Resumo
O objetivo deste ensaio é situar a crítica de Platão à poesia na República nas suas bases conceituais implícitas, dando visibilidade para importantes aspectos postulados ab anteriori à crítica. A motivação teológica da defesa e da apreensão de Díke na sua manifestação formal, nos níveis individual e político, conduz ao exame de um morfismo entre as partes da psyché e da pólis. O princípio da insuficiência dos elementos da pólis aplicado à psyché conduz a uma apreciação mais positiva da parte concupiscente da alma. Todavia, essa mesma parte da alma é responsável pela introdução do luxo. E é o luxo na alma do indivíduo, ou na pólis, o responsável pela necessidade da defesa e de um governo para a gestão de um agregado de dimensão ampla. Em uma psyché de dimensão ampla, ou em uma pólis inchada para a satisfação de necessidades supérfluas, a necessária gestão dos recursos introduz um princípio de cálculo, o qual é responsável pelo aparecimento da razão. Mas, a atuação da razão é de contenção da parte concupiscente da qual se originou, donde seu aspecto paradoxal. Entretanto, são o cálculo e a medida da razão dos governantes os que impõem como condição para a sua realização uma formação que é muito restritiva para com a parte concupiscente da alma e que é incompatível com a forma mimética da poíesis. É como se a razão fosse um produto do desejo destinado a suprimi-lo, e a poíesis um meio de resistência do desejo à razão.
Platão; República; Poesia; Desejo; Razão
Abstract
The objective of this essay is to situate Plato’s critique of poetry in the Republic on its implicit conceptual base, giving visibility to important aspects postulated ab anteriori to the critique. The theological motivation for the defense and apprehension of Díke in its formal manifestation, on both political and individual levels, leads us to examine a morphism between the parts of the psyche and the polis. The principle of the insufficiency of the polis elements applied to the psyche leads to a more positive appreciation of the concupiscent part of the soul. However, that same portion of the soul is responsible for introducing luxury. And luxury in the individual’s soul, or in the polis, is responsible for the need for defense and for a government to manage an aggregate of wide dimension. In a wide dimension psychism, or in an inflated polis for the satisfaction of superfluous needs, the need for resource management introduces a calculation principle which results in the rise of reason. However, the role of reason is to confine the concupiscent part of the soul, from where it comes, thus its paradoxical aspect. However, it is the calculation and the measure of the reason of rulers that impose, as a condition to come true, a formation which is very restrictive to the concupiscent part of the soul and is incompatible with the mimetic form of the poiesis. It is as if reason were a product of the desire aimed at suppressing it and as if poiesis were a means to resist desire from reason.
Plato; Republic; Poetry; Desire; Reason
Este ensaio deseja levantar alguns elementos relativos aos pressupostos ou fundamentos da crítica de Platão à poesia na República. O objetivo é situar a crítica de Platão nas suas bases conceituais implícitas, dando visibilidade para importantes aspectos postulados ab anteriori, com destaque para o aspecto político-pedagógico da crítica à poesia.
O caráter da crítica e do objeto da crítica de Platão
O universo cultural da Grécia – da segunda metade do século V a.E.C. à primeira metade do III a.E.C., particularmente da Atenas deste período – difere significativamente do nosso. Ainda que herdeiros de muitos dos elementos constitutivos da cultura grega, nós não podemos deixar de marcar, em cada estudo histórico, as diferenças culturais que dela nos separam.
Desse conjunto de diferenças, uma adquire aqui papel decisivo na adequada caracterização da crítica platônica à poesia. Trata-se, pois, de uma diferença relativa ao próprio objeto de sua crítica. Desde a publicação de Preface to Plato, de Eryc A. Havelock, em 1963, os estudiosos da crítica à poesia de Platão têm observado com insistência que o objeto da crítica de Platão não é a poesia tal como nós a compreendemos em nosso próprio contexto. A poíesis não era uma “forma de linguagem em que a referencialidade ou o valor cognitivo fosse tênue ou inexistente” (ACHCAR, 1991, p. 157).
No universo cultural grego a poesia desempenhava diversas funções, dentre as quais se destaca, na crítica de Platão, a função pedagógica.3 A poesia era responsável, não apenas por registrar e preservar a memória coletiva, mas principalmente por estabelecer as coordenadas cosmológicas da cultura, à qual servia como um instrumento de caráter fundamentalmente formativo. Homero foi, com efeito, o educador da Hélade e a sua poesia foi uma das partes mais importantes de todo um complexo “sistema educativo” (PÁJARO M., 2014, p. 113).
“Depositário da memória social” (RODRIGO, 2006, p. 525), “enciclopédia do saber relevante para a vida” (ACHCAR, 1991, p. 157), responsável pela “formação do êthos” (VILLELA-PETIT, 2003, p. 55), a poesia “constituía el lazo com el passado histórico y mitológico, y era el instrumento básico para la codificación y transmisión de valores compartidos en los âmbitos social, moral y religioso” (MARULANDA, 2012, p. 115).
