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Poder e credibilidade: o paradoxo político da reforma liberal

ÉTICA, POLÍTICA E GESTÃO ECONÔMICA

Poder e credibilidade: o paradoxo político da reforma liberal

José Luís Fiori

Cientista político e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

"Em uma sociedade rica e desenvolvida, em que todas as diversas classes da população gastam cada dia mais com suas casas, com sua mobília, com sua mesa, roupas e pertences, não é de se esperar que o soberano, sozinho, vá contra os costumes."

Adam Smith - A Riqueza das Nações

A autópsia dos planos de estabilização fracassados nessa última década revela algo que transcende as dificuldades imediatas do reequilíbrio macroeconômico de curto prazo, revela a existência de um paradoxo político que neste momento confunde as idéias, obstaculizando a ação e talvez inviabilizando de forma permanente o próprio projeto mais amplo de reforma liberal da economia brasileira. É a hipótese que tentamos expor neste artigo.

A eficácia dos "choques" econômicos concebidos na forma de pacotes administrativos mais ou menos ortodoxos durou pouco em quase todas as suas versões. Eles demonstraram capacidade de controle do processo inflacionário por um período limitado de tempo, apenas enquanto durou o efeito paralisante da demanda, logrado pelas políticas monetária e fiscal restritivas, e, sobretudo, pelo congelamento velado ou explícito de preços e salários. Mas desmoronaram quando a liberação dos preços e o consequente descongelamento dos salários trouxeram de volta a inflação em níveis e velocidades sempre maiores do que os que tinha antes do choque. Tal processo foi exponenciado pela incapacidade governamental de resistir às demandas e pressões sobre o gasto público, incapacidade que podemos considerar como o fator responsável pelo isolamento e impotência da política monetária, por mais restritiva que ela tenha sido. Os planos duraram o tempo em que foram respeitadas suas determinações coercitivas, e perderam eficácia quando a lógica utilitária do mercado se impôs à autoridade econômica.

Em síntese, todos aqueles planos defrontaram-se com o problema da falta de poder e de apoio das classes produtoras e foram derrotados pelo comportamento dos agentes econômicos, rigorosamente lógicos do ponto de vista das "leis do mercado". Ruíram ao não demonstrar capacidade de estabilizar novas regras e expectativas econômicas e políticas, condição sine qua non para que ultrapassassem sua fase coercitiva, atingindo um processo auto-sustentado de progressão, sendo que todas as tentativas de reimpor princípios corretivos acabaram em completos e acelerados fracassos, ficando o ensinamento de que, sem poder e sem adesão de empresários e trabalhadores, só resta à autoridade econômica a promoção ativa da recessão, a qual, assim mesmo, pode degenerar em estagflação.

O mesmo acabou ocorrendo com o Plano Collor. A apressada liberação dos ativos financeiros (congelados inicialmente) e dos preços, além da inábil opção pela inflação* zero, ocorridas em conjunto com a lenta mudança das regras financeiras pré-plano e à sombra do controle oligopólico da maioria dos mercados, trouxeram de volta a inflação. Só que desta vez acompanhada da desaceleração do ritmo da produção e do aumento do desemprego. Daí porque, vencido o período de "graça" do Plano, diminuiu o apoio da opinião pública ao governo e aumentaram as incertezas, reproduzindo-se uma situação vivida por todos os demais planos de estabilização. Mas, com o Plano Collor, este quadro apresentou algumas novidades importantes.

A opção rigorosamente liberal do governo impediu-lhe o uso de novas formas de coerção, mantendo-o apenas como um sinalizador do mercado mediante suas políticas monetária e fiscal restritivas. Com o agravante de que o plano de estabilização era, para o governo, o caminho de uma transição longa para uma nova forma, aberta e desregulada, de organização da economia brasileira, assumida como a única solução possível para a gravíssima e prolongada crise que atravessou toda a década de oitenta. Neste sentido, a aposta estabilizadora do governo supôs que os agentes econômicos e os atores sociais e políticos abdicassem de suas vantagens imediatas em nome do sucesso de seu projeto de longo prazo: alcançar o sonhado mundo em que só vigorassem as leis do mercado.

