Resumos
A questão do caráter federativo ou não de uma nação é inseparável da questão da descentralização das instituições políticas, sustenta-se. O tema é examinado com especial ênfase no papel que o sistema partidário desempenha nesse contexto.
It is argued that it is not possible to face the problem of federal organization without taking into account the question of the descentralization of the political institutions. The issue is examined with particular emphasis on the role played by the party system in this context.
INSTITUIÇÕES
Federação, democracia e instituições políticas* * Este artigo é uma adaptação de minha dissertação de mestrado defendida na UFMG sob o título "Teoria do sistema federal: heterogeneidades territoriais, democracia e instituições políticas". Agradeço imensamente ao meu orientador, prof. Fábio Wanderley Reis, cuja contribuição foi fundamental para a elaboração da tese e, consequentemente, deste artigo. Agradeço, também, ao prof. Gabriel Cohn, que me estimulou a publicar este artigo
Federation, democracy and political institutions
Márcia Miranda Soares
Mestre em Ciência Política pela UFMG, é professora da Universidade Paulista e pesquisadora do CEDEC
RESUMO
A questão do caráter federativo ou não de uma nação é inseparável da questão da descentralização das instituições políticas, sustenta-se. O tema é examinado com especial ênfase no papel que o sistema partidário desempenha nesse contexto.
ABSTRACT
It is argued that it is not possible to face the problem of federal organization without taking into account the question of the descentralization of the political institutions. The issue is examined with particular emphasis on the role played by the party system in this context.
"O gênio da federação está em sua infinita capacidade de acomodar e reconciliar a competição e, algumas vezes, o conflito em torno de diversidades que têm relevância política dentro do estado. Tolerância, respeito, compromisso, barganha e reconhecimentos mútuos são suas palavras-chave e 'união' combinada com 'autonomia' é sua marca autêntica".1 1 Michael Burgess, "Federalism and Federation: A Reappraisal", in Michael Burgess and Alain-G. Gagnon (ed) Comparative Federalism and Federation: Competing Traditions and Future Directions. Wheatsheaf, Hertfordshire. Harvester, 1993, p.7.
O sistema de organização territorial do poder designado como federação é um tema com presença constante na imprensa e no debate político nacional. No entanto, ainda aparece de forma marginal no debate acadêmico, principalmente no campo da ciência política, com ênfase na perspectiva político-institucional.
Sendo um sistema que tem impactos sobre aspectos diversos da estrutura de um país, é compreensível a existência de vários campos de estudo em que a federação apareça como objeto: o campo econômico (que destaca as relações fiscais intergovernamentais, o chamado federalismo fiscal), o campo da teoria administrativa (que privilegia a questão da eficiência da máquina burocrático-administrativa do Estado), o campo do direito constitucional (que enfatiza a federação enquanto preceito constitucional) e o campo político-institucional. De fato é no campo da ciência política que a lacuna entre os estudos da federação e a sua importância ganha contornos mais exacerbados. Não só existem poucos trabalhos dedicados a este tema, como muitas vezes os existentes tendem a enveredar pelos outros campos apontados, principalmente o econômico e o da teoria administrativa.
A presença de tal lacuna, por si só, justificaria o empreendimento de estudar a federação privilegiando a perspectiva político-institucional. Mas isto não é tudo. A perspectiva político-institucional não representa somente mais uma perspectiva no estudo da federação, mas a principal perspectiva. O maior mérito do sistema federal não está no campo da eficácia econômica ou administrativa, mas no campo das relações de poder: a federação, como se procurará demonstrar, é o meio de organização territorial mais apropriado para garantir, via democracia, estabilidade e legitimidade políticas aos governos dos Estados nacionais cujas sociedades são marcadas por grande heterogeneidade de base territorial.
Este artigo não tem como intuito, e não poderia ter, suprir a lacuna apontada, mas simplesmente apontar a importância de uma análise político-institucional do sistema federal e clarificar um pouco o debate, tão marcado pelo senso comum e carente de análises mais exigentes (científicas, poder-se-ia dizer de uma forma um tanto redundante).
CONCEITO, ORIGEM E IMPORTÂNCIA
O sistema federal pode ser definido como uma forma de organização do Estado nacional caracterizada pela dupla autonomia territorial do poder político, ou seja, na qual se distinguem duas esferas autônomas de poder: uma central, que constitui o governo federal, e outra descentralizada, que constitui os governos-membro, sendo que ambas têm poderes únicos e concorrentes para governar sobre o mesmo território e as mesmas pessoas2 2 A divisão clássica do poder político territorial dentro de uma federação envolve duas esferas territoriais. Isto não impede que uma terceira esfera territorial de poder possa emergir com o mesmo status de unidade federativa. O Brasil é exemplar neste sentido, apresentado o município como uma terceira esfera territorial de poder autônoma, definida na Carta Constitucional de 1988. .
O sistema federativo teve sua origem associada à formação do Estado nacional norte-americano e pode-se afirmar seguramente que, tal como concebido em sua origem e não cabe outro significado para federação , o espaço territorial designado como Estado nacional é o único âmbito onde apropriadamente o sistema federativo pode ter vigência.
A explicação para isto é bastante simples. A organização federal surgiu como um projeto de engenharia institucional que visava superar os problemas colocados à formação do Estado nacional estadunidense a partir da unificação das 13 colônias inglesas. Desta forma, a organização federal é um sistema que responde aos problemas envolvidos na formação de um Estado nacional em determinado contexto (contexto de heterogeneidades territoriais) ou promove a acomodação dos interesses territoriais dentro de um Estado nacional já consolidado, como no caso brasileiro.
O sistema federal surgiu nos Estados Unidos da América em 1787 como um conjunto de preceitos constitucionais acordados entre forças divergentes (centrífugas e centrípetas) "pacto federativo" no duplo intuito de estabelecer a unidade nacional das treze colônias inglesas independentes e garantir a autonomia política dessas colônias.
Os interesses centrífugos determinaram o surgimento do experimento federalista no EUA e a formação destes interesses deve ser buscada no período colonial na ampla condição de autonomia de que as treze colônias inglesas gozaram, o que propiciou a formação de uma forte identidade territorial e o apego à condição de autonomia de que desfrutavam. Os interesses centrípetos, a necessidade de se unirem, surgiu primeiramente com o processo de independência, o que levou a formação da Confederação das treze colônias da América em 1778, uma união frágil que tinha como único objetivo libertar as colônias do jugo inglês. Assim, terminada a guerra com a Inglaterra e estabelecida a paz, esta união se desmoronou e cada colônia foi transformada em república independente. Mas, a condição de república independente encerrava vários inconvenientes que somente a unificação poderia superar: fragilidade de cada república em se defender de ameaça externa, fragilidade em promover de forma mais eficaz seu interesse econômico (comercial) frente à comunidade internacional e problemas de rivalidades comerciais e de fronteiras existentes entre as treze novas repúblicas.
O que temos então no período que vai de 1778 a 1787 nos EUA é o confronto das forças centrípetas cujos principais interesses eram: 1) fortalecimento militar através da união contra ameaças externas, 2) interesses econômicos num mercado amplo e 3) a pacificação entre as treze colônias independentes com as forças centrífugas, cujo interesse primordial era a manutenção do status quo das ex-colônias, o que em linhas gerais significa a manutenção daquele aparato regional (legislação, identidade, estrutura de poder etc) que só a autonomia poderia propiciar.
O Federalista, coleção de ensaios escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, apareceu neste período erigindo os principais alicerces teóricos do federalismo, sistema que oferecia uma solução ao impasse, compatibilizando os desideratos de união e de autonomia regional. A Constituição de 1787 foi, em grande parte, a institucionalização destes ensaios.
