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Na exclusão social, palavras que alimentam e incluem o sujeito 1 1 Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro (Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior - PDSE) na realização desta pesquisa.

RESUMO:

Os “meninos de rua” buscam no espaço público uma “saída” para a violência, o abandono, as rupturas, a complexa situação de vulnerabilidade social. Em meio ao sofrimento psíquico, ao dilaceramento, ao imperativo de sobrevivência, destacamos o apelo e a procura do sujeito por um lugar de endereçamento. Partimos de uma experiência com crianças e adolescentes em situação de rua (Olinda/PE - Brasil) e, baseando-nos no aporte teórico da psicanálise freud-lacaniana, indagamos acerca da demanda endereçada à instituição que, ao alimentá-los com palavras, cumpre o papel do Outro - tesouro de significantes -, dá-lhes consistência simbólica, fazendo um furo no Real da rua.

Palavras-chave:
meninos de rua; endereçamento; palavra; instituição; Psicanálise.

ABSTRACT:

"Street kids" seek, in public space, a "way out" for violence, abandonment, ruptures, and complex situations of social vulnerability. In the midst of psychological distress, laceration, as well as the imperative of survival, the appeal and search of the subject for a place of addressing is herein highlighted. Based upon an experience with children and adolescents living on the streets (Olinda - Brazil) and founded on the theoretical contribution provided by Freudian and Lacanian psychoanalysis, questions are raised about the demand addressed to the institution, which, by feeding them with words, plays the role of the Other - treasure of signifiers - giving them symbolic consistency, making a hole in the Real of the street.

Keywords:
"Street kids"; addressing; word; institution; Psychoanalysis.

{...} a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão, e perece por palavras. Como diz o Evangelho, o homem não perece apenas pelo que entra na sua boca, mas também pelo que dela sai. (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, J. A relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. (O seminário, 4)., p. 192)

Pedro, 12 anos, em seu primeiro dia na instituição, encontra-se sob condições precárias de higiene e sob efeito de cola. Chega na hora do almoço e, enquanto espera que seja servido o alimento, integra-se a um grupo que escuta a psicóloga contar a história de Peter Pan. Escuta atentamente, sorri com comentários de adolescentes que dizem querer ser como Peter Pan, para sempre criança. A história é interrompida quando a merendeira anuncia o almoço, dispersando o grupo, que sai em disparada. Pedro, entretanto, curva a cabeça no meu ombro e diz: “Espera um pouco, eu quero ouvir o resto da história”.

A que “resto da história” ele se refere? Pedro tem fome de quê? Apesar da necessidade do alimento, condição necessária à sobrevivência do organismo, naquele momento uma demanda ultrapassa a necessidade, que, geralmente, apresenta-se como mais urgente e imperativa para crianças e adolescentes em situação de rua. Todavia, a fala de Pedro aponta para uma demanda por palavras que, a nosso ver, alimentam-no e inscrevem-no.

De acordo com Lacan (1957-1958/1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1999. (O seminário, 5)., p. 91), a demanda constitui-se como “{...} aquilo que, a partir de uma necessidade, passa por meio do significante dirigido ao Outro”. Indagar sobre esse endereçamento implica falar em lugares distintos, de modo que sua possibilidade ou inviabilidade depende do lugar de onde se chega, bem como da posição daquele a quem se endereça. No que discorre acerca do lugar do sujeito, Lacan (1998a)LACAN, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998a. recorre a Daniel Lagache para o qual “{...} antes de existir em si, por si e para si, a criança existe para e por outrem; já é um polo de expectativas, projetos e atributos”; e acrescenta: “Um polo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento (e talvez seja sob o acúmulo destes que irá claramente sufocar)” (LACAN, 1998aLACAN, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998a., p. 659).