Neste ponto localizou-se, para nós, o grande paradoxo de todo o programa de estabilização e reformas econômico-institucionais do governo: a transição para o mundo do mercado acabou sendo barrada pelo próprio mercado; verdade que ficou nítida já no fracasso do primeiro Plano Collor, mas que assumiu força e formas cada vez mais variadas a partir do que passou a ser conhecido como Plano Collor II, anunciado em fevereiro de 1991, com vistas a corrigir as crescentes distorções macro-econômicas produzidas pelo plano anterior.

Em seu conjunto estes dois planos de estabilização e seus efeitos acabaram se transformando em verdadeira antologia crítica sobre o papel do poder e da credibilidade na eficácia das políticas econômicas dos reformistas neoliberais no Brasil.

De início pode-se afirmar que a experiência reformista do governo Collor foi conclusiva em um aspecto: as dificuldades encontradas pelo caminho transcendem o plano puramente técnico da política econômica, apontando todo o tempo para as suas relações com a política ou com as condições ou correlações de poder existentes no momento em que se inicia a estratégia reformista. No caso brasileiro, o que se esteve buscando, a partir desse "marco zero", foi a estabilização da moeda, a liberalização de uma economia situada à beira da hiperinflação e de um Estado protetor atravessado por interesses privados que já se cristalizaram, ao longo de décadas, em suas agências decisórias.

Assim, quando se inicia a tentativa liberal de desregulação e de "desprivatização" do Estado (que nada tem a ver com o processo paralelo de privatização das empresas e serviços estatais também proposto pelos liberais) há que se assumir, como um dado de realidade, a existência de um mercado já altamente distorcido pela presença de sólidos grupos que monopolizam de maneira extremamente heterogênea a estrutura de oferta e que segmentam de forma radicalmente desigual a estrutura da demanda.

É sobre este quadro de condições, construídas ao longo de décadas, que deve atuar a vontade política reformadora, tentando desobstruir os esclerosamentos que impedem o crescimento de longo prazo, tentando resolver os conflitos gerados pelas desigualdades e agravados pela compressão da demanda.

Frente a esta realidade fica clara, de imediato, a impossibilidade - ou ingenuidade - dos que propõem uma transição liberal por meio do próprio exercício do mercado. Uma contradição em termos, na medida em que se estaria tentando recriar as condições de funcionamento de um mercado, segundo o diagnóstico dos próprios liberais, viciado por longos anos de proteções acumuladas. Portanto, como se poderia, nesta situação, esperar que as "forças do mercado" fossem o melhor caminho para alcançar um outro mercado, que deveria ter na competição e no aumento da produtividade a fórmula correta para o aumento da lucratividade ?

Na verdade este problema é recorrente. Os teóricos do liberalismo não conseguem se desfazer da imagem idealizada de um "mercado originário", quando, no mundo real, o funcionamento dos mercados requer instituições que só logram estabilizar-se quando assentadas sobre um poder fundante, o qual as constitui mantendo válidas as regras básicas que viabilizam e sustentam a possibilidade de contratos e expectativas estáveis. Por isto, o que os liberais mais radicais não querem compreender é que propor como solução para a nossa sociedade a existência de regras e instituições estáveis é, no mínimo, um "acacianismo". Todos reconhecem a necessidade de regras e instituições duradouras. O difícil é chegar lá, construí-las e mantê-las impermeáveis à pressão de interesses heterogêneos. E, muito mais difícil ainda, é despermeabilizá-las depois que já foram longamente apropriadas por interesses privados capazes de distorcê-las em seu próprio favor.

Relembremos o óbvio: os reformistas liberais não estão partindo do "ponto zero". Pelo contrário, o governo e sua estratégia liberalizante estão partindo de um ponto avançado de distorção (segundo seus próprios termos), e só podem pensar -ainda que utopicamente - no "retorno" às regras de mercado mediante algum tipo de ação corretiva que, inevitavelmente, passará por fora do mercado, em termos de constituição do consenso, da vontade e do poder de transformação.

