Kultureller Umbruch. Wertwandel in der westlichen Welt, Frankfurt/New York 1989.
  • 13
    As representações político-sociais aqui esboçadas encontram-se expostas em pormenor em: J. Strasser / K. Traube,
    Die Zukunft des Fortschritts, Bonn 1981, e em: J. Strasser,
    Grenzen des Sozialstaats?, Köln, 1983.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1990
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