Acidente Vascular Cerebral; Cardiopatia Chagásica
No Brasil, até o momento, a doença de Chagas (DC) ainda é um grande problema de saúde pública e causa frequente de cardiomiopatia chagásica crônica (CCC) e acidente vascular cerebral (AVC).11. Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverría LE et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018;138:e169-209. Ainda é a principal causa de DALYs — anos de vida ajustados por incapacidade (em 2016, de 141.640), uma medida de perda de saúde devido à carga de doenças fatais e não fatais.22. Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, Ribeiro ALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burden of Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018;12(6): e0006559 A doença de Chagas está fortemente associada ao AVC embólico associado à doença de Chagas (AVC-DC)33. Carod-Artal FJ, Vargas AP, Melo M. American trypanosomiasis (Chagas’ disease): an unrecognized cause of stroke. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2003; 74:516-8. com uma incidência que varia de 0,56 a 2,67 por 100 pessoas/ano.44. Sousa AS, Xavier SS, Freitas GR, Hasslocher-Moreno A. Prevention strategies of cardioembolic ischemic stroke in Chagas’ disease. Arq Bras Cardiol. 2008;91(5):306–10. , 55. Nunes MC, Kreuser LJ, Ribeiro AL, Sousa GR, Costa HS, Botoni FA, et al. Prevalence and risk factors of embolic cerebrovascular events associated with Chagas heart disease. Glob Heart. 2015; 10(3):151–7. Está intimamente relacionado à presença de CCC.66. Cardoso RN, Macedo FY, Garcia MN, Garcia DC, Benjo AM, Aguilar D, et al. Chagas cardiomyopathy is associated with higher incidence of stroke: a meta-analysis of observational studies. J Card Fail. 2014; 20(12):931–8. O diagnóstico de DC pode ser estabelecido após ocorrência de AVC em cerca de 40% dos pacientes. Classicamente, a causa de AVC-DC era considerada cardioembólica, com trombo intracardíaco resultante de função ventricular deficiente e arritmia atrial. Os fatores de risco para AVC-DC incluem aneurisma apical, trombo de ventrículo esquerdo (VE), dilatação atrial importante, disfunção sistólica de VE, idade avançada e arritmia atrial55. Nunes MC, Kreuser LJ, Ribeiro AL, Sousa GR, Costa HS, Botoni FA, et al. Prevalence and risk factors of embolic cerebrovascular events associated with Chagas heart disease. Glob Heart. 2015; 10(3):151–7. . Embora seja verdade que a maioria dos AVC-DC é tromboembólica, outros tipos, incluindo a doença de pequenos vasos, entre outras (aterosclerose e AVC criptogênico), têm sido observadas.77. Carod-Artal FJ, Vargas AP, Horan TA, Nunes LG. Chagasic cardiomyopathy is independently associated with ischemic stroke in Chagas disease. Stroke. 2005;36(5):965-70. Hipóteses sobre os mecanismos desses AVCs não cardioembólicos incluem a presença de disfunção autonômica na maioria ou em todos os pacientes com CCC em estágios diversos.88. Py MO. Neurologic Manifestations of Chagas Disease. Curr Neurol Neurosci Rep. 2011;11(8):536-42. Com relação à disfunção autonômica, nosso grupo mostrou que pacientes com CCC, mesmo em estágios iniciais e sem disfunção cardíaca, apresentam sinais de um distúrbio do sistema nervoso parassimpático que se correlacionam significativamente com anormalidades da substância branca subcortical cerebral. Isso foi demonstrado por uma correlação inversa e significativa entre a variabilidade da frequência cardíaca reduzida (avaliada pelo teste de arritmia sinusal respiratória e a presença e o número de hiperintensidades da substância branca vistas em exames de ressonância magnética (RM) craniana. No total, 52% dos nossos pacientes apresentaram hiperintensidades na RM, em comparação com cerca