NOVAS DEMOCRACIAS E VELHO PROGRESSO
Capitalismo democraticamente planejado? A tríplice transição no Leste europeu* * Social Research, vol. 58, nº 4, 1991. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Congresso da Associação Internacional de Ciência Política realizado em Buenos Aires em julho de 1991.
Claus Offe** ** Tradução de Regis de Castro Andrade.
Professor de Sociologia na Universidade de Bremen
As teorias da convergência dos anos 60 e 70 previam que os dois sistemas político-econômicos rivais mais ou menos rapidamente assimilar-se-iam um ao outro e de forma inevitável se moveriam um em direção ao outro. O Leste seria enriquecido com elementos de mercado enquanto a ordem econômica "mista" do capitalismo ocidental já tinha adotado elementos de produção e distribuição organizados pelo Estado.
O problema dessa teoria, como se tornou evidente, é que só o Ocidente era capaz de "combinar". As sociedades socialistas, de sua parte, sentiam-se constantemente ameaçadas de "voltar atrás" caso fizessem concessões à liberalização política, (competição de partidos, liberdade de opinião), à independência nacional, à formas descentralizadas de propriedade e à formação competitiva de preços, sem mencionar a "democracia econômica".
Soluções ocidentais foram constantemente eliminadas das reformas. Por toda parte a auto-transformação da sociedade socialista deflagrava nas elites políticas um medo justificado de desintegração do sistema. A tese do "óleo derramado" - que prevê a difusão generalizada e automática de distúrbios funcionais no caso de mudança em um único ponto que governa o sistema econômico, não se aplicou precisamente aos sistemas para os quais foi formulada, isto é, as democracias capitalistas ocidentais. Ela foi, entretanto, claramente corroborada para os regimes de socialismo de Estado. Como mostram os resultados dos debates dos anos 60 e 70 sobre reforma econômica no bloco oriental, esses regimes não conseguiram incorporar princípios que lhes são opostos em dose suficiente e não-prejudicial.
"Reformas de cima" resolutas foram descartadas pela liderança soviética pois se suspeitava que conduziriam a complicações e desestabilizações imprevisíveis - até mesmo incentivar perigosamente "reformas de baixo" ou, pior ainda, uma "revolução de baixo". O que sobrou dessa situação bloqueada foi uma saída que parecia tão improvável antes quanto inevitável depois dos fatos: a "revolução de cima", defendida por Mikhail Gorbatchev. A revolução soviética "de cima" criou as condições necessárias para o sucesso das reformas e revoluções "de baixo" que se seguiram nos outros países dos desintegrados Pacto de Varsóvia e Conselho de Ajuda Económica Mútua.
Essa transformação é uma revolução sem um modelo histórico e sem uma teoria revolucionária. Sua característica distintiva mais marcante é a ausência de quaisquer suposições teóricas elaboradas ou de argumentos normativos relativos a quem deveria executar que ações, sob quais circunstâncias e com que objetivos, quais os dilemas esperados no percurso e como deveria ser constituída a nova síntese da ordem pós-revolucionária. Em todas as revoluções dos últimos dois séculos, havia variados tipos de respostas a essas questões, embora a maioria delas tenha se mostrado incorreta. Essas respostas foram formuladas independentemente do contexto imediato da ação e de situações específicas e eram conhecidas dos agentes participantes; neste sentido eram respostas teóricas.
No caso das transformações sociais da Europa Central e do Leste da Segunda metade dos anos 80, entretanto, essas questões permaneceram por enquanto não respondidas, ou são respondidas pelos atores participantes apenas por respostas de colorido tático na forma de auto-justificações e diagnósticos conjunturais ad hoc. O curso rápido dos eventos não apenas se desencadeou inesperadamente, como também não foi guiado por nenhuma seqüência premeditada nem por princípios ou interesses comprovados sobre os quais os participantes tivessem clareza. Em vez de conceitos, estratégias, atores coletivos e princípios normativos o que há são pessoas atuando e suas descobertas do momento, dotadas de um conteúdo semântico intencionalmente obscuro, entre elas as palavras de ordem "glasnost", "perestroika", e a metáfora da "casa comum européia".
O caráter claramente "a-teórico" do levante social se reflete nas formas literárias que o acompanham. Estão totalmente ausentes todas aquelas expressões analíticas e diretivas grandiloqüentes dos intelectuais revolucionários. Quando os cientistas sociais se expressam, fazem-no não na forma de uma interpretação global dos eventos e de suas dinâmicas de ação, e sim na de descrições mais modestas de aspectos singulares, quando não no papel de meros cidadãos ou pessoas preocupadas, sem reivindicar qualquer insight profissionalmente qualificado. Parece que essa revolução, pelo menos por enquanto, força os ideólogos e teóricos a um bem-vindo silêncio, sendo simultaneamente a hora e a vez de formas literárias como o diário, a reportagem, a carta e a autobiografia. Na ausência de uma teoria revolucionária prescritiva "ex-ante" válida, ou melhor, na ausência de qualquer teoria revolucionária, a tarefa do cientista social é compreender o que realmente aconteceu.
A SINGULARIDADE DA TRANSFORMAÇÃO NO LESTE
Um ramo importante e bem sucedido das ciências sociais ocupou-se na última década, sob o rótulo de "transição para a democracia", com estudos comparativos dos processos de modernização política desde a Segunda Guerra Mundial.1 1 G. O'Donnell, P. C. Schmitter, L. Whitehead (org.), Transitions from Authoritarian Rule, 5 vols., Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986. Três grupos de países estão no centro destas investigações: as democracias do pós-Guerra (Itália, Japão e Alemanha Ocidental); os processos democráticos mediterrâneos dos anos 70 (Portugal, Espanha e Grécia); e o colapso dos regimes autoritários na América do Sul durante os anos 80 (Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, Paraguai).
A sugestiva tentação de adicionar àqueles um quarto grupo - os Estados da Europa Central e do Leste - e analisá-los com o instrumental já testado fornecido por essa tradição, terminou se revelando uma tentativa inadequada e falaciosa. A revolução que ocorre nos antigos países socialistas difere basicamente em dois aspectos das transições nos países mencionados acima. Em primeiro lugar, no caso das democracias do pós-guerra (com exceção da Alemanha dividida), e dos países do sul da Europa e América Latina, a integridade territorial e a organização de cada país foram em grande parte preservadas e o processo de democratização não ocasionou nenhuma migração populacional em larga escala. Esses Estados mantiveram sua população e as populações permaneceram em seus Estados. Na Europa Central e do Leste, a situação é diferente: lá a cena é dominada por disputas territoriais, migrações, conflitos de minorias ou de nacionalidades e pelas correspondentes aspirações separatistas (sem mencionar a exceção alemã, o único caso de fusão nacional de dois Estados previamente separados).
