DOSSIÊ EPIDEMIAS
Auto-suficiência e inovação na produção de vacinas e saúde pública
Isaias Raw; Hisako G. Higashi
RESUMO
O Butantan desenvolve novas tecnologias e processos industriais para a produção de imunobiológicos, tendo como prioridade a saúde pública. Produz 150 milhões de doses de antígenos vacinais por ano, 82% da produção nacional e 65% dos soros, fornecidos a preços acessíveis ao Ministério da Saúde para distribuição universal a crianças e idosos. Novos desenvolvimentos incluem a nova vacina contra coqueluche, por um processo que permite simultaneamente produzir um adjuvante que permitirá reduzir a um quarto a dose da vacina sazonal e pandêmica da influenza, aumentando a produção e reduzindo custos; a vacina de raiva humana com o maior rendimento descrito e a vacina combinada BCG-hepatite B-pertussis da maternidade. Em colaboração com NIH, Path e PDVI, o Butantan está iniciando a produção e o ensaio das vacinas para rotavírus e dengue. O surfactante deve reduzir a mortalidade neonatal que as vacinas não protegem.
Palavras-chave: Vacina, Pertussis, Adjuvante, Raiva, Dengue, Rota, Surfactante.
Por que produzir vacinas?
A Auto-Suficiência como fator de segurança para saúde pública tornou-se patente em 1984, quando o Instituto Nacional de Controle em Qualidade demonstrou que os soros antipeçonhentos e outros produzidos no país eram, por título baixo e pela presença de enorme contaminação bacteriana e de fungos, inadequados para uso humano, criando um clima de insegurança, uma vez que soros antipeçonhentos têm que ser produzidos para as espécies locais. O único produtor privado, uma multinacional que havia adquirido o Instituto Pinheiros, ante a perspectiva de ter que inovar sua tecnologia e reformular suas instalações para atender às Boas Práticas de Manufatura (BPM), preferiu abandonar o país. Os produtores públicos foram mobilizados para produzir mais soros com qualidade melhor, dispondo para isso de uma ajuda financeira do Ministério da Saúde. Desde então, o Butantan, em regime de urgência, instalou uma planta com nova tecnologia, a grande maioria dos produtores públicos desistiu. O mesmo ocorreu na África e parte da Ásia, onde as grandes empresas que forneciam soros antipeçonhentos, ante a necessidade de investir sem ter um retorno rentável, simplesmente abandonaram a produção, deixando a população desamparada.
Repetiu-se o que ocorreu com o único produtor de albumina humana, igualmente produzida em condições deploráveis e sem nenhuma reação: liquidaram a Biobrás, deixando o Brasil à mercê de importação de insulina. Assistimos ao abandono das plantas de antibióticos, que mais uma vez nos tornam vulneráveis.
Uma nova ameaça à saúde pública surgiu com a gripe aviária, quando produtores de vacinas de influenza declararam, em reunião na Organização Mundial da Saúde, que seriam compelidos pelos governos locais a reservar a vacina contra pandemia, com 80 microgramas de antígeno, para sua população, imaginando que sobreviveriam mesmo sem o restante da humanidade. Foi o Butantan que tomou a iniciativa que em tempo curtíssimo instalou uma planta piloto para iniciar a produção dessa vacina, obtendo os vírus vacinais para a influenza H5N1 do Vietnã (WHO) e o da Indonésia (CDC Centers for Disease Control and Prevention), cujo vírus está hoje monopolizado pelo país de origem que mais uma vez imagina sobreviver sozinho ou ganhar parte do imenso negócio que a venda antecipada da vacina, a 100 dólares por dose, gerou.
A saúde pública não pode ficar ao sabor do lucro auferido, nem mesmo limitada à população que pode pagar pelas vacinas. Como o Japão demonstrou, a influenza sazonal é especialmente disseminada pelas crianças que trazem o vírus da escola primária. A garantia de sua família depende da garantia dos que entram em contato com ela! Vacinando essas crianças, elas não serão portadoras do vírus para suas famílias, reduzindo a freqüência de pneumonia, sem que o Estado gaste milhões de dólares por ano em uma vacina multivalente pouco eficaz, nem apresentarão otite média que leva à surdez infantil.