Com o objetivo de apreender o pedido de Pedro - e, nele, a demanda de crianças e adolescentes em situação de rua à instituição -, consideramos relevante demarcar de que instituição se trata, assim como situar essas crianças e esses adolescentes em meio à violência e à exclusão social. Recorreremos, com vistas ao objetivo proposto, a formulações sobre a instituição da cultura e o pacto social, no intuito de entrever o lugar dos “meninos de rua”, visto ser a partir desse lugar que se endereçam à instituição. Articularemos, em seguida, com a leitura psicanalítica acerca da demanda e da constituição subjetiva, apontando a instituição como um espaço que, ao “alimentar” também com palavras, acolhe e legitima o sujeito.

Ao falarmos em instituição, referimo-nos a um programa do município de Olinda, que visa à reinserção familiar, escolar e comunitária. Para além da estrutura física que o termo comporta, pensamo-lo em seu sentido mais amplo, uma vez que, além de ser perpassada por processos heterogêneos (sociais, políticos, culturais, econômicos, psíquicos), a instituição permite a elaboração de um espaço psíquico diferenciado (KAES, 2002KAES, R. O interesse da psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: CORREA, O. B. R. (org.). Vínculos e instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta, 2002., p. 20), que assegura as bases da identificação do sujeito com o conjunto social. O autor sublinha a função continente da instituição (espaço em que prevalecem as dimensões arcaicas), face à necessidade de se encontrar em seu espaço-tempo um lugar no qual as angústias e os conflitos psíquicos possam ser atualizados e significados.

É a partir dessa referência que pensamos o atendimento clínico-institucional a crianças e adolescentes em situação de rua, um público que escancara uma realidade marcada por situações de violência, carência afetiva, rupturas, abandono e outras, pelo desnudamento que a vida na rua impõe. Em meio a um intenso sofrimento psíquico, à irreverência e à destreza com que enfrentam variadas situações, os “meninos de rua” desvelam uma complexa situação de exclusão social e buscam na rua uma “saída para poderem existir” (CAMPOLINA, 2001CAMPOLINA, A. D. Prefácio. In: FERREIRA, T. Os meninos e a rua: uma interpelação à psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 13).

Tal saída, na história de Pedro, parece constituir uma resposta contra a violência de ter presenciado seu atual padrasto assassinar seu pai; uma violência atualizada a cada vez que o padrasto espancava sua mãe e seus irmãos. Parece-nos ser desse lugar que Pedro pede para ouvir o “resto da história” e é, igualmente, desse lugar que crianças e adolescentes chegam à instituição, nela depositando conteúdos de intensa destrutividade. Um movimento que, muitas vezes, convoca-a a atuar juntamente com eles, a reproduzir elementos vividos outrora, a retificar ou mesmo ratificar o significante que neles imprime a marca “menino de rua”, permitindo-nos uma articulação fecunda com o conto de Edgar Poe, A carta roubada.

“Uma carta, uma letra, um lixo”

O conto gira em torno de uma carta - cujo conteúdo, embora desconhecido, é bastante comprometedor - roubada da rainha pelo ministro na frente do rei, que nada vê a respeito. Apesar de técnicas refinadas de investigação, a polícia não a encontra. O inspetor convoca, então, o investigador Dupin, que encontra a carta, exposta, num local facilmente visível - no entanto e talvez por isso improvável.

Para Lacan (1954-1955/1985LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1985. (O seminário, 2)., p. 255), o rei e a polícia não veem a carta - apesar do lugar óbvio em que se encontra - porque a tomam por um objeto da realidade, ao passo que, para além do Real, o que se esconde é da ordem do Simbólico. “Para os policiais, a verdade não tem importância, para eles só existe realidade, e é por esta razão que eles não a encontram” (LACAN, 1954-1955/1985LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1985. (O seminário, 2)., p. 254). Já Dupin, considera o autor, por ter refletido sobre o símbolo e a verdade, consegue ver o que tem para se ver.

Parece-nos ser desse lugar - o da carta roubada - que crianças e adolescentes em situação de rua circulam pelos espaços em busca de um espaço possível de endereçamento. Ocultados na dimensão de sujeitos, são vistos apenas no que no Real se apresenta: “meninos de rua”, objetos de uma realidade crua, posto que a letra “tem em suma por destino ser tomada ao pé da letra” (KAUFMANN, 1996KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.).

