Resumo
Objetivos: estimar a carga de morbidade grave e mortalidade em parturientes, fetos e neonatos e investigar a associação entre os desfechos maternos e de seus conceptos.
Métodos: coorte retrospectiva de 546 parturientes e seus conceptos no hospital universitário referência para gravidez de alto risco da região metropolitana II do estado do Rio de Janeiro (ERJ), de 2015 a 2017. Classificamos as parturientes segundo morbidade obstétrica (MO) em direta, indireta e mista, e seus desfechos como: 1) sem gravidade, 2) complicação grave (CG), 3) intervenção crítica/ Unidade Terapia Intensiva e 4) maior gravidade-near miss materno (NMM) ou óbito. Avaliamos os conceptos quanto a near miss neonatal (NMN), óbitos fetais e neonatais. Estimamos indicadores de morbimortalidade, e fatores de associação (regressão logística multinomial).
Resultados: MO foi frequente: 29,3% indiretas, 22,3% diretas e 15,8% mista. Ocorreram oito casos de NMM, sete com MO direta. Entre os conceptos,7,5% foram casos de NMN e 4,4%, óbitos. O risco de desfecho grave materno foi 16,8 e neonatal, 102,6 p/1000 nascidos vivos. Estiveram associados ao NMN: cor parda, pré-natal inadequado, CG e NMM/óbito; e ao óbito do concepto: pré-natal inadequado e NMM/óbito.
Conclusão: mesmo em situação de referência, desigualdades sociodemográficas e assistenciais afetam negativamente mães e, consequentemente, seus conceptos.
Palavras-chave: Complicações na gravidez; Morbidade; Saúde materno-infantil; Near miss; Cuidado pré-natal; Desigualdades em saúde
Abstract
Objectives: to estimate the burden of parturients, fetuses and neonate’s severe morbidity and mortality and investigate the association between maternal and their conceptus outcomes.
Methods: retrospective cohort of 546 parturients and their conceptus in a university hospital, reference for high-risk pregnancy, in the metropolitan region II of Rio de Janeiro State from 2015 to 2017. We classified parturients according to obstetric morbidity (OM) in direct, indirect, or mixed, and their outcomes as: 1) no severity, 2) severe complication (SC), 3) critical intervention/Intensive Care Unit, and 4) greater severity –maternal near-miss (MNM) or death. We evaluated the conceptus as neonatal near-miss (NNM) and fetal and neonatal deaths. We estimated morbimortality indicators and associated factors (multinomial logistic regression).
Results: OM was frequent: 29.3% indirect, 22.3% direct, and 15.8% mixed. There were eight cases of NMM, seven with direct MO. Among the conceptus: 7.5% were NNM cases and 4.4%, deaths. The risk of severe maternal outcomes was 16.8 and neonatal, 102.6/1000 live births. Mixed race, inadequate prenatal care, CG and NMM/death, were associated with NNM. Inadequate prenatal care and maternal NM/death were associated with conceptus deaths.
Conclusion: even in a reference unit, sociodemographic, and health care inequalities negatively affect mothers and, consequently, their children.