Mais importante ainda é a segunda diferença. Nos casos mencionados de "transição para a democracia" os processos de modernização são de natureza estritamente política e constitucional, isto é, dizem respeito à forma de governo e às relações legais entre o Estado e a sociedade, enquanto que no fim do socialismo a tarefa adicional de reformar a economia está na ordem do dia. Nos países onde ocorreu a transição para a democracia, o capital permaneceu nas mãos de seus proprietários e via de regra os proprietários mantiveram o controle sobre seu capital. Já a União Soviética e seus antigos satélites defrontam-se com um problema agudo, completamente diverso e mais complexo: a transferência dos equipamentos produtivos, até então de propriedade estatal, para outras formas de propriedade, sendo para isso necessária a criação de uma classe inteiramente nova de empresários e proprietários de um modo que deve ser decidido e justificado de forma política e por meio de atores politicamente visíveis. A criação revolucionária de uma classe empresarial (isto é uma categoria de agentes previamente inexistente que devem agora participar de uma competição de mercado fundado em direitos de propriedade) é uma tarefa que nenhuma das transições políticas citadas teve de realizar (algo bastante atenuado quando se descreve a revolução como sendo apenas um processo de "recuperar o tempo perdido" (Habermas).2 2 J. Habermas, Die nacbholende Revolution, Frankfurt: Suhrkamp, 1990, pp. 179-204.
A natureza singular e sem precedentes do processo de transformação da Europa Central e do Leste - e os desafios para a teoria democrática que dele emergem - só são completamente percebidos se nos lembramos que qualquer sistema político que funciona é o produto combinado de três níveis hierarquizados de tomada de decisão3 3 Cf. H. Kitschelt, Easton. . No plano mais fundamental deve-se tomar uma "decisão" sobre "o que somos", isto é, uma decisão sobre identidade, cidadania, bem como sobre os limites territoriais, sociais e culturais do Estado-nação. Num segundo nível deve-se estabelecer regras, procedimentos e direitos, que juntos compõem a constituição ou o quadro institucional do "regime". É só no plano mais elevado que se dão os processos e decisões, às vezes confundidos com a essência da política, sobre "quem ganha o quê, quando e como?"
Pode-se argumentar que cada um dos três níveis mantém forte afinidade e invoca uma das três características humanas identificadas pelos primeiros filósofos políticos modernos. A primeira diz respeito às paixões, à virtude e ao patriotismo; a segunda à razão e a terceira ao interesse. Esse modelo em três níveis sugere claramente ligações de determinação ascendente: a "política normal" que se dá no terceiro nível está embuída de identidades e constituições. Na maioria dos sistemas políticos essa determinação é antes unilateral e causal do que intencional. Por unilateral refiro-me à relação assimétrica pela qual os níveis inferiores determinam os superiores, mas em que a seta causal raramente, quando não nunca, aponta na direção oposta. Por exemplo, a constituição governará a política normal muito mais frequentemente do que ela própria será objeto da política normal, resultando em mudança constitucional. Simplesmente não há muita retroatividade. Por determinação causal (e não intencional) quero dizer que o efeito que os níveis inferiores terão sobre os superiores não se deve a nenhuma ação ou desígnio proposital. Isso significa que entre os três níveis existem véus de ignorância que resultam, entre outras coisas, das estruturas temporais bastante diversas entre os três níveis: tendemos a acreditar - e a experiência tende a confirmar - que as nações duram séculos, as constituições algumas décadas e os governos ou leis instituídas pela legislatura alguns anos. Se isto é assim, como poderia qualquer ator imaginável delinear as fronteiras de um Estado-nação com o objetivo de assim determinar os fenômenos muito mais contingentes que se passam abaixo disso como a constituição e os regimes, os governos e as decisões de distribuição? Na medida em que se assume que as decisões nos dois planos mais baixos são fixas, o sistema depende muito da trajetória e seus parâmetros são à prova de estratégia.
No que tange ao terceiro nível, a teoria democrática oferece boas respostas, tanto descritivas quanto normativas. Os problemas e paradoxos começam se nos movemos um nível abaixo: deve-se permitir que os jogadores decidam as regras do jogo durante o decorrer da partida, bem como o escopo de "sobre" o que o jogo diz respeito? Sob que cláusulas de cautela devem fazer isso? Pode-se democratizar a própria democracia?4 4 Cf. Holmes, Przeworski. Se a resposta for não, em que sentido pode-se ainda falar em democracia e suas implicações de "soberania popular"?
Questões ainda mais espinhosas povoam o primeiro nível, isto é, o plano da nacionalidade, identidade coletiva e fronteiras territoriais. Quaisquer que sejam as regras constitucionais, somente se permite um papel ativo no jogo aos que desfrutam dos direitos da cidadania. Mas, quererá isso dizer que as regras básicas de admissão ao jogo devem basear-se apenas na decisão unilateral dos que, devido o local de nascimento ou direitos herdados de cidadania, já fazem parte do jogo, ou alternativamente, nos fatos irracionais de guerras civis ou internacionais, na melhor das hipóteses contidas pela frágil teia das leis internacionais e regimes transnacionais? Ou a teoria democrática pode transcender seu território usual da "política normal" e proporcionar critérios pelos quais se possa classificar como mais ou menos "democrática" tanto uma mudança constitucional quanto a definição de fronteiras?
Nos dois últimos anos essas questões saíram de seu lugar segregado na agenda dos seminários filosóficos para o espaço dos problemas práticos amplamente percebidos, e diariamente alardeados pelas manchetes diárias dos jornais. O que costumava ser o Segundo Mundo, o do Império Soviético, passa atualmente por uma tríplice transformação que afeta os três níveis, o da nacionalidade, o da elaboração constituinte e o da "política normal" de distribuição. A simultaneidade mesma das três transformações gera cargas de decisões de magnitude sem precedentes. Diferentemente da situação das democracias ocidentais não há tempo para a maturação, experiência e aprendizado graduais, ao longo da escala evolucionária de constituição da nação, de elaboração de uma constituição e da política de alocação e redistribuição. E não há modelos a serem imitados ou um poder vitorioso que imponha sua vontade de fora, como ocorreu com os novos regimes da Europa Ocidental e Oriental no pós-guerra. Conseqüentemente as decisões tomadas nos três níveis podem facilmente tornar-se incompatíveis, obstruindo umas às outras em vez de formar um todo coerente.
