Palavras-chave Antiarrítmicos; Propafenona; Arritmias Cardíacas; Bloqueadores dos Canais de Cálcio
Introdução
Propafenona é uma droga antiarrítmica classe IC, utilizada no tratamento de arritmias ventriculares e supraventriculares.1-7 É principalmente um bloqueador de canal de sódio potente, mas também exibe atividades betabloqueadoras e bloqueadoras de canal de cálcio.4,6,7 A propafenona é capaz de induzir importantes mudanças de ECG, como o prolongamento do intervalo de PR, bloqueio atrioventricular do primeiro grau, aumento do QRS e intervalo QT, assim como taquicardia ventricular ou bradicardia.3,4 Pode estar associada a efeitos pro-arritmogênicos significativos, mesmo em doses terapêuticas.2 Uma overdose fatal de propafenona costuma estar associada a anormalidades de condução, levando a assistolia ou dissociação eletromecânica. Os autores descrevem dois casos clínicos de intoxicação por propafenona com mudanças de ECG potencialmente fatais, mas com um resultado final favorável.
Relatório do Caso
Caso 1
Paciente do sexo feminino, 44 anos, sem histórico médico relevante. A paciente foi levada ao pronto-socorro após ingestão voluntária de 4500mg de propafenona. Ao ser trazida ao pronto-socorro, a paciente teve uma convulsão de curta duração, subsequentemente recobrando a consciência. Mediante sua chegada ao pronto-socorro, a doente desenvolveu uma Escala de Coma de Glasgow de 10 (GCS) (Olhos-3, Motor-5, Verbal-2), associado a bradicardia (55 bpm) e hipotensão (pressão sanguínea [PS] 85/30 mmHg). Sem outras alterações relevantes ao exame objetivo. Uma lavagem gástrica foi feita, com a remoção do que parecia ser resíduos de pílulas. As análises sanguíneas mostraram acidose metabólica. O ECG de entrada mostrou arritmia sinusal, com desvio do eixo para a direita, bloqueio incompleto de ramo direito (RBBB) e alterações inespecíficas da repolarização em DIII, V1 e V2. Após aproximadamente uma hora após o início do tratamento, a paciente sofreu uma convulsão tônico-clônica, devido a bradicardia extrema e alargamento do QRS. Infelizmente, devido à urgência da situação e ao estado clínico da paciente, essas mudanças elétricas não puderam ser registradas através de um ECG de 12 derivações padrão. Ela foi medicada com atropina e benzodiazepina. Isso resultou em um estado comatoso (escala de Glasgow 3), piora da acidose metabólica e falha respiratória. A paciente foi entubada, colocada em ventilação mecânica contínua e levada para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).
Mediante sua entrada na UTI, o monitoramento das tiras de ritmo revelou uma fibrilação atrial com atividade sinusal ocasional, em conjunto com um alargamento do intervalo de QRS (200 milissegundos). Três horas depois, o ritmo sinusal foi restaurado, e o intervalo QRS voltou aos valores normais, com um quase que completo desaparecimento do padrão RBBB. Nas primeiras 6 horas após a internação, houve uma estabilização progressiva hemodinâmica e clínica, permitindo um retiro gradual do suporte aminérgico e ventilatório. No segundo dia, a paciente estava consciente e hemodinamicamente estável. Ela recebeu alta após uma consulta psiquiátrica.
Caso 2
Paciente do sexo feminino, 56 anos, com histórico de fibrilação atrial e depressão severa, medicada com propafenona 150mg duas vezes ao dia, e duloxetina 60 mg uma vez ao dia. A paciente foi primeiro observada em um pequeno hospital comunitário, após ingerir voluntariamente 3000 mg de propafenona. Na referida instituição, mediante sua chegada, a paciente estava completamente acordada, e uma lavagem gástrica foi iniciada. Contudo, logo depois, ela desenvolveu uma convulsão clônica, seguida por dois episódios de parada cardíaca, devido a bradicardia extrema. A ressuscitação foi conseguida após menos de 2 minutos de suporte avançado de vida e administração de atropina. Após assegurar estabilidade hemodinâmica e elétrica, a paciente foi transportada para um hospital centralizado. Por ocasião da internação, ela estava bradicárdica (50 bpm), normotensiva (BP 139/89 mmHg), e com uma escala de Glasgow de 14 (Olhos 4, Motor 6, Verbal 4). Um ECG revelou um ritmo juncional, com um padrão de Brugada tipo 1 nas derivações V1 a V3 (Figura 2). A paciente foi internada na UTI para monitoramento. Após 24 horas de estabilidade clínica, hemodinâmica e elétrica, um novo ECG foi realizado, revelando ritmo sinusal e o desaparecimento do padrão de Brugada.