A carta, para Lacan (1998bLACAN, J. O Seminário sobre ‘A carta roubada’. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998b., p. 33), é “o verdadeiro sujeito do conto”, em torno do qual os demais personagens são definidos em meio aos papéis e às posições diversas que assumem, diante desse significante puro que é a carta/letra, “{...} a partir da relação que a aspiração do sujeito real pela necessidade do encadeamento simbólico determina” (LACAN, 1954-1955/1985LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1985. (O seminário, 2)., p. 247). Através do conto, o autor enfatiza a “supremacia do significante no sujeito”, referindo-se ao duplo sentido que la lettre permite - a carta, a letra. No inglês, faz um trocadilho, deslizando de a letter para a litter, “uma carta, uma letra, um lixo” (LACAN, 1998bLACAN, J. O Seminário sobre ‘A carta roubada’. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998b., p. 28).

A letra é a precipitação do significante. Kaufmann (1996KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996., p. 285) destaca que, enquanto o significante se situa do lado do simbólico, inaugurando a cadeia significante, a letra, por sua vez, encontra-se do lado do real. Apesar de situada no real, a elisão de uma letra, diz-nos Hiltenbrand (2004HILTENBRAND, J. P. Letra simbólica, letra real? In: MELMAN, C. M. e outros. O significante, a letra e o objeto. Rio de Janeiro: Companhia de Freud , 2004., p. 78), “{...} só pode se realizar numa cadeia significante já constituída. É uma letra que se acha excluída de um discurso estabelecido”. Não há, pois, primariedade da letra, posto que, no início, há o discurso do Outro.

Dentro da mesma ótica, Bergès e Balbo (2004BERGÈS, J.; BALBO, G. A letra e o significante. In: MELMAN, C. e outros. O significante, a letra e o objeto. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 59) consideram que a letra, da ordem do irrepresentável, é o que caiu do discurso da mãe. Em algumas situações, um discurso sem afeto pode fazer obstáculo à inscrição significante de um corpo simbólico. Nesses casos, a criança cai do corpo da mãe como de seu discurso, o que acarreta uma identificação a um discurso frio, estando em questão “um corpo de palavras, de representantes de palavras, sem carne: puro corpo de linguagem” (BERGÈS; BALBO, 2002BERGÈS, J.; BALBO, G. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC Editora, 2002., p. 89). É nesse sentido que apreendemos falas enunciadas no âmbito familiar - “esse menino não presta”, “esse menino não tem jeito”, “é tudo farinha do mesmo saco”, “ele é ruim desde que se entende por gente”, “filho do demônio” -, bem como expressões utilizadas no meio público - “menino de rua”, “trombadinha”, “cheira cola”, “delinquente” -, as quais fazem a função de uma fala destituída de afeto que encerra o “menino de rua” num lugar estático, uma “fixidez da cadeia significante” (LAZNIK, 1989LAZNIK-PENOT, M. C. Seria a criança psicótica ‘carta roubada’? In: SOUZA, A. M. Psicanálise de crianças. Volume 1 - Interrogações clínico-teóricas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989., p. 54), aprisionando-o à violência do Outro, à posição de “assujeito” face ao laço social que o exclui.

Consideramos, desse modo, o movimento de crianças e adolescentes em situação de rua como uma tentativa de convocar o outro a atualizar falas, a significá-las, possibilitando um deslocamento do campo do Real para o do Simbólico. Identificamos - senão na fala (posto que, em geral, da ordem do impossível), no movimento destrutivo - uma busca de proteção, de inscrição significante que dê sustentação ao corpo, de continência para as vivências pulsionais fragmentadas e a constante ameaça de dilaceramento que configuram a vida na rua. Apontamos, assim, na busca de algumas crianças e adolescentes pela instituição, uma tentativa, enquanto sujeitos, de uma leitura outra, de se fazer operar um corte no que os aprisiona enquanto dejetos do pacto social.