É sobre este pano de fundo que se deve compreender a invariável tendência "intervencionista" de todas as tentativas de reforma liberal de mercados desigualmente oligopolizados e altamente protegidos. Neste sentido, mesmo que os liberais mais radicais não se preocupem com a eventual destruição de capacidades produtivas, por força de urna eliminação apressada das proteções, não podem desconhecer, com um mínimo de realismo, que em situações não autoritárias a desregulação e a abertura da economia encontrarão resistências políticas e econômicas por parte dos empresários, fortalecidos pela proteção e oligopolização prévia dos mercados internos e externos.

A mesma dificuldade ressurge por um outro ângulo: o da visão jacobina da reforma do mercado e do Estado por meio do próprio Estado. Seja por obediência ao ideário ideológico liberal, seja pelos constrangimentos da política de estabilização em condições de inflação crônica, beirando a hiperinflação periodicamente contida por intervenções do poder federal, não é difícil compreender que as tentativas de corte do gasto público enfrentar-se-ão sempre com resistências que exigirão doses cada vez maiores de poder de coerção.

E é por isso que vale aqui, para a reflexão dos liberais e dos reformistas em geral, uma questão análoga a que propusemos sobre a proposta do mercado como panacéia universal. Fica difícil descobrir como reformar um Estado, altamente privatizado e corporativizado, através de medidas administrativas adotadas e executadas por agências do próprio Estado. Como no caso do mercado, também aqui não estamos partindo de um "marco zero" e sim de uma situação que se cristalizou através de décadas de apropriação privada, segmentação e corrupção da máquina estatal. Portanto é sensato esperar que o comportamento inercial de suas instituições e agentes tenda a reproduzir e reforçar os desvios existentes.

Uma vez mais, e também para o caso da opção jacobina, como aliás ficou extremamente visível nestes quatorze meses em que ela foi hegemônica, a reforma esbarrou na ausência das condições de poder que permitissem enfrentar e vencer as resistências. Condições que, em nosso caso, o presidente Collor pensou alcançar, e foi derrotado, nas últimas eleições para o Congresso e para os governos estaduais.

Uma primeira matéria, portanto, para a reflexão dos liberais, extraída da análise de suas constatadas dificuldades. O caminho do mercado e do "Estado mínimo" não pode ser o próprio mercado nem o próprio Estado. E para complicar o quadro parece que só muito dificilmente, em situações já consolidadas como a nossa, o Estado poderá ser o agente eficaz para se chegar ao mercado dos sonhos liberais. E o mercado oligopolizado e heterogêneo que temos pode ser o melhor caminho para substituir ou desmantelar o Estado.

Uma lição análoga pode ser tirada dos planos de estabilização econômica implementados em situações semelhantes à nossa, em que o Estado se encontra em condições de falência fiscal e perda de controle da política monetária. Foi, aliás, o que reconheceu o governo Collor ao promover uma reforma monetária que tanto chocou os liberais mais ortodoxos ou radicais e a própria sociedade civil, tão violentamente afetada. Entretanto, as resistências por parte dos grupos mais poderosos foram tão fortes que o Plano Collor I fracassou e o próprio governo tentou, em vão, ressuscitar a "ortodoxia" entre os meses de julho de 1990 e fevereiro de 1991.

O que demonstrou a experiência ? Que os preços e a moeda voltaram a "escapar" ao controle da autoridade pública, acionando de volta o processo inflacionário. E foram estes recorrentes descontroles, oriundos das distorções previamente constituídas e diagnosticadas pelos próprios liberais, que recolocaram a necessidade de novos choques administrativos cada vez mais ineficazes.

Frente a isto as autoridades, sem contar com poder e/ou adesão empresarial, optaram pela promoção ativa da recessão. Mas, também neste caso, desconheceram a especificidade de um país com distribuição de renda extremamente desigual. Quando a renda é altamente concentrada como no Brasil, também a demanda é altamente concentrada em um conjunto de agentes que é capaz de operar a sua própria liquidez.

Neste quadro, a recessão atinge primeiramente as parcelas de mais baixa renda, evoluindo de baixo para cima. Como consequência a recessão tem que ser muito prolongada. Para cumprir o seu papel e reduzir a demanda nominal. É o que aconteceu em outros países que também trilharam o caminho de um ajuste ortodoxo ou monetarista. A diferença, nestes casos, é que a situação prévia foi de maior homogeneidade e de melhor distribuição social.