Palavras-chave: Pregnancy complications; Morbidity; Maternal and child health; Near miss; Prenatal care; Health status disparities
Introdução
Entre a gestação saudável e o óbito materno, existe um espectro de condições mórbidas, de quadros leves a extremamente graves.1 Morte materna representa a ponta do iceberg das disfunções maternas resultantes do ciclo gravídico-puerperal: para cada morte materna há um número maior de mulheres que, apesar de apresentarem condições clínicas graves, não evoluem para óbito.1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs uma classificação de condições ameaçadoras à vida materna, que podem resultar em sobrevida– near miss materno (NMM) – ou no óbito no extremo do espectro de gravidade. Antes de constituir uma condição de ameaça, devem ser monitoradas complicações maternas graves (de caráter obstétrico direto), intervenções críticas ou internação em unidade de terapia intensiva.1
A revisão sistemática mais atual sobre NMM descreveu a prevalência mundial, entre 2012 e 2018, de 18,6 casos de NMM por mil nascidos vivos (NV), com grande variação entre os continentes: 3,1 por mil NV na Europa a 31,8 na África. A América Latina ficou com valor intermediário, de 11,5 por mil NV.2
Uma revisão sistemáticas obre NMM no Brasil, de 2005 a 2016, identificou frequência elevada e causas semelhantes às da mortalidade materna: doenças hipertensivas e hemorragias.3 A razão de NMM variou entre os estudos, destacando-se aqueles de base nacional, com valores entre 9 e 10 casos por 1000 NV. Observaram-se iniquidades, demora na assistência à saúde e efeito protetor do pré-natal adequado.4
Estudos posteriores mostram que o quadro de NMM se mantém no país. As síndromes hipertensivas são a principal causa e os fatores associados mais frequentes são cor parda ou preta, idade (35 anos e mais), ausência de companheiro, baixa renda, doenças pré-existentes, prénatal ausente ou inadequado, necessidade de transferência, ausência de trabalho de parto, cesariana.3,5,6,7 Uma série temporal, com dados nacionais do Sistema de Internações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) mostrou aumento de NMM no país, entre 2010 e 2018, além de maior frequência nas regiões Norte e Nordeste.7
As condições que ameaçam a vida materna no ciclo gravídico-puerperal podem impactar também a saúde do concepto, levando à ocorrência de desfechos graves como near miss neonatal – NMN (neonato que apresenta uma complicação grave e sobrevive ao período neonatal)8 e óbitos fetais e neonatais.9,10,11,12,13,14,15,16,17
Em países de baixa e média renda na África, Ásia e América Latina, foram observadas maiores taxas de óbito fetal, perinatal e NMN nos casos de NMM.10 Uma metanálise em países de alta renda reportou que mulheres com morbidades maternas graves têm maior chance de óbito perinatal.13 Tanto nos países de baixa como naqueles de alta renda, os desfechos desfavoráveis perinatais foram mais associados com complicações hemorrágicas.11,13
Também no Brasil, estudos locais e nacionais corroboram a associação do near miss materno com desfechos perinatais negativos (óbitos fetais ou neonatais), bem como internação do recém-nato (RN) em UTI neonatal.14,15,16,17
O presente estudo estimou a carga de morbidade grave e mortalidade em parturientes e seus conceptos e investigou a associação entre desfechos graves maternos e os desfechos dos conceptos, em um hospital universitário público da região metropolitana II do estado do Rio de Janeiro, de 2015 a 2017.
Métodos
Estudo de coorte retrospectivo de mulheres internadas para parto e seus conceptos na maternidade de um hospital universitário público, referência para região metropolitana II do estado do Rio de Janeiro. Trata-se do único hospital da região habilitado em nível terciário para gestação de alto risco (GAR).18 Foram elegíveis todos os partos ocorridos de setembro de 2015 a dezembro de 2017 e, excluídos da análise os partos de gravidez múltipla por apresentarem riscos diferenciados de desfechos perinatais negativos, especialmente para o segundo gêmeo.19 O período de seguimento foi da internação para parto (mãe) e do nascimento (concepto) até a alta hospitalar ou óbito.O tamanho da amostra foi definido com base no estudo de Abalos et al.,20 que utilizou o seguinte critério para definição do tempo de coleta: dois meses para locais com 6000 ou mais partos anuais, três meses para locais entre 6.000 e 3.000 partos anuais e quatro meses para locais com menos de 3.000 partos anuais. Nos anos de 2015, 2016 e 2017 ocorreram, respectivamente, 479, 402 e 402 partos no HUAP, alcançando uma população de estudo igual a 546 partos (pares de mães e conceptos).
Dados sobre a história clínica materna e dos conceptos do prontuário médico, características sociodemográficas, história reprodutiva, da gestação, do parto e do recémnascido da Declaração de Nascido Vivo (DN) ou do prontuário (ausência de DN para óbito fetal) foram coletados pelos pesquisadores treinados. Nos casos de óbito fetal, neonatal e materno, as causas de morte foram obtidas da Declaração de Óbito (DO).