O risco resultante da simultaneidade é exacerbado por um outro. Uma situação de extrema contingência convida ao oportunismo e levanta o véu de ignorância. Agora os atores estão em posição de avaliar que modelo constitucional e que fronteiras étnicas de um Estado servirão melhor aos seus interesses por certos resultados políticos ou a suas paixões com respeito a identidades e ressentimentos étnicos. A situação está cheia de oportunidades, corretamente percebidas como únicas em seu escopo, para melhorar o "legado original" de cada um ou para se vingar. Correspondentemente o "esforço moral" necessário para vencer as tentações geradas por uma situação que não mais é à prova de estratégia aumenta. Na ausência desse esforço na medida necessária, tudo - fronteiras, direitos, procedimentos, distribuição de poder, direitos legais e recursos materiais - será discutido e defendido em termos "conseqüêncialistas" e não com base nos antecedentes históricos e em princípios de justiça, liberdade e paz.
O DILEMA DA SIMULTANEIDADE
Em vista dessas duas dimensões adicionais a transformação revolucionária no Leste europeu só pode ser analisada com meios conceituais cujo uso nunca foi exigido em quase toda a Europa Ocidental e do Sul desde a 1ª Guerra Mundial. Na União Soviética e na maioria de seus satélites estão em jogo simultaneamente:
- a questão territorial5 5 Na expectativa de uma revolução proletária mundial os fundadores da União Soviética se dispensaram de indicar oficialmente os limites geográficos do Estado em seu nome oficial de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Este é talvez o único caso moderno de um Estado existir sem nomear seu lugar no espaço. Mesmo os Estados Unidos da América operam com essa auto-localização, embora seja falaciosa, uma vez que diz respeito ao continente todo. No caso da União Soviética, o que talvez tenha sido um convite às outras repúblicas soviéticas que pudessem estar emergindo em qualquer lugar do mundo para juntar-se à União, isso se transformou precisamente em um convite para que todos os portadores de identidades étnicas e nacionais até então oprimidas e negadas se separassem, pois não tinham mais qualquer razão para se incluir na categoria agora vazia de "cidadão soviético". , isto é, a determinação dos limites do Estado e da população, e a consolidação das fronteiras no contexto de uma ordem européia de Estados ("casa européia comum");
- a questão da democracia, isto é, a dissolução das pretensões de monopólio de um partido e sua substituição pelo exercício constitucionalmente limitado da autoridade e pela competição de partidos no contexto de garantias aos direitos humanos e de cidadania básicos ("glasnost"); bem como
- a questão da ordem econômica e da propriedade, e o tratamento político ordenado dos problemas urgentes de produção e distribuição ("perestroika").
As fases de um processo que no caso dos exemplos europeus "normais" levaram séculos (do Estado-nação para o capitalismo e depois para a democracia) devem, assim, ser cumpridas quase que simultaneamente na Europa Oriental (da mesma forma como ambos os componentes da economia política "moderna", a saber, a democracia e a propriedade privada, foram simultaneamente abolidas pela revolução de Outubro). Isto ocasiona não apenas gigantescas responsabilidades decisórias como também efeitos mútuos de obstrução. É possível que qualquer um destes problemas só possa ser resolvido quando se puder acreditar que um dos outros dois problemas (ou mesmo ambos) já tenha (ou tenham) sido resolvidos(s) ou que não necessite de solução no momento.
Quero a seguir examinar o fenômeno do bloqueio mútuo de soluções de problemas e assim mostrar que, embora o proverbial conselho de "fazer uma coisa de cada vez" em vez de "fazer tudo de uma só vez" tenha uma firme fundamentação a seu favor, os protagonistas podem se encontrar na trágica situação de ter que recusar esse conselho e seus bons fundamentos por razões igualmente importantes.
Tudo isso seriam considerações vãs se fosse possível mostrar que a abertura da economia até então planejada para a economia de mercado e a democratização do processo de decisão política não excluem e não impedem mutuamente uma à outra, e que ao contrário se reforçam e se complementam. De fato, análises dos sistemas socialistas existentes tentam mostrar que essa interação realmente ocorre entre os dois objetivos - por si só desejáveis -, os de modernização econômica e modernização política. Observando o desenvolvimento político e econômico da Tchecoslováquia antes de 1968, Jiri Kosta tentou mostrar "que o processo de reforma da economia [que se impôs ao regime no início dos anos 60 pela evidente ineficiência dos procedimentos de planejamento]... transformou-se em poucos anos em um movimento democrático que derrubaria as velhas lideranças".6 6 J. Kosta, "Ökonomische Aspekte des Systemwandels in der Tschekoslowakei," R. Deppe et ai. (org.), Demokratischer Umbruch in Osteuropa (Frankfurt: Suhrkamp, 1991), pp. 302ff. O certo é que restou o fato deste circuito virtuoso que supostamente se verificou entre liberalização econômica e democratização política ter sido rompido pela terceira questão, o da integridade e soberania nacionais, isto é, pelos eventos de agosto de 1968 e pela proclamação da doutrina Brezhnev.
CAIXA DE PANDORA REPLETA DE PARADOXOS
Hoje, por outro lado, o campo está tomado, nas disciplinas e áreas políticas envolvidas, por suposições um tanto pessimistas do tipo círculo vicioso.
A única circunstância sob a qual a economia de mercado e a democracia podem ser implantadas simultaneamente e vingar apresenta-se quando ambas são impostas de fora sobre a sociedade e garantidas por relações internacionais de dependência e supervisão por um longo período de tempo. Essa é a lição oferecida peias democracias do pós-guerra que emergiram em países arruinados pela conflagração como o Japão e, com algumas qualificações, a República Federal Alemã - e talvez logo, a ex-República Democrática Alemã. Do contrário, reina por toda a parte um antagonismo (no mínimo) assimétrico: "o mercado exige que a democracia se desenvolva mas a democracia não requer a emergência do mercado... Se a perestroika afundar, logo a glasnost também terminará7 7 Wirtschaftswoche 43 (1989), nº 5, 27 de Janeiro de 1989, p. 110. As palavras são de Wolfram Engels, importante economista neoclássico alemão e editor desse grande semanário econômico. Ele também se refere aos exemplos do Chile de Pinochet e à Coréia do Sul. ." Os membros da burocracia da antiga Polônia, Bulgária, Romênia e União Soviética, que há pouco se reorientaram para reformas econômicas, reivindicam estar completamente de acordo com essa mensagem resoluta de livre-mercado quando argumentam ser agora necessária a mão de ferro de um regime presidencial forte, e não uma abertura democrática "prematura". Os stalinistas que se salvaram no pós-comunismo divergem da tese do livre-mercado apenas para proclamar que para a perestroika não fracassar, deve-se esquecer a glasnost.
Pode-se delinear um outro dilema da seguinte forma: um sistema político constitucional e democrático encontra seu conteúdo apropriado de questões e clivagens, cujo processamento sem percalços continuamente reproduz sua legitimidade, só se já tiver ocorrido uma certa medida de desenvolvimento econômico autônomo e quando tiverem emergido do sistema de divisão social do trabalho, coalizões de interesses, atores coletivos e temas de conflito - em contraste com o que ocorre nas sociedades artificialmente homogêneas do socialismo existente.
