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Dimensões do amor

RESENHAS

Dimensões do amor

Julia Cristina Tosto Leite

Psicanalista; mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo IP/Uerj. Associada ao Corpo Freudiano do Rio de Janeiro — Escola de Psicanálise; julia.leite@ig.com.br

A teoria do amor. Nadiá Paulo Ferreira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, 71 p. (Coleção Psicanálise Passo a Passo, v.38)

A proposta de Nadiá Ferreira é apresentar as concepções do amor na obra de Freud e no ensino de Lacan. Psicanalista e pesquisadora dedicada ao tema, a autora realiza um abrangente mapeamento dos principais eixos e desdobramentos de uma discussão que se impõe desde a aurora da psicanálise: a construção do conceito de transferência, um dos pilares da definição do novo campo, é derivada do reconhecimento precoce, por Freud, da "estranha relação de amor", surgida na cena analítica e tomada como um elemento ao mesmo tempo perturbador e motor de cura. Em vez de recuar, Freud assume a posição firme de aprender com o inesperado fenômeno do amor. Seu percurso teórico articula-se, naturalmente, com os conceitos centrais da psicanálise, particularmente a sexualidade, e culmina na formulação da dualidade Eros e pulsão de morte, mudança cujas conseqüências éticas Lacan irá destacar.

Como ponto de partida, a autora analisa o lugar ocupado pelo amor no discurso dos amantes e na poesia. Ao sublinhar a força do mito do amor, força esta sustentada pela promessa de felicidade plena nas chamadas "histórias de amor", aponta também a estratégia desse mito: manter essa promessa de felicidade, afastando o impossível, uma das denominações do real para Lacan, ou transformando-o em proibido. Freud já observara que o amor tende a funcionar como modelo de busca da felicidade e reconhecera sua natureza ilusória no sentido de consolar e tornar tolerável o mal-estar próprio do desejo humano.

Como delinear as diferenças e articulações entre o amor e o desejo sexual, termos de uso comum que, na psicanálise, ganham contornos originais? Recorrendo ao texto freudiano e ao ensino de Lacan, Nadiá nos leva a considerar como tal questão se revela fundamental à definição da especificidade do campo da psicanálise. Fazendo sobressair o tema do amor, percorre, habilmente, as elaborações destes autores, de seu nascimento às suas reformulações, destacando o vigor conceitual ali contido. Sua indicação central é de que o lugar do amor deve ser situado a partir do encontro sempre faltoso do sujeito com a sexualidade, conforme Lacan o formula, avançando na direção apontada por Freud. Eis o mote de três articulações iniciais que contextualizam o pensamento de Freud e Lacan sobre o amor, além de introduzir a perspectiva ética da psicanálise.

Em sua primeira articulação — a relação entre amor e castração —, podemos situar o "problema do amor". A esperança de completude, facilmente reconhecível quando se trata deste sentimento, tem como fundamento uma perda original, colocada por Freud em termos de objeto perdido de uma satisfação primeira e origem de um profundo e permanente anseio por seu retorno, o qual recebe o nome de 'desejo'. Freud situa a busca amorosa (ou escolha de objeto) em uma perspectiva distinta, mas não independente da sexualidade, uma vez que apoiada nos laços com os primeiros objetos. Tomando o conceito de objeto pulsional em sua radicalidade, Lacan define-o como faltoso. Ou seja, a falta de objeto seria uma condição primordial, marca da entrada do sujeito no mundo simbólico, da linguagem. O amor seria, então, uma tentativa de fazer desaparecer a falta original do desejo. A situação paradoxal do amor, no entanto, também é reconhecida por Freud e por Lacan: se o encontro amoroso proporciona, por um lado, um certo apaziguamento ao alimentar a ilusão da completude perdida, por outro lado, implica sempre um efeito de logro, pois basta amar para que o sujeito se reencontre com essa hiância estrutural, como diz Lacan, na medida em que o que falta ao sujeito (amante), o objeto (amado) também não tem.

A diferença entre amor e sexo é a segunda articulação da autora. Para Freud, o termo 'amor' é reservado para o movimento do eu na direção do objeto para além da relação de puro prazer. Ou seja, ainda que portando a marca do pulsional (sexual), o amor a ultrapassa. Lacan dirá que, quando se trata do amor, o que está em jogo é a suposição de um ser no outro. Iludido pelo significante (que sugere que haja ser), o sujeito busca, com o amor, fazer signo, suspendendo, ainda que provisoriamente, o deslizamento infinito do desejo.

Finalmente, a autora chama a atenção para a relação entre amor e gozo, o segundo apontando, para Lacan, a ordem do excesso, para além do prazer. Aqui, o sofrimento, embora relativamente comum no campo do amor, particularmente em sua vertente de paixão, revela uma possibilidade de enlace com o gozo e, portanto, de manifestar sua face mortífera, pois o prazer não mais o limita.

