Open-access As macropolíticas educacionais e a micropolítica de gestão escolar: repercussões na saúde dos trabalhadores

Resumos

RESUMO O objetivo do presente artigo é analisar e interpretar as políticas de gestão do trabalho em vigor na rede de educação pública do Rio de Janeiro, em sua relação com a saúde dos trabalhadores de escolas. Por intermédio de uma pesquisa de base qualitativa, foram entrevistados trabalhadores de doze escolas, sendo as entrevistas interpretadas segundo o enfoque da análise do discurso. As políticas mais citadas pelos entrevistados foram: as políticas administrativas relacionadas à saúde dos profissionais da educação, como a readaptação funcional e a licença médica; as políticas relacionadas a práticas pedagógicas, como a política de aprovação automática, o sistema de ciclos e o Programa Nova Escola; e, ainda, as políticas relacionadas ao atual modelo de gestão pública, como a terceirização de funcionários. Constatamos que o paradigma hegemônico de gestão do trabalho em escolas não tem levado em consideração o contexto do trabalho onde se efetiva a gestão micropolítica dessa atividade. A partir das entrevistas, verificamos o quanto as macropolíticas educacionais e as medidas governamentais podem ser determinantes das atuais circunstâncias de saúde dos profissionais da educação, sendo necessário um conjunto de medidas para modificar as condições e a organização do trabalho que são geradoras de adoecimento, como o desenvolvimento de políticas participativas para diminuir os afastamentos por motivo de saúde. Desenvolvemos o argumento de que é preciso conhecer e transformar os efeitos sociais e econômicos originados da ausência de uma macropolítica pública de saúde voltada para o trabalho em escolas.

Políticas públicas; saúde do trabalhador; trabalho em escolas; trabalhadores da educação; readaptação funcional


ABSTRACT The purpose of this paper is to analyze and interpret the policies of labor management in force in the public school system of Rio de Janeiro, in its relationship with the health of school workers. By means of qualitative research, workers from twelve schools were interviewed, and the interviews were interpreted according to an approach of discourse analysis. The policies that were most quoted by the interviewees were: administrative policies associated with the health of education professionals, such as functional rehabilitation and medical leave; the policies associated with teaching practices, such as automatic promotion, the system of cycles and the New School Program; and, also, the policies associated with the current model of public management, such as outsourced employees. We found that the hegemonic paradigm of labor management has not taken into consideration the context of the labor where the micro-political management of this activity is performed. Building on the interviews, we verified how much the educational macro-policies and the governmental measures can determine the current circumstances of health among education professionals, so that a set of actions is necessary to change the conditions and the organization of labor which cause the sickening of workers, and also the development of participative policies in order to reduce the leaves for medical reasons. We developed the argument that is necessary to know and transform the social and economic effects arising from the absence of public macro-policy of health intended for the labor in the schools.

Public policies; workers' health; labor in schools; education Workers; functional rehabilitation


As macropolíticas educacionais e a micropolítica de gestão escolar: repercussões na saúde dos trabalhadores*

Educational macro-policies and the school management micro-policy: repercussions on the health of workers

Kátia Reis de Souza; Brani Rozemberg

Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: katreis@ensp.fiocruz.br; branirozemberg@uol.com.br

RESUMO

O objetivo do presente artigo é analisar e interpretar as políticas de gestão do trabalho em vigor na rede de educação pública do Rio de Janeiro, em sua relação com a saúde dos trabalhadores de escolas. Por intermédio de uma pesquisa de base qualitativa, foram entrevistados trabalhadores de doze escolas, sendo as entrevistas interpretadas segundo o enfoque da análise do discurso. As políticas mais citadas pelos entrevistados foram: as políticas administrativas relacionadas à saúde dos profissionais da educação, como a readaptação funcional e a licença médica; as políticas relacionadas a práticas pedagógicas, como a política de aprovação automática, o sistema de ciclos e o Programa Nova Escola; e, ainda, as políticas relacionadas ao atual modelo de gestão pública, como a terceirização de funcionários. Constatamos que o paradigma hegemônico de gestão do trabalho em escolas não tem levado em consideração o contexto do trabalho onde se efetiva a gestão micropolítica dessa atividade. A partir das entrevistas, verificamos o quanto as macropolíticas educacionais e as medidas governamentais podem ser determinantes das atuais circunstâncias de saúde dos profissionais da educação, sendo necessário um conjunto de medidas para modificar as condições e a organização do trabalho que são geradoras de adoecimento, como o desenvolvimento de políticas participativas para diminuir os afastamentos por motivo de saúde. Desenvolvemos o argumento de que é preciso conhecer e transformar os efeitos sociais e econômicos originados da ausência de uma macropolítica pública de saúde voltada para o trabalho em escolas.

Palavras-chave: Políticas públicas, saúde do trabalhador, trabalho em escolas, trabalhadores da educação, readaptação funcional.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze and interpret the policies of labor management in force in the public school system of Rio de Janeiro, in its relationship with the health of school workers. By means of qualitative research, workers from twelve schools were interviewed, and the interviews were interpreted according to an approach of discourse analysis. The policies that were most quoted by the interviewees were: administrative policies associated with the health of education professionals, such as functional rehabilitation and medical leave; the policies associated with teaching practices, such as automatic promotion, the system of cycles and the New School Program; and, also, the policies associated with the current model of public management, such as outsourced employees. We found that the hegemonic paradigm of labor management has not taken into consideration the context of the labor where the micro-political management of this activity is performed. Building on the interviews, we verified how much the educational macro-policies and the governmental measures can determine the current circumstances of health among education professionals, so that a set of actions is necessary to change the conditions and the organization of labor which cause the sickening of workers, and also the development of participative policies in order to reduce the leaves for medical reasons. We developed the argument that is necessary to know and transform the social and economic effects arising from the absence of public macro-policy of health intended for the labor in the schools.