Somente uma sociedade de livre mercado relativamente desenvolvida permite que a democracia competitiva funcione como um procedimento para a arbitragem e reconciliação de interesses8 8 Iipset. . Em uma sociedade onde não há mercado de trabalho e onde a grande maioria da população adulta consiste do assim chamado Wertätige ("trabalhador", "trudjascijsja") com salários semelhantes e condições de vida, moradia e educação homogeneamente regulados, a democracia competitiva carece, devido a essa estrutura social de "diferença" reprimida, de protagonistas suficientemente formados e de questões consideradas dignas de serem processadas pela maquinária da política democrática. Ou então a ausência de uma complexidade desenvolvida na sociedade civil leva à predominância de temas que embora se prestem ao conflito não se prestam à negociação. Em ambos os casos, aparentemente antagônicos, de homogeneidade perfeita e de antagonismo profundo, a estrutura social carece do grau necessário de diferenciação, o que só uma sociedade de mercado desenvolvida pode gerar.
Mas a homogeneidade pode ser apenas a aparência externa de antagonismos reprimidos. A socióloga polonesa Jadwiga Staniskis tem isso em mente quando escreve: "Na medida em que os fundamentos econômicos para uma sociedade civil genuína não existem, a mobilização maciça da população só é possível por meio de apelos nacionalistas ou fundamentalistas9 9 J. Staniska, "Dileramata der Demokratie in Osteuropa", in Deppe et al. (eds.), op. cit. 326. ." Ela deixa implícito que esses temas de mobilização conduziriam à rápida perversão da abertura democrática em um regime populista autoritário hostil a minorias internas ou externas. Como conseqüência, não apenas a economia de livre mercado como a própria democracia ruiriam se esta última fosse introduzida muito apressadamente.
De outra parte, e já antes da introdução da propriedade privada e da economia de mercado, são necessários procedimentos que imponham à elite política a prestação de contas e que permitam a participação da maioria da população - em outras palavras, pelo menos procedimentos democráticos rudimentares são necessários nos estágios iniciais da transformação, não só porque somente concessões democráticas serão capazes de apaziguar a indignação face às arbitrariedades e ao autoritarismo paternalista praticadas pelo velho regime, como também porque de um certo ponto de vista a democratização aparece -apesar dos três aspectos inteiramente distintos já mencionados -como a pré-condição da transformação econômica. Em contraste com sua equivalente ocidental, a emergente economia de mercado da Europa do Leste é um "capitalismo político", em outros termos, é um capitalismo organizado e posto em ação pelas elites reformadoras. Sua motivação fundamental não é o dado pré-político do direito natural lockeano) do proprietário à sua propriedade e a seu livre usufruto. Essa motivação é o que no caso dos países ocidentais só foi descoberto posteriormente como um benvindo efeito colateral funcional da ordem econômica baseada na liberdade de propriedade, o fato de que um mecanismo econômico eficiente serve aos interesses gerais da sociedade, pelo menos a longo prazo. As elites da reforma representam os interesses da sociedade, sem entretanto serem capazes, no processo, de se apoiar e apelar aos proprietários capitalistas já existentes e suas reivindicações, interesses e proposições ideológicas.
Novamente é evidente a diferença com o padrão ocidental de desenvolvimento do capitalismo. Aqui a classe proprietária reclama direitos baseados em argumentos morais e ideológicos que criticam as forças e instituições dos velhos regimes absolutistas, mercantilistas e feudais; a eficiência, o crescimento econômico e eventualmente a prosperidade são apenas sub-produtos de iniciativas ideológicas vitoriosas tomadas pelos primeiros protagonistas empresariais e comerciais da classe de proprietários. Lá, em contraste, a privatização e a mercantilização não são derivadas do direito mas direcionadas pelos resultados; não se baseiam em classes e sim são iniciativas das elites; não são processos lentos, com idas e vindas e sim processos repentinos e muito visíveis; não apoiados por argumentos morais e ideológicos e sim defendidos em nome de benefícios econômicos para todos.
A vontade empírica da maioria da população, entretanto, tipicamente não reconhece nem acredita que a introdução dos direitos de propriedade e de mecanismos de mercado seja do interesse da sociedade como um todo. A relutância em acreditar nos resultados benéficos alardeados e prometidos pelas elites da reforma deve-se a duas boas razões: primeiramente a população tem boas razões para suspeitar que as iniciativas privatizantes das novas elites não estão necessariamente a serviço da melhoria universal das condições econômicas, e sim antes de tudo do enriquecimento dos membros do aparelho de Estado e sua clientela. Em segundo lugar, ninguém pode garantir que a melhoria pretendida ocorrerá de fato, e que não acarretará uma miséria maciça ou pelo menos uma transitória privação econômica absoluta à grande parte da população.
Essas suspeitas - que os poderosos enriquecer-se-ão e os que são privados de poder serão vítimas do mercado - podem ser resolvidas e seu poder destrutivo refreado somente se as elites com poder de realizar reformas assegurarem um sólido mandato democrático para as iniciativas de privatização e reconheçam a necessidade da prestação honesta de contas à maioria do povo.
Tal mandato só pode ser obtido, por sua vez, mediante vias democráticas - o que leva ao resultado paradoxal de que, no caso de economias de tipo soviético, e quando uma retirada do Estado da economia realizada pelo próprio Estado deve ser empreendida, a democracia é uma pré-condição necessária à transformação econômica. Essa é, obviamente, a antítese exata, embora não menos persuasiva, das inferências acima apresentadas.
Mesmo que, segundo suas aspirações, a ordem econômica reformada represente uma variedade "mais pura" de capitalismo do que a encontrada em qualquer outro lugar do Ocidente, ela permanece um projeto político configurado pelo modo pós-socialista e pela forma estatista de realização. Esse "capitalismo planejado" (ou um capitalismo sem capitalistas como agentes ativos de seus interesses de classe) depende, em cada detalhe, de decisões transparentes justificadas e seu progresso não pode se valer de acontecimentos casuais cegos, o padrão predominante na história do capitalismo Ocidental. A nova classe empresarial (e correspondentemente a nova classe de assalariados na qual a "população trabalhadora" prévia se vê reconstituída) é criada de acordo com um modelo planejado pelas elites políticas.