As variáveis maternas analisadas foram: características sociodemográficas (faixa etária: <20; 20-34 e ≥35 anos; raça/cor: branca, preta, parda, outras e escolaridade: <8 e ≥8 anos de estudo, presença de companheiro: sim/não e ocupação remunerada: sim/não), reprodutivas (n0 filhos tidos: 0, 1-3, ≥4), paridade: primípara/multípara), padrão de morbidade (morbidade obstétrica direta e indireta) assistência pré-natal adequada (sim/não)e tipo de parto (vaginal/cesariana). A adequação ao pré-natal considerou a realização, o mês de início e a proporção de consultas de pré-natal realizadas em relação às recomendadas por idade gestacional21 (adequado - soma das categorias adequado e mais do que adequado/inadequado -as demais).
O padrão de morbidade materna foi definido de acordo com Chou et al.22 Esses autores propuseram analisar a morbidade materna de forma alinhada à mortalidade materna, classificando a condição como obstétrica direta, indireta ou combinada.
Adicionalmente, foram criadas categorias de gravidade materna, adaptando aquelas propostas pela OMS, segundo Serruya et al.23
Desta forma, os desfechos maternos foram classificados em ordem crescente de gravidade: sem gravidade (SG), complicação materna grave (CMG), intervenção crítica/ UTI (IC/UTI), near miss materno (NMM) e óbito materno (OM).1 Quando a mulher evoluiu para mais de um desfecho grave, foi classificada pelo pior desfecho.
Considerando a baixa frequência do desfecho materno segundo as categorias propostas pela OMS,2 as três últimas categorias (IC/UTI, NMNM e OM) que representam desfechos de maior gravidade, para fins de análise foram agregadas numa única categoria e contrastadas com a categoria de menor risco (SG).
Os desfechos dos fetos e recém-nascidos foram ordenados de forma crescente de gravidade em: ausência de desfecho grave (SD), near miss (NMN) e óbito (neonatal - ON ou fetal - OF).
Foi adotada a definição validada de near miss neonatal (presença de pelo menos um dos três critérios pragmáticos: Apgar do 5° minuto <7, peso ao nascer <1500g e Idade gestacional <32 semanas).24
Causa básica de morte foi avaliada segundo capítulo e causa específica da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10a Revisão – CID 10 (OMS, 1995).25 Foi analisada a presença de anomalia congênita na DN e DO dos óbitos neonatais e fetais. Foram calculadas as frequências absolutas de causas de mortes específicas.
Foram descritas frequências absolutas e relativas das variáveis de estudo. Foi avaliada a incompletude das informações (excelente, <5; bom de 5 a 10; regular, de 10 a 20; ruim, de 20 a 50 e muito ruim, ≥50%).26
A partir da classificação das parturientes segundo presença de morbidade obstétrica foram calculadas as frequências absolutas e relativas percentuais de ocorrência de desfechos graves maternos e dos conceptos.
Foram calculados os seguintes indicadores hospitalares: Razão de Mortalidade Materna, Razão near miss materno, Razão de Desfecho Materno Grave, Razão entre near miss e óbito materno, Índice de Mortalidade Materna, Taxa de Mortalidade Neonatal, Taxa de near miss neonatal, Taxa de desfechos graves neonatais, Razão entre as taxas de near miss e de mortalidade neonatal, Índice de mortalidade dos conceptos, Taxa de Mortalidade fetal e Taxa de óbitos entre os conceptos. As razões de desfechos graves, foram calculadas também segundo caraterísticas maternas.
