Palavras-chave Miocardite; Infecção Mista; Dengue; Virus Cikunnya
Introdução
O vírus da dengue (DENV) e o vírus da Chikungunya (CHIKV) são arbovírus que causam epidemias contínuas em vários países da América Latina. O DENV pertence à família Flaviviridae e CHIKV é um alphavirus da família Togaviridae. Ambos os vírus são transmitidos por mosquitos do gênero Aedes (principalmente Aedes aegypti e Aedes albopictus) e, durante a fase aguda, podem causar síndromes febris inespecíficas semelhantes, que podem evoluir para quadros graves ou debilitantes.1,2
A infecção por DENV é endêmica no Brasil desde os anos 80. No entanto, o CHIKV é um agente emergente. A transmissão autóctone foi detectada pela primeira vez em setembro de 2014 na cidade de Oiapoque, no estado do Amapá. Desde então, houve milhares de casos autóctones no país.3 Um total de 38.499 e 277.882 casos de suspeita de infecção por CHIKV foram relatados no sistema nacional de vigilância em 2015 e 2016, respectivamente. Em 2017, foram notificados 185.369 casos suspeitos até 9 de dezembro. O estado do Ceará (1.271 casos/100.000 habitantes) e o estado de Roraima (789 casos/100.000 habitantes) têm a maior incidência entre os estados da Federação Brasileira.4 Coinfecções com esses dois vírus têm sido relatadas e o efeito global no coração ainda é desconhecido.5-7 Existem alguns relatos de miopericardite após infecção por DENV e CHIKV, mas essa manifestação em pacientes coinfectados é rara, sendo poucos os dados disponíveis.8-10
O objetivo deste relato é apresentar o caso de um jovem imunocompetente com miocardite após uma recente coinfecção por DENV e CHIKV. Discutimos o curso clínico e as anormalidades laboratoriais dessa condição rara, juntamente com o seu manejo bem-sucedido em um centro especializado em doenças infecciosas, destacando a importância de estar ciente dessa condição em países em desenvolvimento endêmicos para DENV e CHIKV.
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, 28 anos, residente em Fortaleza, Ceará, internado no pronto-socorro do Hospital São José de Doenças Infecciosas em maio de 2017. Os sintomas começaram 5 dias antes da internação, com febre, adinamia, mialgia e agravamento do estado geral. Ele negou ter dor retro-orbital, fenômenos hemorrágicos ou dor abdominal. O paciente não havia tomado medicamentos no último ano e não havia viajado para fora do Brasil. Não havia histórico prévio de cardiopatias.
No exame inicial, o escore na Escala de Coma de Glasgow (GCS) do paciente foi E4 V5 M6. Ele apresentava uma frequência cardíaca de 120 batimentos por minuto e tinha hipotensão (70/40 mm de Hg). Não havia sopro cardíaco ou atrito pericárdico, e o exame pulmonar não mostrou alterações. A pele não apresentava erupções e não havia petéquias ou icterícia.
O eletrocardiograma (ECG) mostrou taquicardia supraventricular (230 bpm) não responsiva à adenosina endovenosa. Uma cardioversão elétrica foi realizada, restaurando com sucesso o ritmo cardíaco normal. Um novo ECG foi realizado mostrando elevação do segmento ST com concavidade superior e depressão do segmento PR em DII, DIII e aVF, bem como depressão do segmento ST em V1 e aVR. Em seguida o paciente foi internado em uma unidade de terapia intensiva. Seus parâmetros laboratoriais são descritos na Tabela 1. Um primeiro ecocardiograma transtorácico revelou uma fração de ejeção (FE) do ventrículo esquerdo alterada (43%), hipercontratilidade ventricular esquerda e derrame pericárdico e pleural bilateral leve (Figura 1). Após 5 dias, foi realizado novo ecocardiograma, revelando FE de 36,4%, hipocinesia difusa e derrame pericárdico moderado.
Resultados laboratoriais durante a internação de um paciente com miocardite e coinfecção com o vírus da dengue e vírus Chikungunya
Ecocardiograma transtorácico com fração de ejeção do ventrículo esquerdo alterada (36,39%), hipercontratilidade ventricular esquerda e derrame pericárdico bilateral discreto (A-D). As imagens E-H mostram um segundo ecocardiograma transtorácico com fração de ejeção de 70%. DP e LP: derrame pericárdico. VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo; FE: fração de ejeção.
A administração IV de Dobutamina (2,9 mcg/Kg/min) foi iniciada e mantida por 4 dias, junto com uma dose única IV de 400 mg de hidrocortisona. Tratamentos com imunoglobulina IV ou colchicina não foram considerados. Hemoculturas pareadas foram negativas para agentes piogênicos. Antibióticos não foram utilizados.