O novo sistema de organização territorial do poder emergido, designado como federação, consistiu em instituir um sistema de dupla soberania política, com a distribuição do poder político entre duas esferas territoriais de poder: o Governo Central (União) e as unidades constituintes (estados). O gênio do sistema foi criar uma engenharia institucional que não só promoveu a divisão do poder, como garantiu a autonomia das duas esferas federais através de um mecanismo de checks and balances, no qual as instituições políticas se limitavam umas às outras, propiciando o equilíbrio federativo.
As principais características3 3 Parte destas características estão apontadas nos trabalhos de William Riker, Federalism: Origin, operation and significance. Boston. Little, Brown and Company, 1964, p. 10 e Hartmut Klatt, "Bases conceptuales del federalismo y la descentralización", Contribuciones, 4, Buenos Aires,outubro-dezembro de 1993, pp. 10-12. do novo sistema foram, e ainda são:
1) Divisão territorial do Estado em várias subunidades.
2) Sistema bicameral: representação das subunidades federadas junto ao Governo Federal através de uma Segunda Câmara Legislativa (Senado).
3) Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário presentes nos dois níveis federais.
4) Existência de uma Corte Suprema de Justiça responsável pela regulação dos conflitos federativos: tem como função primordial garantir a ordem federal.
5) Definição das competências (administrativas e fiscais) e jurisdições das esferas federativas, com cada nível de governo apresentando ao menos uma área de ação em que é autônomo.
6) Autonomia de cada ente federativo para constituir seus governos.
O sistema federal que emergiu nos EUA a partir de 1787 foi algo novo, sem precedentes na história mundial, como bem já percebe Tocqueville em sua magistral análise da democracia americana:
"Essa Constituição, que à primeira vista somos tentados a confundir com as constituições federais que a precederam, apoia-se na realidade em uma teoria inteiramente nova e que deve marcar como que uma grande descoberta da ciência política dos nossos dias".4 4 Alexis de Tocqueville, A Democracia na América. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, p. 122.
Portanto, faz-se necessário diferenciar o sistema federal de outras formas de organização territorial do poder político: sistema unitário e sistema confederado. Estas três formas se distinguem, em linhas gerais, pelo locus do poder político: o sistema unitário é caracterizado pela centralização do poder político (o governo central é que controla toda a vida política do Estado), enquanto o sistema federal se caracteriza por uma divisão igualitária do poder político entre o governo central e as sub-unidades territoriais, e o sistema confederai, ao contrário do sistema unitário, tem o locus do poder nas unidades territoriais que compõem a comunidade política.
Na atualidade, o sistema federal e o sistema unitário são formas opostas de organizar o poder político dentro de um Estado nacional. Já a confederação diz respeito à união de Estados nacionais. A confederação, portanto, se caracteriza por uma união de comunidades soberanas, que se unem com objetivos bastantes específicos e limitados geralmente objetivos militares. O fator diferenciador deste sistema em relação ao sistema federal é a debilidade do poder central frente às sub-unidades territoriais. A fragilidade do governo central se expressa no direito de secessão dos estados confederados, nas diversas, e únicas, nacionalidades territoriais e na dificuldade de o governo central fazer valer suas leis e decisões frente aos governos membros. Esta fragilidade significa a fragilidade da união. É por isto que a confederação tem um caráter altamente instável, podendo dissolver-se facilmente.
Se bem a confederação seja a forma de organização territorial que pode melhor caracterizar os blocos econômicos que estão em constituição na atualidade destacando-se a Comunidade Européia, cujo processo está mais avançado é difícil apontar organizações confederadas na atualidade. Os exemplos de confederações são, de forma mais clara, encontrados em períodos mais remotos: a Grécia Antiga, a Itália até a sua unificação, os EUA (1778-1787), a Alemanha (1815-1866), a Suíça (1815-1848), entre outros.
As confederações antigas mostram com clareza a fraqueza do governo central neste tipo de organização do poder e o impacto disto para a manutenção da unidade territorial. A falência das confederações antigas foi decorrente da dificuldade de estabilizar uma unidade territorial num contexto de subunidades territoriais soberanas, ligadas por vínculos muito tênues. A guerra civil, a anarquia confederada, unidades mais fortes tomando para si a autoridade federal e golpes de estado foram episódios corriqueiros na história das confederações.
A dificuldade enfrentada pelo processo de unificação européia, em sua fase mais avançada (quando estão colocadas questões mais problemáticas, porque menos passíveis de entendimento entre os vários países, como unificação da moeda e constituição de um Parlamento Europeu, o que significa a constituição de um poder central), apontam as dificuldades típicas de uma confederação: a necessidade recorrente de consenso das unidades soberanas, a disputa pela hegemonia política, a ameaça de secessão etc. Mesmo que superados os problemas iniciais de constituição do poder central, as dificuldades subsistirão.
O federalismo se expandiu e hoje temos diversos Estados nacionais designados pela literatura política como sendo organizados territorialmente na forma federativa. São eles: EUA, Canadá, Austrália, Áustria, Suíça, Alemanha, Argentina, Brasil, México, Venezuela, Iugoslávia, União Soviética, índia, Nigéria, Paquistão e Malásia. Para efeito de análise, é possível agrupar estes países em subgrupos:
1. O primeiro engloba os primeiros seis países citados acima, que são os de democracia consolidada e os únicos que a literatura sobre federalismo classifica consensualmente como federações.
2. O segundo corresponde aos países da América Latina, cuja instabilidade democrática constitui a principal barreira ao federalismo.
3. O terceiro incorpora a ex-Iugoslávia e a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), países marcados pelo autoritarismo comunista, que se esfacelaram junto com este regime.
4. E, por último, os países da Ásia e da África, para os quais a escassez de informações (isto é verdade pelo menos no Brasil) sobre a estrutura de poder vigente impossibilita quaisquer inferências em relação às suas organizações territoriais de poder, designadas formalmente como federativas.
A primeira observação importante sobre a experiência federativa no mundo é que, apesar da sua expansão, a federação é uma forma minoritária de organização territorial do poder nos Estados nacionais: apenas 16 países no mundo moderno são classificados como federações e, ainda, destes, só seis são consensualmente classificados como tal. A ampla maioria está organizada sob a forma unitária. A questão emergente que salta aos olhos é: o que explica a adoção do sistema federal nestes países?
A resposta é simples. O fator geral que, à exceção da Alemanha5 5 O federalismo na Alemanha surgiu de forma peculiar, não como resposta a um problemas interno de acomodação de interesses territoriais, mas como uma imposição dos países que venceram a Segunda-Guerra visando dificultar o ressurgimento de regimes totalitários como o nazismo. Não convém estender a discussão, mas podemos defender que o federalismo alemão, desprovido daquelas condições básicas que requerem e justificam o sistema federativo, é marcado por um alto grau de artificialismo. , explica a adoção do sistema federal, em todos os casos, é o mesmo que levou a formação do federalismo nos EUA. Trata-se da presença de forças políticas centralizadoras (centrípetas) e forças políticas descentralizadoras (centrífugas) que precisam ser acomodadas possibilitando à formação do Estado nacional ou para estabilizar democraticamente as relações políticas territoriais num território nacional já constituído.6 6 Em alguns casos os Estados nacionais conseguem se formar e se manter sem estabelecer um pacto formal, que é o federalismo, entre os interesses centrípetos e centrífugos. Isto é possível em contextos oligárquicos ou autoritários. O caso brasileiro é exemplar neste sentido, a acomodação das forças centrífugas se deu num primeiro momento através de um arranjo oligárquico que excluía a grande massa da população da participação política. Só posteriormente, com a democratização do país, foi possível a emergência de fato de um sistema federativo. Assim, o sistema federativo foi criado e posteriormente adotado por diversos países tendo como objetivo prioritário dar solução conciliatória a interesses territoriais antagônicos presentes na estrutura do Estado nacional:
"O critério essencial , no qual reside a atratividade que se pode verificar historicamente no modelo federalista, está na possibilidade de solução que ele oferece para um amplo problema histórico-político relacionado ao conceito do moderno Estado territorial, a saber, a existência de forças políticas opostas de integração e desintegração num determinado espaço geográfico. Do ponto de vista histórico, um ordenamento estatal federalista sempre significa um equilíbrio num campo de tensão entre forças centrífugas e centrípetas ou integrativas e desintegrativas".7 7 Michael Bothe, "Federalismo - Um conceito em transformação histórica", in O Federalismo na Alemanha, Fundação Konrad Adenauer, n° 7, 1995, p. 5.