De qualquer forma esse modelo contém múltiplos parâmetros, cada um dos quais contingente e podendo ser implantado de inúmeras maneiras diferentes.10 10 D. Stark. Todos os recurso produtivos deveriam ser privatizados ou deveriam ser mantidos empreendimentos estatais? Em que setores e por quanto tempo devem ocorrer as transformações estruturais? Como devem os novos proprietários adquirir suas propriedades - por meio, por exemplo, da distribuição gratuita de ações (ou parte delas) à população, ou então aos empregados ou executivos das empresas? Ou por meio do leilão de ações a qualquer possuidor de capital monetário? Ou mediante a devolução a antigos proprietários que ainda estejam vivos? A devolução deve ser feita apenas a proprietários nativos ou também a estrangeiros? Deve ocorrer com ou sem a liberalização do mercado de capitais? Com ou sem qualificações relativas a aspectos vitais como categorias de pessoas autorizadas a comprar, limites máximos de aquisição de capital per capita, preços máximos e salários mínimos, licença para comércio exterior ou não, e dezenas de outras variáveis? É pouco concebível que se possa dar um único passo nesta vasta arena sem estar investido de forte legitimidade, que não pode ser adquirida de outra forma a não ser por via política democrática.
Mesmo que se possa supor a existência de um amplo consenso da sociedade sobre a economia daqui para frente ser "capitalista", isto é, caracterizar-se pela propriedade privada e pela comercialização de bens, serviços, capital e trabalho, esse consenso não pode ser um substituto do mandato democrático para iniciativas de reforma. O problema é o que significa precisamente, em termos operacionais, o conceito só aparentemente inequívoco de "capitalismo" ou de "economia de mercado", - sem falar de economia de mercado "social". Mas nem mesmo esse consenso difuso e global em favor do capitalismo pode ser seriamente visto como dado. O que ocorreu na União Soviética após a "revolução de cima" e que iniciou a avalanche que se propagou a outros países da Europa Central e do Leste não pode ser comparada à esmagadora e imperiosa força da "hora zero" tal qual ela atingiu a Alemanha em 1945, depois de sua total derrota militar, moral e material e que implicou um compromisso inescapável imposto pelas forças de ocupação. Os romenos e búlgaros não são hoje os únicos que parecem muito afastados da consciência de tal compromisso, e ninguém pode impedir sua volta para alguma forma de economia gerenciada pelo Estado. A cultura política majoritária de "igualitarismo autoritário" que parece prevalecer nesses dois países se coloca no caminho tanto da economia de mercado quanto da democracia como objetivos incontestáveis do processo de reforma. Esse padrão, como cultivado pelo velho regime, e dele herdado, e pela experiência histórica da Europa do Leste), não permite o desabrochar de uma economia de mercado, porque esta última funciona sob a premissa de que o aumento geral da capacidade produtiva só pode ser alcançado se uma minoria se colocar na posição de aumentar sua renda muito mais substancial e rapidamente do que a maioria, a qual pode até perder com isso, pelo menos por um período de tempo de duração desconhecida.
A economia de mercado produz, junto com a crescente produção de bens, uma crescente desigualdade - tendência que encontra resistência no ressentimento igualitarista. Quanto à democracia, ela é censurada por sobrecarregar o processo decisório com atritos, incertezas e descontinuidades que ameaçam interferir no já precário desempenho econômico. Essa constelação de expectativas e temores (que também pode ser ativada pela memória de inúmeras tentativas fracassadas e promessas não cumpridas no passado) tem obviamente como conseqüência, exatamente porque a situação econômica é tão calamitosa, o bloqueio pela maioria da população de tentativas promissoras de reforma econômica e de sua legitimação democrática.
Uma economia de mercado só é colocada em movimento se houver condições pré-democráticas. Para promovê-la, direitos democráticos devem ser sustados para permitir uma saudável dose de acumulação primitiva. Apenas uma economia de mercado desenvolvida produz as condições sociais estruturais de uma democracia estável e possibilita a realização de compromissos no arcabouço daquilo que é percebido como um jogo de soma positiva. Mas a introdução de uma economia de mercado nas sociedades pós-socialistas é um projeto "político", que tem possibilidades de sucesso só se for respaldado por uma legitimação democrática muito forte. E é possível que a maioria da população não considere a democracia nem a economia de mercado como perspectivas desejáveis. Se todas essas proposições forem simultaneamente verdadeiras confrontamo-nos então com a caixa de Pandora, cheia de paradoxos, face à qual toda "teoria" - ou melhor, estratégia racional - de transição está fadada a fracassar.
O problema central da modernização política e econômica das sociedades socialistas é a ausência de quaisquer elementos não-contingentes que pudessem servir de parâmetros fixos adequados da política de reformas. Exatamente porque o sistema está em um beco sem saída como esse, tudo se torna incerto e nada pode permanecer como é. A ausência de um conjunto de fatos sociais fixos confiáveis, ou pelo menos incontestáveis, e de instituições que proporcionem coesão, forçam os políticos da reforma a algum prodigioso ato de "amarração" (Elster). Também por essa razão a busca de bases confiáveis para acordos sociais e políticos vai no rastro das identidades nacionais e desejos de auto-afirmação étnica. Ou, como relata Staniskis sobre a Polônia, essa busca se agarra a comunidades e doutrinas "exemplares", como a doutrina social da Igreja Católica Romana, agora convocada como guia de coesão na estratégia da manutenção da ordem política. Outros estilizam doutrinas da economia política neoclássica com o status de doutrina revelada da salvação. E ainda há os que pensam ter encontrado o ponto de Arquimedes para alavancar políticas de reforma na reprodução detalhada em seus países de um dos sistemas constitucionais já testados no Ocidente (como a Lei Básica alemã). Essas tentativas de inventar tradições, modelos exemplares e dogmas são pouco promissoras, uma vez que é evidente o grau de arbitrariedade com a qual os movimentos políticos e as elites escolhem as supostas verdades fundamentais "pré-políticas" e proclamam-nas como seu programa.
Essa inevitável circularidade é particularmente evidente quando, como na Polônia, Bulgária, Romênia e Tchecoslováquia, os parlamentos recém-eleitos também funcionam como assembléias constituintes. Isso significa nada mais nada menos do que os jogadores determinarem as regras segundo as quais o futuro jogo será jogado e com que parceiros. Os atores são juizes em causa própria. Apesar de na disputa sobre princípios constitucionais aparecerem como pessoas agindo de acordo com normas, eles não têm como se defender da suspeita de que conduzam suas deliberações levando em conta apenas o próprio interesse. Essa suspeita é radicalizada pelos movimentos de cidadãos nos países da Europa Central e do Leste. A diferença "lógica" entre seu procedimento e as ações dos "novos movimentos sociais" no Ocidente é que os últimos operam no contexto de instituições democráticas já criadas e solidamente estabelecidas e se propõem a resolver alguns vieses, deficiências ou pontos cegos existentes nas instituições. Ao fazê-lo, podem se apoiar em um núcleo de princípios institucionalmente sólidos11 11 Cf. a defesa de J. Habermas da "desobediência civil" conduzida em nome de normas e valores de civilidade amplamente compartilhados no seu "Ziviler Ungerhorsam - Testfall für den demokratischen Rechtsstaat", in idem, Die Neue Unübersicbtlichkeit, Frankfurt: Suhrkamp 1985, 79-99. . Por vezes criticam as elites políticas e práticas constitucionais referindo-se ao "espírito" da própria constituição e a princípios de cultura política estabelecidos.
