RESENHAS
Uma leitura a contrapelo do colonialismo em terras moçambicanas
Anselmo Peres Alós
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
MOMPLÉ, Lília. Os olhos da cobra verde. 2. ed.Maputo: Edição da autora, 2008. 96 p.
Lília Maria Clara Carrière Momplé nasceu em 19 de março de 1935, na mítica Ilha de Moçambique, localizada ao norte do país, na província de Nampula. Concluiu seus estudos secundários na capital da colônia, na cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo). Na universidade, frequentou durante dois anos o curso de Filologia Germânica, deixando-o para formar-se em Serviço Social no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa. Depois de uma temporada na Grã-Bretanha (durante 1964) e de outra no Brasil (de 1968 a 1971), a escritora regressa definitivamente a Moçambique, no ano de 1972.
Apesar de suas colaborações dispersas na imprensa, Lília Momplé destaca-se no cenário da literatura moçambicana por seus três livros: Ninguém matou Suhura (contos, 1988), Neighbours (romance, 1996) e Os olhos da cobra verde (contos, 1997). Em 2001, foi agraciada com o Prêmio Caine para Escritores da África, com o conto "O baile de Celina" (publicado no volume Ninguém matou Suhura). Além deste prêmio, recebeu também o 1º Prêmio de Novelística no Concurso Literário do Centenário da Cidade de Maputo, com o conto "Caniço" (também publicado em Ninguém matou Suhura). Estes dois contos foram originalmente publicados em seu primeiro livro, Ninguém matou Suhura. Lília Momplé tem livros traduzidos para o inglês e o alemão, por editoras de reconhecido prestígio, tal como a Heinman. Depois de 11 anos sem reedição, vem a lume, em 2008, a segunda edição de seu segundo livro de conto, intitulado Os olhos da cobra verde.
Os olhos da cobra verde é um livro composto por seis contos, todos eles "baseados em factos verídicos ocorridos em Moçambique" (p. 94), como a própria autora afirma ao final da coletânea. Todos eles estão ambientados em Moçambique, em um período situado desde os fins da guerra civil que se seguiu à independência nacional que ocorreu em 1975 (como "O sonho de Alima" ou "Os olhos da cobra verde") até o período imediatamente posterior à assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma, no ano de 1992 (como em "Stress" ou "Um canto para morrer").
No conto "Stress", são narradas duas histórias pararelas, que se entrecruzam em um momento trágico. De um lado, conta-se a história da amante do major-general, e de como esta consegue sair de Malhangalene (um dos bairros pobres e periféricos de Maputo) e estabelecer-se na Polana, o bairro mais caro da capital moçambicana, graças às benesses que lhe são propiciadas pelo amante. De outro, conta-se a história de um professor anônimo que, nas tardes de domingo, toma sua cerveja, tentando afogar as agruras orindas das preocupações, com os ouvidos colados em seu xirico (um pequeno radinho de pilhas) e às vistas da amante do major-general, que olha entediada para este quadro todas as tardes de domingo.
A indiferença do professor aos olhares provocantes da amante leva-a a depor contra o mesmo quando este é condenado, em função do assassinato da própria esposa:
Neste dia, a amante do major-general será a única testemunha de acusação. Nem mesmo os familiares da esposa do réu se prestarão a depor contra ele, porque, apesar de campónios analfabetos, carregam em si uma sabedoria antiga que lhes permite distinguir um criminoso de um homem acuado pelo desespero.
A amante do major-general, porém, logo que tiver conhecimento da tragédia, ousando mesmo contrariar o amante, apresentar-se-á como testemunha de acusação, aproveitando-se da privilegiada situação de vizinha do réu. E, nessa hora de vingança, incriminará o professor com afirmações temerárias e falsas. E, a certa altura, dirá mesmo, peremptória: "O réu cometeu o crime premeditadamente. Ele não gosta de mulheres, eu acho!" (p. 12).