O modelo do Pasteur
Louis Pasteur (1822-1895), inventou o laboratório público, uma fundação, que desenvolvia, produzia e reaplicava os proventos obtidos para continuar a pesquisar e produzir. Uma centena de Institutos Pasteur surgiu nos países em desenvolvimento. Na década de 1980, a grande maioria estava inoperante. A estrutura jurídica que permitia auto-suficiência econômica foi sendo corroída. Para sua sobrevivência, esses Institutos deveriam poder atualizar e expandir a produção, precisariam ter um setor de pesquisa básica, o que ocorre no Brasil, onde Fiocruz e Butantan são institutos de pesquisa. Precisam investir em desenvolvimento. A partir de 1985, o Butantan implantou o Centro de Biotecnologia, onde duas dúzias de doutores e meia centena de estudantes se dedicam ao desenvolvimento de fato que a Divisão Bioindustrial transforma em produto para a sociedade. Precisamos ter uma reserva que permita fornecer ao Ministério da Saúde, pelo preço que esse decide e paga quando puder. O Ministério não tem recursos para financiar a produção que deveria ser iniciada de oito a dez meses antes do fornecimento, portanto no ano fiscal seguinte, sujeito a "trovoadas" da aprovação do orçamento (oficialmente o Ministério encomendou, em 2008, a vacina sazonal da influenza), só depois que recebeu e utilizou a vacina, que é paga.
A maior parte dos produtores públicos entrou em crise, deixando de produzir para tornar-se envasadores de vacinas importadas a granel. Esse modelo (Coca-cola: compra xarope, dilui e envasa) não permite que os Institutos aprendam a produzir, muito menos ganhar independência tecnológica que é a base para inovar. São reféns das grandes empresas que fornecem o granel e que de fato fixam os preços para o fornecimento ao Ministério. Poucas vezes adquirem a tecnologia, freqüentemente como uma caixa-preta já abandonada pela "matriz", que não permite inovações. Ficam dependentes de insumos estratégicos que permitem que o fornecedor da tecnologia seja de fato o dono dessa tecnologia e controle o quanto foi produzido, o preço a ser pago pelo Ministério e, portanto, os royalties que lhe são devidos.
Em contraste, o Butantan desenvolveu sua tecnologia, dominando a produção. Esse domínio exigiu projetar e construir novas plantas de produção, ensinando sempre que é necessário, aos provedores nacionais de construção civil, ar filtrado para manter a esterilidade e até ensinar a indústria nacional a produzir equipamentos antes sempre importados.
A influenza sazonal e aviária
Em 2000, o Butantan cooperou com o Ministério da Saúde na introdução da vacina de influenza para maiores de 60 anos. Fechou um acordo em condições excepcionais que jamais se repetirá para a transferência da tecnologia, limitada estritamente na aquisição da vacina a granel até que a sua fábrica fosse concluída. Esse acordo teve duas conseqüências importantes: negociamos um preço especial que resultou na economia de cerca de 300 milhões dólares, que transferimos para o Ministério baixando o preço da vacina, sem restar nenhuma dívida; ao usar a tecnologia européia, resolvemos o problema da impossibilidade de testar a vacina do ano, entre sua decisão (realizada pela OMS que fornece as cepas poucos meses antes da vacinação). Na planta de influenza, foram investidos pelo Ministério da Saúde 34 milhões de reais, e pela Secretaria da Saúde, aproximadamente 40 milhões de reais. Infelizmente, a inexperiência da construtora e seus associados retardou a produção de cerca de três anos para termos a planta pronta para sua validação. Esse acordo permitiu vacinar, em média, acima de 80% da população maior de 60 anos, iniciando com 7,5 milhões de doses e chegando, em 2007, a cerca de 18,3 milhões, um programa em parceria do Ministério, do Butantan e dos Estados e municípios. Diminuiu significativamente a incidência da influenza e da internação por pneumonia.
Ao decidirmos produzir a vacina aviária, montamos em três meses uma planta para atender à demanda estratégica de 200 mil doses/ano, que seriam suficientes para vacinar um grupo que ingressava no país e estava exposto a essa forma pandêmica. O Ministério da Saúde e as agências de fomento não conseguiram reagir com a mesma velocidade e a Fundação iniciou o investimento necessário.
Em 2007, o governo norte-americano anunciou que financiaria o Butantan, mas os recursos acabaram sendo entregues à WHO que escolheu o Butantan e quatro outros potenciais produtores de vacinas de países em desenvolvimento. Em 2008, o projeto está começando a produzir.
DTP, uma vacina básica
A vacina combinada difteria-tétano-pertussis (coqueluche) (DTP) foi desenvolvida nos anos 1930 e se tornou a base para criar vacinas tetravalentes, pentavalentes e hexavalentes. Com o uso de vacinas múltiplas, a administração é simplificada e economizam-se seringas cujo custo não é trivial. Para permitir a produção em condições de BPM (Boas Práticas de Manufatura), tivemos que construir novas instalações, aproveitando "esqueletos" que foram abandonados por décadas, reconstruindo novos laboratórios, com nova tecnologia desenvolvida no Butantan, o que exigiu equipamentos de nova geração. Uma central de formulação e envase que lava, esteriliza frascos, transfere vacinas, fecha e rotula foi construída, permitindo a produção de 28 mil frascos por hora. Com cinco a dez doses por frasco, pode alcançar mais de dois milhões de doses por dia!