Esse padrão reflexivo não existe para nossos vizinhos do Leste, onde o movimento popular exibe um viés incondicionalmente anti-institucional, se não diretamente antipolítico, compreensível em vista da experiência passada. Como não podem se referir a rotinas estabelecidas e clamar pela redenção dos princípios nelas incorporados, estão expostos ao perigo de se desgastar em expressões populistas, de superestimar romanticamente a democracia direta e formas extra-parlamentares de ação e portanto subestimar as possibilidades de negociação e compromisso, as únicas capazes de transformar mobilização social em poder político. Como é de se esperar, se essa transformação fracassa, a mobilização entrará em colapso e numa reviravolta abrupta dará lugar à apatia, ao cinismo e ao recolhimento da maioria à esfera privada. No fim do ciclo, o estado "atomizado" inicial da sociedade pós-totalitária não será vencido e sim se reproduzirá e se reforçará. Como as coalizões negativas de dissidentes e movimentos populares não possuem um projeto político e econômico próprio coerente, há o risco de que se fragmentem no exato momento em que a burocracia do antigo regime é privada de seu poder, desaparecendo assim o único fator unificador da oposição.
Jon Elster tentou, em uma série de trabalhos recentes12 12 J. Elster, "When Communism Dissolves", London Review of Books, janeiro de 1990. , explorar e conceituar as interdependências e antinomias que ocorrem no processo das reformas políticas e econômicas. No caso das reformas econômicas os dois componentes em questão são: reforma de preços (desregulamentação e eliminação dos subsídios permanentes permitidos por normas orçamentarias frouxas) e reforma da propriedade (privatização).
Reforma do sistema de preços sem reforma de propriedade induziria nos gerentes das estatais à tentação de ignorar a sinalização de preços e manter o desperdício de capital público pelo seu uso ineficiente. Reforma do sistema de preços com reforma de propriedade estabelecerá é claro um sistema de controle totalmente capitalista, isto é, um com mercado de trabalho e de capital, ou seja, com demissões e falências em larga escala. É totalmente impossível saber hoje - embora pareça improvável que existam - se há soluções intermediárias promissoras e factíveis sobre esse aspecto. Elas poderiam ser democráticas em relação à empresa (isto é, de tipo cooperativo): nesse caso teríamos mercado de capital sem mercado de trabalho. Ou poderiam ser democráticas quanto à economia como um todo: existiria um mercado de trabalho sem mercado de capital, e no seu lugar fundos de investimentos poderiam continuar sendo geridos por meio de alguma agência estatal.
A reforma política também consta de duas medidas: garantia constitucional dos direitos dos cidadãos e direitos democráticos de participação. A primeira sem a segunda constitui o estado constitucional liberal clássico, em cujo arcabouço, como mostrado acima, não haveria como lidar com a sobrecarga de decisões do projeto de "capitalismo político". Ademais, as garantias constitucionais liberais são presa fácil do oportunismo das elites políticas, se no caminho delas não se colocar o risco de serem democraticamente afastadas do governo: "o poder deve ser dividido para assegurar que a constituição será respeitada." A segunda sem a primeira (por exemplo, democracia de massa sem liberdade de imprensa) seria igualmente absurda e na Europa do Leste isso se resumiria ao populismo autoritário, pois inexistem atores coletivos intermediários suficientemente poderosos (partidos políticos, associações, sindicatos, igrejas, governos locais) para exercer a função de controle face a regimes presidenciais demagógicos.
Dessas suposições do modelo, Elster deriva a conclusão de que reformas da propriedade e do sistema de preços bem como garantias de liberdade e democracia, condicionam-se mutuamente, isto é, a garantia de liberdade e a reforma da propriedade mantêm uma relação harmoniosa, mas há um antagonismo irreconciliável entre democracia e reformas de propriedade e preço se as conseqüências econômicas das reformas (mais precisamente, desemprego e inflação) forem tão desastrosas para os países do Conselho Econômico de Ajuda Mútua como se prevê. O núcleo da antinomia é evidente: as pessoas não querem esperar até que as benesses da economia de mercado cheguem e as ondas de choque da transição tenham amainado, nem querem assistir as novas elites econômicas (frequentemente compostas por elementos das velhas elites políticas) tornarem-se ricas às suas custas. Essa mistura de sentimentos de medo, ressentimento e inveja, é tanto resultado das próprias disposições das pessoas, moldadas pelo velho regime, como é promovida pelas, partes interessadas, nos círculos "conservadores" das velhas elites políticas. Adicione-se a isso o fato de que inexistem instituições e agentes intermediários capazes de tornar subjetivamente suportáveis os custos e riscos individuais e garantir que os custos da transição econômica serão eventualmente compensados por benefícios equitativos.
Uma maneira de elaborar e refinar mais o modelo de Elster pode ser a seguinte. Cada uma das duas reformas, a constitucional e a econômica, envolve três passos: a estrutura institucional, o desenrolar do processo e o resultado desejado. As reformas democráticas consistem assim em estabelecer uma estrutura constitucional de direitos dos cidadãos e um governo parlamentar. As duas coisas supostamente conduzirão à política democrática competitiva "normal" e à distribuição de poder e recursos materiais por meio dela. O resultado global é a resolução pacífica de conflitos sociais e políticos. De forma semelhante a reforma econômica consiste em direitos de propriedade e privatização, em um processo permanente de estabelecimento competitivo de preços e nos resultados desejados de ganhos de produção, crescimento e prosperidade. E mais, ambas as cadeias de estrutura-processo-resultado são entrelaçadas e se reforçam mutuamente. Se esta é a teoria, a prática pode trazer um sem número de surpresas desagradáveis. As sete mais possíveis e plausíveis são:
- a política democrática pode bloquear ou distorcer o caminho para a privatização e portanto a criação do mercado;
- a privatização pode ser bem sucedida, mas falhar em conduzir à criação de mercado e, portanto, ao crescimento e à prosperidade; isso pode ocorrer pela manutenção da estrutura de cartel e monopólio que fazem com que a transição seja "do plano para o clã" e não do "plano para o mercado" (D. Stark);
- a privatização pode ser bem sucedida, mas leva à obstrução da política democrática pelas ingerências poderosas dos donos de capital doméstico ou internacional;
- a política democrática pode evoluir mas não consegue levar à resolução pacífica dos conflitos sociais, pois é dominada por conflitos étnicos, territoriais e de minorias que não se prestam a formas democráticas de compromisso;
- a criação de mercado pode ser bem sucedida mas não conseguir gerar a distribuição (ou pelo menos a expectativa amplamente compartilhada de distribuição) equitativa de seus benefícios;
- desapontamentos e frustrações acumulados com os fracassos podem originar demandas de um tipo de "democracia", baseada em estruturas institucionais outras que a das liberdades civis e governo representativo, por exemplo, uma ditadura presidencial populista;
- inversamente, as frustrações com o desempenho econômico pode também levar a demandas de criação do mercado sem propriedade privada, isto é, a uma volta à propriedade estatal dos recursos produtivos.