“Meninos de rua”, violência e exclusão social

Renata, 13 anos, circulava pelas ruas, casas de parentes e amigos, escolas, instituições, em busca, a nosso ver, de inscrição, de um impedimento para a (auto)destrutividade, de um espaço que legitimasse seu sofrimento diante da culpa que lhe era atribuída pela morte de seus pais. Brutalmente assassinada, como o é a morte de milhares de adolescentes em situação de rua, Renata continuou sem uma inscrição. No enterro, a inquietação de pessoas - “É mesmo Renata?” - tamanha a desfiguração pela violência a um corpo somente reconhecido pela irmã por meio das tatuagens que fazia com a seiva da castanha de caju: teria ela, por meio da marca no corpo, tentado fazer sua própria inscrição? Um corpo que, diante da demora de reconhecimento, foi enterrado, apesar dos esforços de se mudar o registro de óbito, como indigente, sem identidade, sem filiação e sem endereço reconhecido.

A crueza que perpassa a vida de Renata remete-nos ao que, em Frej (2003FREJ, N. Z. Le don du nom et son empêchement: au sujet des enfants de rue au Brésil. Tese de Doutorado, U.F.R. des Lettres, des Sciences de l’Hommme et des Sociétés, Universidade Paris XIII, 2003 2003.), permite-nos pensar em termos de uma mutilação social, de um lugar que, em seu desnudamento, mostra-se destituído daquilo que concerne ao humano.

Aqueles que não puderam nascer, não podem carregar a morte que sustenta a vida. Eles não contraíram a dívida imposta pela nominação. Eles não devem nada..., eles não devem a ninguém..., eles não têm direitos. {...} No entanto, eles tentam ser inscritos. Talvez a morte o permitirá. Não essa morte que chamamos de morte simbólica, mas a morte que reduz o sujeito a um corpo do qual será feita a inscrição. (FREJ, 2003FREJ, N. Z. Le don du nom et son empêchement: au sujet des enfants de rue au Brésil. Tese de Doutorado, U.F.R. des Lettres, des Sciences de l’Hommme et des Sociétés, Universidade Paris XIII, 2003 2003., p. 257)

Destacamos a tentativa de inscrição de que fala a autora, por exemplo, no esforço imperativo de Vitor, 15 anos, para cavar um lugar outro que não o de “filho morto” designado por sua mãe: “Vocês querem me tirar como otário! Eu sou daqui! Agora o cara chega aqui, é das antigas e é barrado”. Na espera e persistência de Rodrigo, 12 anos, o desejo de, ao ter seu desenho guardado pelo Outro, não mais ser jogado na lata de lixo. “Eu faço esse desenho e dou a quem passa na rua. Quando olho pra trás, eles jogam na lata de lixo. Mas eu vou continuar fazendo porque um dia alguém não vai jogar fora”.

Naquilo que denuncia a destituição de um lugar simbólico para os “meninos de rua”, face à relegação a um lugar de dejeto no tecido social, situamos tanto um intricamento entre a exclusão social e uma exclusão mais arcaica, reveladora da constituição subjetiva do sujeito, como algo que se produz em termos de uma resistência do sujeito, um movimento de vida, por meio do qual o adolescente resiste ao lugar de “resíduo social” que lhe é atribuído.

Enfatizamos, pois, uma realidade que deflagra desde situações vividas no âmbito familiar a questões que circunscrevem os “meninos de rua” numa problemática que implica toda uma estrutura econômica, histórica, política e social, o que nos remete a formulações freudianas acerca da instituição do social e da cultura.