Cerca de 400 milhões de doses dessa vacina foram produzidas e administradas a praticamente todas as crianças de menos de dois anos, a partir de 1990. Pela escolha de uma cepa de Bordetella pertussis e do novo processo de inativação, logramos praticamente eliminar os efeitos colaterais graves. As três infecções infantis praticamente desapareceram.
Para a produção dessas vacinas, três plantas foram construídas, totalmente autocontidas, com capacidade de atender à demanda nacional de cerca de 25 milhões de doses por ano, para quatro doses/criança e para cobrir as vacinas que sobram, cada ano, em 25 mil postos de vacinação que cobrem o país. Além da vacinação infantil, produzimos a vacina dT Dupla para Uso Adulto (difteria-tétano), que em 2004 permitiu revacinar todos os 20 milhões de maiores de 60 anos, uma vez que a difteria começava a atacar os mais idosos. Só um produtor público produz em um ano 20 milhões, caindo nos anos seguintes para apenas dois milhões. Isso foi possível pela otimização da produção, o que só ocorre quando a tecnologia é implantada. Hoje o Butantan pode produzir até 180 milhões de DTP Vacina Tríplice (difteria, tétano, pertussis) (ou suas combinações) por ano, e começa a exportar.
Hepatite B e haemophilus b
A partir de 1995, começamos a produzir, com tecnologia desenvolvida no Instituto por um pesquisador contratado, a vacina recombinante contra hepatite B. Imediatamente a vacina foi testada e aprovada na Universidade de Londrina, mas teve que aguardar cinco anos e cinco mil ensaios para ser reconhecida tão eficaz quanto a vacina de comparação. Cerca de 160 milhões de doses já produzidas atestam a eficácia e a segurança. Hoje existem dezenas de produtores de vacina contra hepatite B, e o custo caiu de US$ 20 para US$ 0,22! Na clínica privada, no Brasil ou nos Estados Unidos, a vacina continua a custar cerca de US$ 50/dose!
O óbvio seria a combinação DTP-hepatite B, adotada pela grande maioria dos países. Biomanguinhos decidiu adquirir a vacina contra haemophilus b a granel e interrompemos o desenvolvimento da nossa vacina Hib (Haemophilus influenzae b). Cedemos DTP para lançar a vacina DTP-Hib, deixando a vacina hepatite B separada.
Voltamos a desenvolver a vacina Hib e estamos iniciando a instalação de uma planta para sua produção. A vacina Hib, que conjuga o polissacarídeo dessa bactéria com a anatoxina tetânica, é definitivamente uma vacina eficaz. O Butantan é um dos maiores produtores de anatoxina tetânica, que é usada para a conjugação. Com a otimização, temos capacidade instalada para produzir 180 milhões de doses por ano. Dentro em breve, o Butantan produzirá a vacina DTP-hepatite B que pode ser misturada no posto de saúde com o Hib, do Butantan ou de Biomamguimhos, constituindo a vacina pentavalente. O Butantan não terá restrições para exportar, com sua tecnologia.
Pela falta de competição, com o preço mantido, por mais de uma década, acima de US$ 2,50, a vacina Hib é hoje usada apenas por cerca de um quinto das crianças. Na África predomina a meningite tipo A que é pouco freqüente no Brasil. A vacina conjugava o polissacarídeo da meningite A com a anatoxina tetânica com um rendimento muito baixo. A Fundação Path decidiu investir na melhora da produção e chegou a um processo que permitirá atender à África (especialmente por uma empresa da Índia) a um custo de apenas US$ 0,50. A tecnologia básica para produzir o Hib e a meningite A são similares, e a vacinação atenderá mais crianças se, dentro das regras do mercado, a produção aumentar, se for oferecida como deve ser a um preço inferior a US$ 1. É o que o Butantan pretende fazer, atendendo às consultas de países da Ásia e da África.