Em síntese, o adversário de Platão é o “senhor da educação e monopolizador da cultura grega” (ACHCAR, 1991, p. 157). E, portanto, o objeto da crítica de Platão, a poesia, possui uma dimensão pedagógica lato sensu.4 A poesia desempenha a função, portanto, do discurso cosmológico, por excelência, da cultura grega. Naturalmente, a sua crítica versará sobre as diversas dimensões desse discurso cosmológico que, por um lado, encanta, mas que, por outro, não se encerra neste mesmo encantamento poético. Há, e Platão bem observou, outras dimensões nesse discurso que, contudo, chama a atenção para a sua faceta mais atraente. Toda uma ordem ética, política e teológica se difunde pelas “imagens faladas” (Sof.5 234 c 6) do discurso poético.6
Desejamos destacar cinco níveis nos quais a crítica à poesia se estabelece, dado que são eles os que determinam a natureza da crítica. O primeiro é pedagógico e diz respeito à formação do êthos; esse se relaciona de maneira direta com o nível ético, o qual diz respeito aos valores a serem ensinados; contudo, a decisão sobre o conjunto de valores a serem ensinados está condicionada ao modelo de sociedade no qual se vive, o que nos coloca no terceiro nível, o político; por outro lado, um modelo de pólis é tanto mais desejável quanto mais for capaz de refletir, por assim dizer, a ordem mais elevada e divina, o que nos coloca no quarto nível ou plano de análise, o teológico; este último nível nos coloca em contato com a dimensão estética ordenada pelo belo e bom. Pensamos que esta é a série de camadas pelas quais a crítica de Platão à poesia transita.
Colocamos à parte, de modo algum por serem menos importantes, as dimensões lógica, epistemológica, ontológica e psicológica da crítica. A razão é que são dimensões transversais relativamente às anteriormente indicadas e que, em Platão, à exceção da dimensão psicológica, estão submetidas às primeiras. A dimensão psicológica é acionada, principalmente, a partir da dimensão pedagógica, com o propósito de evidenciar aspectos psíquicos da formação do êthos relevantes para o projeto político-pedagógico de educação dos guardiões, razão pela qual será tratada no contexto da análise da dimensão pedagógica.
A teorização de caráter lógico, epistemológico e ontológico nos parece não se apresentar na República de Platão de maneira autônoma, como um fim em si mesmo. Mas, ao contrário, parece estar à serviço de uma reflexão, fundamentalmente, ética e política. Postulamos que, na República, quando o debate é, com efeito, de ordem lógica, epistemológica e/ou ontológica, há um problema de ordem ética e/ou política como pano de fundo do debate, para o qual o debate deve ensaiar uma resposta.
O pano de fundo ético, político e teológico do debate sobre a justiça
Toda a crítica à poesia emerge de uma necessidade religiosa, é o receio de incorrer em impiedade7 que leva Sócrates a defender a Justiça, a um só tempo um conceito ético-político e uma divindade.
Não posso deixar de a defender. Com efeito, tenho receio que seja impiedade que, atacando-se a Justiça na minha presença, eu não a defenda, nem lhe acuda enquanto puder respirar e for capaz de falar. O melhor, portanto, é socorrê-la dentro dos limites da minha capacidade. (Resp., II 368 b-c).8
Que a justiça como uma forma de ordenação das relações sociais pertença, simultaneamente, ao campo da ética e da política não nos é estranho,9 mas que haja uma identidade formal das relações presididas pela justiça relativamente ao indivíduo e à pólis é já uma especificidade do pensamento de Platão estranha tanto ao nosso modo de a pensar como ao do seu tempo. A alma, psyché,10 está para o indivíduo tal como a pólis está para a cidade. Isto é, para Platão, é como se a pólis fosse a alma da cidade, e o nómos (o conjunto das leis e costumes da cidade) fosse o caráter (êthos) dela.
Disse-lhes então qual era o meu parecer, que a pesquisa que íamos empreender não era coisa fácil, mas exigia, a meu ver, acuidade de visão. Ora, uma vez que nós não somos especialistas, entendo – prossegui – que devemos conduzir a investigação da mesma forma que o faríamos, se alguém mandasse ler de longe letras pequenas a pessoas de vista fraca, e então alguma delas desse conta de que existiam as mesmas letras em qualquer outra parte, em tamanho maior e numa escala mais ampla. Parecer-lhes-ia, penso eu, um autêntico achado que, depois de lerem primeiro estas, pudessem então observar as menores, a ver se eram a mesma coisa.
– Absolutamente – disse Adimanto –. Mas que semelhança vês tu, ó Sócrates, com a investigação sobre a justiça?
– Vou dizer-te – respondi –. Diremos que a justiça é de um só indivíduo ou que é também de toda a cidade?
– Também é – replicou.
– Logo, a cidade é maior do que o indivíduo?
– É maior.
– Portanto, talvez exista uma justiça numa escala mais ampla, e mais fácil de apreender. Se quiserdes então, investigaremos primeiro qual a sua natureza nas cidades. Quando tivermos feito essa indagação, executá-la-emos em relação ao indivíduo, observando a semelhança com o maior na forma do menor.
