Acessibilidade / Reportar erro

O paradoxo da doença coronariana

Ponto de Vista

O Paradoxo da Doença Coronariana

Hudson Hübner França

Sorocaba, SP

"Dois e dois são três" disse o louco.

"Não são não! Berrou o tolo.

"Talvez sejam" resmungou o sábio.

José Paulo Paes

O ateroma foi descrito há 150 anos. Em meados do século XIX, Virchow interpretava o depósito de gordura na íntima das artérias como uma simples passagem de substâncias gordurosas do plasma, através da parede endotelial.

Era a teoria da insudação.

Na mesma época, outro patologista alemão, Rokitanski, via o processo ateromatoso de maneira diferente: o depósito de gordura seria secundário; a alteração primária era a deposição de fibrina e plaquetas na superfície endotelial, alterando o endotélio e permitindo a passagem da gordura plasmática para a íntima.

Era a teoria da incrustação 1,2.

Na segunda metade do século XX, Duguid e, especialmente, Ross e Clomset, retomaram a lesão endotelial como ponto de partida para a aterogênese.

Criaram a teoria da injúria - reação endotelial 3-6.

Hoje - até onde sabemos - o momento zero de aterogênese, seu big bang, é a disfunção endotelial.

Embora a insudação de Virchow lembrasse a fase edematosa de uma inflamação, até a segunda metade do século passado, a aterosclerose era vista como uma doença degenerativa das artérias de grosso e médio calibres.

No entanto, em 1911, Frothingham, no Arch. Intern Med. 7 e Ophüls (1921), no JAMA 8, falam da possibilidade da participação de infeções na doença vascular.

Desde as primeiras observações de depósito gorduroso na íntima, até hoje, 150 anos depois, os lípides são vistos como os elementos principais na aterogênese. A hipótese do colesterol 9 é a dominante.

Porém, há paradoxos que esta hipótese não explica.

A vivência clínica mostra - e a literatura constata - infartados jovens, com colesterol baixo, e, do outro lado, indivíduos idosos - com mais de 70 anos - com colesterol alto, e que vivem bem, sem manifestações de doença aterosclerótica 9.

A maior parte dos infartados não se encontra entre aqueles que, na população, têm os níveis mais altos de colesterol.

Também se sabe que o grau de lesão vascular, a extensão e intensidade do processo aterosclerótico, não guarda relação com as taxas plasmáticas do colesterol, em particular, com os níveis da LDL 10-29.

Os fatores de risco coronariano, hoje reconhecidos, não explicam a presença da aterosclerose numa significante parcela dos indivíduos acometidos pela doença 11-13.

A não explicação desse paradoxo pela hipótese do colesterol, leva a pensar que deve existir algo mais beyond cholesterol 10.

"There are more things in heaven and earth, Horatio,

Than are dreamt of in your philosophy". (Shakespeare: Hamlet, Prince of Denmark. Act 1, Scene V).

Nas últimas décadas, número substancial e crescente de publicações fala da presença de marcadores inflamatórios na aterogênese 1215, como, também, do papel de mecanismos inflamatórios na instabilização da placa aterosclerótica 16,17.

Em janeiro de 1999, Russel Ross publicou um artigo sob o título "Atherosclerosis - an inflamatory disease" 12.

Em 1988, Saikku e cols. 18 relataram o achado de anticorpos anti- Chlamydia Sp em pacientes coronarianos, sugerindo a participação desse microorganismo na patogenia da doença cardiovascular.

Após esse trabalho, surgiram outros que sugerem a possibilidade de agentes infecciosos vários ¾ em particular, clamídia, helicobacter, citomegalovírus e vírus do herpes ¾ participarem na gênese e evolução da doença aterosclerótica 19,23.

Um aspecto que não tem sido devidamente analisado na literatura médica é por que e como a LDL se torna patogênica.

Na realidade, a LDL é um constituinte normal de células e tecidos, inclusive o endotélio, e é, fisiologicamente, transportada por macrófagos.