Freud (1930/1996FREUD, S. Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 1)., p. 96) descreve a Cultura como o somatório das realizações e regulamentos que distinguem a vida humana de seus antepassados animais, com o objetivo de proteger os homens contra a natureza e ajustar os seus relacionamentos mútuos. O processo cultural impõe, em favor do coletivo, restrições à liberdade do indivíduo - um sacrifício de suas pulsões (ibid, p. 102) - não deixando ninguém à mercê da força bruta. Ao destacar que a cultura é construída sobre a renúncia pulsional, Freud refere-se a uma “frustração cultural” do homem, que teria trocado uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. “Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto {pulsão}. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso” (ibid, p. 104).

Evocamos a proposição de Pellegrino (1987PELLEGRINO, H. Pacto edípico e pacto social. In: PY, L. A. (org.). Grupo sobre grupo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.) no que tange aos pactos edípico e social. Para que o pacto edípico seja mantido, faz-se necessário, como contrapartida à renúncia da criança ao gozo, que lhe seja atribuída uma filiação, um nome, um lugar na estrutura de parentesco, a identificação com os ideais e os valores da cultura, o atendimento às necessidades de afeto, sustento, educação. A ruptura do pacto acarreta um “desastre psíquico” no rompimento da barreira que impedia, em nome da Lei, a emergência e a vazão dos “impulsos delinquenciais pré-edípicos, predatórios, parricidas, homicidas e incestuosos” (ibid, p. 203). O autor situa, nessa ruptura, “a chave psicanalítica para compreensão do surto crescente de violência e delinquência que dilacera o tecido social brasileiro nas grandes cidades”, numa “guerra civil crônica”, mantida pelo “capitalismo selvagem brasileiro”, que lança o “pobre absoluto” à posição de “detrito”.

No mesmo sentido, Rosa enfatiza uma “quebra dos fundamentos do contrato social, com consequente desproteção de uma parcela da população e, por vezes, total desamparo social, impedindo seu acesso efetivo aos recursos institucionais organizadores da vida social (saúde, educação, moradia, trabalho, segurança)” (2004, p. 148). Trata-se de um lugar “produzido” pela violência de uma sociedade excludente e segregadora, marcada pelos efeitos do capitalismo neoliberal e seu discurso, que escancara no “menino de rua” a violação de toda sorte de direitos humanos.

Nesse sentido, de acordo com Kehl (2004KEHL, M. R. A juventude como sintoma da cultura. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P. Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.), na sociedade pautada pela indústria cultural, embora a imagem do adolescente consumidor ofereça-se à identificação de todas as classes sociais, poucos são aqueles capazes de consumir os produtos que lhes são ofertados, favorecendo, assim, um aumento exponencial da violência entre os que se sentem incluídos pela via da imagem, mas excluídos das possibilidades de consumo.

Numa lógica de mercado que, em nome da completude, suplanta o hiato necessário entre o sujeito e o objeto, o Outro se mostra inconsistente, não se constituindo como endereço para o sujeito, sobretudo, para o sujeito excluído. Engendra-se, de acordo com Lebrun, uma exclusão portadora do real da morte, no sentido de uma desfiliação dessimbolizante, destruidora da metáfora subjetiva, que lança o sujeito excluído à margem do simbólico social. Privado da proteção das leis da cidade, o sujeito excluído tornou-se como que estrangeiro ao campo da sociedade humana fundada na interdição do assassinato e do incesto, não encontrando o suporte para assumir as “renúncias necessárias para se humanizar” (2010, p. 61). Deparamo-nos, propõe Lebrun (2008), com uma violência que, ao não encontrar um interlocutor, dirige-se para todo mundo e para o próprio sujeito; uma violência contra a ausência de lugar onde inscrever sua singularidade.

Expressões como “tá imbaçado”, “cobrar vacilo”, denunciam a exclusão social, ao mesmo tempo em que, da ordem de uma constatação e de uma cobrança, fazem referência à humanização, apelam por um olhar outro que lhes seja endereçado, retirando-os da posição incrustada de “meninos de rua”. É nesse sentido que entendemos a circulação pelos vários espaços, a compor um movimento através do qual insistem em existirem para o Outro.