Keywords:Public policies, workers' health, labor in schools, education Workers, functional rehabilitation.

De acordo com Mascarello e Barros (2007), o quadro de precarização e deterioração das escolas que compõem o sistema de educação pública no Brasil aponta a forma como os governos têm direcionado os investimentos financeiros em políticas públicas em nosso país. O campo da educação tem vivido um processo crônico de insuficiência de financiamentos, gerando um sucateamento do sistema público em que ganha visibilidade, entre outros aspectos, o processo de saúde e doença dos profissionais da educação. Na concepção dessas autoras, o modelo de funcionamento da educação pública no Brasil tem raízes nos princípios da teoria geral da administração, dos quais se destaca a importância da divisão social do trabalho como uma forma de racionalização do trabalho escolar, enfatizando sua eficiência e produtividade. Esse paradigma hegemônico de gestão não leva em consideração o contexto do trabalho escolar. Para Alves (2010), é fundamental a compreensão da complexa realidade do trabalho em escolas e dos saberes dos trabalhadores. Isso porque muitas das políticas em educação, embora se apresentem como avançadas, pautam-se em uma compreensão restrita do que é a gestão e do que é o próprio trabalho humano. O contexto em que o trabalho é realizado raramente é questionado. Existe uma racionalidade redutora das situações de trabalho que comumente se apresenta nas ações da gestão, comprometendo a finalidade social das instituições escolares e repercutindo sobre trabalhadores e trabalhadoras.

Em pesquisa realizada em escolas no Rio de Janeiro, Brito e Athayde (2003) evidenciam a grande heterogeneidade entre as escolas da rede pública, considerando o quadro geral de precarização. Ainda que as escolas sejam locais de trabalho regidos por normas institucionais comuns ao conjunto da rede a que estão vinculadas, existem normas específicas em cada escola, nem sempre formalizadas por escrito. Para esses autores, há uma micropolítica a ser mais bem compreendida.

De fato, na ausência de políticas amplas que regulamentem ações a favor da saúde e do bem-estar no trabalho, alguns estudos (ALVES, 2010; SOUZA, 2009; MASCARELLO; BARROS, 2007) vêm revelando, no cotidiano laboral escolar, uma micropolítica que pode contribuir para a perpetuação de práticas de poder e dominação nos locais de trabalho. Trata-se, segundo Foucault (2004), de uma forma de poder microscópica, uma maneira de gerir os homens e controlar suas atividades e multiplicidades de modo de trabalho.

O presente estudo parte do pressuposto de que as normas institucionais gerais – aqui consideradas como macropolíticas de gestão do trabalho – são regras de procedimento que não levam em consideração a realidade concreta de trabalho como central para sua concepção e que, por vezes, em uma perspectiva inteiramente diversa de valorização do trabalho, desenvolvem mecanismos de controle e punição administrativa dos profissionais da educação.

É preciso lembrar que, nos modelos de organização do trabalho contemporâneo, os trabalhadores, para lidar com as variadas e complexas situações, em geral, desenvolvem estratégias que muitas vezes burlam as normas, mas propiciam melhores resultados na execução da atividade e na economia psíquica dos sujeitos (ABRAHÃO; TORRES, 2004). De acordo com Sato (2002), os trabalhadores conduzem, no limite do possível, mudanças no trabalho visando à preservação da saúde. Pois, apesar de o poder e o controle estarem no local de trabalho – claramente a favor do corpo gerencial e do capital –, os trabalhadores criam mecanismos para que se processem micronegociações.

Os estudos que tratam do trabalho em escolas mencionam diversos problemas de saúde relacionados com as seguintes condições: salas inadequadas com superlotação de alunos, trabalho repetitivo, ritmo acelerado, sobrecarga e intensificação de trabalho com a invasão das horas de descanso e lazer, ausência de materiais e equipamentos adequados, barulho excessivo, entre outras (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009; BARROS et al., 2007; BRITO; ATHAYDE, 2003). Quanto ao trabalho docente, em particular, merecem atenção os estudos específicos sobre saúde mental (ARAÚJO; CARVALHO, 2009; NEVES; SELIGMANN-SILVA, 2006; DELCOR et al., 2004).

Desse modo, convém levar em consideração os afastamentos e as licenças por motivo de doença como importantes indicadores de saúde no trabalho. Gasparini, Barreto e Assunção (2005) procuraram entender o processo saúde-doença do trabalhador docente e buscar as possíveis associações com o afastamento por motivo de saúde. Para as autoras, as condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as quais os docentes mobilizam suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas para atingir os objetivos da produção escolar, podem gerar sobre-esforço ou hipersolicitação de suas funções psicofisiológicas. Se não há tempo para a recuperação, são desencadeados ou precipitados os sintomas clínicos que explicariam os índices de afastamento do trabalho, como nervosismo, angústia, irritabilidade, choro fácil, dificuldade de concentração e insônia (NEVES; SELIGMANN-SILVA, 2006; DELCOR et al., 2004; BRITO; ATHAYDE, 2003).

Este artigo tem como objetivo analisar as políticas de gestão do trabalho na rede de educação pública do Rio de Janeiro em sua relação com a saúde, sob a ótica dos profissionais da educação. Desenvolvemos o argumento de acordo com o qual as macropolíticas educacionais e as medidas governamentais podem ser determinantes das atuais condições de saúde dos profissionais da educação. Assim, apresentamos os resultados das entrevistas realizadas com trabalhadores de escolas públicas, reconhecendo a possibilidade de alguma política citada não mais estar em vigor no momento, o que, entretanto, não deve alterar o âmago da problemática.