As sorologias para o vírus Coxsackie, rubéola, doença de Chagas, vírus da imunodeficiência humana, citomegalovírus, vírus de Epstein-Barr (EBV), toxoplasmose, vírus da hepatite B e vírus da hepatite C foram negativas. As amostras de soro do paciente foram testadas e os resultados foram ELISA-IgM positivo e ELISA-IgG positivo para DENV e ELISA-IgM positivo para CHIKV. O teste do antígeno DENV NS1 apresentou resultado negativo. Houve uma boa resposta à terapia e o paciente evoluiu com melhora gradual até recuperação da função ventricular. Após 11 dias, um último ecocardiograma mostrou FE de 70% e persistência de derrame pericárdico. O paciente recebeu alta do hospital 11 dias após a hospitalização. A Tabela 1 mostra os resultados laboratoriais durante a internação hospitalar.
Discussão
As manifestações clínicas típicas da infecção aguda por CHIKV são febre, dor de cabeça, poliartralgia/poliartrite, mialgia, erupção cutânea e fadiga.11 Manifestações atípicas também têm sido descritas afetando os sistemas cardiovascular, nervoso, ocular, cutâneo e outros.6,12-14 O espectro clínico da doença cardíaca causada pelo vírus Chikungunya varia de alterações eletrocardiográficas assintomáticas a complicações cardíacas potencialmente letais.6
As manifestações da infecção aguda pelo DENV são muito semelhantes às da CHIKV, com menor prevalência de manifestações articulares.15 O envolvimento do coração na infecção por DENV não é incomum. As manifestações cardíacas podem variar muito, desde doença silenciosa até miocardite grave, resultando em morte.7 Arora et al.,16 estudando 120 pacientes com DENV, encontraram 37,5% dos indivíduos com manifestação cardíaca na forma de miocardite e 5% com distúrbio do ritmo cardíaco, sendo o bloqueio AV a manifestação mais comum.16
O diagnóstico viral específico é comumente feito através do teste ELISA, um teste sorológico específico.11,15 Nos casos de DENV, a secreção da proteína não-estrutural NS1 das células infectadas torna o diagnóstico precoce possível. A proteína NS1 pode ser detectada em amostras de sangue e tecidos no período de 9 dias após o início da febre.15
Há uma baixa probabilidade de o paciente apresentar uma infecção viral isolada, já que ambos os vírus fazem parte de diferentes famílias virais, assim reduzindo consideravelmente a probabilidade de reação cruzada. Kam et al.,17 descobriram que 6% dos pacientes infectados com DENV apresentavam anticorpos que eram reativos de forma cruzada com o CHIKV.17 Embora compartilhem o mesmo vetor, o CHIKV faz parte da família Togaviridae, enquanto o DENV faz parte da família Flaviviridae.
A doença cardíaca associada a arbovírus não possui tratamento específico, e pode ser uma condição autolimitada. Portanto, a terapia de suporte rápido para evitar perda adicional da função cardíaca e choque cardiogênico ainda é o tratamento mais recomendado.6 Há também evidências de que a hidrocortisona IV pode ser útil para obter a recuperação total da miocardite por DENV,18 mas ainda não há consenso sobre se esse fármaco deve ser utilizado nesse cenário ou se ele tem um impacto real nas taxas de recuperação e mortalidade, ainda mais nos casos de infecção combinada por arbovírus. Embora a miocardite por arbovírus seja uma condição aguda, a maioria dos pacientes permanecem com doença cardíaca crônica, como insuficiência cardíaca crônica e alterações da onda T no ECG.16,19 O papel da coinfecção na gravidade das manifestações cardíacas do arbovírus não é conhecido atualmente, mas estudos sobre outros sintomas mostraram que isso pode contribuir para uma doença mais grave.6,7,20 Também é relevante notar que a miocardite descrita aqui pode ter sido causada apenas pelo CHIKV, uma vez que o teste da proteína NS1 apresentou resultado negativo. Também é importante notar que o IgM do DENV pode ser positivo por 139 até 179 dias, respectivamente, para infecções secundárias e primárias.21
O presente estudo tem limitações. A Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) não estava disponível para o diagnóstico etiológico. O grau de comprometimento miocárdico não foi avaliado por ressonância magnética (RM). Embora relatada por outros autores,8,9 a RM não estava disponível em nosso centro.
Conclusão
O caso aqui apresentado sugere que a coinfecção por DENV e CHIKV pode resultar em miocardite, que pode ser grave e possivelmente revertida com terapia de suporte e manejo correto da função cardíaca. No entanto, a etiopatogenia correta do distúrbio cardíaco é indefinida, e a doença pode ser causada exclusivamente pelo vírus DENV ou CHIKV. É importante estar ciente dessa possível complicação dos arbovírus, principalmente em áreas endêmicas.
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Fontes de financiamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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Vinculação acadêmicaNão há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
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Aprovação ética e consentimento informadoEste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital de São José de Doenças Infecciosas sob o número de protocolo 2.405.527. Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2019 -
Data do Fascículo
Out 2019
Histórico
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Recebido
30 Jun 2018 -
Revisado
06 Out 2018 -
Aceito
17 Out 2018