Foram utilizados modelos de regressão logística multinomial para os desfechos materno grave (exposição principal: sem morbidade/CMG/maior gravidade) e dos conceptos (sem complicação/near miss neonatal/ óbito fetal e neonatal).Para a escolha das variáveis potencialmente confundidoras foi considerada, além da literatura,a completude excelente da informação.26
A seleção das variáveis no modelo simples e múltiplo, incorporando além de cada covariável separadamente, a exposição principal (desfecho materno grave, sempre presente) obedeceu à relevância na história natural do desfecho e/ou ao nível de significância estatística inferior a 20%. Na análise múltipla com as variáveis selecionadas anteriormente, o nível de significância estatística foi inferior a 5%. Para definição do modelo múltiplo final, consideraram-se variáveis confundidoras aquelas que provocaram mudanças superiores a 10% da magnitude da odds ratio (OR) da exposição principal (desfecho materno grave).
Foi utilizado o software Stata SE (versão 12).
Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, parecer n° 1826053.
Resultados
Entre as 546 parturientes, 65% eram munícipes de Niterói, 21,8% de São Gonçalo e 13,2%, de outros municípios da Região Metropolitana I e II. Predominaram mulheres de 20-34 anos, pardas, com 8 ou mais anos de escolaridade,sem companheiro, sem ocupação remunerada e multíparas (Tabela 1). Cerca de 50% realizaram o prénatal adequadamente e para 60,4%, o parto foi cesáreo. Exceto pelas variáveis escolaridade materna, ocupação remunerada e presença de companheiro, a incompletude das informações foi excelente (<5%) (Tabela 1).
Distribuição absoluta e proporcional das parturientes segundo características maternas e grau de incompletude das informações. Coorte de parturientes conceptos, maternidade universitária, Niterói, 2015-2017; (N=546).
A Figura 1 apresenta a classificação das parturientes em relação às morbidades obstétricas e as probabilidades condicionadas dos desfechos graves maternos e perinatais.
Probabilidades de desfechos maternos e dos conceptos segundo morbidades das parturientes, maternidade universitária referência para gravidez de alto risco da região metropolitana II do RJ, 2015-2017.
Foram mais frequentes morbidades obstétricas indiretas seguidas de diretas (22,3%) e da combinação direta e indireta (15,8%). Entre as diretas, predominaram as síndromes hipertensivas da gestação, seguida de diabetes gestacional (DG) e infecção urinária (ITU). Foram poucos os casos de hemorragia. Na presença de duas ou mais morbidades diretas, frequentemente a síndrome hipertensiva gestacional era uma das morbidades. Quanto às indiretas, a hipertensão arterial foi a mais frequente, e no caso de associação direta e indireta, foi comum a superposição de síndrome hipertensiva gestacional aos quadros de hipertensão pré-existente.
Todas as 178 mulheres sem morbidade evoluíram bem. A ocorrência de complicações maternas graves foi maior entre parturientes com morbidade obstétrica direta e indireta (44,2%) e de desfechos maternos de maior gravidade, entre as mulheres com morbidade obstétrica direta (9,8%). Não ocorreram casos de complicação materna grave entre parturientes com morbidade obstétrica indireta. Quatro mulheres necessitaram internação em UTI, três por síndrome hipertensiva gestacional e uma sem morbidade obstétrica, com linfoma de Hodgkin, que evoluiu para óbito. Onze mulheres necessitaram hemotransfusão, sendo um caso de NMM.
Foram identificados oito casos de NMM, sete com morbidade obstétrica direta (cinco casos de síndrome hipertensiva gestacional) e um com doença renal crônica. Houve predomínio de critérios clínicos (três casos de coagulopatia, um caso de icterícia associada à síndrome hipertensiva gestacional e um de alterações respiratórias). Ocorreu um óbito materno (causa indireta) no período do estudo, da paciente com linfoma.
Entre os conceptos, 481 (88,1%) evoluíram sem complicação, 41 (7,5%) foram classificados como near miss neonatal, e ocorreram 14 óbitos neonatais (2,6%) e dez fetais (1,8%). A maioria dos conceptos de parturientes sem morbidade materna e sem desfecho materno seguiu sem complicação (87,6%). As ocorrências de casos de near miss neonatal e de óbito foram iguais entre os conceptos de mães com desfecho de maior gravidade e com morbidade obstétrica indireta e maiores que as das demais categorias (exceto NMN morbidade obstétrica mista e maior gravidade).