Metodologia

O tema do presente artigo emerge das entrevistas de Souza (2009) com doze trabalhadores com funções diversas em doze escolas do Estado do Rio de Janeiro. Entrevistamos, durante o ano de 2007, professores, inspetores, serventes e merendeiras, estando nove deles em exercício de cargos de direção no sindicato (Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro – SEPE-RJ) por ocasião da pesquisa. O critério de inclusão no estudo foi o fato de terem participado da primeira fase do Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho em escolas públicas do Rio de Janeiro (SILVA et al., 2009; BRITO; ATHAYDE, 2003). De um total de catorze participantes do programa, entrevistamos doze aleatoriamente, sem definição prévia de cargo ou função, tendo em vista que o SEPE-RJ é um sindicato unificado onde todos os profissionais participam da mesma organização, não havendo distinções relativas à atribuição ou atividade de trabalho. Optou-se, ainda, pelo critério de acessibilidade: dois trabalhadores, de um total de catorze, não foram localizados e, portanto, efetuamos nosso estudo com doze participantes.

Cabe destacar que tal programa integrou instituições acadêmicas (FIOCRUZ, UERJ, UFPB e ABRASCO) e sindicais (SEPE-RJ e SINTEM-PB), e teve como principal objetivo compreender e transformar o trabalho em suas relações com a saúde, por meio de uma proposta de formação de trabalhadores de escola.

A opção neste artigo consiste em analisar o tema das políticas de gestão do trabalho nas escolas pela ótica de profissionais da educação que eram atuantes, ao mesmo tempo, em escolas e nas questões sindicais e nos debates críticos do projeto de formação.

Assim, realizou-se uma pesquisa de natureza qualitativa na qual as entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado, com perguntas abertas sobre as mudanças necessárias no trabalho em escolas para a promoção de saúde dos trabalhadores da educação. Em resposta à questão O que é, para você, mudar o trabalho nas escolas?, foram frequentes as referências às políticas de gestão do trabalho, que agora serão compreendidas à luz da experiência dos entrevistados.

O procedimento adotado para tratamento das entrevistas foram leituras repetidas dos textos transcritos, tendo como base a análise do discurso e seguindo uma tradição dos estudos argumentativos e interpretativos de pesquisa qualitativa. Para Gill (2008), o termo discurso é empregado para se referir a todas as formas de fala e texto. A partir da análise de discurso, "pode-se ver a vida social como sendo caracterizada por conflitos de vários tipos" (GILL, 2008, p. 250). Por conseguinte, o texto e o contexto tornam-se uma unidade complexa de significações. Nessa técnica, o texto é o objeto (corpus de pesquisa) e a partir dele são realizados recortes temáticos por "unidade de sentido" (MINAYO, 2011, p. 358). A rigor, nosso critério de ordenação dos materiais foi empírico, ou seja, constituímos categorizações, retirando das próprias falas os matizes de sentido atribuídos ao tema, ressaltando o ponto de vista dos profissionais da educação e analisando homogeneidades e diferenciações. Daí chegamos a um texto construído por unidades temáticas com análises interpretativas de caráter teórico-crítico.

Organizamos a apresentação de nossos resultados iniciando cada unidade temática de análise com um pensamento ou discurso-síntese retirado de nossas entrevistas com os trabalhadores. O objetivo é realçar com fragmentos de falas individuais a graduação de significados advindos das entrevistas. Trata-se de uma forma de reconstrução discursiva, um artifício para ordenação dos resultados.

A pesquisa foi conduzida dentro de padrões éticos disposto na Resolução CONEP nº 196/96 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP/FIOCRUZ CEP/ENSP nº 45/07.

Resultados e discussão

Nas entrevistas realizadas com trabalhadores, eles designaram as políticas governamentais, genericamente, como políticas. Referiram-se a elas ora como políticas de educação, ora como medidas do governo, ora, simplesmente, como políticas, as quais, no geral, traduzem-se como um conjunto de medidas normativas existente no âmbito da gestão pública, seja por meio de programas e projetos pedagógicos (stricto sensu), seja por meio de normas administrativas (portarias, regulamentações gerais e específicas). Todas apresentam em comum o fato de terem sido citadas por afetarem o cotidiano das escolas e, particularmente, a saúde dos profissionais que nelas trabalham. Complementarmente, é-nos útil a definição de Cury (2002, p. 147) segundo a qual as políticas de educação "abrangem desde a sala de aula até os planos de educação de largo espectro". As políticas mais citadas pelos entrevistados foram as administrativas relacionadas à saúde, como a readaptação funcional e a licença médica (RIO DE JANEIRO, 1979); as políticas relacionadas a práticas pedagógicas, como a aprovação automática e o sistema de ciclos; e, ainda, as políticas relativas ao atual modelo de gestão pública, como o Programa Nova Escola e a terceirização de funcionários.

Cada um vai buscando as saídas individuais.