Discussão
A propafenona é um agente antiarrítmico Vaughan Williams de Classe IC e, deste modo, um bloqueador de canal de sódio potente.1,3,4,6,7 Também exibe atividades betabloqueadoras e bloqueadoras de canal de sódio.4,6,7 Quase 100% da propafenona é absorvida. Contudo, por causa de um efeito de eliminação hepática por primeira passagem, sua biodisponibilidade é imprevisível.1,4 Propafenona é metabolizada em dois principais metabolitos: 5-hidroxipropafenona e norpropafenona, em um processo geneticamente determinado pelo sistema de enzima CYP2D6.1,4 O tempo médio para eliminação da propafenona varia dependendo se o paciente é um metabolizador lento ou rápido.2 Diversos sinais e sintomas clínicos têm sido associados com intoxicação por propafenona, que vão desde náusea e vômito até convulsões, comas, depressão respiratória e colapso cardiovascular (Tabela 1).4 A propafenona pode ser responsável por diversas mudanças em ECG, incluindo bradicardia sinusal, parada sinusal, fibrilação atrial, prolongamento do intervalo PR, anormalidades na condução intraventricular (alargamento de QRS e QT e bloqueio atrioventricular do primeiro grau), padrão de Brugada,8-11 taquicardia ventricular, flutter ou fibrilação ventricular e parada cardíaca.1,4
Os autores descrevem dois casos de ingestão voluntária de propafenona, ambos com resultados bem-sucedidos. Não há tratamento específico. Uma lavagem gástrica tempestiva foi tentada em ambos os casos. Quando realizada imediatamente, a lavagem gástrica é o único modo eficaz de se eliminar doses excessivas de propafenona.1,3
Em ambos os casos, convulsões tônico-clônicas foram observadas. É uma importante manifestação neurológica de intoxicação por propafenona.3,4 O motivo da ocorrência das convulsões é incerto. Saz et al.3 e Clarot et al.4 sugerem que pode ser atribuído a um efeito tóxico direto da propafenona ou a uma hipoperfusão cerebral causada por arritmia ou perturbações na condução.
No primeiro caso, todos os principais sinais de alarme clínico foram observados.4 Houve uma piora progressiva da situação neurológica e respiratória. A paciente eventualmente entrou em coma, exigindo ventilação mecânica. Insuficiência cardíaca também foi observada, resultando em hipotensão arterial, e exigindo suporte catecolaminérgico, com drogas inotrópicas e vasoconstritoras positivas. Após a eliminação progressiva da droga, e retirada gradual das medidas de suporte foi bastante simples. Outro aspecto importante são as dinâmicas mudanças em ECG. A paciente sofreu mudanças de ritmo (de arritmia sinusal para fibrilação atrial, e finalmente voltando ao ritmo sinusal normal) e desordens na condução intraventricular (com um alargamento do intervalo QRS e um aumento do padrão RBBB). Essas mudanças ocorreram somente nas primeiras 3 horas após a internação, correspondendo ao pico da concentração do soro.4 Isso ressalta a importância de um monitoramento de perto e tratamento imediato, nas primeiras horas após a overdose por propafenona.
No segundo caso, a ingestão de níveis supraterapêuticos de propafenona revelou um padrão de Brugada do tipo 1 no ECG superficial. Formas ocultas ou intermitentes de Síndrome de Brugada foram descritas em alguns subconjuntos de pacientes, principalmente após hiperventilação, bloqueio beta-adrenérgico e estimulação alfa-adrenérgica, estimulação dos receptores muscarínicos e bloqueio de canais de sódio, induzindo ou aumentando a elevação de ST.10,11 Neste caso específico, a propafenona é capaz de desmascarar o fenômeno de Brugada oculto, devido a suas atividades bloqueadoras de canais de sódio e beta-adrenérgicas.10 O aparecimento do padrão de Brugada em resposta a drogas antiarrítmicas do tipo IC não parece estar associado a um grande risco de arritmias polimórficas; contudo, uma investigação mais aprofundada é necessária.11 Neste caso, o padrão de Brugada desapareceu após a eliminação da droga.
Ambas as pacientes foram monitoradas de perto, de 36 a 48 horas. O tempo médio de eliminação da propafenona varia de 17 ± 8 horas, para metabolizadores lentos, a 5 ± 2, para metabolizadores rápidos. O pico da concentração de soro ocorre entre 2 e 3 horas após a ingestão,4 durante qual período as mudanças de ECG mais potencialmente fatais podem ocorrer.
Ambos os casos são paradigmáticos devido a quão imprevisível uma overdose de propafenona pode ser. Pode variar de um conjunto de sintomas quase benignos, até uma apresentação catastrófica, resultando em morte. O primeiro caso apresentou os sinais clínicos mais importantes, quais sejam, insuficiência cardíaca, perturbação de condução e convulsões. Contudo, graças a um tratamento imediato, a paciente sobreviveu. Os segundo caso também foi crítico, considerando as convulsões e bradicardia extrema, que exigiu suporte à vida avançado; contudo, após a apresentação catastrófica inicial, estabilidade clínica foi mantida ao longo das próximas horas. Outro aspecto interessante foi o fato de que um padrão de Brugada do tipo 1 foi revelado. Em ambos os casos, nenhum tratamento direto para intoxicação por propafenona estava disponível. Monitoramento de perto e medidas de suporte imediatas são cruciais para garantir um resultado positivo.
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Fontes de financiamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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Vinculação acadêmicaNão há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar 2018
Histórico
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Recebido
16 Set 2016 -
Revisado
30 Set 2016 -
Aceito
03 Nov 2016