Em "Os olhos da cobra verde", a narradora fala dos augúrios prenunciados pela aparição de uma cobra verde a sinalizar boas notícias. Entretanto, a leitura dos sinais da tradição é apenas o pretexto para que Vovó Facache relembre os últimos anos de sua vida, desde a fuga de sua terra natal até o seu presente, vivendo na Mafalala:
És então tu a Cobra Verde, da terra do meu pai? Vieste aqui parar, talvez como eu, fugida de tanta guerra, não é?, pergunta ela, em voz alta pois tem a estranha sensação de ser entendida pela Cobra (p. 23).
Vovó Facache é uma velha senhora negra moçambicana, originária do norte do país, que migrou para o sul em função dos conflitos entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO) ao longo da Guerra dos 16 anos, conflito civil que seguiu logo após a independência do país em 1975. A partir do motivo mítico tradicional, a voz narrativa vai articulando as dificuldades, lembranças e tristezas de Vovó Facache com o período histórico no qual se estendeu a Guerra dos 16 anos. O lirismo com o qual a voz narrativa constrói a imagem da personagem Vovó Facache, colocando uma mulher simples e humilde em um lugar privilegiado ao colaborar para a construção da identidade nacional moçambicana, ecoa simultaneamente os procedimentos utilizados em Sangue negro (2001), volume póstumo de poemas de Noémia de Souza. O bom augúrio dado pela aparição da Cobra Verde, já no fim da Vida de Vovó Facache, configura-se como uma importante estratégia narrativa, no sentido de recuperar e valorizar as tradições ancestrais dos moçambicanos autóctones, embora funcione como o "gatilho" que aciona a memória da protagonista, da mesma maneira que a madeleine de Marcel Proust:
"Que pode acontecer-me de bom, agora que minha vida já quase terminou? Não só pela idade, mas também por esta guerra estúpida que tudo me roubou. De tantos 'filhos' que criei nem sei quais estão ainda vivos ou se morreram todos. Nem eles sabem de mim, aqui perdida, nesta terra que não conhecem. Mas, no entando, a Cobra Verde..." Tudo isso pensa Vovó Facache a caminho da sua palhota, decrépita como ela, precário refúgio dos seus últimos anos. Construída por ela própria com a africana solidariedade de alguns vizinhos, não passa de um casinhoto de canoçi coberto de colmo, mas é nela que Vovó Facache repousa das noites sofridas no esconderijo da praia e é também nela que prepara as refeições frugais com o pouco que consegue arrancar da exígua machamba (p. 24).
Repisando todos os seus passos, desde sua juventude no norte até a vida pobre e precária na periferia de Maputo, na Mafalala, o conto culmina então com uma mensagem de esperança: pouco tempo depois do encontro com a Cobra Verde, surgem dois delegados distritais, trazendo as notícias do selamento do Acordo Geral de Paz e do fim da Guerra, tal como anunciado pela chegada da Cobra Verde.
Já no conto "O sonho de Alima", a voz narrativa conta a história de Alima Momade, e da sua tardia festa de formatura na quarta classe, já com mais de quarenta anos. Alima, mulher de origem humilde, é eleita por Momplé para metonimicamente representar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na machista sociedade moçambicana. Os percalços enfrentados pela protagonista em seu obstinado périplo para aprender a escrever ilustram as dificuldades enfrentadas pelas moçambicanas na sua busca por direitos básicos, tais como o acesso à educação e o tratamento igualitário por parte de seus companheiros. A protagonista do conto, Alima Momade, se vê proibida de frequentar as aulas de alfabetização em função de seu marido, que vê em uma mulher alfabetizada uma ameaça. Para ele a alfabetização é vista como uma maneira de assimilação da esposa à cultura colonialista, e uma vez assimilada Alima pode não mais respeitar os costumes tradicionais. Um elemento formal importante aqui é que, enquanto a personagem feminina - Alima Momade - tem nome e sobrenome, o marido é mencionado ao longo de todo o conto apenas como "o marido". Em um gesto estratégico, Lília Momplé não atribui nome ao marido, evidenciando assim, e não sem um tanto de ironia, o apagamento da individualidade das mulheres que, reiteradamente, são reduzidas ao papel de esposas, com a elisão do próprio nome, sendo chamadas por seus companheiros simplesmente de esposa ou mamana.