Um dos aspectos citados repetidamente nas entrevistas é o que se refere às saídas individuais para resolver problemas relativos à saúde, em detrimento das formas coletivas de mudar as condições de trabalho: cada um vai buscando isoladamente soluções para sua situação, por exemplo, ausentando-se temporariamente do serviço com licenças médicas ou por meio de acordos com a chefia. A incontornável exigência de sustento da vida material e os baixos salários fazem com que os profissionais da educação submetam-se às mais variadas e precárias condições de trabalho, como confirma a fala a seguir:

Eu tenho duas matrículas, município e Estado, que oferecem dupla regência, que eu aceito. Para eu atender à demanda das minhas necessidades pessoais de alimentação, casa, comida, saúde, eu tenho que dobrar, triplicar, quadruplicar a minha jornada de trabalho. Volto novamente para o ciclo vicioso. Fico esgotado. Não consigo resolver meu problema de saúde e sempre buscando de que forma, individualmente, eu resolvo meu problema e nunca no coletivo. [...] Nós, profissionais de educação, nos desagregamos e cuidamos cada um da própria pele. Cada um busca a sua saída, até pra não adoecer mesmo. Cada um vai buscando as saídas individuais. (Trabalhador G)

Para Costa (2004), as estratégias utilizadas pelos profissionais da educação em defesa da saúde, ao se situarem no plano individual, não trazem respostas efetivas à problemática relacionada à nocividade no ambiente de trabalho. Na realidade, os jeitinhos encontrados no cotidiano de trabalho para evitar o adoecimento apenas reforçam os problemas existentes, na medida em que não eliminam suas fontes geradoras. Entretanto, compreendemos que as estratégias defensivas (DEJOURS, 2004), mesmo com seus equívocos, não devem ser vistas como exclusivamente negativas, mas como formas possíveis a partir das quais se logram construir outras potenciais formas de promover saúde (SILVA et al., 2009).

Se você tira uma licença médica, você perde a gratificação.

Os entrevistados queixam-se de que o registro de abono médico ao trabalhador inviabiliza para ele o direito a benefícios. A esse respeito, citaram duas políticas de governo – uma estadual e outra federal: o Programa Nova Escola e o Fundeb. Eles argumentam que tais programas condicionam o direito de recebimento de seu benefício e de suas gratificações ao fato de o trabalhador não ter problemas de saúde em determinado período:

Mas são coisas que acabam sendo brecadas pela própria administração da rede estadual e da rede municipal. Por exemplo, onde você tem o Programa Nova Escola com a gratificação vinculada a uma produtividade que não pode ser interrompida: se você tira uma licença médica, por exemplo, você perde a gratificação. Agora, na rede municipal de Volta Redonda, a gente tem a mesma questão, onde, de três em três meses, a gente tem absurdamente uma gratificação que era para ser continuada do Fundeb e que já tá ali amarrado que quem tiver um abono médico perde essa gratificação. Assim, por mais que tenha se transformado a visão crítica do trabalhador nesse sentido – "Olha, precisa registrar [problema de saúde], precisa ir lá" –, ele acaba não registrando: "Olha, não vou fazer porque vou perder dinheiro". Aí, muito mais importante do que não adoecer é comer e as pessoas precisam garantir a comida dentro de casa, até para não adoecer. Acho essa questão muito séria. (Trabalhador O)

Certas medidas administrativas, como as aqui mencionadas, têm, em última análise, efeitos desagregadores sobre a vida das pessoas que trabalham em escolas. É preciso considerar, tal como pondera o entrevistado, que as políticas de avaliação do Estado, a exemplo do Programa Nova Escola, podem ter ao fim um caráter punitivo. São políticas reguladoras da gestão escolar e exercem, por meio de medidas compensatórias como adicionais de salário, o controle sobre faltas e licenças por motivo de saúde, o que obriga as pessoas a trabalharem mesmo estando doentes. Além disso, as políticas de avaliação focalizam vários outros aspectos da administração escolar sob uma ótica tecnocrática. A compreensão desse quadro exige uma análise cuidadosa que leve em conta a dinâmica interna das relações nas escolas e o trabalho real.

Sabe-se que o Programa Nova Escola, implantado pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro em 2000, tem como principal mecanismo de operacionalização um sistema de avaliação permanente das escolas públicas, projetado para aferir tanto a gestão quanto os processos educativos de cada escola. Segundo Brooke (2006), a exigência por maiores informações sobre os resultados dos sistemas escolares tem sido respondida pela implementação de políticas de accountability, ou seja, de responsabilização, mediante as quais se tornam públicas as informações sobre o trabalho das escolas e consideram-se os gestores e outros membros da equipe escolar como corresponsáveis pelo nível de desempenho alcançado pela instituição. Segundo o autor, essa política de avaliação do sistema de educação tem uma ligação direta com as políticas neoliberais de reforma originárias da Inglaterra e dos Estados Unidos, contextos distintos do brasileiro tanto no que concerne aos aspectos culturais, quanto no que diz respeito à valorização do trabalho escolar. Assim, as medidas de responsabilização geram rankings de escolas e estimulam a competitividade sem levar em consideração as diferenças socioeconômicas e de aprendizagem prévia entre os alunos, provocando reações negativas, desestímulo e exclusão.

Há um índice muito grande de profissionais licenciados por problemas de saúde, mas não questionam... A dor da gente ninguém sente.

Quanto às faltas ao trabalho, segundo os entrevistados, elas são percebidas como fuga, pois consistem em um modo de não enfrentar o problema coletivamente. Quando a situação individual se torna insuportável, a escolha é por ausentar-se, o que se consegue por meio do artifício de repetidas licenças médicas. Entretanto, apenas se adia a solução para um problema que não é percebido como de saúde coletiva. De acordo com Souza e Leite (2011), o tema da organização do trabalho docente emerge como uma questão central para o campo da educação. Destarte, adquire centralidade a análise das defesas criadas pelos profissionais da área, bem como seus limites e possibilidades para protegê-los das situações que os rodeiam, como estresse e sobrecarga de trabalho.