de 13% na população geral. No entanto, não houve correlação com a hemodinâmica cerebral, que foi testada com Doppler transcraniano, incluindo a vasorreatividade avaliada pelo índice de apneia. Com base nesses resultados, sugerimos que um sistema parassimpático funcionando adequadamente proteja o cérebro contra hiperintensidades da substância branca. Especulamos que o desequilíbrio entre os sistemas simpático e parassimpático poderia promover instabilidade elétrica do coração, que poderia contribuir para o AVC-DC não cardioembólico.99. Py MO, Pedrosa RC, Silveira J, Medeiros A, André C. Neurological manifestations in Chagas disease without cardiac dysfunction: correlation between dysfunction of the parasympathetic nervous system and white matter lesions in the brain. J Neuroimaging 2009;19(4):332-6. Para responder se a disfunção parassimpática é um mediador das consequências neurológicas do CCC ou apenas um fator adjunto, realizamos outro estudo onde não foi encontrada correlação entre a presença de anticorpos circulantes funcionais séricos com atividade β-adrenérgica ou muscarínica e a função do sistema autônomo ou a presença de hiperintensidades da substância branca (observadas na ressonância magnética) em pacientes com CCC. Os anticorpos antirreceptores foram testados em corações isolados de coelhos. Concluímos que a disfunção autonômica é possivelmente um mediador das consequências neurológicas da CCC, aparentemente relacionadas com a promoção de arritmias atriais como epifenômenos de AVC.1010. Py MO, Maciel L, Pedrosa RC. The presence of antiautonomic membrane receptor antibodies do not correlate with brain lesions in Chagas’ disease. Arq Neuropsiquiatr.2009;67(3):633–8. Uma característica importante da CCC é o fato de que nem todos os pacientes com fatores de risco para AVC-DC não cardioembólico terão AVC. O complicado desenvolvimento e patologia da doença, juntamente com as complexidades do ciclo de vida do parasita e suas interações com o hospedeiro, dificultam identificar qual grupo de pacientes com CCC é suscetível ao AVC. Embora não haja prova absoluta de que a disfunção autonômica seja sinônimo de AVC-DC não cardioembólico, ou seja, interromper a disfunção autonômica para prevenir AVC-DC não cardioembólico, há um consenso de que a disfunção autonômica cardíaca é necessária para essa ocorrência.
Nesta edição, Freitas et al.,1111. Freitas EL, Sampaio E, Oliveira MMC, Oliveira LH, Guimarães MSS, Pinheiro JC, et al. Episódios de alta frequência atrial e sua associação com eventos isquêmicos cerebrais em pacientes chagásicos. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(6):1072-1079 apresentara um estudo para ajudar a compreender uma apresentação clínica importante na CCC, ou seja, o AVC. Eles chamam a atenção para o mecanismo arrítmico, particularmente a arritmia atrial. A justificativa é que não existe consenso sobre a contribuição dos episódios atriais de alta frequência nesse episódio. Para responder a essa pergunta, os autores realizaram um estudo longitudinal entre 2016 e 2017 para verificar a existência (ou não) de associação entre episódios atriais de alta frequência (EAAF) e AVE em pacientes com CCC crônica. Todos os 67 pacientes chagásicos tinham dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis (DCEIs) (92,5%, marcapassos e 7,5%, cardioversores-desfibriladores implantáveis) para monitorar a atividade atrial. EAAF foi considerado como frequência atrial ≥190 batimentos por minuto e duração ≥6 minutos e os eventos isquêmicos cerebrais foram identificados por exames de tomografia computadorizada (TC) craniana. Os resultados foram resumidos e analisados nos grupos com e sem episódios atriais de alta frequência.