O EFEITO TÚNEL E A ECONOMIA POLÍTICA DA PACIÊNCIA
A estrutura temporal dos processos é decisiva. Isso se aplica não apenas ao nível macroscópico, em que, como nos ensina o modelo ocidental, um intervalo de tempo suficiente entre os três impulsos modernizantes (Estado nacional, economia de mercado, democracia e finalmente estado de bem-estar social) bem como diferentes graus de rigidez entre os três níveis favorecem seu sucesso cumulativo, mas também no nível microscópico de atores individuais. Estes devem, para que a realização simultânea das três tarefas de modernização seja bem sucedida, estar prontos para reunir uma grande dose de paciência, segurança e confiança. Como os macro-eventos assumiram uma velocidade inacreditável, a penosa tarefa de esperar pacientemente recai sobre os indivíduos, que devem rapidamente adaptar-se às novas circunstâncias e depois esperar durante muito tempo para os frutos dessa adaptação. Eles precisam de paciência para não interferir na "destruição criativa" que se seguirá à reforma do sistema de preços e da propriedade da maneira pretendida, embora recorrendo aos direitos civis recém-conquistados, eles seriam capazes de fazê-lo. Os indivíduos não apenas devem ser disciplinados para sofrer terapia de choque voluntariamente como também não devem abandonar a crença (talvez auto-realizadora) de que o choque será na verdade um choque terapêutico, a despeito da freqüente evidência em contrário. Os requisitos são, portanto, precisamente as virtudes e os recursos morais da flexibilidade, da espera paciente, de deliberar, testar e pesar as preferências de curto prazo versus as de longo prazo, as individuais versus as coletivas, e da tolerância para padrões de distribuição altamente desiguais, recursos morais esses que ao curso de duas (três no caso da União Soviética) gerações da "sociedade de construção do socialismo" ou foram desencorajados ou totalmente sub-utilizados, ou então, pelo contrário, excessivamente colocados à prova e em conseqüência frustrados. Quem poderia prognosticar com segurança que essas virtudes floresceriam logo agora?
Albert O. Hirschman modelou esse problema da capacidade de esperar ou da economia política da paciência à metáfora do "efeito túnel13 13 A. O. Hirschman, "The Changing Tolerance for Income Inequality in the Course of Economic Development". A. O. H., Essays in Trespassing Economics to Politics and Beyond (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), p. 39-58. ." A analogia é a do túnel para carros com duas vias na mesma direção. Ocorre um grande congestionamento. Os carros param em ambas as pistas e ninguém consegue ver o que está acontecendo. De repente os carros da direita começam a se mover e passar pelos carros ainda bloqueados da esquerda. Os ocupantes da pista da esquerda estão agora passando por uma dinâmica cognitiva e emocional que vai do alívio esperançoso ("Bem, logo será a nossa vez!") à inveja dos felizardos e à indignação diante da regulação do trânsito obviamente injusta, e finalmente à agressão aberta contra os que tentam passar ilicitamente para o tráfego da pista da direita, o que, com as colisões decorrentes, novamente provocam uma paralisação total do trânsito. A questão é: por que esse cenário de pesadelo às vezes ocorre muito rapidamente, outras vezes mais lentamente e às vezes nem ocorre - esta última alternativa no caso feliz em que o comportamento civilizado e a paciência dos menos afortunados prevalece até que o congestionamento se desfaça? E há ainda uma outra pergunta: é possível gerar esse tipo de paciência e comportamento civilizado, em um lugar onde eles inexistem, por meio do uso judicioso de recursos políticos e reformas institucionais?
Transferir essa questão para a economia política dos processos de transformação pós-socialistas produz pelo menos quatro categorias possíveis de respostas. A primeira e mais simples é a de que graças a circunstâncias vantajosas, não é preciso, antes de mais nada, muita paciência. Isso corresponde ao caso do "milagre econômico", ou uma decolagem vigorosa do crescimento auto-sustentado. Os ganhos de prosperidade são tão rápidos e consistentes que todos os participantes acham que é um ditame óbvio do bom senso ater-se às regras; e, no processo, torna-se fácil acostumar-se ao valor das regras.
A segunda resposta é um misto de estímulos e incentivos positivos e negativos que se originam do sistema internacional. Os apoios externos à nova ordem (Plano Marshall, regime de ocupação) foram - ao lado do e como uma condição necessária do "milagre econômico" - a chave do sucesso da República Federal Alemã e de outras democracias do pós-guerra. Como no caso da transformação da Europa Oriental não se trata de uma, ameaças militares não têm aqui nenhum papel - ou só têm negativamente, como uma estratégia de suspensão da ameaça militar, isto é, como uma política consistente de desarmamento e détente. Ademais, essa política de se abster da ameaça da intervenção militar teria o efeito desejado de neutralizar parte dos possíveis pretextos de intervenção militar por parte dos países do antigo pacto de Varsóvia. Algum tipo de intervenção militar, entretanto, ficaria na reserva caso regimes "reacionários" do Sudeste Europeu tentassem resistir à transformação por meio de agressão militar e guerra civil. Mas, em contraste com a situação depois da Segunda Guerra Mundial, não existe nenhum "poder patrono" para supervisionar e colocar em vigor a natureza pacífica do processo de transformação.
Também não existe candidato óbvio capaz de assegurar, além da punição, o incentivo. Este consistiria em uma política de garantir crédito e transferências internacionais que por assim dizer subdisiariam a paciência da população. Embutidos nesses empréstimos de subsídio externo à transição estariam as ameaças suaves e disciplinadoras de que os credores poderiam suspender sua ajuda ou acordos comerciais se a pretendida integração de fatos econômicos e políticos nos países que se beneficiassem dos créditos não se materializem. Essa estratégia de oferecer "apoio de fora" apresenta uma série de dificuldades. O volume necessário de empréstimos pode exceder a capacidade dos países credores. Ou estes últimos podem se expor às suspeitas (justificadas ou não) de que as reais intenções por trás dos empréstimos não seja subsidiar a paciência, e sim a exploração capitalista dos supostos beneficiários, o que poderia conseqüentemente ocasionar impaciência. Ou então os fundos poderiam ter o efeito não-intencional de não subsidiar a paciência para as incertezas do processo de renovação econômica e democrática e sim, pelo contrário, de tornar suportáveis os custos provenientes da conservação das estruturas, da renúncia à renovação.