Sustentando a aposta de que as crianças e os adolescentes em situação de rua, ao se dirigirem à instituição, endereçam demandas, destacamos a consideração de Lacan (1957-1958/1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1999. (O seminário, 5)., p. 418) de que a demanda, ao ser articulada em termos simbólicos “{...} vai além de todas as satisfações para as quais apela, é demanda de amor que visa ao ser do Outro, que almeja obter do Outro uma presentificação essencial”.

Da destituição à instituição da demanda

Era mais um dia de grupo operativo. Como de costume, a resistência de alguns adolescentes em participar desse espaço em que são convocados a falar. Luís tumultua o grupo e, irritado, sai da sala; derruba e quebra objetos; interfere em outras atividades. Faz xingamentos à instituição e, diante do movimento destrutivo em que se encontra, daquilo que lhe parece insuportável conter, algumas intervenções são feitas. Até que, num dado momento, para, consegue, enfim, endereçar um olhar para quem intervém junto a ele e enuncia: “Vê se me desimbaça!”. Ao dizê-lo, Luís encontra-se visivelmente mais calmo e vê-se amenizada, naquele momento, sua destrutividade.

“Vê se me desimbaça” - expressão que intitulou nossa dissertação de mestrado - é um desdobramento de uma expressão recorrente, “tá imbaçado”, que consideramos apontar para algo que não é dado a ver, algo de mais essencial no olhar que escapa aos “meninos de rua”, denunciando uma “dimensão escópica turva”, que revela a faceta mais crua da exclusão social, do abandono, da violência. Evocamos, nesse sentido, o desenho de uma televisão, feito por um adolescente, a partir do qual comenta: “Tá chiando. Não escolhemos o canal direito”. E acrescenta no atendimento posterior: “Depois quero fazer outro telão, pra ele deixar de chiar”.

Por um lado, “tá imbaçado” é da ordem de uma constatação, ao passo que “Vê se me desimbaça” faz-nos pensar, naquilo que implica o “vê se”, uma invocação ao Outro, delineando uma demanda endereçada à instituição. Se, por um lado, identificamos a possível leitura de um apelo para os de “gritos de socorro” (FREUD, 1930/1996FREUD, S. Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 1)., p. 76) expressos na violência e na destrutividade endereçadas à instituição, a construção “Vê se me desimbaça” ultrapassa-o, haja vista tratar-se de um apelo veiculado pela palavra, inscrevendo-se num outro registro, o da demanda.

Tendo em vista que a demanda é aquilo que parte de uma necessidade, passa por meio do significante dirigido ao Outro (LACAN, 1957-1958/1999LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1985. (O seminário, 2).), recorremos ao que Freud (1895/1996)FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 20)., no Projeto para uma psicologia científica, discorre acerca de uma ajuda estrangeira, que, ao intervir diante dos “gritos de socorro” do organismo, inscreve-o na condição de sujeito humano. Essa referência ao texto freudiano constitui um alicerce importante para discutirmos o apelo, a demanda, a intervenção do Outro, assim como, nos casos em que essa intervenção se faz inconsistente (como na realidade dos “meninos de rua”), o que se produz em termos de um traumatismo, no sentido de uma invasão de estímulos no Real do corpo, sem espaço para qualquer elaboração psíquica.

Frej (2003FREJ, N. Z. Le don du nom et son empêchement: au sujet des enfants de rue au Brésil. Tese de Doutorado, U.F.R. des Lettres, des Sciences de l’Hommme et des Sociétés, Universidade Paris XIII, 2003 2003.) destaca que Freud fornece uma leitura da circulação de energia no organismo, adotando, inicialmente, a inércia como o princípio básico da atividade neuronal, através do qual o sistema nervoso primário tende a se manter livre dos estímulos, por meio do movimento reflexo2 2 A circulação de energia no organismo foi objeto de estudo de Frej (2003), que propôs inserir a noção freudiana de reflexo e de arco reflexo no campo analítico. . Além dos estímulos externos, o organismo recebe estímulos do próprio elemento somático, dos quais, entretanto, não pode esquivar-se, a não ser mediante intervenções advindas do mundo externo.