Idade média de 63,6±9,2 anos, acompanhamento de 98±28,8 dias; e 11,9% dos pacientes tinham EAAFs ≥6 min. A TC mostrou eventos isquêmicos cerebrais silenciosos em 16,4% dos pacientes, 63,6% dos quais tinham EAAFs ≥6 min na análise dos DCEIs. Idade avançada [OR 1,12 (IC 95% 1,03–1,21; p<0.009)] e a presença de EAAFs ≥6 minutos [OR 96,2 (IC 95% 9,4–987,4; p<0,001)] foram preditores independentes para eventos isquêmicos. Eles concluíram que os EAAFs detectados pelos DCEIs estavam associados à presença de eventos isquêmicos cerebrais silenciosos em pacientes chagásicos.
A interpretação desses resultados deve levar em consideração o pequeno número de pacientes previamente mencionado pelos autores, fatores de confusão não controlados e a incerteza introduzida pelo grande intervalo de confiança de 95% observado nos pacientes com EAAFs ≥6 minutos. Diferentes estágios de CCC foram possivelmente utilizados, pois há um amplo espectro de manifestações clínicas e patológicas nos pacientes com CCC levando a diferentes perfis de pacientes incluídos nos grupos.1212. Benziger CP, do Carmo GAL, Ribeiro ALP. Chagas Cardiomyopathy: Clinical Presentation and Management in the Americas. Cardiol Clin. 2017;35(1):31-47. Possivelmente, o estudo se refere a AVC-DC não cardioembólico, uma vez que a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) e o diâmetro atrial (DA) esquerdo eram normais (apenas 27,3% DA≥40 mm) e não contém nenhuma informação sobre a existência de trombo intracardíaco e aneurisma apical. Uma questão importante é que o nível de AVC-DC não cardioembólico relatado foi muito alto para um acompanhamento médio de apenas 3 meses. Não temos conhecimento de nenhum estudo ou registro que mostre uma incidência tão elevada em pacientes com CCC de idade e características clínicas semelhantes.44. Sousa AS, Xavier SS, Freitas GR, Hasslocher-Moreno A. Prevention strategies of cardioembolic ischemic stroke in Chagas’ disease. Arq Bras Cardiol. 2008;91(5):306–10. , 55. Nunes MC, Kreuser LJ, Ribeiro AL, Sousa GR, Costa HS, Botoni FA, et al. Prevalence and risk factors of embolic cerebrovascular events associated with Chagas heart disease. Glob Heart. 2015; 10(3):151–7. Outra questão importante é a aplicabilidade clínica do estudo, uma vez que seu principal resultado não altera a tomada de decisão em pacientes com CCC. Não há evidências de que os pacientes com AVC-DC não embólico devam ser submetidos a uma investigação diagnóstica diferente de outros pacientes com AVC e agentes antiplaquetários para AVC-DC não cardioembólico. Faltam dados concretos sobre tratamentos eficazes neste subgrupo bastante grande de pacientes. No entanto, é importante entender por que esses pacientes sem disfunção sistólica do ventrículo esquerdo evidente (FEVE 58,5±14,1) pareciam ter aumento da incidência de AVC-DC não embólico. Uma possível explicação é a presença de disfunção autonômica observada em pacientes com CCC não dilatada, que está relacionada à redução dos índices de variabilidade cardíaca vagal. A disfunção cardíaca vagal pode ocorrer mesmo em pacientes com CCC nos estágios iniciais, mas piora à medida que a função ventricular esquerda se deteriora com a progressão da doença1313. (Cunha AB, Cunha DM, Pedrosa RC, Flammini F, Silva AJ, Saad EA et al. Norepinephrine and heart rate variability: a marker of dysautonomia in chronic Chagas cardiopathy. Rev Port Cardiol. 2003; 22: 29-52. , 1414. Landesmann MC, da Fonseca LM, de B Pereira B, do Nascimento EM, Rosado-de-Castro PH, de Souza SA et al. Iodine-123 metaiodobenzylguanidine cardiac imaging as a method to detect early sympathetic neuronal dysfunction in chagasic patients with normal or borderline electrocardiogram and preserved ventricular function Clin Nucl Med. 2011;36(9):757-61. e um sistema parassimpático funcionando adequadamente para proteger o cérebro contra AVC-DC não cardioembólico.