Os interesses centrípetos estão presentes na constituição de qualquer unidade territorial, seja um Estado nacional, seja uma confederação. O ponto distintivo das federações e confederações, em relação aos estados unitários, é a presença de forças centrífugas relevantes.
A diferença da federação e da confederação, por sua vez, está na forma como as forças centrífugas se estruturam na união. Vale lembrar que na confederação a união é débil e instável porque as forças centrífugas dominam o poder político. Assim, a federação surgiu nos EUA após a dissolução da confederação, no intuito de criar uma união mais forte e estável, capaz de satisfazer os interesses centrípetos que a confederação só foi capaz de satisfazer por um curto período de tempo e de forma precária. Há muitos exemplos de países federados que passaram por experiências confederadas anteriores que não se sustentaram: Suíça, Alemanha, Argentina e Venezuela.
Outro ponto que merece ser destacado é: como explicar a origem destas forças centrífugas que, no processo de formação do Estado nacional, ou mesmo tendo este já sido formado, impelem à organização federativa?
A maioria das federações (EUA, Canadá, Austrália e todo o bloco latino-americano) se formou pela unificação de colônias independentes ou pela manutenção da unidade colonial, sendo que o processo colonial tinha imprimido nas colônias as bases para a federação: uma estrutura de poder, que apesar de centralizada na metrópole, conferia ampla autonomia política às esferas territoriais que formavam a unidade colonial. A federação suíça, apesar de trajetória distinta, apresentava uma tradição secular de autonomia cantonal.
Se é defensável que a tradição de autonomia, desfrutada por estes países em períodos anteriores à implantação da federação, é fundamental para entendermos as forças centrífugas que atuaram na defesa da autonomia local, é errôneo concluir que todo país que possua alguma tradição de autonomia vá configurar isto que chamamos de forças centrífugas federais. É possível apontar diversos países com tradições de autonomia que se tornaram unitários: Itália, muitas ex-colônias latino-americanas, ou a Alemanha até 1948.
Explicar o caminho que vai da experiência de uma condição de autonomia política, não quantificável, à configuração de uma força centrífuga relevante na estruturação de um poder político territorial e, desta, à estrutura federal não é tarefa fácil passível de ser empreendida nos limites deste trabalho. No entanto, é possível apontar dois elementos de suma relevância e cruciais para entendermos estas passagens que vão da autonomia política à união federada.
Dimensão territorial: Territórios nacionais de grande extensão conformam-se melhor a uma estrutura descentralizada de poder até pela dificuldade de um poder central controlar um amplo espaço geográfico. Isso explica, em parte, a autonomia de muitas colônias frente às metrópoles e sua opção pelo sistema federal, posteriormente. Não é coincidência que dentre os casos de sistemas federativos no mundo, e não são muitos, se encontrem quatro dos seis maiores países em extensão territorial: Canadá, Estados Unidos, Brasil e Austrália. Sem contar México, Argentina e Índia, que são países de grandes dimensões. Isto é particularmente válido se a pretensão é governar grandes áreas territoriais tendo como regime político a democracia. A URSS e a China, respectivamente primeiro e segundo países de maiores dimensões territoriais no mundo, foram países unitários autoritários, ou seja, utilizavam a repressão política para controlar o amplo território.
Riker diz que o federalismo é no mundo moderno a principal alternativa ao império enquanto técnica de agregar largas áreas sob um único governo.8 8 W. Riker, op. cit., p.5. Mas vale um ressalva: na verdade o federalismo é no mundo moderno a alternativa democrática de agregar interesses territoriais diversos sob um único governo nacional. Outra alternativa, que estaremos analisando mais adiante, que prescinde do sistema federal, é o autoritarismo.
Heterogeneidades territoriais: As forças centrífugas, caracterizadas acima, são decorrentes de um contexto de heterogeneidades territoriais que consiste na existência de focos distintos de solidariedades de base territorial presentes numa sociedade nacional. É aos problemas derivados deste contexto, colocados à formação ou mesmo à manutenção do Estado nacional, que a federação aparece como solução.
Estas heterogeneidades podem ter correspondência étnica, linguística, religiosa ou serem simplesmente clivagens de identidades que se definiram pela ocupação comum de um determinado territorial.
FEDERAÇÃO E DEMOCRACIA
Buscamos até aqui conceituar o sistema federativo, diferencia-lo de outras formas de organização territorial do poder e explicar o que ocasionou sua criação nos EUA em 1787 e sua adoção por outros países. Um aspecto que já aparece mencionado na discussão acima, e que trataremos de discutir nesta seção, diz respeito a relação entre democracia e federalismo. A proposição é que a federação só tem efetividade e só pode subsistir em condição democrática de governo nacional. Ou seja, a democracia no nível nacional é condição indispensável para a vigência do federalismo. De outro lado, pode-se afirmar que a federação é condição necessária a vigência de um governo democrático em determinados contextos: contextos de pluralidades (heterogeneidades) territoriais.
Organização territorial do poder e regime político
No mundo moderno predominam duas formas de organização territorial do poder político nos Estados nacionais: federalismo e unitarismo. Por outro lado, o regime político nestes mesmos Estados pode ser democrático ou autoritário ou totalitário, se considerarmos este uma terceira forma de regime político e não uma variação do autoritarismo. O ponto a enfatizar é que a forma como se dá a distribuição do poder político territorialmente é algo muito distinto de como este mesmo poder político se estrutura na relação Estado e sociedade.
O que determina a condição democrática ou não de um Estado é a vigência ou não de soberania popular: o poder deriva direta ou indiretamente do povo num contexto em que todos os indivíduos que compõem este "povo" têm igual valor (igualdade política). Sem estender muito o debate, buscando um conceito preciso de democracia e autoritarismo, basta dizer que a soberania popular que caracteriza o regime democrático se expressa, no mundo moderno, na participação igualitária dos indivíduos na escolha de seus governantes através de "eleições livres, periódicas e competitivas"9 9 Estamos utilizando aqui o conceito procedimental de democracia de Schumpeter em seu livro Capitalism, socialism and democracy. London. Allen & Unwin, 1943. , para ficarmos no mínimo. Será autoritário, portanto, todo o Estado cujo governo não for expressão da soberania popular.
Por outro lado, a diferença entre federação e unitarismo diz respeito à forma como o poder político, constituído via autoritária ou democrática, está organizado territorialmente: há um único centro político territorial (governo central) que controla todo o Estado nacional ou o poder político está distribuído por mais de um nível territorial de governo (governo central e governos constituintes).