A Fundação Gates imaginava que US$ 5 seriam suficientes para oferecer vacinas básicas para as crianças de países mais pobres, e que, aumentando o mercado dos grandes produtores, o preço da vacina para os países em desenvolvimento seria reduzido. Passou a adquirir as vacinas e a oferecer para os países em desenvolvimento e, com os resultados obtidos, os governos acabaram por assumir, com recursos próprios, a vacinação pública. Está cada vez mais evidente que, apesar do aumento do mercado, os preços não caíram, e que as empresas não iriam investir na expectativa que o mercado fosse mantido depois que o programa da Gates-Banco Mundial-Rockefeller deixasse de financiar. Pela primeira vez, em reuniões internacionais começam a surgir idéias de restabelecer a produção pública de vacinas, que esbarra na história da incompetência em produzir com qualidade e segurança, falta de capacidade gerencial e, especialmente, de inovar e desenvolver novas vacinas. As grandes empresas mudam seu foco para vacinas de alto custo, que jamais estarão disponíveis para a população e governos com limitação de recursos. A própria Organização Pan-Americana de Saúde (OPS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) passaram a promover a aquisição dessas vacinas com custo inviável, e agora promovem a vacina de rotavírus a US$ 15 ou mais dólares por criança e também a vacina 7-valente pneumocócica conjugada a US$ 159 por três doses, bem como a vacina e até de HPV a US$ 600 ou mais dólares por cada menina ou mulher! Empresas privadas, segundo suas metas, priorizam lucros, não saúde pública. Uma evidência disso é que um dos países com o maior número de produtores competentes de vacinas, a Índia, oferece seus produtos para exportação e tem logrado produzir para os fundos rotatórios da Unicef e da OPS vacinas de qualidade e, por sua competição, reduzir os custos. Algumas hoje produzem para as grandes empresas multinacionais. Todavia, uma simples análise mostra que esse país não tem acesso prioritário a essas vacinas, o que fica evidente ao se tornar o último foco de poliomielite no mundo.
Nova vacina pertussis e influenza
A vacina DTP do Butantan tem demonstrado eficácia e segurança, o que não estava acontecendo no Japão, onde a vacina pertussis era altamente tóxica. H. Sato, no Japão, isolou duas proteínas essenciais para imunização contra pertussis. As grandes empresas ampliaram até três a cinco o número de antígenos vacinais sem um beneficio marcante. As novas vacinas, com proteínas isoladas, denominadas de acelular (aDTP), têm menor freqüência de efeitos colaterais sérios e uma eficácia um pouco menor do que a vacina clássica (wDTP). O custo da wDTP, no fundo rotatório da OPS, é US$ 0,15 por dose. A vacina aDTP custa US$ 8,15. Sem nenhuma visão do custo/beneficio, algumas sociedades, aceitando a propaganda dos produtores, recomendaram a substituição de wDTP por aDTP, o que para o Brasil representaria um custo de US$ 130.440.000! Em novembro de 2007, a OPS e a OMS se reuniram para declarar que essa substituição não tem nenhum benefício que a justifique.
O Butantan, sempre consciente do custo/benefício e preocupado em economizar as verbas públicas do Ministério para introdução de novas vacinas, desenvolveu uma tecnologia que permitiu remover da Bordetella o LPS lipopolissacarídeo, substância que se liga a receptores Toll-4 da membrana das células, desencadeando uma resposta inflamatória. O novo pertussis, cujo ensaio clínico foi conduzido pelo Departamento de Pediatria da Universidade de Campinas (Unicamp) que denominamos Plow, não aumenta o custo da vacina, que permanece como DTP a US$ 0,15 por dose. Um acordo permitiu ao Netherland Vaccine Institute, o pioneiro da produção industrial de vacinas, usar a tecnologia do Butantan.
Tendo agora a capacidade instalada para produzir 180 milhões de doses de vacina DPTlow, acumularemos 72 milhões de miligramas de LPS. Desenvolvemos um método para hidrolisar o LPS, produzindo 36 milhões de miligramas de monofosforil lipídeo A (MPLA), que, ao contrário do LPS, ao se ligar ao receptor Toll-4, não desencadeia, pela produção de citocinas, a reação inflamatória, mas estimula, por meio da produção do interferons, a ativação de linfócitos T.
A vacina pertussis, na wDTP, é testada antes de liberação para uso, pela indução de proteção contra uma cepa de Bordetella, escolhida por sua virulência; é injetada diretamente no cérebro de camundongos, matando aqueles não-protegidos. Descobrimos que uma das subunidades da toxina pertussis, cujo gene foi introduzido na vacina BCG, era capaz de proteger o camundongo contra a cepa virulenta de Bordetella, sem produzir anticorpos. Ao contrário do que se acreditava, não são os anticorpos induzidos pela vacina, mas a imunidade celular por ela induzida que cria a memória imunológica.
O Butantan vem investigando o papel da imunidade celular induzida pela vacina da influenza. Um novo adjuvante foi desenvolvido e testado em camundongos, que inclui MPLA e hidróxido de alumínio, visando aumentar na vacina de influenza a resposta humoral e celular que permite reduzir a quantidade de antígenos na formulação da vacina por um fator de quatro, possibilitando o aumento da produção da planta de influenza sazonal de 20 milhões em quatro meses para 80 milhões, reduzindo obviamente o custo da vacina.