Nada disso ocorre no Brasil, o que torna compreensíveis e justificadas as reações de uma população que é muito rapidamente jogada pela recessão em níveis baixíssimos de remuneração, ou simplesmente entre a massa dos marginais. As classes empresariais não desconhecem este fato e por isso, com o apoio da opinião pública, jogam sistematicamente a favor da interrupção da política recessiva, sobretudo nos aspectos que mais lhe interessam, isto é, preços, impostos e lucros.

Assim, as condições prévias de nossos mercados, já comentadas, reforçam uma resposta não produtivista dos empresários ao desafio da recessão. Pelo contrário, o que se vem assistindo é uma diminuição da capacidade produtiva com manutenção ou aumento dos preços, conformando o que os economistas chamam "estagflação". Mas não se trata, como chegaram a chamar os reformistas liberais do governo, de um comportamento a-ético dos empresários. Trata-se, isso sim, de uma resposta esperada e racional nos quadros de um mercado que não é evidentemente o que os liberais costumam encontrar em manuais de economia sobre "concorrência perfeita". E é interessante sublinhar que neste ponto convergem amplamente a ingenuidade dos jacobinos liberais e de seus críticos mais conservadores.

Mesmo assim, e ao final de muitos insucessos, alguns formuladores de política econômica compreenderam que o curto prazo estabilizador só se sustenta com a existência e a crença em um horizonte estável de longo prazo. E que, circularmente, este horizonte nunca será estável enquanto não se alcançarem resultados palpáveis na política de curto prazo.

Foi compreendendo o papel das expectativas na manutenção ou interrupção desta circularidade viciosa, e percebendo a dificuldade de estabilizá-la através de medidas da própria política econômica, que alguns de seus formuladores começaram novamente a apostar em uma variável decisiva porém exógena ao campo estrito da política econômica: o poder. Neste ponto vale uma observação. Mesmo quando equivocados na avaliação de qual fosse realmente a dose necessária de poder, estes novos jacobinos certamente tinham mais razão do que seus críticos que voltaram a defender o "acacianismo" da estabilização das normas.

O problema, contudo, é que se o diagnóstico estava relativamente correto, a prática dos jacobinos acabou levando-os a um impasse. E esta talvez tenha sido até agora uma das maiores lições do governo Collor. Sem contar com uma maioria absoluta no Congresso Nacional (condição da estratégia perdida nas eleições de outubro de 1990) e sem dispor de apoio solidário e incondicional do empresariado, o reformismo liberal tentou solucionar o problema avançando em uma dupla direção: a da re-centralização e concentração administrativa do poder e a do isolamento/enfrentamento das pressões de empresários e políticos. Processos perfeitamente visíveis durante todo o tempo da gestão jacobina da estratégia liberal da gestão Collor, ainda que isto só se tenha feito mais nítido a partir do Plano Collor II e das eleições dos governadores, quando as margens de manobra privada e dos poderes públicos regionais e locais ficaram extremamente restringidas.

Não é por acaso que, a partir daí, as pressões sobre o governo cresceram de forma exponencial. Os jacobinos acreditaram todo o tempo que o poder de que necessitavam era possível de ser obtido através do apoio incondicional do presidente e da formulação de normas cada vez mais detalhadas de "cerco" ao capital privado e aos agentes públicos. Um cerco que visava reconduzi-los a um "comportamento racional".

Pecaram duplamente os jacobinos. Nem o poder de que necessitavam decorria apenas do aval do presidente da República, nem as medidas de "cerco" teriam, ou jamais teriam, uma eficácia definitiva. Esqueciam-se, desta vez, que o comportamento dos vários agentes era perfeitamente racional neste mercado sobre o qual estavam operando e que sua capacidade de "fuga para frente", em condições liberais e democráticas, era absolutamente infinita como vinham demonstrando as sucessivas, e cada vez mais engenhosas, experiências do Banco Central.

Neste ponto não se pode deixar de sublinhar um outro grande erro jacobino. Da fé no sucesso de medidas econômicas tecnicamente corretas ou bem intencionadas, eles passaram a acreditar na eficácia de instituições criadas da noite para o dia e assentadas apenas em invenções e argumentos supostamente verdadeiros. Este talvez seja o denominador comum e universal de todos os jacobinos: a convicção de que as instituições e a história podem ser antecipadas por uma vontade inteligente e ética, atuando a partir do Estado e na direção "correta" dos acontecimentos.