Feitas as distinções, é possível proceder ao devido exame das relações entre regime político e forma de organização territorial do poder. Tratar-se-á de defender que somente são possíveis as seguintes combinações:
A proposição presente neste esquema é que todo regime autoritário no nível base nacional10 10 Estamos enfatizando que a democracia essencial à vigência do federalismo corresponde a democracia no plano nacional de governo. Isto porque se é evidente que um governo central autoritário acaba por minar a autonomia das subunidades federativas, por outro lado, não parece que governos subnacionais menos ou mais autoritários possam interferir decisavamente nas funcionamento da federação. só comporta uma organização territorial de poder: a unitária. Isto é simplesmente colocar em outros termos algo que tem sido reiterado neste trabalho e que trataremos de explicar agora: que a democracia é condição para a vigência do sistema federal.
Como vimos, a federação, à exceção da Alemanha, surgiu e se expandiu como resposta à formação e/ou manutenção de Estados nacionais marcados por heterogeneidades de base territorial. A natureza desta resposta foi essencialmente democrática: um pacto constitucional que possibilitou a acomodação dos dois interesses conflitantes, o de unificação e o de autonomia das subunidades territoriais, mediante uma engrenagem institucional que conciliou estes interesses. As características deste sistema foram apresentadas acima. Dito isto, a questão é: pode tal sistema emergir ou se sustentar sob um regime autoritário? A resposta é negativa.
Em primeiro lugar porque a federação é o resultado de um pacto corporificado em uma constituição, ou seja, é uma organização territorial do poder que requer garantias legais, e estas só podem ser sustentas num estado liberal democrático, onde o governo está subordinado à lei.
O pacto federal significa o acordo entre as diversas comunidades territoriais para a formação de uma comunidade política mais ampla. Tal pacto pressupõe o interesse compartilhado de pertencer a uma comunidade mais ampla e significa: 1) que as comunidades transferem parte dos seus poderes para um centro político nacional, 2) que há consenso das partes envolvidas em torno das políticas que estabelecerão a comunidade política (o que significa delimitar o campo de ação de cada esfera de governo) e (4) que há garantia constitucional e institucional de autonomia para cada ente federativo (o que significa autonomia para cada ente constituir seu próprio governo).
Pois bem, em regimes autoritários não há, nem pode haver, pacto federal, porque a unidade está alicerçada em bases muito distintas: há um núcleo central de poder com capacidade de promover, via coerção, a união de territorialidade heterogêneas. Evidentemente, este caminho dispensa as condições para o contrato federal, a unidade é imposta de cima para baixo e não envolve barganha.
A ex-União Soviética é exemplar. Criou um amplo Estado nacional através da incorporação, pela força, de vários grupos territoriais e buscou dar um caráter federalista a esta união ao incorporar elementos do sistema federal, inclusive uma constituição federalista. No entanto, se analisamos a realidade soviética, facilmente verificamos que um regime que se caracteriza pela autonomia de subunidades territoriais não poderia ter vigência ali:
"Federações, então, para serem genuínas, não podem ser resultado de força ou coerção imposta de cima e sustentada pela ameaça do poder militar. É por isto que a União Soviética, apesar de sua pretensão constitucional, nunca pode ser considerada uma verdadeira federação".11 11 Michael Burgess, "Federalism and Federation: A Reappraisal", in Michael Burgess and Alain-G. Gagnon (ed) Comparative Federalism and Federation: Competing Traditions and Future Directions, Wheatsheaf, Hertfordshire. Harvester, 1993, p.6.
O outro ponto é que o pacto federal é incompatível com a concentração de poder que caracteriza uma estrutura autoritária. Desta forma, mesmo estando este pacto estabelecido, ele deixa de ter vigência quando o regime passa a ser autoritário. Isto porque a federação é a negação, no nível das relações territoriais de poder, do autoritarismo. É difícil imaginar, e a história ratifica isto, que um regime autoritário possa conviver com este "desvio" democrático. Assim, todo regime político autoritário redunda numa estrutura unitária de organização do Estado, visto que estes regimes se caracterizam por um alto grau de centralização do poder, que envolve também a dimensão territorial.
O que estamos defendendo é que a natureza do regime autoritário é incompatível com o sistema federal. Um regime autoritário se diferencia da democracia pela forma como trabalha os conflitos de interesses presentes em uma sociedade. A democracia é o regime que busca dar expressão à pluralidade de interesses presentes na sociedade através da participação política e apresenta todo um aparato constitucional e institucional que estabelece as regras legítimas para expressão dos interesses. Nas palavras de Pizzorno a democracia política consiste em: "Procedimentos, reconhecimentos recíprocos, negociações que reduzem as ameaças de antagonismos destrutivos e que convertem os inimigos em jogadores".12 12 Alessandro Pizzorno, "Sobre la racionalidad de la opción democrática", in Los limites de la democracia, Nápoles, 1985, p. O autoritarismo, ao contrário, esmaga os conflitos sociais através de um regime de força que impede a livre expressão dos interesses.
A federação é, portanto, um procedimento democrático para tratar conflitos de interesses territoriais e o autoritarismo outro meio de "acomodar" estes conflitos. Desta forma, os meios autoritários significam a supressão da barganha, do reconhecimento recíproco, dos checks and balances na "acomodação" dos interesses centrífugos e centrípetos presentes nos Estados nacionais caracterizados por heterogeneidades territoriais.
O que temos configurado acima, além da incompatibilidade de autoritarismo e federalismo, é que estes representam duas respostas distintas ao problema de constituição e manutenção dos Estados nacionais marcados por heterogeneidades territoriais em conflito.
A resposta autoritária consiste em constituir e manter a unidade política silenciando a expressão dos interesses territoriais, o que requer o controle dos instrumentos de coerção física. Evidentemente, isto não significa que o Estado tenha que fazer uso sistemático da coerção física como instrumento para acomodação dos conflitos territoriais. Se analisamos os regimes autoritários que assolaram os países federalistas da América Latina (Brasil, México, Argentina e Venezuela) e os regimes autoritários socialistas da URSS e da Iugoslávia, vemos que não é por acaso que estes países exibiam uma roupagem federalista: constituições federais, instituições federais e certa descentralização administrativa e fiscal. Estas medidas "federalistas" foram adotadas por estes países por dois motivos básicos. Primeiro, pela impossibilidade de centralização absoluta do poder. Isto é particularmente válido para os países de grande dimensão territorial. Segundo, pela dificuldade de acomodar os interesses territoriais numa estrutura extremamente centralizada e mantida pelo uso contínuo da coerção.
Mas estas medidas "federativas" estavam longe de caracterizar uma organização federal. Por redundante que seja, convém destacar este ponto porque ele tem sido controvertido na literatura sobre federalismo. Os países que adotaram estas medidas muitas vezes são designados como verdadeiras federações. Não o são porque não satisfazem a característica básica definidora do sistema federal: dupla autonomia territorial, o que significa a autonomia de cada ente federado para constituir seu próprio governo e atuar de forma autônoma no seu campo de ação. Os elementos federais apresentados por estes Estados não levavam à dupla autonomia porque se encontravam contaminados pelo centralismo autoritário: a constituição federal era outorgada de cima para baixo, as instituições federais Senado, Suprema Corte Federal, Executivos, Legislativos e Judiciários subnacionais estavam sob controle das instituições nacionais. Desta forma, a existência de descentralização administrativa e fiscal nos países autoritários não os caracterizavam como verdadeiras federações. As instituições subnacionais exerciam competências administrativas e fiscais enquanto representantes locais do governo central, sendo este a única autoridade soberana com o poder de determinar toda a vida do Estado, estando os subníveis administrativos subordinados à sua vontade.