A escolha, em 2008, das cepas da vacina de influenza sazonal do Hemisfério Sul criou problemas, pela pequena produtividade e baixa imunogenicidade. Para a vacina H5N1 da pandemia, já se sabia que as vacinas construídas por engenharia genética reversa, produzindo um DNA usando o RNA viral como molde, e fazendo algumas modificações para atenuar o vírus, resultaram numa vacina que exigia 80 microgramas por dose (a vacina sazonal usa apenas 15 microgramas de cada uma das três cepas). É essencial usar um adjuvante para reduzir a quantidade de antígeno H5N1 por dose de vacina, que multiplica a capacidade instalada que seria mobilizada no caso de uma pandemia. Ao testar o adjuvante MPA (produzido a partir de LPS de uma Salmonela) em camundongos, era necessário adicionar 100 microgramas; quando ele era emulsionado com esqualeno, a quantidade a ser adicionada era de 100 vezes menos. O esqualeno é um composto oleoso isolado de cações, hoje em ameaça de extinção e que terá que ser substituído por um composto sintético, muito mais caro. Uma criança vacinada com wDTP recebe, a cada dose, 400 microgramas de LPS, correspondendo a cerca de 200 microgramas de MPLA, o que geralmente não ocasiona efeitos colaterais graves.
Uma importante descoberta foi feita recentemente. Os efeitos colaterais da vacina pertussis, que ocorrem em uma entre duas mil crianças vacinadas, devem-se a um defeito genético que afeta um transportador de sódio das sinapses. No momento é impossível a detecção dessa mutação nas crianças que devem ser vacinadas. Isso não diminui o valor do DTPlow, que logra, sem aumento de custo, ter uma vacina eficaz e menos tóxica.
Um dos problemas é a proteção contra coqueluche em bebês antes do quarto mês, quando recebem a segunda dose de DTP. Logramos criar uma vacina para ser administrada na maternidade, substituindo o BCG por um BCG que tem incluído em seu genoma a subunidade S1 da toxina pertussis que é associada à vacina de hepatite B, protegendo o bebê contra a possível transmissão de hepatite B pelo contato com o sangue materno. Existem indicações preliminares de que a subunidade S1 tem efeito adjuvante e deve estimular a proteção dada pelo BCG contra tuberculose e, provavelmente, como onco-BCG.
Vacina contra a raiva e a leishmaniose
Durante décadas, o Butantan produziu a vacina contra raiva inoculando o vírus em cérebros de camundongos de um dia (antes que comece a produção da mielina). Um macerado do cérebro era a vacina, não garantidamente eficaz e particularmente perigosa, pois pequenas quantidades de mielina do cérebro do camundongo produzem anticorpos para a mielina do vacinado, levando à síndrome de Guillaim-Barré. Como fizemos com a planta de BCG, simplesmente paramos a produção dessa vacina e desenvolvemos em células VERO, logrando o maior rendimento por litro de cultura descrito. Já atendemos à demanda nacional e estamos construindo uma planta maior para suprir a demanda de países que não têm capacidade de produção.
Um derivado dessa tecnologia é a vacina anti-rábica canina, produzida em células BHK (usadas para imunizar cavalos para produzir o soro anti-rábico) que deve substituir a vacina Fuenzalida Palácios, que o Ministério da Saúde adquire. Essa vacina e a vacina para uso humano e o soro anti-rábico são essenciais para atender à demanda de países da Ásia e da África.
Estamos, em colaboração com a Universidade de Washington (IDRI em Seattle), desenvolvendo uma vacina combinada raiva-leishmania para cães, que bloquearia a transmissão das duas doenças para o homem. Essas pesquisas têm a participação da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fiocruz na Bahia.