Mas a história recente, mais uma vez, nos ensinou que a força, a solidez e a eficácia das instituições não se assentam numa "verdade" apriorística, e só muito lentamente constroem a sua credibilidade. Entre o ato jurídico e a normalização das instituições podem se passar anos, décadas ou séculos. O que parece certo, entretanto, é que na ausência de uma descontinuidade revolucionária, a excessiva atividade legisladora acaba por transtornar todas as referências e expectativas, podendo empurrar os atores sociais e econômicos para a ilegalidade. Uma ilegalidade, entretanto, que quase invariavelmente entra em choque com as "leis de mercado". E aqui tem-se a explicação do círculo vicioso criado por um liberalismo jacobino que, em nome do mercado, acabou se opondo e sendo atropelado pelo próprio mercado.

Nesse sentido não se pode desconhecer que as grandes empresas agiram de forma perfeitamente racional, e de acordo com a lógica do mercado, quando responderam às novas restrições cortando produção e emprego e mantendo as mesmas margens de lucro em novos níveis de vendas. O mesmo pode-se dizer dos assalariados que reagiram ao plano assumindo um comportamento compatível com as sinalizações macroeconômicas da evolução do mercado. Também eles exigiram o que consideravam seu direito, segundo as regras de mercado: a reposição de suas rendas. O mesmo comportamento racional tiveram as organizações políticas voltadas para a maximização de seu apoio eleitoral, disputado no mercado dos votos. Todos, portanto, comportaram-se rigorosamente de acordo com os termos da nova utopia, sustentada na idéia de que o caminho mais curto para a riqueza da nação e o bem comum passa pela maximização utilitária das vantagens individuais de mercado.

É neste sentido que se pode dizer que o "utilitarismo implícito" no funcionamento das forças de mercado vem, no Brasil, sendo o maior obstáculo para alcançar a estabilização da moeda e a abertura da economia. A utopia do mercado tem baixíssimo poder convocatório quando o que se requer é austeridade. Esta, pelo contrário, é uma utopia que quando entregue a si mesma produz autocumprimento imediato.

Por isso, em todas as bem-sucedidas experiências históricas de cunho liberal, essa utopia se realizou quando suas perversões imediatas foram corrigidas, controladas ou reguladas pela ação eficaz de algum outro princípio ou objetivo que transcendia o próprio mercado. Princípios ou objetivos que impuseram eticamente o autocontrole, condição paradoxal mas indispensável à afirmação progressiva e inconteste do próprio mercado. Fossem aqueles princípios de natureza religiosa ou ideológica, defenderam e justificaram igualmente a necessidade de uma ascese no presente, em nome de um futuro mais feliz. Não há projeto capitalista conhecido e bem-sucedido que tenha sido impulsionado pela idéia pura e simples do mercado e do seu imediato usufruto hedonista.

Nesse sentido, a expectativa governamental no sentido de que pudesse conseguir adesões dos agentes econômicos e sociais ao seu programa de austeridade em nome apenas de sua promessa de liberalização da economia, era não só ingênua como contraditória. E é exatamente neste vazio, criado pela ausência de objetivos éticos maiores ou de um projeto nacional de longo prazo, capaz de mobilizar os vários segmentos sociais para um esforço de austeridade coletiva, que ressurge a cada momento a questão da credibilidade presidencial ou do governo. Mas nos parece que esta questão está mal posta no debate corrente, devendo por isso ser repensada. Que tipo de credibilidade é esta que as decisões governamentais tentam conquistar ? Qual o verdadeiro sentido da "falta de credibilidade" ? Quem, afinal, é importante que acredite no governo e como fazê-lo crer ?