O fato é que a "acomodação" autoritária é uma resposta limitada e imprópria para o problema da estabilidade e legitimidade das relações territoriais de poder. Ela silencia as heterogeneidades de base territorial e seus interesses de autonomia, mas não as elimina e estas tenderão a se expressar sempre que possível, constituindo um elemento tensionante e potencialmente conflituoso para o regime. Esta tensão pode adquirir contornos mais ou menos conflituosos e desestabilizadores, o que terá impactos futuros sobre uma possível solução federada para a manutenção da unidade territorial. Num regime autoritário, quanto mais agudos forem os conflitos territoriais e as reivindicações por autonomia, maior será a necessidade de repressão para pacificar a união e calar as reivindicações; mas quanto maior for a repressão, maior será o potencial explosivo dos conflitos. Neste contexto, criam-se enormes barreiras para a viabilização de uma alternativa negociada, pactuada para a manutenção da unidade nacional num ambiente de liberalização política.
Os processos de abertura política (liberalização) dos regimes autoritários mostram quão mal resolvidas se encontravam as relações territoriais de poder. No caso do autoritarismo dos países latino-americanos, tão logo estes passaram a se liberalizar a questão federal emergiu com força total e o pacto federativo foi restabelecido em parâmetros altamente descentralizadores. No caso dos países do leste europeu, a questão era bem mais complexa: não havia tradição federal nestes países, eles haviam se constituído de cima para baixo, por imposição, e se mantiveram pelo autoritarismo. Com o processo de liberalização vemos emergir nestes países identidades culturais, étnicas, religiosas, linguísticas que se formaram há centenas de anos e que sobreviveram aos regimes autoritários e até totalitários. Estas identidades, livres do jugo autoritário, se atiraram à cena política de forma explosiva, cada qual querendo fazer valer seus interesses. Assim, passaram a protagonizar conflitos territoriais que redundaram em guerras civis e/ou secessão.
O desfecho do processo de liberalização em países como a URSS e a Iugoslávia só vem demonstrar que a constituição e a manutenção autoritária de um Estado nacional marcado por clivagens territoriais não resolve de forma estável e legítima o problema da pluralidade territorial.
A conclusão é que a relação entre federalismo e democracia é crucial, não só porque a democracia é condição para a vigência do sistema federal, como também porque a democracia, em contextos marcados por heterogeneidades de base territorial (que podem ser tradução de heterogeneidades linguísticas, religiosas ou étnicas), só pode subsistir sob a forma federada. O fato é que tais heterogeneidades representam uma dimensão de conflitos de interesses dentro do território nacional que poderá ter resultados múltiplos: exacerbação dos conflitos regionais culminando em guerra civil e/ou secessão, coerção física como forma de subjugar estes interesses (autoritarismo) ou implantação de uma democracia federativa que é a resposta mais estável e mais apropriada para o problema de equacionar a convivência das heterogeneidades territoriais num Estado-nação.
FEDERAÇÃO E INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
"As instituições representam as regras do jogo numa sociedade; mais formalmente, representam os limites estabelecidos pelo homem para disciplinar as interações humanas".13 13 Douglass C. North, "Transaction Costs, Institutions and Economic Performance", Occasional Papers, Internacional Center for Economic Growth, 1992, p. 9.
O sistema federal foi caracterizado com um arranjo capaz de conciliar interesses territoriais divergentes e equilibra-los numa estrutura de pesos e contrapesos institucionais (checks and balances). Esta seção buscará analisar esta estrutura no intuito de responder quais são as instituições essenciais à manutenção do sistema federal.
Assegurar a manutenção do sistema federal significa garantir a dupla autonomia das esferas territoriais de poder (governo central e unidades-membro), ou, em outras palavras, garantir o equilíbrio entre centralização e descentralização política territorial.
Nesta perspectiva, o primeiro passo é buscar um significado inequívoco para autonomia territorial. Como vimos, o que diferencia o sistema federal do sistema unitário é que o primeiro apresenta autonomia política de esferas subnacionais de governo (descentralização política territorial). O que podemos defender é que a descentralização política territorial tem um sentido estrito que não corresponde à descentralização administrativa e nem à descentralização fiscal, mas é, acima de tudo, a autonomia subnacional para constituir e preservar um governo próprio e independente e envolve, acima de tudo, a descentralização político-institucional. Em outras palavras, a descentralização de recursos fiscais e de competências administrativas não são suficientes para caracterizar um país como unitário ou federativo. É necessário verificar se estas descentralizações ocorrem num contexto de descentralização das instituições políticas, ou seja, das instâncias responsáveis pela tomada de decisões políticas.
É evidente que os países federalistas apresentam, via de regra, descentralização administrativa e federalismo fiscal. Estes elementos são importantes na conformação da estrutura federal, mas o fato é que eles sozinhos não definem a autonomia política subnacional. E não definem porque a questão crucial vai além de o que está sob a competência (administrativa ou fiscal) das esferas subnacionais, é preciso verificar quem detém essas competências. Isto significa que a autonomia política reside, sobretudo, na forma como é constituído o governo nos níveis subnacionais e na sua relação com o governo central. Um Estado em que os governantes dos níveis territoriais subnacionais detenham amplas competências administrativas e recursos fiscais, mas estejam subordinados ao governo central, devendo obedecer às suas determinações, não é um Estado onde há autonomia subnacional e, portanto, federalismo.
É nesta perspectiva que temos vários países unitários que apresentam descentralização administrativa e fiscal. Isto ocorre porque as competências administrativas em sistemas unitários não somente podem ser implementadas diretamente pelo poder central como podem ser implementadas por um representante deste poder junto às esferas subnacionais. Neste último caso, designado como desconcentração administrativa, a administração local é realizada segundo uma escala hierárquica cujo ápice é o governo nacional.
"Conclui-se, pois, que o Estado unitário pode ser centralizado politicamente e descentralizado administrativamente. Caberia, aqui, relembrar a distinção básica entre descentralização e desconcentração. Aquela decorre da transferência de atribuições de interesse público dos órgãos centrais para os órgãos locais ou para pessoas físicas e jurídicas, dotadas de autonomia administrativa. Esta consiste em distribuir poderes de decisões pelos vários graus de uma hierarquia, em vez de os reservar sempre ao superior máximo".14 14 Ana Lúcia de Lyra Tavares, "O Estado Federal: delineamentos", Revista de Ciências Políticas, n°4, vol. 22, FGV, Rio de Janeiro, 1979, p. 34. Citação, em itálico, de Marcelo Caetano, Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 89.
Definido o tipo de descentralização que caracteriza o sistema federal, cabe indagar: o que assegura a descentralização política territorial? Ou, melhor, o que garante a manutenção da autonomia das subunidades federativas? Em regimes autoritários, como visto, não há federalismo porque não há essa autonomia. Portanto, é questão fundamental para a democracia federal é a conformação do poder político no Estado nacional ou, mais especificamente, como se constituem e se relacionam os governos dos dois níveis territoriais: nacional e subnacional. Estes governos se constituem e funcionam a partir de instituições políticas que desempenham papel primordial na estrutura federal: expressam e canalizam os interesses centrífugos e centrípetos presentes no Estado nacional e os equilibram numa estrutura de checks and balances. A estrutura de checks and balances significa que existem instituições políticas que respondem pela autonomia das subunidades federais freando as forças centrípetas, assim como existem instituições que garantem a autonomia política do governo central.
Nesta perspectiva, a descentralização política territorial é determinada e sustentada, para além da questão administrativa e fiscal, por instituições políticas descentralizantes, ou seja, que garantem a constituição e manutenção de governos subnacionais independentes do poder central. Que instituições são estas?
