Transplante Coração-Pulmão/tendências; Embolia Pulmonar; Hipertensão Pulmonar; Fibrilação Atrial; Litíase; Acidente Vascular Cerebral
Introdução
O transplante cardiopulmonar (TCP) teve seu auge no final da década de 1980 e início dos anos 1990, com quase 300 transplantes realizados por ano em todo o mundo. Com os avanços no tratamento da insuficiência cardíaca (IC) e pulmonar, esse número caiu consideravelmente, sendo que, em 2017 foram realizados apenas 62 TCPs em todo o mundo.1,2 Existe uma enorme discussão sobre o perfil de pacientes que pode se beneficiar do TCP e o melhor momento em que ele deve ser indicado.
Relato de caso
Relatamos o caso de uma paciente de 46 anos, com diagnóstico de comunicação atrioventricular (CAV), submetida a correção cirúrgica em 2006, que evoluiu com hipertensão pulmonar secundária em pós-operatório tardio. Apresentava antecedentes pessoais como: acidente vascular cerebral em 2014, com hemiplegia à direita, fibrilação atrial crônica e litíase biliar. Referenciada ao serviço de transplante, a paciente foi incluída em lista de espera para o procedimento após discussão multidisciplinar. Evoluiu com necessidade de internação por dispneia e piora da insuficiência cardíaca classe funcional II para IV (de acordo com a New York Heart Association, NYHA). Uma angiotomografia de tórax mostrou tromboembolismo pulmonar crônico (TEPC) das artérias principais e ramos interlobares. Um ecocardiograma transtorácico mostrou disfunção do ventrículo direito (VD) grave com pressão sistólica da artéria pulmonar (PSAP) de 129 mmHg, presença de fluxo bidirecional transeptal, e pelo menos dois orifícios compatíveis com comunicação interatrial (CIA) do tipo ostium secundum, medindo 10 mm e 8 mm, respectivamente.
A paciente evoluiu com progressão da disfunção cardíaca e piora do quadro clínico (dispneia aos mínimos esforços, cianose central), aumento da pressão sistólica da artéria pulmonar (PSAP = 153mmHg) e necessidade de uso de inotrópico (milrinone) contínuo. Foi realizada uma ressonância magnética cardíaca, que identificou retorno da CIA (Figura 1) e TEPC na artéria pulmonar direita (Figura 2).
– Ressonância magnética cardíaca evidenciando tromboembolismo na artéria pulmonar direita (seta vermelha) e o aumento do tronco da artéria pulmonar.
Após discussão na Câmara Técnica da Central Estadual de Transplantes, a paciente foi priorizada na fila do transplante e, após cinco meses de internação, o TCP foi realizado no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). O doador era do sexo masculino, 18 anos, e a causa de morte encefálica tinha sido acidente vascular cerebral hemorrágico (AVCH).
A incisão cirúrgica foi feita por bitoracotomia anterior com esternotomia transversal tipo Clamshell, com instalação da circulação extracorpórea (CEC) por meio da canulação na aorta ascendente e drenagem nas veias cavas superior e inferior. Durante a cardiectomia, os nervos frênicos foram identificados bilateralmente e liberados com margens de segurança.
Durante as pneumonectomias, preservou-se a região do nervo laríngeo recorrente para evitar lesões. O implante do bloco cardiopulmonar iniciou-se pelas anastomoses brônquicas, seguidas da aorta e das veias cavas. O tempo de isquemia do enxerto foi 255 minutos e o tempo de CEC, 195 minutos. Após saída da CEC, a paciente foi submetida a tromboelastograma e coagulograma, corrigido conforme resultado com plaquetas, fibrinogênio e complexo protrombínico, além de dois concentrados de hemácias.
A paciente foi admitida na unidade de terapia intensiva em ventilação mecânica, recebendo 0,5 micro/kg/min de noradrenalina; 0,06 micro/kg/min de vasopressina; 3,7 micro/kg/min de dobutamina. A profilaxia utilizada foi meropenem e vancomicina e, na indução, metilprednisolona e basiliximabe. Para a imunossupressão, utilizamos Tacrolimus, prednisona e micofenolato.
A paciente foi entubada no segundo dia pós-operatório, com relação PO2/FiO2 de 400. Nas primeiras 72 horas após o transplante, a paciente apresentou disfunção primária do enxerto I (DPE), apenas pela alteração radiológica, sem repercussão clínica. Permaneceu na unidade de terapia intensiva por quatro dias e recebeu alta hospitalar no 34º dia pós-operatório. Atualmente, está em acompanhamento ambulatorial, referindo boa qualidade de vida.
Discussão
A International Society for Heart and Lung Transplantation (ISHLT) reporta que a maior indicação para o TCP continua sendo a hipertensão pulmonar, devido à hipertensão arterial pulmonar idiopática ou secundária a doenças cardíacas congênita (como a Sindrome de Eisenmenger), que representa 60% a 70% dos transplantes nas últimas três décadas, seguida da Fibrose Cística com 14,9%.3,4
A opção pelo transplante isolado de coração e pulmão para os pacientes que antigamente seriam tratados com o TCP, bem como os avanços no tratamento da hipertensão pulmonar refletiu na diminuição do número de TCP realizados.