Para cada mil nascidos vivos ocorrem cerca de 15 casos de near miss materno e 17 desfechos maternos graves (Tabela 2). A mortalidade entre os desfechos maternos graves foi 11,1%. As taxas de desfechos graves neonatais e de mortalidade dos conceptos foram respectivamente 119 e44 por mil nascimentos. Ocorreram cerca de três casos de near miss neonatal para cada óbito neonatal.
Indicadores de carga de morbidade grave e mortalidade na coorte de parturientes e conceptos de uma maternidade universitária referência para gravidez de alto risco, região metropolitana II do RJ, 2015-2017.
Houve maior risco de complicação materna grave (CMG) em mulheres de 20 a 34 anos, brancas, com maior escolaridade e primíparas, e para o desfecho de maior gravidade (DMG), na faixa etária de 35 anos e mais, cor preta, baixa escolaridade, e multíparas. Ausência de ocupação remunerada representou maior risco para ambos os desfechos maternos (Tabela 3). Mulheres com pré-natal inadequado tiveram maiores taxas de CMG, mas não de DMG. As mulheres submetidas à cesariana tiveram maiores taxas de ambos os desfechos (Tabela 3).
Taxas de desfechos maternos e dos conceptos segundo características maternas sociodemográficas e assistenciais, em uma maternidade universitária, referência para gravidez de alto risco, região metropolitana II do RJ, 2015-2017 (N=546).
As taxas mais elevadas de near miss neonatal ocorreram entre os conceptos de mulheres de 35 anos ou mais, pardas, sem remuneração, pré-natal inadequado e cesariana. As taxas mais elevadas de óbito foram entre os filhos de parturientes de 20 a 34 anos, brancas, primíparas, sem remuneração, pré-natal inadequado e parto vaginal (Tabela 3).
A parturiente que evoluiu para óbito materno teve como causa básica certificada Doença de Hodgkin não especificada (código C81.9 - CID 10R) e outras doenças e afecções complicadas pela gravidez, parto e puerpério (código O99.8 CID 10R), sendo essa última causa, após codificação e aplicação de regras de seleção, a constante como causa básica no SIM.
Quanto aos óbitos dos conceptos (n=28), três óbitos neonatais não foram localizados no SIM, impossibilitando sua análise. Malformações congênitas (capítulo XVII) predominaram entre os óbitos neonatais e não ocorreram como causa básica entre mortes fetais. Todas as causas de morte fetais foram classificadas como Algumas Afecções Originadas no Período Perinatal (capítulo XVI). Quanto às causas específicas, a causa básica mais frequente entre os conceptos foi a relacionada às síndromes hipertensivas da gestação (n=3), seguida das causas básicas relacionadas às doenças infecciosas e parasitárias da mãe e a septicemia sem especificação do recém-nascido.
No modelo de regressão simples apenas faixa etária não esteve associada aos desfechos do concepto. Na presença dos desfechos maternos graves (exposição principal), todas as covariáveis apresentaram associação com o desfecho do concepto (p<0,2): cor parda e pré-natal inadequado para ambos os desfechos dos conceptos e idade ≥35 anos, apenas ao óbito e complicações maternas mais graves, apenas ao near miss neonatal (Tabela 4). No modelo múltiplo, apenas faixa etária não se manteve associada ao desfecho do concepto (p≥0,05). Por fim, mãe de cor parda, inadequação do pré-natal, complicações maternas graves e desfechos graves maternos foram associados ao near miss neonatal; pré-natal inadequado e desfechos graves maternos foram associados ao óbito do concepto (Tabela 4).
Associações entre os desfechos graves dos conceptos e maternos - Coorte de parturientes e conceptos, maternidade universitária referência para alto risco, região metropolitana II do RJ, 2015-2017.