– Parece-me que falas bem – respondeu ele.
– Ora pois – disse eu – se quiséssemos fazer um debate sobre a formação de uma cidade, veríamos também a justiça e a injustiça a surgir nela?
– Em breve o veríamos – retorquiu ele.
– Portanto, se assim sucedesse, havia esperança de mais facilmente vermos o que indagamos.
– Muito mais, com certeza. (Resp. II 368c-369b).
Para Platão, na República, a justiça não se encontra em um determinado tipo de relação entre os indivíduos (ou entre as cidades-estados), como em qualquer sorte de simetria social relativamente à distribuição dos indivíduos ou das suas propriedades. Mas se encontra, e isso é singular, em uma disposição das partes constitutivas da alma, ela mesma, e da pólis, como um todo. É nessa disposição das partes de um todo (da alma ou da pólis) que Platão encontrará a “identidade, do menor com o maior, na forma” (Resp., II 369 a). A justiça (dikaiosyne),11 ao fim da investigação, resultará na virtude responsável por manter cada parte da alma e cada grupo da pólis nos limites da sua função própria (autoû práttein. Resp. II 370a4), como observaram Matsui e Cornelli (2016, p. 2012-2013).
Portanto, o debate parte de uma motivação religiosa, do receio de que seja impiedade não a defender, e também teológica, na medida em que Justiça é a deusa a ser revelada pela apologia que dela fará Sócrates, ao procurá-la em toda parte. Imediatamente, Sócrates situa o domínio da Justiça no âmbito individual e político, para postular uma identidade da Justiça na forma da sua presença tanto no indivíduo como na cidade. Este é o princípio da “unidade [formal] na multiplicidade [sensível]” que ele explicitará em Resp., X 596 a-b. Temos aqui, então, a dimensão lógica ou formal paralela à dimensão ontológica da justiça já inseridas transversalmente às dimensões ética, política e teológica nas quais o problema se formulou.
Observe que o recurso à construção de uma cidade ideal não tem por escopo fundamentar uma proposta política alternativa, mas servir como um instrumento, uma espécie de “lupa”, para a apreensão da forma da Justiça. É claro que, se uma tal cidade assim modelada é justa, então ela satisfaz uma das condições básicas para concorrer, ao lado das demais, como um paradigma e proposta política alternativa. Outra das condições básicas para que ocupe esse lugar na política é a sua exequibilidade do ponto de vista pragmático. Todavia, essa qualidade está fora da pauta do debate da República, nada é mais alheio ao debate da República que preocupações de caráter prático com a transição do estado de coisas político da época para o da cidade ideal aí modelada.
A insuficiência de si para consigo na satisfação das necessidades como fundamento da agregação
Em Resp., II 369 b-c, Platão postula que é pelo “fato de cada um de nós não ser autossuficiente” que “um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para outra”. É para a satisfação das necessidades de cada um que uma agregação, baseada na troca de bens necessários, se forma. Ora, esse postulado tem importantes implicações sobre o que se desdobrará na sequência até o livro IV, uma das quais pouco explorada por Platão, pois, se há uma identidade formal na disposição das partes da alma e na das partes da pólis, e se todas as três partes da pólis (governantes, guerreiros e artesãos/negociantes) desempenham funções de caráter necessário, então os desejos da parte concupiscível da alma deveriam desempenhar papel análogo ao dos membros da parte da pólis a que correspondem, os artesãos e os negociantes, os quais são responsáveis pela produção dos bens necessários e pela troca deles. Mas, isso implica em postular que a parte concupiscível da alma é composta por duas outras, uma propriamente responsável pela satisfação dos desejos (de bens necessários ou não) e outra responsável pela permutação dos bens alcançados pelos desejos da primeira. Estas partes corresponderiam no nível formal, precisamente, a parte dos artesãos e a dos negociantes, que em conjunto formam a terceira parte da pólis.
O resultado parece ser o seguinte: não é a razão, mas são os desejos os responsáveis pela promoção da produção dos bens necessários ou não ao indivíduo. A razão dirige, ou governa, por assim dizer, a produção dos bens, mas não promove, nem realiza essa produção. O motor do móvel humano é o desejo, sendo a razão, portanto, uma espécie de leme. Os desejos funcionariam então como os ventos e as correntes marinhas.
O livro IV não parece dar a entender que a parte concupiscível da alma desempenhe um papel formalmente tão importante quanto o dos artesãos e o dos negociantes na pólis. Mas, se levarmos a sério as indicações de Platão ao longo da República, nós teremos de concluir que, tal como na pólis onde, a parte que governa e a que defende dependem da parte que produz e faz circular os bens, também na alma, a parte racional e irascível dependem da parte concupiscível. Deveríamos interpretar, portanto, a fome, a sede e os desejos afrodisíacos como os artesãos de bens necessários à manutenção e à continuidade da vida, no nível individual.