Embora diversos aspectos do AVC-DC não embólico na CCC tenham sido elucidados nas últimas décadas, importantes questões permanecem sem solução quanto aos seus mecanismos. Embora alguns estudos na área pré-clínica tenham documentado o papel dos distúrbios da modulação autonômica no AVC-DC não cardioembólico, trata-se ainda de hipóteses preliminares e os aspectos translacionais desses estudos não foram totalmente alcançados. Um melhor entendimento da função da modulação autonômica na gravidade clínica do AVC-DC não embólico na CCC é uma área importante de pesquisa para estudos futuros.
Referências
-
1Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverría LE et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018;138:e169-209.
-
2Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, Ribeiro ALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burden of Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018;12(6): e0006559
-
3Carod-Artal FJ, Vargas AP, Melo M. American trypanosomiasis (Chagas’ disease): an unrecognized cause of stroke. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2003; 74:516-8.
-
4Sousa AS, Xavier SS, Freitas GR, Hasslocher-Moreno A. Prevention strategies of cardioembolic ischemic stroke in Chagas’ disease. Arq Bras Cardiol. 2008;91(5):306–10.
-
5Nunes MC, Kreuser LJ, Ribeiro AL, Sousa GR, Costa HS, Botoni FA, et al. Prevalence and risk factors of embolic cerebrovascular events associated with Chagas heart disease. Glob Heart. 2015; 10(3):151–7.
-
6Cardoso RN, Macedo FY, Garcia MN, Garcia DC, Benjo AM, Aguilar D, et al. Chagas cardiomyopathy is associated with higher incidence of stroke: a meta-analysis of observational studies. J Card Fail. 2014; 20(12):931–8.
-
7Carod-Artal FJ, Vargas AP, Horan TA, Nunes LG. Chagasic cardiomyopathy is independently associated with ischemic stroke in Chagas disease. Stroke. 2005;36(5):965-70.
-
8Py MO. Neurologic Manifestations of Chagas Disease. Curr Neurol Neurosci Rep. 2011;11(8):536-42.
-
9Py MO, Pedrosa RC, Silveira J, Medeiros A, André C. Neurological manifestations in Chagas disease without cardiac dysfunction: correlation between dysfunction of the parasympathetic nervous system and white matter lesions in the brain. J Neuroimaging 2009;19(4):332-6.
-
10Py MO, Maciel L, Pedrosa RC. The presence of antiautonomic membrane receptor antibodies do not correlate with brain lesions in Chagas’ disease. Arq Neuropsiquiatr.2009;67(3):633–8.
-
11Freitas EL, Sampaio E, Oliveira MMC, Oliveira LH, Guimarães MSS, Pinheiro JC, et al. Episódios de alta frequência atrial e sua associação com eventos isquêmicos cerebrais em pacientes chagásicos. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(6):1072-1079
-
12Benziger CP, do Carmo GAL, Ribeiro ALP. Chagas Cardiomyopathy: Clinical Presentation and Management in the Americas. Cardiol Clin. 2017;35(1):31-47.
-
13(Cunha AB, Cunha DM, Pedrosa RC, Flammini F, Silva AJ, Saad EA et al. Norepinephrine and heart rate variability: a marker of dysautonomia in chronic Chagas cardiopathy. Rev Port Cardiol. 2003; 22: 29-52.
-
14Landesmann MC, da Fonseca LM, de B Pereira B, do Nascimento EM, Rosado-de-Castro PH, de Souza SA et al. Iodine-123 metaiodobenzylguanidine cardiac imaging as a method to detect early sympathetic neuronal dysfunction in chagasic patients with normal or borderline electrocardiogram and preserved ventricular function Clin Nucl Med. 2011;36(9):757-61.
-
Minieditorial referente ao artigo: Episódios de Alta Frequência Atrial e sua Associação com Eventos Isquêmicos Cerebrais em Pacientes Chagásicos
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jan 2021 -
Data do Fascículo
Dez 2020