Quando chega na questão de saúde e de condições de trabalho, as pessoas não se questionam, não buscam as soluções e acabam aceitando o que está acontecendo e veem como fuga aquilo que nós já colocamos na nossa documentação: pedir licença médica: "Bem, eu estou com problema, não estou a fim de acordo; vou pedir uma licença médica; pelo menos, eu fujo um pouquinho desse problema que estou passando na escola". Mas ela não busca em si a mudança. A professora, por exemplo, está com problemas de relacionamento, de autoritarismo com a direção. Ela não questiona; ela foge. Muitos ficam se questionando: "É assim mesmo?!"; "Olha, a minha colega está licenciada!". Mas você não assimila no sentido de brigar pela sua saúde. [...] Quando quer salário, faz greve; faz paralisações por isso e aquilo, mas não faz, por exemplo, uma paralisação em relação à questão da saúde. Há um índice muito grande de profissionais licenciados por problemas de saúde, mas não questionam; apenas se licenciam e buscam uma melhora dentro de casa; depois, voltam pra trabalhar. (Trabalhador U)

Muitos continuam porque não têm outra coisa para fazer e vão empurrando com a barriga e, aí, os famosos atestados médicos que a gente chama de bombril. Chega lá, passou e vai empurrando. [...] são vários e vários casos. (Trabalhador I)

Em estudo realizado por Neves e Seligmann-Silva (2006), as autoras constataram que as professoras desenvolvem defesas coletivas e individuais (DEJOURS, 2004), dentre as quais se destacam o faltar para não faltar ao trabalho (para não adoecer); as saídas constantes de sala de aula; as relações de desconfiança entre colegas de trabalho e demais profissionais; o individualismo e o desengajamento afetivo e cognitivo. Consoante Gasparini, Barreto e Assunção (2005), os dados acerca de afastamentos por licenças médicas, embora não indiquem a real dimensão do problema de saúde de uma categoria de trabalhadores, podem ser tomados como pistas sobre situações que merecem maior aprofundamento e análise. As autoras afirmam que, em relação aos afastamentos dos professores, os transtornos psíquicos são responsáveis pelo maior número de casos.

Decerto, a multiplicidade de queixas mencionadas em relação à rotina laboral escolar leva os professores a desenvolverem estratégias de resistência local e individual contra a insatisfação de tal organização, o que, sem dúvida, demandaria um sistema de acompanhamento das condições de trabalho e dos sinais de adoecimento (BRITO; ATHAYDE, 2003).

Os entrevistados referem-se ao fato de ainda persistir, nas relações de trabalho nas escolas, uma desconfiança generalizada. Predominam preconceitos e estereótipos que distorcem a realidade, inferindo-se que todos enganam para faltar.

A funcionária falou: "A dor da gente ninguém sente". Ou seja, ninguém acredita que você está doente, só quando você cai de vez. Aí, fala: "Não, fulana tá doente". [...] Acham que você está enganando, que está fingindo. Então, é exatamente isso: eu estou consciente do problema e ao que ele está relacionado, mas não busco ajudar na solução do problema. [...] Eu posso não poder ajudar você pessoalmente, mas posso ajudar na mudança do que propiciou essa situação, se eu sei que aquele espaço ali está te prejudicando. Mas eu não busco a melhoria. (Trabalhador U)

Tem uma dificuldade ideológica. As políticas educacionais e as políticas públicas estão afinadas com o mercado, com a desvalorização do ser humano.

Com relação às políticas públicas de educação, o que inclui aquelas voltadas para os trabalhadores da área, há o sentimento de que elas se orientam em função de valores quantificáveis, de mercado. Schwartz e Durrive (2007) afirmam que, no Brasil e em outros países como a França, a política de educação tem fortes componentes tayloristas e fordistas, cuja ênfase está nos valores mercantis econômicos ou economicistas, em detrimento da qualidade do processo de trabalho e de seus resultados na educação pública.

Esse aspecto econômico, economicista, que o governo aplica à escola, na minha visão, é que determina o que acontece hoje dentro da escola. Todo projeto pedagógico que o governo tem não tem como finalidade a aprendizagem do aluno, e sim aplicar o mínimo possível das verbas públicas na educação pública. [...] Tínhamos quase a metade da rede no atendimento nos Cieps em tempo integral. Hoje, praticamente não existe mais atendimento em tempo integral. Tínhamos um documento da própria secretaria, uma portaria que regulava o número de alunos por série e por turno; isso não vem sendo aplicado, as salas continuam superlotadas. (Trabalhador G)

Existe aqui um paradoxo, pois, apesar de a educação ser concebida como um bem social, no atual modelo de Estado brasileiro adota-se uma racionalidade econômica de mensuração e quantificação de serviço. Segundo essa lógica, é imprescindível dimensionar, em números, os resultados do trabalho nas escolas, uma vez que há alocações de recursos financeiros sobre os quais é preciso prestar contas à sociedade. De acordo com alguns entrevistados, as políticas públicas afinadas com o mercado se desviam dos objetivos da educação e da saúde (e do trabalho), demandando a adoção, por parte do governo, de medidas que orientem a recuperação desses valores.

Com efeito, é preciso também levar em consideração a influência das políticas internacionais na concepção e na formulação das políticas educacionais brasileiras. Libâneo (2012) chama atenção para os pacotes de reformas educacionais promovidas e mantidas por organismos internacionais (destinadas a países em desenvolvimento) e sua relação com o declínio da escola pública no Brasil nos últimos trinta anos. Para o autor, particularmente, as políticas educacionais do Banco Mundial geraram impacto negativo na forma de funcionamento interno das escolas. Essas políticas se transformaram em cartilhas para elaboração de planos de educação – sob o enfoque neoliberal – nas esferas federal, estadual e municipal, afetando as políticas locais de organização escolar e aprofundando a dualidade da escola pública brasileira atual, caracterizada, segundo o autor, como "uma escola do conhecimento para os ricos e como uma escola de acolhimento para os pobres" (LIBÂNEO, 2012, p. 13).