A LDL nativa, natural, não é patogênica. Torna-se agressiva, somente, quando modificada 24-29.

Os macrófagos têm um receptor específico para fazer a endocitose da LDL. Este receptor é auto-regulável e só permite a fagocitose da LDL em quantidade capaz de ser metabolizada e transportada. Em meio rico de colesterol, o receptor específico entra em down regulation 9-30 e só fagocita a quantidade adequada à sua capacidade de metabolização.

Isto não acontece com a LDL modificada. Uma vez modificada, a LDL é captada avidamente pelo macrófago, por um número grande de receptores; é uma captação por varredura, que ultrapassa a capacidade fisiológica do macrófago, o ingurgita de gordura - formando as foam cells - modifica suas características e pode levá-lo à morte 9,10,30.

Além de desregular a fagocitose pelos macrófagos, a LDL modificada se torna citotóxica - inclusive para a célula endotelial - libera citoquinas, torna-se quimiotática para macrófagos plasmáticos (monócitos) ou teciduais (células musculares lisas da camada média) e neutrófilos; o macrófago ingurgitado de LDL modificada - célula esponjosa - perde sua mobilidade, fica retido na íntima e não tem mais a função removedora de gordura 9,10,12.

Mais ainda: a LDL modificada se torna imunogênica. Anticorpos anti-LDL são encontrados em lesões vasculares e dosados no plasma, servindo, inclusive, para se avaliar a gravidade e extensão da doença 29,31.

Naturalmente, esses complexos antigênicos podem alterar a função celular e se mostrarem patogênicos.

A LDL pode ser modificada por mecanismos diversos 9,29. Na clínica, dois mecanismos são importantes: oxidação e glicosilação.

Na respiração celular, 95 a 98% do oxigênio se converte em energia; 2 a 5% vira radicais livres 32.

Esses radicais livres são neutralizados pelos anti-oxidantes naturais. Se a produção de radicais livres for excessiva, tem-se o estresse oxidativo 28. A sua neutralização é deficiente e podem, então, causar diferentes tipos de lesão tecidual. A LDL, que é facilmente oxidada, sofre peroxidação, com todas as suas conseqüências.

A gordura, uma vez oxidada, é capaz de desencadear um efeito em cascata na peroxidação lipídica 10.

É claro que, se as taxas de lipoproteínas de baixa densidade forem altas, este efeito dominó da peroxidação lipídica será mais desastroso para o organismo.

A glicose pode se ligar à lipoproteína e modificar as suas características nativas, da mesma maneira que a oxidação.

Hoje, sabemos que pequenas elevações da glicemia podem causar disfunção endotelial e, talvez, dar início à aterogênese 33.

As situações capazes de modificar as lipoproteínas de baixa densidade e torná-las patogênicas são múltiplas e variadas.

A hipertensão arterial, pela shear stress lesa o endotélio, produz radicais livres e pode desencadear o processo inflamatório; o mesmo ocorre com a homocisteína, em níveis plasmáticos altos 12. A combustão do fumo - como acontece no cigarro - libera grande quantidade de radicais livres de O2 que, inalados, produzem a peroxidação lipídica e lesão endotelial. Se não houver combustão - como no rapé e no hábito de mascar fumo - o tabaco cria dependência química à nicotina mas não é aterogênico 34,35.

A hiperglicemia - mesmo não havendo diabetes ¾ causa glicosilação das LDL e as tornam agressivas ao endotélio e a outras células 10.

Microorganismos, pela sua capacidade de induzir reações inflamatórias e aumentar o estresse oxidativo, podem dar início e progressão à aterogênese 12,28.

Níveis altos de endotoxina plasmática - causados por infeções crônicas ou recorrentes (aí se inclui a bronquite tabágica) - foram, de forma significante, correlacionados à aterosclerose 36.

Todo agente - infecioso ou não - capaz de aumentar o estresse oxidativo pode dar início ao processo inflamatório que leva à aterogênese.