A linha divisória entre a cidade sã e a cidade luxuosa, pela qual clama Gláucon (Resp., II 372 d – 373 a), não está demarcada pela não realização e realização, respectivamente, daqueles desejos, mas pela ruptura com a necessidade que havia sido posta como princípio fundante da cidade. Na medida em que são desejos de bens necessários, eles são úteis e desempenham um dos mais importantes papéis na pólis que é sã, todavia na medida em que visam a satisfação de prazeres luxuosos incham a cidade de humores. Do mesmo modo, mas em outra escala, os desejos não são inimigos da razão se mantidos nos limites da necessidade, ao contrário, deles depende a própria razão que bem pode orientar, mas não fazer mover.12
Há, portanto, todo um jogo de relações de interdependência tanto no que diz respeito às partes da cidade entre si, como no que diz respeito às partes da alma umas com as outras. E esse jogo encontra o seu fundamento na insuficiência de uma parte do todo para com o próprio todo. É essa insuficiência das partes diferenciadas do todo que as coloca em relação, mais precisamente, em uma dinâmica de complementariedade.
Princípio de especialização e relação de troca mediada pelo tempo de trabalho
O “princípio de especialização”13 é introduzido em uma passagem muito interessante e pouco explorada, em Resp., II 369 e – 370 a. Nessa passagem se esboça uma teoria ingênua das relações de troca cuja mediação é feita pelo tempo de trabalho que opera como um equivalente formal do produto do trabalho, ao que o texto dá pouca atenção, bem como são sugeridas indiretamente duas importantes qualidades resultantes do princípio de especialização: o aumento da qualidade do produto do trabalho e o aumento quantitativo da produção.
– E agora? Deve cada um desses homens executar o seu trabalho próprio, para ser comum a todos? Por exemplo, o lavrador, sozinho, fornecerá trigo para quatro, e gastará o quádruplo do tempo e do esforço com a obtenção do trigo para o partilhar com os outros, ou preocupar-se-á apenas consigo, e preparará a quarta parte deste trigo, na quarta parte do tempo, e os outros três quartos gastá-los-á um na construção de uma casa, outro na confecção de um manto, outro ainda de calçado, e, sem as partilhar com os outros, terá as suas coisas, fazendo por si mesmo o que é seu?
Adimanto declarou: – Talvez seja mais fácil do primeiro modo que do segundo, ó Sócrates (Resp., II 369 e – 370 a).
O tempo de trabalho como um equivalente formal do produto do trabalho que dele resulta é bastante evidente. Também é evidente que o critério para a inclusão do princípio da especialização esteja implícito na natureza mais fácil desse modo de produção. Podemos inferir, da passagem anterior, que a especialização proporciona um aumento da produção (o mais hábil pode produzir mais que o menos hábil no mesmo intervalo de tempo). De outras passagens – como Resp., II 374 a-c, III 395 a-d – podemos depreender, com facilidade, que esse mais fácil reponde, também, pela melhoria da qualidade do que é produzido. E dado que toda a produção é para ser comum a todos, então é a cidade como um todo que ganha com a introdução desse princípio.
– Quê? – perguntou ele –. Os próprios cidadãos não bastam?
– Não – repliquei – se está certo o princípio em que tu e nós todos assentámos, quando modelámos a cidade. Assentámos, se bem te lembras, em que era impossível que uma só pessoa exercitasse na perfeição diversas artes.
– Falas verdade – respondeu.
– E então? – prossegui –. A luta da guerra não te parece ser uma arte?
– Sim, e muito – replicou.
– Devemos então preocupar-nos mais com a arte do sapateiro do que com a da guerra?
– De modo algum.
– Mas nós impedimos o sapateiro de tentar ser ao mesmo tempo lavrador, ou tecelão, ou pedreiro, e só o deixámos ser sapateiro, a fim de que a obra de sapateiro resultasse perfeita; e, do mesmo modo, a cada um dos outros atribuímos uma única arte, aquela para a qual cada um nascera e que havia de exercitar toda a vida, com exclusão das outras, sem postergar as oportunidades de se tornar um artífice perfeito. (Resp. II 374 a-c).
[...]
– Logo, dificilmente exercerá ao mesmo tempo uma das profissões de importância e imitará muitas coisas e será imitador, uma vez que nem sequer as mesmas pessoas imitam bem ao mesmo tempo duas artes miméticas que parecem próximas uma da outra, a comédia e a tragédia. Ou não chamaste há pouco imitações a ambas?
– Chamei, sim. E dizes a verdade: as mesmas pessoas não são capazes disso.
– Tampouco se pode ser ao mesmo tempo rapsodo e actor.
– É verdade.
– Nem sequer os actores são os mesmos nas comédias e nas tragédias. Ora, tudo isso são imitações, ou não?
– São imitações.
– Parece-me, Adimanto, que a natureza humana está fragmentada em partes ainda mais pequenas, de modo que é incapaz de imitar bem muitas coisas ou de exercer bem aquelas mesmas de que as imitações são cópias.
– Absolutamente – respondeu.