Como sabemos, o sistema federal apresenta uma estrutura institucional peculiar que teve sua origem na Constituição Federal estadunidense de 1787, se expandiu para outros países e permanece inalterada até hoje. Esta estrutura tem como principal propósito garantir a autonomia política das duas (ou mais) esferas de governo dentro do Estado nacional. A estrutura institucional federativa tem como aspecto principal a sobreposição, dentro do Estado nacional, de duas ou mais estruturas de poder e, portanto, de aparato institucional: o aparato do governo central e o aparato dos governos subnacionais. Para além deste aspecto, destacaram-se no processo de institucionalização federativa: uma Segunda Câmara federativa nacional (Senado) e o papel do Judiciário nacional (Suprema Corte de Justiça).
Uma breve análise desta composição institucional faz-se necessária no intuito de desvendar o papel das instituições na manutenção do equilíbrio federativo, ou seja, quais as instituições que representam de fato o poder do governo central e quais são aquelas que expressam a autonomia política dos governos subnacionais.
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
O primeiro passo para garantir a autonomia das esferas de poder territorial num Estado federal foi dotar as unidades federadas de uma estrutura institucional independente do governo nacional. Isto significou que a divisão clássica do poder em Executivo , Legislativo e Judiciário foi estabelecida em, pelo menos, dois níveis territoriais de governo.
O equilíbrio federal pressupõe que cada nível territorial de poder, com sua estrutura institucional, se torne uma força política expressiva dos interesses territoriais. Desta forma, o Poder Executivo, o Poder Legislativo e Poder Judiciário subnacionais, por exemplo, não só têm o papel de implementar, legislar e fiscalizar as políticas governativas de atribuição do nível subnacional, como são instituições que representam os interesses centrífugos e, como tal, sustentam a autonomia dos governos subnacionais frente ao governo central. Mas, se a existência dos três poderes é necessária para a constituição de governos subnacionais autônomos, ela é insuficiente para garantir tal autonomia. Isto é fácil de concluir, posto que a simples formação do aparato governamental não responde a questão essencial, já colocada acima, de quem detém o poder político nas esferas subnacionais.
Portanto, só poderemos saber se existe verdadeira autonomia política subnacional se analisarmos o processo de ocupação dos cargos públicos principais nas esferas subnacionais de governo - o que significa analisar quem são os detentores do poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Este ponto será explorado mais adiante.
Primeira e segunda câmara: o sistema bicameral
O sistema bicameral surgiu no processo de elaboração da constituição federal americana como a solução para as posições divergentes, em relação à União, dos dois interesses opostos que se encontravam em confronto. As forças centrífugas aspiravam a um legislativo nacional formado pelos representantes dos estados (esferas subnacionais) e as forças centrípetas queriam um legislativo nacional expressando tão somente os interesses da maioria nacional.
A primeira opção significava um poder legislativo federal formado pela representação dos estados que, independente de ser grande ou pequeno e do seu número de habitantes, entraria na União em plena condição de igualdade. A segunda opção significava que a maioria dos cidadãos da União, independentemente dos estados, faria a lei. Uma ou outra opção afetava diferenciadamente os pequenos estados: a adoção da primeira lhes conferia um poder extraordinário e a segunda os anulava diante do governo da União.
A solução bicameral significou o estabelecimento de um poder legislativo nacional que levava parcialmente a cabo as duas demandas: a Primeira Câmara representava os interesses da maioria nacional e a Segunda Câmara (Senado) representava as subunidades federadas junto ao Governo Federal.
Temeu-se que esta configuração do poder legislativo federal, dividido em duas câmaras soberanas, sendo divergentes (União e Estados) os interesses que elas representavam, poderia ser um entrave ao processo de legislação federal. Isso nunca ocorreu na prática, porque, ao contrário do esperado, o Senado jamais teve uma papel significativo na defesa dos interesses subnacionais. Em outras palavras, o Senado nunca se configurou, em nenhum país, numa força política centrífuga relevante. Vários autores, desde os primordios do federalismo, têm observado esta realidade.
"(...) Jamais se viu os pequenos Estados se ligarem, no Senado, contra os propósitos dos grandes. Aliás, há uma força de tal forma irresistível na expressão legal das vontades de todo um povo que, vindo a maioria a se exprimir pelo órgão da Câmara dos Representantes, o Senado acha-se bastante frágil na sua presença". 15 Alexis de Tocqueville. op. cit., p. 96. 15 15 Alexis de Tocqueville. op. cit., p. 96.
"O Senado, que nos EUA os fundadores da federação pretenderam que fossem uma instituição descentralizante, de fato, nunca teve este efeito".16 16 William Riker, op. cit., p. 90.
Mas, se a representação dos Estados no governo federal, através de uma segunda câmara legislativa, nunca teve o papel de enfraquecimento do governo da União, pode-se defender que, em alguns casos, teve o importante papel de facilitar a negociação entre os dois níveis de governo e, principalmente, imprimir um caráter mais nacional aos sistemas de representação dos governos subnacionais, deslocando-os dos interesses puramente regionais - nesta perspectiva o Senado acaba tendo um caráter centralizador.
A Suprema Corte de Justiça
O papel da Suprema Corte de Justiça (ou Supremo Tribunal Federal) vai além das atribuições de poder Judiciário da União (aplicar as leis da União). É a esfera onde se processam os conflitos de competência envolvendo qualquer esfera de poder: o Legislativo Federal e a União, os Estados e a União, os litígios entre os Estados etc. Sendo assim, é a instituição responsável pela regulação dos conflitos federativos e pela garantia da ordem federal. Como tal e sua legitimidade reside neste aspecto tal poder deve estar acima dos interesses representados pelas esferas territoriais.
Examinados os aspectos mais peculiares da estrutura institucional federativa que compõem o pacto federal constitucional, conclui-se que esta estrutura não responde pela dupla autonomia territorial que caracteriza o sistema federal. É por isto que uma federação pode apresentar constituição federal, apresentar as instituições acima citadas e ser apenas uma federação formal que não se traduz na realidade política do país.
Por isto, cumpre analisar, como proposto acima, o processo de ocupação dos cargos públicos principais nas esferas subnacionais de governo. Isto expressará a lógica que define os detentores do poder político subnacional e a forma como eles se relacionam com o governo federal. Só haverá autonomia territorial se aqueles que controlam o governo subnacional forem autônomos frente àqueles que controlam o governo nacional e vice-versa. A questão é: o que garante essa autonomia?
Nos Estados democráticos contemporâneos a constituição do governo se dá através de eleições populares ("livres, periódicas e competitivas"), nas quais os indivíduos escolhem aqueles que irão governar, seus representantes, dentre os diversos candidatos a ocupar os cargos públicos. Estes candidatos se apresentam através de partidos políticos - que são as instituições destinadas a competir na arena eleitoral pela conquista de cargos públicos.
Em regimes democráticos federais há pelo menos duas esferas autônomas de governo, o que significa que há pelo menos dois níveis onde ocorrem as eleições17 17 Isto configura uma dupla representação política dos cidadãos: enquanto habitantes de um território nacional e enquanto habitantes de uma esfera subnacional. e onde, conseqüentemente, os partidos políticos podem se organizar e atuar com vista à conquista de cargos governamentais. Isto remete a duas realizadas distintas confrontadas pelos partidos políticos, que poderão resultar em uma organização partidária dual. Urna organização partidária dual é aquela que reproduz de alguma forma as clivagens territoriais, ou seja, a organização federativa do Estado nacional. Com isto a competição política eleitoral no nível nacional não se reproduz no nível subnacional.
O ponto fundamental é que a expressão dos interesses centrífugos (territoriais subnacionais) na organização partidária é essencial para garantir a autonomia das unidades políticas subnacionais. Assim, o sistema partidário, apesar de não fazer parte do pacto federativo, tem papel fundamental em sua manutenção. Sendo os partidos políticos as únicas instituições legítimas para conquistar o aparato de governo, via competição eleitoral, são eles quem detém o poder político no nível nacional e no nível subnacional. A autonomia de cada nível territorial, portanto, depende da forma como se organizam os partidos políticos para operar nos dois níveis. Assim, a autonomia subnacional estará garantida se os partidos que ocupam os cargos de governo no nível subnacional forem autônomos em relação aos partidos que ocupam os cargos nacionais. Isto significa uma estrutura partidária descentralizada.