Em O mal-estar na cultura,Freud (1930/1996)FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 20). destaca a indistinção na criança recém-nascida entre o seu ego e o mundo externo, como fonte das sensações que fluem sobre ela. Não distingue, a princípio, que certas fontes de excitação - advindas de seus próprios órgãos corporais - podem acarretar-lhe sensações a qualquer momento, ao passo que outras fontes, como o seio, escapam-lhe, reaparecendo apenas como resultado de seus “gritos de socorro”. “Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir através de uma ação especial” (ibid, p. 75), a ação específica referida no Projeto para uma Psicologia Científica.

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia {ajuda estrangeira}3 3 Na versão da obra utilizada, fremde Hilfe foi traduzido por “ajuda alheia”; porém, preferimos a tradução adotada por Frej (2003) - “ajuda estrangeira” - por aproximar-se mais do original. , quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (FREUD, 1895/1996FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 20)., p. 370)

A partir da “ajuda estrangeira”, o organismo é, assim, inscrito na condição de ser humano, numa passagem em que, da necessidade fisiológica, emerge o desejo instaurado na falta; do grito de insatisfação do organismo, evolui-se para a comunicação, para a demanda, em que se percebe a relação com o que vai constituir o sujeito. “É a intervenção da pessoa atenta e experiente trazendo a ajuda estrangeira (fremde Hilfe) que abre o campo da reciprocidade na compreensão” (FREJ, 2007FREJ, N. Z. Com um Grande X. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.) Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud , 2007., p. 153). A ação específica implica, então, a presença do Outro, para o qual o grito do bebê adquirirá valor de significante, posto que, no cuidado dispensado à criança, ele irá nomear e atribuir a significação de um apelo para o seu estado de necessidade e tensão.

Conforme o que Lacan (1957-1958/1999)LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1985. (O seminário, 2). propõe na formulação do grafo do desejo, a demanda encontra-se inicialmente condicionada por uma necessidade, cuja acumulação, ao gerar uma tensão, produz uma descarga através de gritos e ações musculares. O grito do infans, uma vez capturado pelo Outro, terá uma significação atribuída, de forma que a demanda não se confunde com a satisfação da necessidade, visto que aquilo que é significado vai além da necessidade bruta.

Ao articular a demanda em direção ao Outro - primitivamente, a mãe - a criança nele encontrará, além de uma resposta, um desejo que lhe pré-existe, para que a ele possa endereçar sua demanda. Dada a precedência do desejo materno, Aulagnier (1990AULAGNIER, P. Um intérprete em busca de sentido - I. Tradução: Regina Steffen. São Paulo: Escuta, 1990.) destaca que, apesar da imposição da fala na formulação da demanda, ainda “que o primeiro som emitido pelo infans seja o grito mais inarticulado, não impede que seja entendido pela mãe como ‘demanda de...’, ou seja, como fala”. (ibid, p. 195). E acrescenta: “{...} qualquer manifestação de vida no sujeito (grito, movimentos de alegria, sinal de sofrimento) é interpretada pela mãe como um apelo, como uma mensagem da qual ela seria a destinatária, interpretação que por sua vez é forjada nos moldes de seu próprio desejo” (ibid, p. 197).

Essa interpretação delineia, conforme apontam Bergès e Balbo, um “processo fundamental pelo qual a criança acede ao afeto” (2002, p. 24), através de um golpe de força, por meio do qual a mãe demanda a seu filho que se identifique ao discurso que ela lhe endereça, apropriando-se assim de um corpo simbólico. Através da hipótese que constrói para os apelos e dos cuidados que dispensa a seu filho, ela irá nomear aquilo que, num primeiro momento, é da ordem de um Real inominável, posto que ainda não articulado à linguagem. É em torno do saber que a mãe supõe em seu filho - e que ele, ao identificar-se ao discurso que lhe é endereçado, autentica o dizer dela -, que o apelo “{...} vai circular, como em torno de uma polia, para a ela retornar sob a forma de uma demanda; demanda que supõe ser a de uma identificação de seu filho ao discurso que ela lhe dirige” (BERGÈS; BALBO, 2002BERGÈS, J.; BALBO, G. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC Editora, 2002., p. 10).