Tem uma dificuldade ideológica. As políticas educacionais e as políticas públicas estão afinadas com o mercado, com a desvalorização do ser humano. Então, é um embate ideológico. [...] há toda uma orientação pra dizer: "Isso é problema teu, você vai ao médico, você resolve, toma remédio, toma antidepressivo, fica de licença um mês e resolve". E não é por aí, porque quando volta, os problemas estão lá. Quer dizer, isso aí é muito sério e tem essa dificuldade. (Trabalhador D)

Você hoje não tem uma visão dentro do governo, que seria, na verdade, o conceito de saúde. O governo aponta e detecta e, às vezes, até faz medidas pra barrar que você saia de licença, quando já se instalou a doença. Então, acho que a primeira coisa seria mudar esse conceito do próprio governo do que é saúde. Saúde não é a perda dela. [...] eu acho que se você não consegue fazer isso, você não consegue perceber que você gastaria muito menos do que depois da saúde perdida e da doença instalada. (Trabalhador R)

Esse pessoal tá sempre readaptado.

Tomando por base os relatos dos trabalhadores, voltemo-nos agora para o exemplo de uma política concreta de administração da saúde voltada aos servidores públicos do Estado: a readaptação funcional, que ainda persiste gerando discriminações e preconceitos entre os próprios trabalhadores no interior das escolas.

Outro dia, eu ouvi uma crítica: "Esse pessoal tá sempre readaptado". Parece que é porque eles querem, estão readaptados porque querem ficar readaptados, como se eles estivessem fazendo de propósito para não trabalhar. A crítica do professor, o professor falando isso, quer dizer, ele não tem noção do que acontece dentro da escola, da cozinha. Vamos dizer assim que é o maior número de readaptados. (Trabalhador M)

Alguns estudos, como o de Nunes (2000), mostraram, por meio de dados levantados junto à Perícia Médica do Estado (Superintendência de Saúde e Qualidade de Vida), que a readaptação decorre de um longo processo, realizado de acordo com princípios administrativos e baseado em laudos periciais, cujo enfoque é individual e cujos principais critérios são aqueles legitimados por algumas poucas especialidades médicas (psiquiatria, reumatologia, cardiologia, ortopedia, neurologia e otorrinolaringologia, além da clínica geral). A prática adotada por esse serviço demonstra um atendimento fragmentado, descolado das questões gerais do trabalho e alheio ao que vivem os trabalhadores.

Por exemplo, se a pessoa tem uma dor na perna, se tem um enfraquecimento das pernas e vai para ser readaptada, o médico diz o que ela pode fazer. E o que ela pode fazer se tem problema nas duas pernas? Ela não faz a comida, mas descasca os legumes e lava os pratos. Descascar os legumes, você até pode descascar sentada, mas lavar os pratos, não dá. [...] Quando você tem que passar pela junta médica, é uma humilhação. Eles duvidam. Nessa última vez que eu estava de licença por causa de estresse, tive 22 furúnculos. [...] Quando cheguei na última doutora, já entrei chorando na sala, porque eu já estava cansada. Aí, ela olhou pra mim e falou: "Minha filha, psiquiatria não é nesse consultório, é no outro". Sabe o que é você querer morrer? Eu queria, sabe... (Trabalhador N)

Existe um importante aspecto a ser considerado nos processos de readaptação no trabalho, confirmado pela escassa literatura sobre o tema (BATISTA; JULIANI; AYRES, 2010; FANTINI; SILVEIRA; LA ROCCA, 2010; MEDEIROS; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2006), que diz respeito às suas implicações na subjetividade dos trabalhadores: a readaptação não pode ser reduzida apenas aos distúrbios clínicos nos quais a causa do adoecimento fica centrada nos fatores biomédicos. Ela é um processo complexo que compromete a vida das pessoas, impedindo-as de trabalharem. Se buscarmos o significado da palavra readaptação, em seu prefixo (re), obtemos o sentido de repetição, reforço. Surge, portanto, a ideia de adaptar novamente, embutindo a compreensão de que o homem deve adaptar-se ao trabalho, ou melhor, tornar a adaptar-se ao trabalho (GOMES, 2010). Tal significado se contrapõe ao que realmente deveria acontecer, que é a adaptação do trabalho ao homem, e não a adaptação do homem ao trabalho. Essa ideia é um dos fundamentos da ergonomia oriunda da escola franco-belga, que, desde seus primórdios, indica que a principal causa de adoecimento dos trabalhadores advém da inadequação dos postos de trabalho ao homem (GUÉRIN et al., 2001).

Prosseguindo nessa linha de interpretação, as políticas públicas que incorporam os chamados valores dimensionáveis deveriam tomar por base outras unidades de medida, por exemplo, considerando o volume atual de casos de readaptação das escolas para a construção de políticas efetivas voltadas para a saúde dos trabalhadores. Trata-se de readaptar o trabalho nas escolas, modificando as condições de trabalho que são geradoras de adoecimento, o que evidentemente inclui melhor remuneração dos trabalhadores e outras ações para diminuir os afastamentos, as licenças médicas e as aposentadorias precoces por motivo de saúde.

Em síntese, sob a atual lógica de gestão do trabalho em escolas públicas – lógica do atual modelo de Estado –, a racionalidade econômica deveria empenhar-se para a redução do quadro de adoecimento e afastamento nas escolas. As pesquisas mencionadas (BRITO; ATHAYDE, 2003; NUNES, 2000) sobre situações de trabalho em escolas revelam que as readaptações se avolumam com apenas cinco anos de serviço, sendo principalmente referentes à ortopedia, no caso das merendeiras e serventes, e à otorrinolaringologia, no caso das professoras, o que, sob uma lógica quantificável, representa grandes prejuízos para o Estado.