Um terceiro método de ganhar tempo e produzir os pré-requisitos morais, de crédito e confiança para a transição simultânea para economia de mercado e para a democracia consiste na mitigação sócio-política efetiva das dores da transição por mecanismos contínuos e bem sintonizados de redistribuição interna. Admite-se que essa mitigação não ocorreu ainda nem nas condições extraordinariamente favoráveis da antiga República Democrática Alemã. É de se supor que a tolerância para a transformação rumo à economia de mercado, no decurso da qual a desigualdade invariavelmente aumenta (pois alguns devem ser muito bem sucedidos em um breve espaço de tempo para que todos possam ser mais ou menos bem sucedidos a longo prazo), será mais provavelmente obtida se for afastado o perigo de que parte substancial da população fique por um longo período em situação muito pior. Aqui a questão delineada se resume a saber se se quer proporcionar segurança de status para os grupos econômicos fundamentais ou a garantia incondicional de um mínimo adequado de subsistência para todos. De qualquer modo os beneficiários da transformação para a economia de mercado deveriam compensar as vítimas da transformação com algum tipo de seguridade social e auxílio-desemprego, o que certamente constituiria uma inversão na seqüência do desenvolvimento constitucional do Ocidente como postulado por T. H. Marshall (isto é, a seqüência: Estado constitucional liberal, Estado democrático e Estado do bem-estar social) e o Estado do bem-estar social seria reconhecido como pressuposto para o mercado e a democracia (assim como a democracia, em outra inversão do "modelo" Ocidental, seria a pré-condição do mercado, como foi argumentado acima). Por enquanto isso não aconteceu em nenhum lugar; na melhor das hipóteses esse "modelo" soçobrou de tal forma que (como no caso do Peronismo Argentino) um tipo de Estado de bem-estar social foi criado para servir como substituto para a democracia liberal. As dificuldades são fáceis de ver: os recursos destinados para a seguridade social contra a "destruição criativa" tornam a última menos destruidora, mas a tornam também menos criativa. Da mesma forma, as perspectivas de realizar uma privatização politicamente bem sucedida do sistema de produção e de concomitantemente direcionar a distribuição de renda e serviços por meio de garantias do Estado são sem exceção vistas com pessimismo14 14 Cf. os ensaios in B. Deacon, J. Szalai (org.), Social Policy in the Eastern Europe, Aldershot, etc: Avebury, 1990. . Isso porque seguridade e proteção sociais podem também ser facilmente denunciadas como idéias herdadas do velho regime.
De realização ainda mais difícil seria a quarta solução ao problema da paciência, que consistiria em formar atores coletivos tais como associações, federações, sindicatos, partidos e autoridades locais na "sociedade civil" da Europa do Leste. Se cada pessoa pudesse certificar-se da proteção de uma representação forte e da capacidade de negociação de tais corpos mediadores, a constituição dos quais deveria tornar impossível a formação de "coalizações espoliativas" que operariam à custa de partes terceiras excluídas, então pelo menos parte desses medos perderiam seu peso - medos que de outra forma podem se transformar em bloqueios "democráticos" à transformação para uma economia de mercado e eventualmente transformar a própria democracia em objetivo sem sentido, devido às suas supostas conseqüências econômicas adversas. Esses corpos mediadores não poderiam ser artefatos de Estado e deveriam gozar de garantias constitucionais que as tornassem relativamente livres de políticas oportunistas. Pelo menos poderiam "deliberar" e encontrar "soluções de síntese" para as preferências conflitivas que prevalecessem dentro de suas respectivas bases. Eles também poderiam, devido ao monopólio representacional lhes seria atribuído e à força que disso retirariam, explorar a possibilidade de estratégias cooperativas com seus oponentes sem correr o risco de acabar como "trouxas"15 15 Cf. R. H. Bates, "Contra Contractarianism: Some Reflections on the New Constitutionalism", Politics and Society, 16, 387-401, 1988. . Em terceiro lugar esses corpos deveriam ter uma base moral nos sentimentos de solidariedade e obrigações mútuas dentro da "sociedade civil". Se tal combinação das características de "republicanismo cívico"-cum-"corporativismo democrático" é uma raridade mesmo nas sociedades afluentes do Ocidente, como pode florescer no solo das estruturas sociais atomizadas das sociedades pós-socialistas? Em vez disso, e correspondendo ao estado atomizado da sociedade, vemos adiante de nós, pelo menos em alguns dos países que estão passando pela tríplice transformação, um tipo de política "carismática" e de elaboração constitucional presidencial não mediadas por estruturas intermediárias, à sombra das quais as forças da auto-organização civil para além do mercado, do Estado e de "comunidades" étnicas não podem se afirmar.
- * Social Research, vol. 58, nº 4, 1991.
- Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Congresso da Associação Internacional de Ciência Política realizado em Buenos Aires em julho de 1991.
- 1 G. O'Donnell, P. C. Schmitter, L. Whitehead (org.), Transitions from Authoritarian Rule, 5 vols., Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986.
- 2 J. Habermas, Die nacbholende Revolution, Frankfurt: Suhrkamp, 1990, pp. 179-204.
- 6 J. Kosta, "Ökonomische Aspekte des Systemwandels in der Tschekoslowakei," R. Deppe et ai. (org.), Demokratischer Umbruch in Osteuropa (Frankfurt: Suhrkamp, 1991), pp. 302ff.
- 7 Wirtschaftswoche 43 (1989), nş 5, 27 de Janeiro de 1989, p. 110.
- 9 J. Staniska, "Dileramata der Demokratie in Osteuropa", in Deppe et al. (eds.), op. cit. 326.
- 11 Cf. a defesa de J. Habermas da "desobediência civil" conduzida em nome de normas e valores de civilidade amplamente compartilhados no seu "Ziviler Ungerhorsam - Testfall für den demokratischen Rechtsstaat", in idem, Die Neue Unübersicbtlichkeit, Frankfurt: Suhrkamp 1985, 79-99.
- 12 J. Elster, "When Communism Dissolves", London Review of Books, janeiro de 1990.
- 13 A. O. Hirschman, "The Changing Tolerance for Income Inequality in the Course of Economic Development". A. O. H., Essays in Trespassing Economics to Politics and Beyond (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), p. 39-58.
- 14 Cf. os ensaios in B. Deacon, J. Szalai (org.), Social Policy in the Eastern Europe, Aldershot, etc: Avebury, 1990.
- 15 Cf. R. H. Bates, "Contra Contractarianism: Some Reflections on the New Constitutionalism", Politics and Society, 16, 387-401, 1988.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jan 2011 -
Data do Fascículo
Dez 1992