Infelizmente, apesar de uma ampla literatura sobre sistemas partidários, a relação entre federação e partidos políticos não tem sido explorada na análise política. Não é objetivo deste artigo desenvolver tal relação até porque isto requereria um estudo comparativo dos sistemas partidários em organizações federativas e unitárias. O objetivo aqui é destacar a importância da conformação partidária descentralizada para o sistema federal conformação esta que em maior ou menor grau é condicionada por fatores relacionados à questão federativa. Em outras palavras, o que está se defendendo é que heterogeneidades territoriais acomodadas numa organização federativa tendem a determinar a forma como os partidos políticos se estruturam territorialmente (forma descentralizada), e que esta forma, por sua vez, é essencial à manutenção da autonomia das unidades subnacionais.
O papel destacado dos partidos políticos na manutenção da dupla autonomia territorial e, portanto, da barganha federal, é destacado por William Riker:18 18 William Riker, op. cit.
"Acima das condições sociais gerais, se alguma, que sustentam a barganha federal, existe uma condição institucional que controla a natureza da barganha em todas as instâncias aqui examinadas e em todas as outras com que estou familiarizado. Esta é a estrutura do sistema partidário, que deve ser visto como a principal variável interveniente entre as condições sociais básicas e a natureza específica da barganha federal."19 19 Riker, idem, p. 136.
Mas, a descentralização territorial pode se expressar de diferentes formas na conformação dos partidos políticos em sistemas federais: 1) os partidos que competem e ocupam cargos políticos no nível central são diferentes daqueles que competem e ocupam cargos no nível subnacional, 2) os partidos têm forças distintas no plano nacional e subnacional e mesmo nos diversos planos subnacionais 3) os partidos apresentam clivagens territoriais (federativas) internas quanto às plataformas e às lideranças.
O terceiro ponto significa que um mesmo partido político pode expressar interesses centrípetos e centrífugos através de clivagens internas, apresentando lideranças nacionais e lideranças subnacionais independentes. No sistema bipartidário estadunidense os dois partidos que disputam as eleições nacionais são os mesmos que disputam as eleições locais, mas a descentralização se manifesta na formação das lideranças estaduais dos partidos, que não só têm autonomia política frente às lideranças nacionais destes mesmos partidos, como exercem grande influência sobre estes últimos. Isto é verdade, pelo menos, até a década de 70.
A conclusão da exposição acima é de que a descentralização política corresponde, antes de tudo, à descentralização partidária, ou seja, o sistema partidário descentralizado territorialmente é a principal garantia de autonomia das unidades subnacionais. O que não podemos perder de vista é que a descentralização ou a centralização do sistema partidário é determinada em grande medida por fatores indissociáveis da questão federal, ou seja, que a maior ou menor centralização partidária é resultado sobretudo da forma como o sistema partidário expressa os interesses centrípetos e centrífugos presentes na sociedade.
Temos, então, uma perspectiva dinâmica na análise da federação, que desponta agora não mais como uma estrutura congelada de relações intergovernamentais, mas como uma estrutura dinâmica, na qual as forças centrífugas e centrípetas estão sempre em confronto através da competição eleitoral nos diversos níveis. Assim, as oscilações entre períodos de maior e menor descentralização política são fenômenos naturais na vida da federação. Mas, é no processo democrático de competição partidária que a federação tem sua existência questionada ou afirmada. À medida que as clivagens territoriais apresentam-se como relevantes na competição eleitoral partidária, a federação é afirmada, mas se o fator identidade territorial perde completamente a relevância em função da afirmação dos interesses nacionais, então a federação não tem como subsistir senão de forma tosca, como preceito constitucional e institucional que não tem tradução na vida política do país. Evidentemente, estes processos não ocorrem do dia para a noite. Sistemas federais não desaparecem e reaparecem de uma eleição para outra.
A conclusão é de que existem fatores que tendem a produzir tendências centrípetas ou centrífugas na organização partidária dos países federalistas, alterando, mais ou menos, a distribuição territorial do poder dentro do Estado nacional. Entre os fatores descentralizantes, o principal, já apontado, é aquele que não só esteve presente na origem da maioria das federações como consiste na principal força centrífuga deste sistema a heterogeneidade de identidades de base territorial.
O ESTADO FEDERAL NO BRASIL
Quando analisamos o federalismo brasileiro, confrontando a discussão teórica empreendida acima com a realidade empírica, verificamos que as proposições defendidas anteriormente são perfeitamente válidas para o caso brasileiro. Vejamos.
Federação e Estado nacional
O federalismo é uma resposta à constituição ou manutenção de Estados nacionais marcados por clivagens territoriais conflitivas: forças centrífugas e centrípetas atuantes no território nacional. A origem das forças centrífugas, em grande parte dos casos, remonta ao período colonial, ou seja, à vivência de ampla autonomia política das esferas territoriais que formariam o Estado nacional.
O período colonial brasileiro foi marcado por uma estrutura de poder central débil. Caracterizou-se por ampla autonomia política de suas unidades territoriais (capitanias), o que levou à formação de núcleos autônomos de poder e de heterogeneidades de base territorial na colônia portuguesa, ou seja, de identidades e interesses consolidados a partir da ocupação de um determinado território. Desta forma, as heterogeneidades territoriais que, como já mostramos, informam e justificam a implantação e manutenção de uma organização federativa tiveram suas raízes no Brasil colonial.
O período pós-independência, que compreende o primeiro remado de D. Pedro I (1822-1831) e o período regencial (1831-1840), foi marcado pelo confronto entre as forças centrípetas, que defendiam um Estado unitário absolutista, e as forças centrífugas que reivindicam autonomia às esferas subnacionais (províncias). As forças centrífugas, num contexto de restrita participação política, expressavam os interesses das oligarquias agrárias regionais de conservarem a autonomia e o poder político de que desfrutavam desde o período colonial. A democracia federal não era do interesse dessas oligarquias. Em conseqüência, quando a heterogeneidade territorial ganhou expressão de massa através dos conflitos regionais e converteu-se numa ameaça à unidade nacional e à ordem econômica e social vigente, a resposta para "acomodar" os interesses territoriais conflitantes foi o centralismo monárquico.
O centralismo monárquico estabeleceu uma estrutura unitária de organização territorial legitimada pela "manutenção da ordem". Apaziguou os conflitos regionais através da coerção física e, excluída a população da participação política, deu expressão política às oligarquias dominantes e acomodou-as no poder central. Isto propiciou um longa estabilidade política ao segundo reinado que só foi rompida quando, estando consolidada a unidade nacional, novas oligarquias regionais emergiram como forças centrífugas reivindicando autonomia às províncias.
Aproclamação da república federativa em 1889 não significou mudanças substanciais na política oligárquica brasileira. Mas mudanças importantes ocorreram em relação à distribuição territorial do poder, algo muito longe de uma organização federativa, é verdade. As oligarquias de São Paulo e de Minas Gerais, predominantemente, dominaram o governo central e o conduziram em função de seus interesses, o que levou algumas vezes à intervenção do governo central nas províncias. É incorreto dizer que houve um verdadeiro federalismo na Primeira República brasileira; no entanto, a forma como foi estruturado o poder político territorialmente neste período teve como consequência o fortalecimento das identidades subnacionais (estaduais) o que maximizou aqueles fatores que, num contexto democrático, recomendariam uma organização federal. É exemplar, neste aspecto, que a configuração partidária desse período foi marcada pela inexistência de partidos nacionais, pela proliferação de partidos no âmbito estadual e pelo domínio de alguns deles, os que representavam as oligarquias regionais dominante, o Partido Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro, na conformação do governo da União.