Discussão
Na coorte de parturientes e seus conceptos no hospital universitário público da região metropolitana II do estado do Rio de Janeiro, de 2015 a 2017, mulheres com morbidades obstétricas evoluíram com maior frequência para desfechos maternos graves que impactaram negativamente na saúde de seus conceptos.
Morbidade obstétrica indireta foi mais frequente, resultado esperado, considerando o atendimento referenciado do hospital universitário, com pré-natal de alto risco e diversas especialidades clínicas. Destacou-se a hipertensão arterial, como já mostrado para a América Latina.23
Os piores desfechos maternos (IC/UTI, NMM e OM) foram mais frequentes entre as mulheres com morbidade obstétrica direta ou combinada.As síndromes hipertensivas da gestação constituíram as morbidades de maior frequência em todas as categorias de gravidade. Esse resultado é concordante coma literatura nacional,3,4,5,7 e se alinha ao encontrado para mortalidade materna no Brasil.27 Em outros países de baixa e média renda, os transtornos hemorrágicos são causas mais freqüentes de morte materna, com exceção da América Latina, onde hemorragia e hipertensão se equivalem.28
O perfil de causas do óbito materno vem mudando, reduzindo as mortes por causas diretas e aumentando as mortes por causas indiretas, embora essa mudança seja lenta no país.27 Nossa suposição é de que as mulheres acompanhadas no hospital universitário têm suas doenças pré-existentes bem controladas, evitando desfechos mais desfavoráveis, enquanto aquelas com complicações surgidas durante a gravidez podem ter sido identificadas e/ou encaminhadas tardiamente do pré-natal de risco habitual para o de alto risco.
A carga de morbidade grave materna, expressa pela taxa de near miss, do hospital analisado (14,9 p/1000 NV) foi mais baixa que a de outro hospital universitário de Maceió, AL (54,8 p/1000 NV),3 e mais elevada que a de outros locais do país, nos quais hospitais de diferentes naturezas foram incluídos.5,16,17 Dois indicadores que avaliam a qualidade da assistência obstétrica – razão de near miss/mortalidade e o índice de mortalidade– mostraram valores intermediários, quando comparados a outros estudos nacionais.3,4,5
Deve ser ressaltado que o único óbito foi em uma paciente com neoplasia de evolução desfavorável, não se podendo atribuir este óbito somente à má qualidade da atenção obstétrica. Portanto, esses dois indicadores, que dependem do número de óbitos, ficaram prejudicados.
A elevada taxa de near miss neonatal encontrada no estudo, diferente do que foi encontrado em seis maternidades dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo (TNMN entre 6,2 e 35,9/1000 NV),29 pode ser explicada pela baixa frequência de nascimentos/ano, bem como por ser uma unidade de referência para GAR. A taxa de desfechos graves neonatais também foi elevada: 2,3 vezes o valor da taxa máxima encontrada no mesmo estudo (50,3/1000 NV).29
Considerando as relações entre as mães e seus conceptos, desfechos maternos graves estiveram associados tanto aos casos de near miss neonatal quanto óbitos dos conceptos, enquanto complicações maternas, apenas ao NMN. Esses resultados são semelhantes ao encontrado na literatura, porém com mais equilíbrio entre óbitos fetais e neonatais.10,11,17 Nesses estudos, foi ressaltada a associação com complicações hemorrágicas e maior impacto nos óbitos fetais, fato não observado no presente estudo.
Destaca-se, também, que não houve morte fetal por malformação congênita; entretanto, os óbitos por afecções maternas ocorreram entre as mulheres com morbidade ou que evoluíram para CMG. Entre as mulheres sem complicações, os óbitos foram por transtornos da placenta/ do cordão umbilical. Embora tais condições possam ser desencadeadas por condições maternas específicas, como a hipertensão, não foram observadas nos prontuários, condições maternas que as classificassem diferentemente de “sem complicação”. Logo, pode-se inferir que a qualificação do óbito foi adequada. Em relação ao óbito neonatal, a maior frequência foi entre mulheres sem complicação, e todas as causas estão relacionadas às condições específicas do recém-nascido ou à malformação. Apenas entre as mulheres com morbidade ocorreram óbitos neonatais relacionados às afecções maternas, além dos óbitos por malformação, que também ocorreram nesse grupo de mulheres. Tais resultados explicam o estudo ter observado maior risco de morte entre os conceptos nas mulheres sem morbidade.