Colocadas as balizas iniciais, Nadiá defende que, para Freud, o amor está ligado mais à idealização, enquanto para Lacan, à sublimação. Na obra freudiana, o amor é, a princípio, situado do lado da pulsão sexual, enraizando-se no narcisismo primário. Ou seja, amor e sexo compartilham, em sua constituição, o prazer parcial ligado, de início, à boca. Amar como sinônimo de devorar seria, então, a primeira configuração do amor. Além disso, o amor seria independente do ódio (forma mais primitiva de relação com o objeto), opondo-se a este apenas sob a regência do princípio de prazer. Mais tarde, com a introdução do conceito de narcisismo, implicando em que o eu é também objeto da pulsão sexual, Freud distingue duas formas de amar, mas não se descuida de discutir os destinos pulsionais. A escolha amorosa seria marcada, então, pela divisão da libido entre o eu e o objeto, implicando uma supervalorização do eu ou do objeto e sendo denominada, respectivamente, narcisista e anaclítica (mais tarde, ligada à identificação e à idealização). O amor, modelado pelas primeiras experiências, e as pulsões sexuais, com seus pontos de fixação, são considerados dois campos distintos, ambos funcionando como se o tempo houvesse parado. É, especialmente, em sua vertente de idealização, na qual o objeto é tomado como fonte de todo bem, que Freud destaca a tendência a uma relação de submissão neurótica a este. Há uma preciosa indicação da autora sobre a aproximação, realizada por Freud, entre o amor e os destinos da pulsão sexual, que devemos destacar. Não obstante a distinção estrutural, os dois campos mantêm pontos de conexão, que podem ser entrevistos na ampliação da oposição amor e ódio (que passa a incluir a indiferença e o ser amado). Finalmente, com a formulação da pulsão de morte, Freud volta a reunir amor e sexo sob a denominação de Eros, agora tomado em seu poder de oposição frente à morte.

As contribuições de Lacan sobre o tema do amor atravessam seu ensino, avançando em caminhos abertos por Freud. Também ele se deixa instigar por Eros, usando a expressão "teoria do amor" para afirmar seu interesse na formulação de sua estrutura. Ressaltando a dificuldade de se dizer, sobre o amor, algo que se sustente, Lacan circunscreve uma primeira distinção fundamental: o amor como paixão imaginária e o amor em sua face simbólica. O amor-paixão se dirige ao outro como objeto, buscando complementaridade e revelando sua raiz narcísica, já indicada por Freud. Ou seja, o sujeito ama para ser amado. Acrescenta que a paixão (além do amor, o ódio e a ignorância) é, justamente, a alienação do desejo no objeto. Em sua face simbólica, diferentemente, o eixo do amor é situado, não no objeto, mas naquilo que o objeto não tem. Como dom ativo, o amor visa o ser, para além da captura imaginária, sustentando-se e equivocando-se na trama significante. O que Lacan sublinha é, sobretudo, a falta de harmonia fundamental entre sujeito e objeto. Como a linguagem, o amor, em sua vertente simbólica, revela um esforço, sempre precário, de fazer frente ao real da falta.

Lacan destacará, também, do amor como recusa do dom, articulando-o com a pulsão de morte e com a sublimação, pois, em seu centro, habita o vazio e não o objeto. O amor cortês é um entre os exemplos trabalhados pela autora para explicitar os meandros desta modalidade de amor, que se apóia na renúncia ao objeto. A elaboração teórica encaminhada por Lacan tem como um de seus pontos fundamentais as diferentes posições subjetivas diante do objeto amoroso e dupla possibilidade do amor de manter ou apagar a falta viva do desejo.

A relação entre amor e saber, na transferência, constitui um importante desdobramento realizado por Lacan: o amor de transferência, em sua essência amor-paixão, seria acompanhado da ignorância, paixão sustentada, simultaneamente, por um "não-querer-saber" e pela suposição de um saber no analista. Se, na entrada em análise, o analisando ama para ser amado, em seu desfecho entraria em jogo a "metáfora do amor": uma transformação do amado em amante como sujeito da falta, sujeito desejante.

Efeito da estruturação do desejo, invenção humana paradoxal, o amor é, também, um tema caro à delimitação ética do campo da psicanálise, realizada por Lacan, mas germinada por Freud. Retomando, de forma cuidadosa, as contribuições destes autores, o texto de Nadiá cumpre seu destino na transmissão da psicanálise, partilhando com o leitor caminhos possíveis de discussão que se abrem à possibilidade de novas articulações.

Recebido em 1/12/2004

Aprovado em 12/1/2005

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Jan 2005
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