– Por conseguinte, se conservarmos o primeiro argumento, de que os nossos guardiões, isentos de todos os outros ofícios, devem ser os artífices muito escrupulosos da liberdade do Estado, e de nada mais se devem ocupar que não diga respeito a isso, não hão de fazer ou imitar ou imitar qualquer outra coisa. Se imitarem, que imitem o que lhes convém desde a infância14 – coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie. Mas a baixeza, não devem praticá-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade. Ou não te apercebeste de que as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência?
– Transformam, e muito. (Resp. III 395 a-d).
Marulanda (2012, p. 120) defende uma aplicação do princípio de especialização diretamente implicada na querela com os poetas.15 O princípio de especialização, segundo ele, se opõe ao modus operandi do poeta imitativo, dado que a mímesis requer a interpretação de variados tipos de caráter, razão pela qual “quien la ejerce no pertence al tipo de persona apropriado para insertase en la vida de la ciudad ideal.” Pensamos, contudo, que esse princípio não deva ser interpretado de maneira tão estrita, mas antes como uma recomendação a ser buscada na medida do possível. Os próprios guardiões da cidade recebem uma formação que os prepara para duas atividades bastante distintas: a guerra e o governo.
A construção da cidade, seu crescimento, o luxo e a necessidade de defender-se dos outros e de si mesmo
Em Resp., II 373 d – 374 a, aparece a necessidade de “um exército, não exíguo, mas completo, que saia a dar combate, lutando contra o invasor por todos os bens da cidade e quanto acabámos de dizer” (grifos nossos). Dois tópicos acima, buscamos indicar que há uma necessidade que opera como um limite entre a cidade sã e a doentia, aqui gostaríamos de precisar um aspecto dessa necessidade que não foi aclarado.
Há, a rigor, duas necessidades, a primeira visa à satisfação de requisitos vitais para a cidade (alimentação, habitação e vestuário). Mas, há uma segunda espécie de necessidade que não visa à satisfação de requisitos vitais, mas à satisfação de requisitos condicionados por outros fatores. Esse é o caso, por exemplo, do governo (Resp., II 373 c) e da guerra (Resp., II 373 e – 374 a). Os guardiões são um produto do luxo, direta ou indiretamente, para Platão.
Em Resp., II 372 d-e, Gláucon reclamou pelo costume, por leitos, iguarias e sobremesas. Então, Sócrates atende ao seu pedido e os introduz na cidade fazendo antes um alerta de que esta seria a origem de “uma cidade de luxo” e que estaria ela “inchada de humores” (grifos nossos), mas que seria interessante para o exame (relativo ao aparecimento da justiça e da injustiça) em pauta vê-la. A introdução desse luxo – necessário à satisfação de prazeres supérfluos – na cidade, força-a a crescer e é para esse ponto que gostaríamos de chamar a atenção.
– E a região que então fora suficiente para alimentar a população de outrora, de bastante que era, se tornará exígua. Ou que havemos de dizer?
– É isso.
– Portanto, não teremos de ir tirar à terra dos nossos vizinhos, se queremos ter o suficiente para as pastagens e lavoura, e aqueles, por sua vez, não terão de tirar à nossa, se também eles se abandonarem ao desejo da posse ilimitada de riquezas, ultrapassando a fronteira do necessário?
– Será inteiramente forçoso, ó Sócrates.
– Havemos então de fazer guerra, depois disso, ó Gláucon? Ou como há de ser?
– Tem de ser assim – respondeu. (Resp., II 373 d-e).
Os guerreiros só são necessários se a nossa pólis se entregar ao luxo ou se outra se entregar, no primeiro caso porque precisaremos de mais bens do que temos e teremos de nos apropriar dos bens que são dos outros para satisfazer às nossas necessidades, no segundo caso porque precisaremos nos defender do invasor que busca se apropriar dos nossos bens para satisfazer as suas necessidades. É o luxo que introduz no mundo a guerra e o saque. É claro que o mesmo luxo pode fazer com que os cidadãos de uma cidade roubem uns aos outros, pelas mesmas razões, mas esse é um ponto que o texto não aborda, ainda que os morfismos de Platão o sugiram.
O morfismo que melhor aclara o último ponto, acima levantado, é o que diz respeito à necessidade da natureza filosófica e da música para a formação dos guardiões, uma vez que “é sem dúvida necessário que eles sejam brandos para os compatriotas, embora acerbos para os inimigos; caso contrário, não terão de esperar que outros os destruam, mas eles mesmos se anteciparão a fazê-lo” (Resp., II 375 c).
As passagens, de Resp., III 410 a – 412 a, apontam de modo bastante claro para a existência de uma melhor medida entre a falta e o excesso na educação, tanto no que diz respeito à ginástica quanto no que diz respeito à música; o excesso na ginástica e/ou a falta na educação musical são caracterizadas pela não satisfação das condições necessárias à formação adequada aos guardiões, podendo acarretar em um temperamento agressivo, o que compromete a defesa da cidade de si mesma.16
– Para os pastores, a coisa mais tremenda e mais vergonhosa de todas é criar cães para os ajudarem a cuidar do rebanho, de tal modo que, devido à falta de disciplina, à fome ou a qualquer outro mau costume, se pusessem eles mesmos a tentar fazer mal às ovelhas e assemelhar-se a lobos, em vez de cães.