Federação, heterogeneidades territoriais e democracia
A democracia é condição para o federalismo. Consequentemente, todo Estado autoritário é também unitário.
A relação entre identidade territorial, federação, autoritarismo e democracia passa a ter destaque na vida política brasileira a partir de 1930, com a entrada das massas no processo político. Os regimes autoritários que vigoraram no Brasil a partir de então não eliminaram o regionalismo, apenas oferecerem soluções mais ou menos estáveis para "acomodar" os conflitos de origem federal: recorrendo puramente ao uso da coerção física ou combinando a coerção física com a oferta de certas liberdades federais, ou ainda recorrendo a processos de liberalização política que culminaram no restabelecimento da democracia federativa.
A ausência de democracia consolidada no Brasil foi o que impossibilitou a consolidação do sistema federalista. As oscilações entre períodos de centralização e descentralização territorial do poder político corresponderam às oscilações entre autoritarismo e democracia. Em síntese, podemos dizer que a federação não foi uma constante na história do Brasil República porque a democracia não o foi. As experiências autoritárias do Estado Novo e de 64 evidenciam como o autoritarismo é unitarista, visto que a sua natureza (centralista) é incompatível com o sistema federal.
O sistema federal é a resposta democrática e mais estável ao problema de constituição e manutenção de um Estado nacional marcado por heterogeneidades de base territorial.
Além do problema de acomodar, via aparato institucional democrático, os setores sociais no contexto nacional do Estado moderno capitalista, países como o Brasil, marcados por pluralidades territoriais, devem acomodar também os interesses territoriais. É nesta perspectiva que, valendo-me de um termo de Huntington, utilizo a expressão "pretorianismo territorial" para designar a forma como os interesses territoriais se colocam na cena política num contexto de precariedade institucional. Mas o ponto a ser destacado é que a dinâmica autoritária brasileira foi também uma resposta ao problema de acomodação dos interesses territoriais. Uma resposta precária, porque acomodava estes interesses silenciando-os, via coerção física, e instável, porque não eliminou as forças centrífugas, que passaram a tensionar constantemente o regime autoritário reivindicando autonomia para as unidades territoriais. O pacto federativo seria, portanto, a resposta democrática para conciliar o pluralismo de interesses territoriais e representaria uma solução muito mais estável que o autoritarismo.
O significado de autonomia subnacional e a importância dos partidos políticos
A autonomia subnacional não é definida somente por descentralização fiscal e administrativa. É acima de tudo autonomia político-institucional, ou seja, autonomia para constituir e preservar um governo próprio e independente.
A desconcentração fiscal e administrativa que teve vigência no Estado Novo e a comparação do níveis de participação das unidades sub-nacionais na receita líquida do Estado no período autoritário de 64, mostrando que em todo este período esta participação foi bem superior a de muitos países federalista, ratificam a proposição acima.
Se são os partidos políticos quem ocupa os principais cargos públicos nos governos subnacionais, então o governo subnacional será autônomo à medida que os partidos políticos ou lideranças partidárias sejam autônomos em relação ao nível nacional o que pode ser caracterizado como descentralização partidária. Por sua vez, haverá descentralização partidária à medida que o sistema partidário expressa as clivagens territoriais presentes na sociedade.
É difícil avaliar o caso brasileiro neste aspecto, porque estou me referindo acima as condições institucionais para a sustentação do sistema federal em contextos democráticos até porque sem democracia tal sistema não tem como se sustentar. De qualquer forma, é possível dizer que os partidos políticos brasileiros, apesar de acusarem em suas conformações reflexos nítidos da diversidade territorial e do federalismo, quando este tem vigência, não têm sido, dado o seu caráter efêmero, o principal veículo de expressão dos interesses centrífugos. A conclusão disto é que a precariedade partidária responde, no campo das relações territoriais, pelo "pretorianismo territorial" que parece caracterizar o contexto brasileiro
CONCLUSÕES
Este artigo buscou discutir questões básicas relacionadas ao sistema federal: 1) O que ocasiona a sua adoção? Existem condições para a vigência deste sistema? O que justifica a sua manutenção? O que assegura esta manutenção?
As conclusões a que chegamos foram:
* O federalismo é uma resposta ao problema de constituir e/ou manter um Estado nacional em contextos marcados por heterogeneidade de bases territoriais, ou seja, onde há intensas pressões por autonomia política local (interesses centrífugos).
* A federação só pode subsistir em condição democrática de governo. Disto decorre que todo regime autoritário só comporta uma organização territorial de poder: a unitária.
* O autoritarismo e a democracia federal oferecem duas respostas distintas ao problema de constituição e manutenção dos estados nacionais marcados por heterogeneidades territoriais conflitivas.
* A federação se justifica como a única resposta democrática e estável ao problema de constituir e/ou manter um governo central em contextos de pluralidades territoriais.
* A autonomia das unidades subnacionais, fator diferencial do sistema federal, não se define somente pela descentralização administrativa e fiscal.
* O sistema partidário em países federalistas tende a reproduzir as clivagens territoriais existentes na sociedade. À medida que isto ocorra ou, mais especificamente, que os partidos políticos dêem expressão aos interesses centrífugos, a manutenção da autonomia das unidades subnacionais estará garantida. Em outras palavras, a autonomia das unidades subnacionais estará garantida na medida em que os interesses centrífugos tiverem relevância no Estado nacional e forem representados pelos partidos políticos.
- 1 Michael Burgess, "Federalism and Federation: A Reappraisal", in Michael Burgess and Alain-G. Gagnon (ed) Comparative Federalism and Federation: Competing Traditions and Future Directions. Wheatsheaf, Hertfordshire. Harvester, 1993, p.7.
- 3 Parte destas características estão apontadas nos trabalhos de William Riker, Federalism: Origin, operation and significance. Boston. Little, Brown and Company, 1964, p. 10 e Hartmut Klatt,
- Bases conceptuales del federalismo y la descentralización, Contribuciones, 4, Buenos Aires,outubro-dezembro de 1993, pp. 10-12.
- 4 Alexis de Tocqueville, A Democracia na América. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, p. 122.
- 7 Michael Bothe, "Federalismo - Um conceito em transformação histórica", in O Federalismo na Alemanha, Fundação Konrad Adenauer, n° 7, 1995, p. 5.
- 9 Estamos utilizando aqui o conceito procedimental de democracia de Schumpeter em seu livro Capitalism, socialism and democracy. London. Allen & Unwin, 1943.
- 11 Michael Burgess, "Federalism and Federation: A Reappraisal", in Michael Burgess and Alain-G. Gagnon (ed) Comparative Federalism and Federation: Competing Traditions and Future Directions, Wheatsheaf, Hertfordshire. Harvester, 1993, p.6.
- 12 Alessandro Pizzorno, "Sobre la racionalidad de la opción democrática", in Los limites de la democracia, Nápoles, 1985, p.
- 13 Douglass C. North, "Transaction Costs, Institutions and Economic Performance", Occasional Papers, Internacional Center for Economic Growth, 1992, p. 9.
- 14 Ana Lúcia de Lyra Tavares, "O Estado Federal: delineamentos", Revista de Ciências Políticas, n°4, vol. 22, FGV, Rio de Janeiro, 1979, p. 34.
- Citação, em itálico, de Marcelo Caetano, Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 89.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Ago 2010 -
Data do Fascículo
1998