É preciso, também, olhar para outros efeitos sociais e econômicos originados da ausência de uma política pública de saúde voltada para os trabalhadores, que são aqueles relativos à garantia de direitos para quem adoece, para quem se readapta por não suportar mais as situações de mal-estar geradas pelo processo de organização do trabalho, conforme propõe uma das entrevistadas:

As pessoas não se conformam em ser desrespeitadas. Por exemplo, o tempo de aposentadoria pra quem é readaptado é uma briga que agora a gente está tentando travar. A readaptação, a gente tem que caracterizar como doença do trabalho, para não perder o direito à aposentadoria. (Trabalhador S)

Isso é sobrecarga de trabalho... Hoje, é comum você encontrar cinquenta alunos numa turma.

Outras políticas de governo foram mencionadas como fatores que geram estresse e que incidem sobre a saúde dos trabalhadores de escolas. Por exemplo: a política de aprovação automática e o sistema de ciclos, que, em linhas gerais, permitem uma nova forma de organização do ensino escolar, não seriada e diferente do sistema tradicional que aprova e reprova ao final de cada série. Atrelada a essa concepção está a crença de que todos podem aprender se oferecidas as condições e os recursos adequados para a aprendizagem, e se respeitado o ritmo de aprendizagem dos alunos (BERTAGNA, 2008).

As queixas dos entrevistados dizem respeito não às propostas pedagógicas em si, mas às condições de trabalho em que elas se realizam. Referem-se, principalmente, à superlotação das turmas, que impede a realização de um trabalho de qualidade. Para Bertagna (2008), é preciso potencializar as discussões a respeito das formas de organização escolar – a exemplo do sistema em ciclos e da aprovação automática – e garantir não somente condições estruturais e físicas, mas também espaços de discussões coletivas para análise crítica dos diversos conceitos que permeiam o cotidiano das escolas.

De acordo com os profissionais da educação, é preciso considerar que o acompanhamento e a avaliação dos alunos propostos por essas políticas são realizados individualmente, com registros caso a caso, o que gera sobrecarga de trabalho perante a exigência do preenchimento de relatórios específicos, além de diários de classe intermináveis.

Uma coisa que a gente percebe é que o professorado não é contra a questão dos ciclos por uma questão de princípio. A maior parte do professorado já tem algum conhecimento da política de ciclos em outras prefeituras. O que as pessoas questionam é a forma como vem sendo implementada, com a quantidade absurda de alunos. Porque você não tem como fazer um trabalho ciclado numa turma de cinquenta alunos – em turma de vinte, você faz. A questão agora dos relatórios que estão sendo exigidos... Você tem que fazer relatório de aluno por aluno. Vem no diário de classe, tem lá umas cinquenta páginas; para cada aluno você tem que escrever alguma coisa, nem que seja uma frase, uma linha, você tem que ter algum registro sobre o aluno. Então, quer dizer, isso é sobrecarga de trabalho, o diário único que não é novo, já existia naquela época. (Trabalhador T)

As políticas que não levam em consideração as condições em que se realizam, que não consideram o trabalho real, correm o risco de produzir efeitos incompatíveis com a ideia de uma gestão pública responsável, como o caso da geração de alunos que são formados pela política de aprovação automática. A despeito da controvérsia existente na literatura sobre o tema (TURA; MARCONDES, 2011; GLÓRIA, 2003; ARROYO, 1999), o fato é que, segundo os entrevistados, muitos desses alunos chegam ao ensino médio sem o domínio de capacidades básicas, como ler e escrever. Isso gera um quadro intermitente no qual o aluno perde o interesse pelas aulas, torna-se indisciplinado e os professores se sentem cansados e insatisfeitos. Para Gadotti (2003), o que compromete a proposta de ciclos, em primeiro lugar, é a arrogância de sua decretação, o autoritarismo com que ela às vezes é implantada. Trata-se de uma reforma estrutural e cultural nas escolas, e sua implantação não será bem-sucedida sem uma mudança nessa cultura. Portanto, é necessário envolver os professores em sua concepção e criação. Além disso, o autor afirma que uma análise sobre os problemas relativos ao processo de ensino-aprendizagem precisa considerar as condições de trabalho da maioria das escolas públicas no Brasil. Gadotti (2003) observa o fato de que o professor, devido ao cenário de precarização do trabalho escolar, não consegue fazer outra coisa a não ser tentar cumprir, honestamente, o programa e a disciplina. Destarte, as condições de trabalho também são percebidas pelos trabalhadores como motivo da queda de qualidade da educação:

As condições... Hoje, você tem mais alunos em sala; hoje, é comum você encontrar cinquenta alunos numa turma e a disciplina do aluno também mudou muito; hoje, você tem alunos que chegam ao segundo segmento do ensino fundamental que muito mal leem e escrevem. Ele está ali, diante de letras que não entende direito o que dizem; mapas que ele não sabe instrumentalizar. E aí? Como é que você ganha a adesão do aluno para a sua aula? Isso tem mexido muito com a disciplina. A queda da qualidade, a aprovação automática tem se refletido muito nessa relação do dia a dia do aluno com o outro aluno, com o professor, com os inspetores, com os funcionários. (Trabalhador T)

[...] a terceirização ficou uma coisa muito estranha dentro da escola.