– É tremendo, como não há de sê-lo? (Resp., III 416 a).
É a virtude da temperança que operacionaliza a execução da melhor medida, previamente calculada pela sabedoria17 e preparada na alma pela ginástica e pela música. Entretanto, Platão não aplica esse resultado, obtido na investigação da educação dos guardiões, ao problema do limiar entre a cidade sã e a cidade luxuosa no livro II, mas esse resultado pode muito bem nos sugerir que, na cidade ideal, os desejos, não apenas os dos guardiões, devam estar contidos no limiar da saúde pela temperança; a contenção da cidade ideal no limiar da saúde sugere, indiretamente, que os desejos de todos os cidadãos devam ser contidos naquele mesmo limiar em razão das consequências funestas da sua não contenção, como a guerra fratricida.
À fundação da crítica à poesia
É necessário que os guardiões tenham uma educação tal que não sejam como lobos para com os seus concidadãos, mas efetivamente como cães de guarda. Tudo indica que esse é postulado nuclear e o ponto de partida para as críticas à poesia.18 Desse modo:
[...] el papel de los poetas de una ciudad idealmente constituida estaría restringido a suministrar los poemas simples y edificantes que pueden servir de apoyo en la formación de los jóvenes guardianes al inicio de su carrera al servicio de sus conciudadanos. (MARULANDA, 2012, p. 121).
Não é o meu objetivo, aqui, discutir a pertinência ou não das medidas tomadas por Platão para atingir essa finalidade, mas situá-las no entorno dessa exigência. Das primeiras, em Resp., II 377 d-e, que possuem um caráter fundamentalmente teológico, às últimas, no livro X, de caráter epistemológico, ontológico e psicológico, o que está em jogo é justamente o papel, ou o efeito, da poesia sobre a formação dos guardiões e de tudo o que se segue a partir daí.
Toda a introdução à primeira crítica deixa ver claramente qual é a preocupação central.
– Ora tu sabes que, em qualquer empreendimento, o mais trabalhoso é o começo, sobretudo para quem for novo e tenro? Pois é sobretudo nessa altura que se é moldado, e se enterra a matriz que alguém queira imprimir numa pessoa?
– Absolutamente. (Resp., II 377 a-b, grifos nossos).
Na sequência:
“As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos com as mãos” (Resp., II 377 c, grifos nossos).
Todo esse cuidado com a formação, com o moldar das almas das crianças, é sinal claro de que, para Platão, a educação é o tema central da política. Por quê? Poderíamos dizer, e não seria um exagero, que as caricaturas dos deuses, dos heróis e dos homens de maior valor retratadas por Homero e Hesíodo são criticáveis, não porque sejam falsas, dado que, no passo anterior ao citado, a falsidade fora admitida como um recurso político-pedagógico19 na fabricação das fábulas, mas sim porque imprimem na alma uma certa visão de mundo e comportamento opostos à visão e comportamento postulados. E isso porque:
[...] quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não é. Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indelével e inalterável. Por causa disso, talvez, é que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possível, orientadas no sentido da virtude. (Resp., II 378 d-e).
O texto nos permite claramente dizer que: se a alma não fosse suscetível de ser moldada e enganada pelas imagens poéticas – como se fossem detentoras da verdade, em função das descrições que requerem para si um tratamento referencial, o de dizer as coisas que são tais como são –, então Platão não teria, de modo algum, razão para expulsar os poetas. A expulsão dos poetas depende, fundamentalmente, de pressupostos psicopedagógicos.20 O erro e a mentira são admitidos, mas um erro que não pode ser evitado e que se imprima de maneira indelével na alma, este deve ser afastado.
[...] meu caro amigo, faremos como aqueles que, quando estão apaixonados por alguém, e reconhecem que aquele amor não lhes é proveitoso, se afastam dele, embora com esforço; do mesmo modo nós, devido ao amor por essa poesia que em nós se formou por influência da educação dos nossos belos Estados, estaremos dispostos a vê-la como muito boa e verdadeira, mas, enquanto não for capaz de se justificar; escutá-la-emos, repetindo para nós mesmos os argumentos que expusemos, e aquele mesmo canto mágico, tomando precauções para não cairmos novamente naquela paixão da nossa infância, e que é a da maioria. Repetiremos que não devemos preocupar-nos com esta poesia, como detentora da verdade, e como coisa séria, mas o ouvinte deve estar prevenido, receando pelo seu governo interior, e acreditar nas nossas afirmações acerca da poesia.” (Resp., X 607 e – 608 b).
Se os guardiões precisam de uma educação adequada à sua função na pólis projetada como paradigma, e se a psyché humana é tal que se deixa modelar pelo discurso poético de modo a comprometer irremediavelmente essa formação, então o poeta deve ser afastado.