Pesquisas "translacionais" parcerias público-privadas
Existem modismos periódicos, freqüentemente associados a uma palavra que adquire uma nova conotação. A pesquisa "translacional" inclui a transferência da pesquisa de bancada para o ensaio clínico e a produção. Esse neologismo era para nós óbvio quando assumimos a renovação da produção de imunobiológicos, que a sociedade e o próprio governo demandam: produtos colocados à disposição da sociedade para solucionar problemas de saúde individual e pública. Isso teve que ser reinventado, num país onde a pesquisa prioriza a publicação, deixando para a indústria traduzir o conhecimento na aplicação. Se essa visão pragmática destruir a pesquisa básica e a competência da comunidade científica de mapear novos conhecimentos e para onde eles levarão, não sairemos do subdesenvolvimento. Não podemos platonicamente acompanhar a pesquisa que caminha numa espantosa velocidade, sem que nossos professores e pesquisadores vivam a liberdade de desenvolver pesquisa científica original. O Brasil tem conseguido um importante progresso que deve se acelerar rapidamente. Todavia, não podemos nos contentar apenas com publicações científicas em revistas de alto nível, elas não levam à translação. O corpo docente das universidades não desenvolve tecnologia, nem ele tem a competência ou instalações de conceber um processo industrial, que produz com eficiência, baixo custo e qualidade para atender à demanda da sociedade. O papel está sendo substituído pela patente e pela intenção do governo de repartir os proventos das patentes com os pesquisadores. Ao contrário do Primeiro Mundo, onde parte dos recursos públicos gera pelo menos "provas de princípio" que sugerem a sua transformação em produto, a empresa privada não tem competência, apetite, recursos financeiros e humanos para realizar essa etapa fundamental para o desenvolvimento. Em comparação aos países avançados, os recursos para pesquisa básica e para o pequeno quadro de pesquisadores são relativamente maiores (quando se leva em conta que salários, infra-estrutura e freqüentemente equipamentos e biotério são pagos pelo orçamento da instituição). Na visão simplista, basta oferecer recursos e a empresa privada desenvolverá, usando as patentes depositadas. As empresas privadas e mesmo públicas estão à procura de caixas-pretas e respostas que pesquisadores não têm: processos tecnológicos, em que se obtêm os insumos, quem fornece os equipamentos industriais, como se constrói a caixa-preta, qual é a demanda de energia, água, onde encontrar técnicos treinados.
É esse o complexo que tivemos que desenvolver e implantar na Divisão Bioindustrial do Butantan. As duas dúzias de pesquisadores do Centro de Biotecnologia atraem dezenas de estudantes de pós-graduação, sem o que a pesquisa não caminha. Estão dispostos a priorizar os projetos de impacto social, ainda que tenham liberdade de explorar outros. A Divisão de Produção planeja o laboratório para a produção da vacina, sem intervenção de firmas "especializadas" que não tenham real experiência na produção de produtos biológicos.
Temos sido procurados por empresas nacionais e até internacionais para abrirmos as portas a uma parceria público-privada, que pretenderia transformar o Butantan num centro de desenvolvimento que a empresa não tem, nem está interessada em investir, ainda que subsidiada pelo governo. A indústria farmacêutica pública se comporta como a privada, não investindo em desenvolvimento e inovação. Por sua vez, se o Butantan apenas se dedicasse ao desenvolvimento, sem produção, jamais otimizaria ou sequer testaria de verdade o processo supostamente desenvolvido. Mesmo instalada a produção, a estrutura jurídico-financeira do Butantan permite, com critério, periodicamente introduzir modificações tecnológicos que melhorem o produto ou aumentem a produção, o que não ocorre na iniciativa privada que mantém planta e processo enquanto dela obter produtos que têm mercado criando, sem novos investimentos, lucros. Muitas inovações na indústria farmacêutica, como vem sendo denunciado em dezenas de livros, são maquiagens, alterando ligeiramente o medicamento, sem que o novo tenha vantagens e benefícios maiores do que o tradicional.
Limitados pela capacidade de nossos quadros que são exíguos, procuramos alternativas. Não estamos no mercado de tecnologias fechadas e estamos nos associando com institutos de porte, como o National Institutes of Health (NIH), transformando o conhecimento gerado em tecnologia e produção. Iniciamos com a vacina pentavalente de rotavírus, abrindo caminho para outros produtores da Índia e da China, que conosco cobrirão cerca de 50% da população infantil mundial, em cada local com os sorotipos freqüentes. A Fundação Path, com recursos da Fundação Bill e Melinda Gates, está assessorando os produtores dessa vacina, que cobrirá os vírus prevalentes em cada região e reduzirá o custo da vacina sem valor da ordem da metade do custo da vacina monovalente que foi importada para o Brasil. O acordo feito há três anos para produzir rotavírus seguiu outro para a vacina quadrivalente da dengue, e é o Pediatric Dengue Vaccine Iniciative, novamente com recursos da Fundação Gates, que está priorizando sua assessoria ao Butantan. Nos dois casos, o NIH tem evidências concretas de que as vacinas são seguras e provavelmente eficazes. A parceria Butantan-NIH permite completar o desenvolvimento tecnológico, testar a vacina e produzir para o Brasil e parte dos países em desenvolvimento. Nesse modelo em andamento, a parceria é basicamente pública (Butantan)-pública (NIH). Em outros países onde não existem mais institutos públicos como o Butantan, os acordos são com empresas privadas.