Outra política levada a cabo pelo atual modelo de gestão pública e mencionada pelos trabalhadores diz respeito à terceirização dos serviços escolares e atinge, principalmente, o grupo de serventes e merendeiras no Rio de Janeiro. Os terceirizados sofrem em maior escala os efeitos da hierarquia, além de não terem direito a algumas conquistas históricas da categoria dos funcionários públicos, como a estabilidade. Certamente, a precariedade e a insegurança são características estruturais do atual mundo do trabalho, que tende a tornar ainda mais difícil a própria constituição da solidariedade de classe. Para Alves (2000), a terceirização possui importante – e estratégica – dimensão política, na medida em que fragmenta o coletivo operário, debilitando a organização dos trabalhadores e seu poder de resistência.

Alguns relatos apontam retrocessos da administração pública, como a prática de apadrinhamento presente na contratação de pessoas conhecidas, o que provoca distorções nas tarefas dos trabalhadores terceirizados e problemas de relacionamento.

Porque a terceirização ficou uma coisa muito estranha dentro da escola; não para a gente, que nós recebemos nossos companheiros terceirizados numa boa, mas eles cumprem uma função que vai além daquela função deles; eles são o olho da direção. (Trabalhador A)

Atualmente, a terceirização nas escolas atinge em maiores proporções o segmento dos serventes. Constata-se no cotidiano que a diferença de vínculos de trabalho entre os profissionais da educação divide e isola os trabalhadores terceirizados daqueles que possuem vínculos estáveis. Na terceirização, tudo se converte em precariedade. O trabalhador precarizado se encontra em uma fronteira incerta entre ocupação e não ocupação, sem direitos e garantias sociais. É um processo que precariza a totalidade do viver, por meio do medo e do mal-estar no trabalho (VASAPOLLO, 2006). A terceirização é considerada uma alternativa pelos gestores públicos para reduzir a deficiência de funcionários nas escolas; ela é uma característica da desregulamentação do trabalho e das novas concepções de organização capitalista do Estado.

Considerações finais

Com base nos resultados das entrevistas, verifica-se o quanto as políticas e as medidas governamentais que são desenvolvidas no âmbito da educação podem ser determinantes das atuais condições de saúde dos profissionais da educação, além de atuarem como obstáculos à efetivação de mudanças. É preciso reconhecer que, na ausência de uma política (abrangente) de valorização dos profissionais de educação, existe outra (pequena) política no microcosmo da atividade de trabalho que, se de um lado permite que o trabalho aconteça, por outro pode contribuir para reprodução do poder e da dominação. A alta frequência de faltas e de acordos (informais) entre a escola e os trabalhadores favorece sempre aqueles que caem nas graças e na simpatia da direção. Assim, conceder dias de afastamento (faltas) é visto como benesse por parte de quem está na direção. Esse cenário mostra que os inúmeros casos – não oficiais – de afastamento do trabalho por motivo de saúde precisam ter visibilidade, tornarem-se objeto de estudo, mas com a participação ativa dos trabalhadores. É preciso trazer a público o contexto em que os profissionais de educação faltam ao trabalho, um contexto que adoece e no qual não se consegue trabalhar. É preciso reconhecer, assim, não mais a falta do trabalhador, mas um trabalho em falta com ele.

No Brasil, existe uma tradição secular, marcada por instituições com traços excludentes e clientelistas, que se consubstancia pela prática de uma "política da não-política em educação escolar" (CURY, 2002, p. 152). Constata-se a ausência do Estado como formulador de políticas adequadas à realidade dos problemas da educação e de seus trabalhadores.

Por meio das entrevistas, vimos que, para que haja conhecimento dos problemas e reconhecimento compartilhado das formas de superação, é indispensável aprofundar o debate a respeito das gestões (macro e micro) do trabalho em escolas. Para sermos mais precisos, é necessário um conjunto de medidas direcionadas à modificação do quadro de saúde dos profissionais de educação, tais como: criação de programas que gerem intervenções diretas nos locais de trabalho nas escolas; revisão da legislação, que, por um lado, impõe a sobrecarga devido à precariedade dos salários e, por outro, pune os trabalhadores por adoecerem; qualificação dos profissionais da perícia médica para um atendimento mais humanizado, em uma perspectiva de saúde coletiva apoiada no conhecimento sobre a atividade real do trabalho em escolas; desenvolvimento de pesquisas que atualizem informações e produzam conhecimentos no campo. Por sua vez, essas medidas deveriam fornecer elementos para a formulação de políticas governamentais orientadas à solução de problemas reais e urgentes que tenham efeito nos locais de trabalho.

Convém lembrar que os entrevistados deste estudo são trabalhadores de escolas que estão inseridos nos debates críticos a respeito do tema, tanto em decorrência de terem participado do programa de formação em saúde, gênero e trabalho em escolas (BRITO; ATHAYDE, 2003), quanto por estarem exercendo atividades sindicais por ocasião da pesquisa. Sendo assim, resta uma indagação para servir de base a novas investigações a respeito do tema: o que falaria um trabalhador que não tivesse as características desse grupo?

Finalmente, afirmamos a necessária aproximação entre trabalhadores (e suas organizações) e gestores como procedimento essencial para que se mude essa situação, sendo indispensável dar voz a quem sente e conhece os problemas da educação no Estado do Rio de Janeiro.

Recebido em: 06.09.2012

Aprovado em: 30.10.2012

Kátia Reis de Souza é pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz), doutora em Saúde Pública (Fiocruz) e mestre em Educação e Saúde (Nutes/Ufrj).

Brani Rozemberg é pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz), doutora em Saúde Pública (Fiocruz) e mestre em Biologia Parasitária (Fiocruz).

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    Agradecemos à Profa. Dra. Jussara Cruz de Brito a competente orientação da tese (da primeira autora) que deu origem ao presente artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Set 2012
    • Aceito
      30 Out 2012
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