Os exames pré-operatórios devem ser criteriosamente analisados, pois os pacientes que serão indicados e submetidos ao TCP podem ter comprometimento de outros órgãos, como fígado e rim, além de congestão venosa sistêmica crônica. Outro ponto a ser verificado é se o receptor tem painel imunológico positivo, pois, devido a procedimentos prévios com transfusões, o paciente pode ser sensibilizado.5
O manejo pós-operatório do TCP é semelhante ao dos pacientes submetidos ao transplante pulmonar isoladamente. As causas comuns de morte nos primeiros 30 dias são falência do enxerto, complicações técnicas e infecção. A síndrome de bronquiolite obliterante (BOS) e a disfunção do aloenxerto pulmonar (DEP) continuam sendo as principais causas de mortalidade no primeiro ano.6
Há na literatura internacional uma grande discussão sobre a necessidade e a indicação do TCP ou quando recomendar o transplante pulmonar ou cardíaco isoladamente. No Brasil, a 3ª Diretriz Brasileira de Transplante Cardíaco aconselha que, em casos de hipertensão pulmonar fixa, o TCP pode ser considerado.7 Porém, alguns pontos devem ser levados em consideração: a anatomia, o agravamento da insuficiência ventricular, hipertensão, condições clínicas e hemodinâmicas do paciente e piora da qualidade de vida, índice cardíaco e disfunção renal.8
Uma desvantagem do TCP é o uso de um doador para um paciente, enquanto poderiam ser realizados um transplante cardíaco e pulmonar bilateral ou dois unilaterais, em dois ou três pacientes.9
Existem muitos pacientes no Brasil que podem se beneficiar do TCP, seja por cardiopatia congênita ou por Hipertensão Arterial Pulmonar (HAP) de qualquer etiologia, em que o acometimento é severo e irreversível.10,11
Conclusão
O TCP deve ser considerado como opção terapêutica para pacientes cuidadosamente selecionados. O momento de indicação para o transplante, antes que a doença se agrave, é de fundamental importância para atingir bons resultados. O manejo desses pacientes requer cuidado complexo e multidisciplinar. Há uma demanda em parte oculta em nossa população que pode se beneficiar desse tipo de transplante.
Referências
- 1 Webb W R, Howard H S. Cardio-pulmonary Transplantation. Surg Forum. 1957;8:313–7.
- 2 Reitz BA, Wallwork JL, Hunt SA, Pennock JL, Billingham ME, Oyer PE, et al. Heart-Lung Transplantation: Successful Therapy for Patients with Pulmonary Vascular Disease. N Engl J Med. 1982 Mar 11;306(10):557–64.
- 3 K. Khush K, Cherikh WS, Chambers DC, Goldfarb S, Hayes D, Kucheryavaya AY, et al. The International Thoracic Organ Transplant Registry of the International Society for Heart and Lung Transplantation: Thirty-fifth Adult Heart Transplantation Report—2018; Focus Theme: Multiorgan Transplantation. J Heart Lung Transplant. 2018;37(10):1155–68.
- 4 Goldfarb SB, Hayes D, Levvey BJ, Cherikh WS, Chambers DC, Khush KK, et al. The International Thoracic Organ Transplant Registry of the International Society for Heart and Lung Transplantation: Twenty-first Pediatric Lung and Heart-Lung Transplantation Report—2018; Focus Theme: Multiorgan Transplantation. J Heart Lung Transplant. 2018;37(10):1196–206.
- 5 Brouckaert J, Verleden SE, Verbelen T, Coosemans W, Decaluwé H, De Leyn P, et al. Double-lung versus heart-lung transplantation for precapillary pulmonary arterial hypertension: a 24-year single-center retrospective study. Transpl Int.2019;37(10):196-206.
- 6 Toyoda Y, Toyoda Y. Heart-lung transplantation: Adult indications and outcomes. J Thorac Dis. 2014;6(8):1138–42.
- 7 Bacal F, Marcondes-Braga FG, Rohde LEP, Xavier Júnior JL, de Souza Brito F, Moura LZ, et al. 3ª Diretriz Brasileira de Transplante Cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2018; 111(2):230-89
- 8 Idrees JJ, Pettersson GB. State of the Art of Combined Heart-Lung Transplantation for Advanced Cardiac and Pulmonary Dysfunction. Vol. 18, Current Cardiol Rep. Current Medicine Group LLC 1; 2016. p. 1–9.
- 9 Le Pavec J, Hascoët S, Fadel E. Heart-lung transplantation: current indications, prognosis and specific considerations. J Thorac Dis. 2018;26(10:5946-52.
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10 Associação Brasileira de Transplantes de Orgãos . (ABTO). Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada estado [cited 2020 May 26];1–89. Available from: www.abto.org.br
» www.abto.org.br - 11 Pêgo-Fernandes PM. Heart-lung transplantation: a necessity. J Bras Pneumol. 2020 May;46(3):e20190273–e20190273.
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Vinculação acadêmicaNão há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
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Aprovação ética e consentimento informadoEste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein sob o número de protocolo 4.038.465. Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes incluídos no estudo.
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Fontes de financiamento.O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Mar 2021 -
Data do Fascículo
Fev 2021
Histórico
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Recebido
26 Maio 2020 -
Revisado
20 Ago 2020 -
Aceito
09 Set 2020