Mas Alima não desiste do seu senho de adentrar o mundo letrado: abandona o marido e vai viver sozinha, com todas as dificuldades que esta ação implicam para uma mulher em uma comunidade moçambicana de valores tradicionais, apenas para poder comcluir seus estudos. Depois de muito sofrer pela ausência da esposa, o marido implora que ela retorne para casa, e aceita como condição permitir que Alima continue frequentando a escola noturna. A questão das dificuldades enfrentadas pelas mulheres moçambicanas por ocasião de sua inserção no universo escolar também é tematizada por Lília Momplé em seu livro anterior, Ninguém matou Suhura, particularmente no conto "O baile de Celina", no qual explora a questão do racismo institucionalizado no aparelho ideológico escolar.1 1 ALÓS, 2011a; 2011b. Em "Um canto para morrer", também é retratado o problema das assimetrias das relações de gênero em Moçambique, enfocando agora não a questão do acesso à educação, mas a da submissão das esposas aos maridos em um contexto bastante particular: o dos arrendamentos, compra e venda de imóveis em Maputo.
Em "Xirove", Lília Momplé conta a história de Salimo, jovem que acabou juntando-se às tropas de guerrilha da RENAMO, lembradas ainda hoje em Moçambique pela crueldade nos tempos de guerra, quando tomavam e saqueavam as pequenas aldeias, estuprando as mulheres, assassinando todos os adultos e sequestrando as crianças para serem treinadas e colocadas na linha de frente de batalha. Não foi o caso de Salimo, que abandonou sua família e sua aldeia para fugir ao amor proibido que sentia por Rafa, a prometida de seu irmão e que, posteriormente, terminou por se juntar às tropas da RENAMO. Retornando ao seio de sua família, começam os preparativos para o seu xirove.
O xirove é um rito tradicional dos Macua (o grupo étnico mais numeroso em Moçambique), que tem como finalidade reintegrar à comunidade alguém que cometeu um grave delito. Chirove (grafado com "ch") é também o nome de um dos rios de Nampula, uma das províncias com maior população Macua de Moçambique, o que leva a crer que o nome do ritual tenha suas origens na toponímia da região na qual se passa o conto. Ao tomar o xirove (uma espécie de beberagem preparada com ervas), o criminoso aceita a culpa pelos seus crimes, compromentendo-se a nunca mais os repetir. Em seguida, já purificado, o indivíduo deve participar do primeiro batuque ou festa realizado pela comunidade, para que a reintegração do indivíduo ao grupo seja consolidada. Este rito, dotado da força simbólica comum a todos os rituais ancestrais, reabilita Salimo a viver na sua aldeia natal. Entretanto, um outro motivo leva Salimo a abandonar a aldeia pela manhã, logo cedo, após a festa de promoção de sua reintegração à comunidade: Salimo está apaixonado pela esposa de seu irmão e, imaginando-se incapaz de resistir à beleza de Rafa, deixa logo cedo a aldeira, como um andarilho:
Assim, nesta manhã brumosa e quente, acaba de despedir-se da família que se aglomera à porta da palhota e o vê partir pelo carreiro que leva à estrada principal. De repente, relâmpagos em cadeia incendeiam os céus e uma chuva oblíqua e densa começa a cair. Salimo, entretanto, indiferente à tempestade que se aproxima, prossegue seu caminho (p. 78).
No conto que encerra o livro, intitulado "Era outra guerra", são colocadas em confronto duas experiências beligerantes distintas: a Guerra Colonial, que levou Moçambique à independência, e a Guerra dos 16 Anos, conflito interno que se estabeleceu pela tomada do poder na nação. O eixo da narrativa é dado pela percepção de Alberto e Assunção Cereja, um casal de camponeses pobres de Bragança, em Portugal, que foram para Moçambique tentar a vida como pequenos comerciantes. Como em outros contos do volume, o tempo da narração é o presente, e o espaço é uma nação já apaziguada, tentando se reerguer após décadas de conflitos. Fora de Maputo, entretanto, nas bermas das estradas, ainda são visíveis as cicatrizes destes conflitos:
Os campos espraiam-se em matizes de verde e exalam o fresco odor da terra molhada pela chuva recente. Todavia, os sinais da guerra que há meses terminou estão ainda patentes no capim alto que invadiu as machambas abandonadas, nas palhotas e casas destruídas e também nos carros e machimbombos queimados, macabras sentinelas ao longo da estrada (p. 81).