O processo inflamatório desencadeado pelos radicais livres de O2 e a hiperglicemia ¾ agindo diretamente sobre o endotélio ou através da modificação da LDL ¾ pode representar o ponto de confluência, a via final comum, dos mecanismos patogênicos dos diferentes fatores de risco da aterosclerose.

E pode explicar, também, o paradoxo da hipótese do colesterol.

Na abordagem terapêutica, todos os fatores de risco devem ser levados em conta, mas é fundamental que se faça a supressão do processo inflamatório, que se evite ou neutralize o estresse oxidativo e a glicosilação das LDL.

Realmente, na aterogênese, há algo mais beyond cholesterol.

Eu diria: existe algo mais, além e aquém.

Agradecimentos

À Sra. Isabel Cristina Feitosa de Carvalho, pela ordenação da bibliografia; à Srta. Isabel de Souza, pela digitação do texto e à Profa. Maria Julieta Bartocci Sannazzaro, pelo esclarecimento dos aspectos bioquímicos.

Correspondência: Hudson Hübner França - Rua Paraná, 113 - 18035-590 Sorocaba, SP - E-mail:

Recebido para publicação em 4/7/01

Aceito em 8/8/01

  • 1. Digirolamo M, Schlant RC. Etiology of coronary atherosclerosis. In: Hurst JW, Logue RB, Schlant RC, Wenger NK. The Heart: Arteries and Veins. 4th ed. New York: McGrawHill, 1978; Chap 62B: 1112.
  • 2. Bogliolo L, Miziara LJ. Vasos arteriais, venosos e linfáticos. In: Lopes ER, Chapadeiro E, Raso P, Tafuri WL. Bogliolo Patologia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1987: 329-30.
  • 3. Duguid JB. Pathogenesis of arteriosclerosis. Lancet 1949; 2: 925-7.
  • 4. Ross R, Glomset JA. The pathogenesis of atherosclerosis. (First of Two Parts). New Engl J Med 1976; 295: 369-77.
  • 5. Ross R, Glomset JA. The pathogenesis of atherosclerosis (Second of Two Parts). New Engl J Med 1976; 295: 420-5.
  • 6. Cotran RS, Kumar V, Robbins SL. Robbins Patologia Estrutural e Funcional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1996: 507-9.
  • 7. Frothingham C Jr. The relation between acute infectious diseases and arterial lesions. Arch Intern Med 1911; 8: 153-62.
  • 8. Ophuls W. Arteriosclerosis and cardiovascular disease: their relation to infectious diseases. J Am Med Assoc 1921; 76: 700-1.
  • 9. Steinberg D. Lewis A. Conner Memorial Lecture: oxidative modification of LDL and atherogenesis. Circulation 1997; 95: 1062-71.
  • 10. Steinberg D, Parthasarathy S, Carew TE, Khoo JC, Witztum JL. Beyond cholesterol: modifications of low-density lipoprotein that increase its atherogenicity. New Engl J Med 1989; 320: 915-24.
  • 11. Mehta JL, Saldeen TGP, Rand K. Interactive role of infection, inflammation and traditional risk factors in atherosclerosis and coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 1998; 31: 1217-25.
  • 12. Ross R. Atherosclerosis: an inflammatory disease. New Engl J Med 1999; 340: 115-23.
  • 13. Rader DJ. Inflammatory markers of coronary risk. New Engl J Med 2000; 343: 1179-82.
  • 14. Lindahl B, Toss H, Siegbahn A, Wallentin L. Markers of myocardial damage and inflammation in relation to long-term mortality in unstable coronary artery disease. New Engl J Med 2000; 343: 1139-47.
  • 15. Packard CJ, O'Reilly DSJ, Muriel JC, et al. Lipoprotein-associated phopholipase A2 as an independent predictor of coronary heart disease. N Engl J Med 2000; 343: 1148-55.
  • 16. Luz PL, Serrano Jr CV, Lopes AC. Radicais livres e doenças cardiovasculares. In: Porto CC. Doenças do Coração: Prevenção e Tratamento. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1998; Cap. 33: 174-8.
  • 17. Mulvihill NT, Foley JB, Murphy R, Crean P, Walsh M. Evidence of prolonged inflammation in unstable angina and non-Q wave myocardial infarction. J Am Coll Cardiol 2000; 36: 1210-5.