Outras parcerias incluem a Universidade Harvard, com apoio da Path, para desenvolver uma vacina celular contra pneumococo. Essa vacina é proveniente de um projeto interno do Butantan, que deve dar origem a uma vacina que custaria cerca de US$ 1-2 por dose, em vez dos 53 da vacina 7-valente conjugada. Com a Fundação Sabin-Universidade George Washington, estamos contribuindo para desenvolver vacinas contra vermes (Necator e Schistosoma). Não passam dois meses sem que outra instituição venha ao Butantan para discutir um novo projeto. O mesmo vem ocorrendo com empresas farmacêuticas nacionais, com as quais estamos negociando parcerias. Essas associações pressupõem que o Butantan passe a produzir vacinas e outros produtos biológicos, oferecendo-os a um custo reduzido para o Ministério da Saúde, que atende ao mercado público, e a para a empresa privada fornecer no mercado aberto. Dessa forma, é o Butantan que arca com o risco de investimento em capital. Esse é o acordo para a toxina botulínica A, cuja demanda pública é para determinadas doenças espásticas, e a demanda privada, para efeitos estéticos. Outro tipo de associação público-privada começa a surgir onde a iniciativa privada procura o Butantan para desenvolver a tecnologia a ser explorada pela empresa privada. Nesse modelo, o Butantan faz o desenvolvimento, o que implica a construção ou uso de uma planta piloto que apresenta BPM (Boas Práticas de Manufatura). O produto pode então ser testado clinicamente e a tecnologia transferida para a empresa privada, que pagará royalties ao Butantan.
Apesar de alguns acordos realizados, as empresas reagem imediatamente, como lhes compete, ao mercado potencial e ao lucro. Sabem que é impossível competir com o produto importado a granel, como empresa privada ou mesmo pública. É o caso dos projetos do Butantan de produzir eritropoetina e interferon alfa com uma empresa farmacêutica, mercado que desapareceu com a importação desses produtos por Farmanguinhos, repassando sua reserva de mercado e isenção de impostos. Outras empresas privadas importam o produto a granel fabricado na China com preços bastante reduzidos, o que torna inviável a competição com um produto de melhor qualidade fabricado no Brasil.
O complexo pesquisa-desenvolvimento-produção retorna para o Butantan investimentos que o tornam menos dependente de auxílios, além de permitirem um real desenvolvimento tecnológico. A interrupção desse elo, em que a indústria privada e mesmo o governo vêem o Butantan como um centro de desenvolvimento que supre a deficiência da indústria privada, que assume investimentos de longo prazo e riscos, passando os sucessos para a indústria privada, levaria rapidamente ao esgotamento do que o Instituto representa para o país e para a sociedade. Não podemos nos converter simplesmente no provedor que a empresa privada deseja. Para não sermos mortos por ações predadoras, que assumem ser o dever do governo para o empresário, devemos encontrar uma forma de uma simbiose que contribua para o benefício da sociedade.
Surfactante: a solução pré-vacinal-hemoderivados
Algumas doenças virais têm chance potencial de ser eliminadas do planeta. Até o momento, o único caso concluído com sucesso é a varíola, hoje totalmente extinta. A poliomielite, tendo sido eliminada nas Américas, parecia ser possível ser extinta em pouco tempo. Todavia, países com uma estrutura de saúde pública deficiente ou até aqueles que produzem e exportam a vacina, mas não a usam em quantidade suficiente, mantêm a poliomielite presente e sempre transferida por viajantes a outros países, o que obriga esses países onde a poliomielite foi erradica a continuar a vacinação. Sarampo quase foi eliminado nas Américas, mas acabou, trazido por viajantes, reaparecendo. Mesmo com vacinas seguras e eficazes, doenças causadas por vírus ou bactérias que se mantêm em animais ou mesmo em vida livre podem ser controladas, mas não serão extintas.
Com a introdução da vacinação universal no Brasil, a mortalidade infantil foi sendo reduzida e, em 2006, é de 25/1.000 nascimentos vivos. No Estado de São Paulo caiu para 13, ainda bastante acima de países como Suécia e Cuba. Metade da mortalidade representa a mortalidade neonatal, anterior à aplicação da vacina. Vacinas que podem ser administradas na maternidade, como BCG (tuberculose) e hepatite B, podem reduzir a mortalidade nos primeiros meses de vida. Outras doenças, como a coqueluche, são freqüentes e mortais antes do quarto mês de vida, depois da vacinação com DTP no segundo e no quarto mês. Considerável redução da coqueluche, mortal para o recém-nascido, deve ocorrer com o BCG recombinante para a subunidade S1 da toxina pertussis.