A lembrança da Guerra dos 16 Anos, acionada pelas carcaças dos automóveis queimados ao longo da estrada, conflito que fez com que o casal tivesse de permanecer vários anos sitiados em Maputo, os leva ainda mais longe: aos tempos coloniais, quando a Guerra Colonial estava desenrolando-se. Nesta ocasião, os próprios guerrilheiros da FRELIMO, momento antes de tomar a região na qual o casal Alberto e Assunção Cereja tinham seu estabelecimento comercial, orientam o casal a abandonar a região, pois teriam problemas em explicar às autoridades coloniais portuguesas sua opção em permanecer em uma região sob o domínio da FRELIMO. Ao final do conto, o casal rememora as palavras dos guerrilheiros:
"Nós sabemos como se torna difícil para vocês sair daqui. Mas é para vos proteger que estamos a pedir que vão embora. Podem levar tudo o que voz pertence: dinheiro, produtos, mobília, tudo. Até podemos apoiar, se for preciso. Mas para Vossa segurança devem sair daqui". Eles, os colonos portugueses, compreenderam as razões dos guerrilheiros que os queriam proteger da própria tropa colonial. E, seguindo os seus conselhos, uma semana mais tarde, chegaram sãos e salvos à Ilha de Moçambique, com todos os seus haveres (p. 89-90).
Russell Hamilton, ao realizar um apanhado geral sobre a produção literária dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), ainda de 1999, afirma o seguinte:
As peculiaridades da história das cinco colônias também têm contribuído para a singularidade da expressão literária dos PALOP. Se bem que seja de certo modo uma simplificação, consta que mais ou menos durante as três derradeiras décadas da época colonial era a expressão literária de reivindicação cultural, protesto social e combatividade que vinha preparando a cena nos cinco PALOP para a atual escrita pós-colonial.2 2 HAMILTON, 1999, p. 16.
Lília Momple, através de seus contos, resgata os dilemas da nação moçambicana através das experiências de sujeitos subalternizados, dos cidadãos de segunda categoria, daqueles que dificilmente teriam suas histórias contadas, e isso redimensiona a compreensão que o leitor tem da realidade pós-colonial moçambicana. Hamilton não menciona, ao longo do seu artigo, nenhuma obra de Lília Momplé. Curioso fato, uma vez que os três livros da escritora já se encontravam publicados àquela altura. Por que esta ausência? Compreender esta ausência é compreender muito do que está atravacado no meio do longo caminho que separa o público leitor brasileiro das literaturas africanas de língua portuguesa, e em especial da literatura moçambicana: a circulação de livros e a lógica do mercado editorial.
Notas
- ALÓS, Anselmo Peres. "Memória cultural e imaginário pós-colonial: o lugar de Lília Momplé na literatura moçambicana". Caligrama, Belo Horizonte: UFMG, v. 16, n. 1, p. 137-158, 2011a.
- ______. "A ficcionalização da história moçambicana nos contos de Lília Momplé". Revista Estudos Feministas, Florianópolis: UFSC, v. 19, n. 3, p. 1005-1008, 2011b.
- HAMILTON, Russel G. "A literatura dos PALOP e a crítica pós-colonial". Via Atlântica, São Paulo: USP), n. 3, p. 11-22, 1999.
- MOMPLÉ, Lília. Ninguém matou Suhura 1. ed. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1988.
- _____. Ninguém matou Suhura. 3. ed. Maputo: Edição da autora, 2007.
- _____. Neighbours 1. ed. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1995.
- _____. Os olhos da cobra verde. 1. ed. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1997.
- _____. Os olhos da cobra verde. 2. ed. Maputo: Edição da autora, 2008.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Maio 2013 -
Data do Fascículo
Abr 2013