  • 18. Saikku P, Mattila K, Nieminen MS, et al. Serological evidence of an association of a novel chlamydia, twar, with chronic coronary heart disease and acute myocardial infarction. Lancet 1988; 2: 983-5.
  • 19. Muhlestein JB, Hammond EH, Carlquist JF, et al. Increase incidence of chlamydia species within the coronary arteries of patients with symptomatic atherosclerosis versus other forms of cardiovascular disease. J Am Coll Cardiol 1996; 27: 1555-61.
  • 20. Wong Y, Dawkins KD, Ward ME. Circulating chlamydia pneumoniae DNA as a predictor of coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 1435-9.
  • 21. Kaski JC, Camm AJ. Chlamydia pneumoniae infection and coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 1440-2.
  • 22. Howell TH, Ridker PM, Ajani UA, Hennekens CH, Christen WG. Periodontal disease and risk of subsequent cardiovascular disease in U.S. male physicians. J Am Coll Cardiol 2001; 37: 445-50.
  • 23. Hoffmeister A, Rothenbacher D, Wanner P, et al. Seropositivity to chlamydial lipopolysaccharide and chlamydia pneumoniae, systemic inflammation and stable coronary artery disease: negative results of a case-control study. J Am Coll Cardiol 2000; 35: 112-8.
  • 24. Morel DW, DiCorleto PE, Chisol GM. Endothelial and smooth muscle cells alter low density lipoprotein in vitro by free radical oxidation. Arteriosclerosis 1984; 4: 357-64.
  • 25. Heermeier K, Schneider R, Heinloth A, Wanner C, Dimmeler S, Galle J. Oxidative stress mediates apoptosis induced by oxidized lipoprotein (a). Kidney Int 1999; 56: 1310-2.
  • 26. Stringer MD, Gorog PG, Azadeh Freeman, Kakkar VV. Lipid peroxides and atherosclerosis. Br Med J 1989; 298: 281-4.
  • 27. Cistemas JR. Patofisiologia dos radicais livres. In: Douglas CR. Patofisiologia Geral. São Paulo: Robe, 2000; cap.21: 465-80.
  • 28. Aukrust P, Berge RK, Ueland T, et al. Interaction between chemokines and oxidative stress: possible pathogenic role in acute coronary syndromes. J Am Coll Cardiol 2001; 37: 485-91.
  • 29. Witztum JL, Steinberg D. Role of oxidized low density lipoprotein in atherogenesis. J Clin Invest 1991; 88: 1785-92.
  • 30. Champe PC, Harvey RA. Bioquímica ilustrada. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p.225-8.
  • 31. Inoue T, Uchida T, Kamishirado H, et al. Clinical significance of antibody against oxidized low density lipoprotein in patients with atherosclerotic coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 2001; 37: 775-9.
  • 32. Ferreira CP. Bioquímica Básica. 2ª ed. São Paulo: Luana, 1997; cap.22: 375-81.
  • 33. Kawano H, Motoyama T, Hirashima O, et al. Hyperglycemia rapidly suppresses flow-mediated endothelium: dependent vasodilation of brachial artery. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 146-54.
  • 34. Huhtasaari F, Lundberg V, Eliasson M, Janlert U, Asplund K. Smokeless tobacco as a possible risk factor for myocardial infarction: a population-based study in middle-aged men. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 1784-90.
  • 35. Benowitz NL. Snuff, nicotine and cardiovascular disease: implications for tobacco control. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 1791-3.
  • 36. Wiedermann CJ, Kiechl S, Duzendorfer S. Association of endotoxemia with carotid atherosclerosis and cardiovascular disease: prospective results from the Bruneck Study. J Am Coll Cardiol 1999; 34: 1975-81.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2002

Histórico

  • Aceito
    08 Ago 2001
  • Recebido
    04 Jul 2001
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br