Cabe ainda destacar a adequação do pré-natal como confundidor da associação investigada. A relação entre atenção pré-natal e desfechos negativos tanto para mulher quanto para o concepto é bem documentada.3,4,6,10,14 Adicionalmente, cor materna, foi confundidor apenas para o near miss neonatal: a chance de NMN entre mães pardas cerca de quatro vezes superior à de mães brancas e de mães pretas, essa última, sem significância estatística. Em maternidades do sudeste brasileiro, somente cor preta apresentou associação significativa com NMN.29A relação entre cor não branca e ocorrência de near miss materno foi descrita em revisão sistemática de estudos nacionais.4
O estudo do near miss materno e perinatal tem se mostrado cada vez mais necessário para a gestão pública, uma vez que seu monitoramento permite a organização, em tempo oportuno, do sistema de saúde.1 O Brasil não incorporou a utilização desses marcadores nas políticas voltadas para a saúde materno-infantil, como ocorreu em Cuba.30 Entretanto, houve a primeira recomendação para a incorporação do monitoramento dos critérios near miss materno pelos serviços de saúde na Resolução CIT Nº 1, de 30 de março de 2021.
Embora muitas políticas públicas tenham sido desenvolvidas para a promoção da saúde materno-infantil após a implantação do SUS, houve avanços e retrocessos ao longo desse período. Investir na saúde das mulheres durante os anos reprodutivos é relevante não apenas para as mulheres em si, mas pelo impacto na saúde e no desenvolvimento da próxima geração. Além do mais, as políticas assertivas impactarão nas taxas de mortalidade perinatal e nas condições de nascimento do país.21
Como limitações do estudo, destacamos em primeiro lugar, o baixo número de internações ocorridas durante a coleta de dados, causado por fechamento parcial da unidade e que prejudicaram o tamanho da amostra. Adicionalmente, quanto à qualidade das informações, duas variáveis apresentaram completude regular: escolaridade e ocupação da mulher. Trata-se de variáveis que poderiam ampliar a compreensão das condições socioeconômicas, relacionadas ao óbito materno. Destacou-se predomínio de mulheres com oito anos ou mais de escolaridade, embora muitas sem ocupação remunerada. Esse resultado, diferente do observado em outros estudos,4 pode ser resultante de viés de informação. Ou talvez o acesso ao tratamento de alto risco, mesmo mediado por sistemas de regulação de vagas, revele desigualdades e mulheres com maior nível de escolaridade tenham maior facilidade de chegar a unidades como o hospital universitário analisado.
Como força do estudo, apontamos o uso de propostas mais ampliadas de classificação de morbidade materna, alinhadas à classificação de óbitos maternos em diretos e indiretos e ao conceito de gradiente de gravidade,22,23 permitindo aprofundar o conhecimento da saúde da mulher e de seus impactos na saúde infantil.
Os resultados encontrados corroboram as desigualdades socioeconômicas, de raça e assistenciais que afetam negativamente a vida das mulheres. A incorporação da avaliação e monitoramento, ao menos, dos critérios de near miss pelos serviços de saúde, conforme a Resolução CIT Nº 1, de 30/03/2021, auxiliará futuras pesquisas. É necessário que futuros estudos considerem o gradiente de gravidade e a classificação de morbidade materna direta e indireta. Finalizando, reforçamos a necessidade de investimentos na saúde das mulheres para além das políticas de saúde reprodutiva, garantindo condições de vida saudáveis, redistribuição de renda, educação, empoderamento feminino, bem como a equidade nos serviços de saúde.
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Editor Associado: Leila Katz
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
25 Abr 2022 -
Revisado
08 Out 2022 -
Aceito
12 Dez 2022