Da primeira à última crítica, dos livros II ao X, o texto mostra claramente que é um pressuposto psicopedagógico sobre a formação do êthos que dá suporte à crítica à poesia nas suas outras dimensões. Todas as considerações de caráter epistemológico como em Resp., II 377 e ou X 598 a-d só são relevantes para a apreciação do lugar da poesia na pólis se se admitir como pressuposto o caráter frágil da alma quanto à aquisição de forma por influência da educação poética cujo encanto resulta da capacidade de suscitar prazer no educando.
Conclusão
Nosso estudo dos pressupostos da crítica de Platão à poesia sugere algo um tanto paradoxal. Ora, a motivação teológica da defesa e da apreensão de Díke (Justiça) na sua manifestação formal, nos níveis individual e político, conduz ao exame de um morfismo entre as partes da psyché e da pólis. O princípio da insuficiência dos elementos da pólis, no nível atômico (relativo aos cidadãos) e no nível grupal (relativo às três partes ou grupos), aplicado à psyché, conduz a uma apreciação mais positiva da parte concupiscente da alma (o que já havia sido explicitado quanto à parte correspondente na pólis do morfismo). Todavia, essa mesma parte da alma (e sua correspondente na pólis) é responsável, quando se ultrapassa o limite, pelos desejos, da satisfação das necessidades vitais (alimentação, habitação, vestuário), com a introdução do luxo. O caso é que: é justamente o luxo na alma do indivíduo, ou na alma de outro, na própria pólis, ou em outra, o responsável pela necessidade do defender-se de si mesmo e do outro e pela necessidade de um governo para a gestão de um agregado de dimensões ampliadas.
Em uma psyché de dimensões ampliadas pelo desejo, ou em uma pólis inchada para a satisfação de necessidades supérfluas, a necessidade da gestão dos recursos introduz um princípio de cálculo responsável pelo aparecimento da razão. Mas, a atuação da razão é justamente de contenção da parte concupiscente da qual se originou a necessidade que lhe deu origem, donde seu aspecto paradoxal. Ora, o cálculo e a medida estão para a razão, como uma das três partes da alma, tal como a educação para os guardiões governantes no morfismo de Platão.
Entretanto, são justamente o cálculo e a medida da razão dos governantes os que impõem como condição para a sua realização uma formação que é: (i) muito restritiva para com a parte concupiscente da alma (e para com a sua correspondente na pólis); e que (ii) é incompatível com a forma mimética da poíesis, como sugere o estudo de Pinotti (2005).
Muito naturalmente, um estudo como este aqui apresentado não apenas soluciona problemas em aberto, quando o faz, mas também sugere novos horizontes por explorar, descortinando o véu que vela a inconsciência da nossa ignorância. Nesse sentido, portanto, o nosso estudo aponta necessariamente para uma reflexão e análise futura. Careceria verificar uma nova hipótese, portanto, que surgiu como possível corolário do presente ensaio. A hipótese pela qual Platão, na República, a razão é como se fosse um produto do desejo destinado a suprimi-lo, e a poíesis uma forma de resistência do desejo ao ataque da razão.
Referências
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- KOHAN, Walter Omar. Infância e educação em Platão. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 11-26, jan./jun., 2003.
- MARULANDA, Federico. Filosofía contra poesía: reflexiones en torno a una disputa antigua. Signos Filosóficos, Morelia, v. 14, n. 28,. p. 113-142. jul./dez. 2012.
- MATSUI, Sussumo; CORNELLI, Gabriele. O conceito de saúde no livro IV da República: Platão contra os hipocráticos? Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 30, n. 59, p. 209-220, jan./jun. 2016.
- PÁJARO M., Carlos Julio. De Platón para los poetas: crítica, censura y destierro. Eidos, Barranquilla, n. 20, p. 109-144, set./out. 2014.
- PINOTTI, Graciela Elena Marcos de. La crítica platónica a oradores, poetas y sofistas. Hitos en la conceptualización de la mímesis. Estudios de Filosofia, Medellín, n. 34, p. 9-27, jul./dez. 2005.
- PLATÃO. A república. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 13. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
- ROBINSON, Thomas M. As origens da alma: os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristóteles. São Paulo: Annablume, 2010.
- RODRIGO, Lidia Maria. Platão contra as pretensões educativas da poesia homérica. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 95, p. 523-539, maio/ago. 2006.
- VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Platão e a poesia na República. Kriterion, Belo Horizonte, v, 44, n. 197, p. 51-71, jun. 2003.
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- Rodrigo (2006) circunscreveu, com precisão, a crítica de Platão no âmbito da função pedagógica da poesia homérica.
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- Contendo, também, elementos de caráter psicopedagógicos, os quais são relativos: (i) à formação do êthos; e (ii) à natureza e dinâmica das partes da alma.
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- Sof. e Resp. são abreviações que atendem a uma convenção de citação das obras Sofista e República, respectivamente, de Platão. Ficou estabelecido que sejam citadas as traduções latinas das mesmas, razão pela qual levam o itálico; os números seguem também a convenção de paginação das referidas obras.