Depois de um ano e meio de mandato, ninguém mais tem dúvida de que o projeto governamental do presidente Collor obedece à cartilha neoliberal, e que ele tentará levá-lo em frente de qualquer maneira. Além disso, todos já estão se habituando à idéia de que Collor foi eleito constitucionalmente para um mandato presidencial de cinco anos e que deverá cumpri-lo a despeito do comportamento da conjuntura macroeconômica, em nome da estabilidade democrática, E isso apesar de que muitos tenham plena consciência, hoje, de que as intervenções militares na América Latina estiveram quase sempre associadas exatamente à intensificação dos conflitos distributivos sinalizada pela aceleração inflacionária e pelos demais desequilíbrios macroecônomicos. Por outro lado, o presidente jurou lealdade à Constituição e tem respeitado, apesar de tudo, as decisões dos demais poderes da República. E o próprio uso atrapalhado que vem sendo feito das medidas provisórias como instrumento de governo, faz parte do corpo constitucional recentemente promulgado. Não passa por aí, portanto, a sua falta de credibilidade. E quando se exige maior credibilidade, certamente não se está exigindo maiores demonstrações de fé liberal e democrática do presidente.

O problema, portanto, está em outro lado. Como a utopia do mercado é de consumo e realização imediatas, e como sua realização destrói o programa de governo, o que se chama eufemisticamente de "falta de credibilidade" deve ser visto, na verdade, como um problema de falta de poder.

Na ausência de objetivos que, transcendendo o mercado, o regulem e o orientem para além de seu imediatismo, o que aparece como sucedâneo inevitável da falta de utopia é a afirmação pura e simples do poder. Poder real, isto é, poder político para desmontar instituições, mas sobretudo para estabelecer e sustentar normas e metas constantes. O poder, portanto, de estabilizar expectativas econômicas e políticas, como única forma de promover um comportamento não imediatista dos agentes econômicos, os quais, confiantes no poder que sustenta as novas regras, podem, respeitando as imposições do mercado, fazer cálculos de longo prazo e maximizar vantagens por meio de iniciativas de maturação lenta. Só dispondo deste poder, ademais, o governo pode levar a bom termo uma política fiscal e salarial restritiva, obrigando os demais atores não-empresariais a esperar legalmente que o crescimento, a longo prazo, reponha as perdas salariais e recrie os empregos perdidos.

Neste sentido, a credibilidade que interessa para o sucesso do programa econômico tem pouco a ver com a volatilidade da opinião pública e tem muito a ver com a percepção, por parte dos empresários e dos trabalhadores, de que o monopólio do poder se encontra com o governo. Um governo capaz, por isso, de sensibilizar os capitais privados mediante a estabilização das regras e instituições econômicas e de desestimular as reivindicações salariais e as pressões fiscais através de uma atitude firme, de uma legislação rigorosa e da repressão, quando necessárias.

Este é o paradoxo que os liberais, uma vez mais, não querem ver. A austeridade imposta pela transição para o mundo do mercado, na forma de penalidades desigualmente divididas, não se legitima pela afirmação utópica do próprio mercado. E, na ausência de qualquer outra ideologia dominante, a transição, ou se faz por meio de uma ou várias pactuações sociais, ou direta-mente mediante instrumentos coercitivos destinados a impedir que os agentes econômicos se comportem, paradoxalmente, segundo as regras do próprio mercado.

É neste ponto que se afirma, hoje, uma dura e instabilizadora verdade. A fragilidade do governo é muito grande e decorre, por um lado, de seu isolamento político, empresarial e sindical, e, por outro, de sua excessiva submissão ao comportamento errático da opinião pública.

Os votos conquistados pelo presidente Collor, em dezembro de 1989, não lhe asseguraram a maioria parlamentar indispensável. Sem esta maioria, sólida e fiel, o presidente seguirá sendo pouco confiável. Nesse sentido, descartada uma mudança institucional, só a reconstrução desta maioria poderia alterar este quadro. No nosso ponto de vista, só esta afirmação inconteste de poder faria com que os empresários aderissem ao governo e neste caso, os trabalhadores teriam que resistir da forma que pudessem. A sociedade brasileira poderia transitar para o idealizado mundo do mercado, movido, então, pela paupérrima utopia da eficiência e da modernidade - inteiramente ininteligível para a maioria da nação - e pelo uso constante da força da lei. Talvez aí os liberais entendessem satisfeitos que as leis do mercado não permanecem as mesmas, sendo muitas vezes políticas. Nada de novo, afinal. O próprio Adam Smith há muito tempo já explicou as relações indissolúveis existentes entre o poder do Príncipe e a estabilidade da moeda.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 1992
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