Cerca de 50% da mortalidade neonatal resulta da imaturidade pulmonar, que impede a abertura dos alvéolos quando a criança tem o primeiro choro. A imaturidade resulta da falta do surfactante, um complexo lipoproteíco, que pode ser substituído pelo isolado de pulmões de porco ou vaca. Em menos de quinze minutos, o bebê morre sufocado, e o surfactante precisa estar disponível na sala de parto. O custo do surfactante importado é da ordem de R$ 300-500 por dose, e suprir cerca de 100 mil doses de surfactante por ano é economicamente inviável. O Butantan desenvolveu a produção do surfactante por um processo original que permite sua produção por cerca de R$ 100 por dose, graças à reciclagem dos dois insumos, o solvente que extrai os surfactante da superfície interna dos alvéolos, e a resina de purificação, reduzindo o custo.
Esse produto, já ensaiado clinicamente, aguarda apenas o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvando 300 bebês por dia, que hoje morrem sufocados sob o olhar das mães; que depois voltam a ficar grávidas com ônus para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Além de fosfolipídios, o surfactante básico contém duas proteínas hidrofóbicas indispensáveis e uma proteína hidrofílica (A), que tem uma estrutura semelhante à proteína do complemento C1q e é, como ela, uma colectina, que liga microoganismos, defendendo o organismo da infecção. Sua produção será particularmente útil para a produção de um surfactante especial, a que se adicionará tobramicina, que pode ser instilado no tratamento da pneumonia, mesmo a produzida por Pseudomonas comuns na infecção hospitalar.
De acordo com a Constituição em vigor, a colheita de plasma não pode ser remunerada, tampouco a venda dos seus produtos. Desde 1993, o Butantan vem tentando desenvolver uma planta de fracionamento de plasma humano, que foi impedida (por ele não ter obtido acesso ao plasma) pelo que hoje é conhecido de "máfia dos vampiros" que mediava importação dos hemoderivados. Como substituto, o plasma foi exportado para processamento. Manteve-se a idéia de uma central de processamento utilizando o método de Cohn, em que se precipitam algumas proteínas com álcool a baixas temperaturas. Esse processo, que foi desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial, permanece em razão do monopólio internacional que não procura inovar, substituindo suas plantas. O plasma contém uma centena de diferentes proteínas. Os fatores VIII e IX são isolados por crioprepicitação por serem pouco solúveis a baixas temperaturas, mas sua recuperação não alcança 50%, o que abriu o mercado dos recombinantes, desprezando os fatores naturais, que hoje podem ser isolados livres de vírus, sem a despesa resultante da aquisição de mais de 75% dos fatores recombinantes. O plasma sem os fatores é precipitado com concentrações variáveis de álcool, em pH e temperatura diferentes, para obter albumina (hoje com demanda limitada) e as imunoglobulinas. Pelo método de Cohn, os fatores VIII e IX representam 37% do valor dos produtos do plasma e imunoglobulinas mais do que 46%. Finalmente, o Butantan inicia a construção de sua planta de processamento de plasma utilizando apenas cromatografia, tornando a planta mais moderna existente. Sem usar crioprecipitação ou álcool, será possível recuperar um número maior de proteínas com aplicação médica. Uma delas é e alfa-1 antitripsina, que inibe a elastase liberada pelos neutrófilos que se acumulam durante processos infecciosos pulmonares e que, durante a pandemia da gripe de 1918, foram causa de morte, sufocando o paciente. A alfa-1 antripsina poderá ser associada ao surfactante no tratamento de pneumonias.
Genoma e mais vacinas
O Centro de Biotecnologia participou do genoma da Xillela, que abriu novas perspectivas para a entrada do Butantan na biologia molecular. Genomas completos do Schistosoma e da Leptospira foram contribuições importantes do grupo de Biologia Molecular do Centro, que tem o potencial de indicar proteínas que podem ser transformadas em vacinas. Abandonamos, como dissemos antes, a produção de eritropoetina e interferon-γ, em razão da invasão de produtos importados. Voltaremos a investir no fator VIII porcino como uma solução de baixo custo para hemofílicos graves que se tornam resistentes ao fator VIII natural ou recombinante. Continuamos a investir, ainda sem a intensidade desejável, nas vacinas para HPV cujo custo absorveria praticamente todos os recursos do Ministério da Saúde.
Estamos vivendo num país com grande potencial para se tornar avançado se dermos atenção às nossas prioridades e mantivermos, em equilíbrio com a pesquisa científica, uma atitude pragmática responsável. É isso que guia o programa de imunobiológicos do Butantan.
Recebido em 8.9.2008 e aceito em 12.9.2008.
Isaias Raw é professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Fundação Butantan. Prêmio Wessel 2005. @ iraw@butantan.gov.br
Hisako G. Higashi é diretora da Divisão Bioindustrial do Instituto Butantan. Prêmio Wessel 2007. @ hisa@butantan.gov.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Nov 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008