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- Observe-se que a expressão eídola legómena se refere, em seu contexto, ao produto do discurso sofístico, mas seguimos aqui o estudo de Graciela Elena Marcos de Pinotti (2005) que argumentou, de maneira convincente, que a crítica de Platão à poesia é parte de uma crítica mais geral à mímesis, na qual oradores, poetas e sofistas são o alvo. O estudo de Pinotti nos permite ver que a comparação da pintura do pintor com a palavra do poeta em República X é parte de uma crítica de maior alcance à mímesis e que, portanto, (i) não se esgota nos passos de 601 a - 602 b, nem (ii) é adequadamente compreendida fora do seu contexto crítico mais amplo, particularmente, se não confrontada com o Sofista. Críticas como a de Marulanda (2012, p. 127) de que “el argumento presentado referente a la pintura […] no tiene contraparte directa en términos de la poesía” carecem de uma apreensão mais adequada das “imagens faladas” ou do “colorir” “por meio de palavras e frases” (Resp., X 601 a). De todo modo, o caso é que, com as palavras, os poetas descrevem os seus objetos e essas descrições é que são como as imagens da pintura.
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- A expressão utilizada por Platão é mè oud’hósion êi (“que não seja nada piedoso”. Resp. II 368b8).
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- Villela-Petit (2003, p. 60) observa que há um interessante paralelo entre a peça Os Sete Contra Tebas, de Ésquilo, e a República, de Platão, quanto ao contexto de invocação de Díke. Pois, a gravura de Díke no escudo de Polinices, que não a honrou nem em atos nem em palavras, é uma impiedade semelhante ao ataque a ela dirigido por Trasímaco e Gláucon na República.
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- “– Diremos que a justiça é de um só indivíduo ou que é também de toda a cidade? – Também é – replicou.” (Resp., II 368 e). Portanto, desde Platão ao menos, não nos é estranho que a justiça seja uma forma tanto do âmbito ético quanto do âmbito político.
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- Está fora do alcance de uma nota elucidar o conceito de psyché na extensão da cultura grega antiga, isto fundamentalmente porque o mesmo assumiu acepções muito variadas no decurso da história e é um conceito de complexa caracterização dada a enorme distância histórica e diferença cultural que nos separa dos gregos. Contudo, indicamos, para tal elucidação, o livro As origens da alma. Os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristóteles de Thomas M. Robinson (2010). Cf., ademais, Cornelli (2016), para um aclaramento do conceito de alma no contexto particular do Fédon, obra fundamental para a compreensão do conceito de alma em Platão. Portanto, no corpo deste artigo nos restringimos ao conceito de psyché que pode ser depreendido da República de Platão, deixando claro que esta caracterização não é o objetivo do presente trabalho e que a mesma demandaria uma investigação mais ampla precisamente com este propósito.
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- Utilizaremos Justiça, com inicial maiúscula, sempre que, e somente quando, indicamos com a palavra a deusa Díke. Nos demais casos, nós grafamos com inicial minúscula, em especial quando o termo é empregado para se referir ao conceito, formalmente falando. Observamos que há casos nos quais a palavra justiça é empregada, também, para indicar uma virtude, dikaiosýne, que se poderia traduzir por justeza, mas que vingou ser igualmente traduzida por justiça na literatura. Não é de apreensão imediata, dado o caráter técnico dos objetos, mas em síntese o nosso entendimento é que: a forma (ou unidade) da Justiça é a justiça, e possui justeza o que é justo, i.e., o que possui essa forma.
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- É claro que Platão desloca para a parte irascível o papel de motor auxiliar. O thýmos (ou vontade) funciona como uma espécie de desejo engendrado pela razão ou como uma espécie de força da vontade, que por sua vez é entendida como a própria razão.
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- A expressão é de Pájaro M. (2014, p. 123-124), mas ele não é preciso quanto ao momento em que o princípio é introduzido na República, a passagem por ele apontada para indicá-lo é Resp., III 395 a-c.
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- Sobre o tema da educação infantil em Platão conferir Kohan (2003, p. 11-26).
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- É preciso observar que Marulanda não usa a expressão de Pájaro M., mas refere-se aos habitantes da cidade ideal como tendo de “especializarse y dedicarse sólo a un tipo de actividad” (Marulanda, 2012, p. 120).
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- O excesso na educação musical e/ou a falta na ginástica podem levar à moleza, o que compromete a defesa da cidade dos seus invasores.
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- O papel da sabedoria, aqui, é o de determinar, pela razão, a medida de ginástica e de música adequada para a formação dos guardiões.
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- Como observou Lidia Maria Rodrigo (2006, p. 525) “parece significativo que no Livro II da República o exame da poesia seja desencadeado num contexto em que o que está em pauta é uma questão educativa e não uma questão estética. Como educar os guardiões?”.
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- Cf. Resp., II 377 a, II 377 d. A mentira que preocupa é a mentira sem nobreza, não a mentira em si mesma, que pode e deve ser usada como um remédio, cf.: II 382 c em diante.
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- Isto é, os pressupostos de Platão quanto: a natureza da psyché; o modo como o êthos se forma, ou é moldado pela educação etc.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Jan 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
08 Ago 2017 -
Revisado
07 Fev 2018 -
Aceito
14 Mar 2018