Trata-se de uma competência simbólica, perpassada pela hiância necessária entre a hipótese da mãe e a demanda do filho, testemunha de um discurso atravessado pelo Nome-do-Pai, que produz um corte e faz obstáculo a um corpo, o qual, uma vez barrado e atravessado pela linguagem, não pode mais se entregar ao excesso de sofrimento ou de gozo.

Embora se constitua em um golpe de força (coup de force) a partir do qual o sujeito é impelido ao campo simbólico, o transitivismo distingue-se do traumatismo, no qual uma força opera de forma disruptiva, num puro real, ultrapassando os limites suportáveis da dor e deixando o sujeito sob o efeito de uma descarga, de um golpe inesperado (ibid, p. 11). Freud (1920/1996FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 20)., p. 38) considera que, diante do impacto incessante de estímulos externos, um organismo vivo não sobreviveria, caso não dispusesse de um “escudo protetor”. Descreve como “traumáticas” as excitações que o ultrapassam e ressalta que, à violência que o trauma acarreta, o organismo reagirá de maneira reflexa, “sem a intervenção do aparelho mental”. Não nos parece sem repercussão subjetiva a inquietação de Renata diante de suas constantes evasões das instituições de acolhimento - “Por que eu invado tanto?”. O emprego de “invadir” ao invés de “evadir” atesta a violenta realidade de corpos que, continuamente invadidos, invadem.

Indagamos quais hipóteses podem ser formuladas quando o que se apresenta é da ordem do traumatismo, de uma realidade crua, perpassada por atrocidades que os lançam - crianças, adolescentes e os que deles cuidam - a um Real avassalador, remetendo-os a situações outrora vivenciadas, as quais, igualmente não simbolizadas, são reproduzidas e atualizadas sem nenhuma diferenciação.

Problematizamos, nesse contexto, a figura do pai - enquanto função e enquanto presença - na realidade social e familiar dessas crianças e adolescentes. Chama-nos a atenção falas como “É bom comer do Estado!”, “Eu preciso de lei!”, bem como as constantes atuações, as quais parecem convocar uma intervenção terceira, sugerindo-nos que é a partir do real, do que se mostra literalmente, que esse apelo é feito. Em seu estudo sobre a delinquência4 4 Embora não estejamos “categorizando” as crianças e os adolescentes em situação de rua como “delinquentes”, a leitura de Melman (2000) permite-nos uma apreensão importante do que se constitui em termos de prática de delitos, fator intensamente presente nas ruas. , Melman (2000MELMAN, C. Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta , 2000., p. 59) destaca que, incapacitados de reivindicar um pai simbólico e de se atribuir as insígnias deste pai, não terão outra saída senão a de passar ao ato e buscá-las eles mesmos, como forma de suprir o que não lhes foi transmitido pela filiação simbólica.

Retomamos a fala de Rodrigo e destacamos a hipótese que ele próprio faz da entrega de seu desenho ao Outro, que sempre o joga fora - uma destituição da demanda? Uma demanda, no entanto, sustentada naquilo que antecipa enquanto resposta do Outro a seu apelo, pois, conforme afirma, vai “continuar fazendo, porque um dia, alguém não vai jogar fora”, o que nos permite pensar as possíveis hipóteses que alguns adolescentes fazem ao endereçarem, mesmo que por meio do “grito mais inarticulado”, apelos à instituição.

Propomos, nesse sentido, que, ao fazer a hipótese de um apelo com vistas à construção de demandas, mesmo que ainda não veiculadas pela palavra, a instituição, ao instituir-se como um “endereço simbólico”, autentica o “dizer” do “menino de rua”, para além da crueza que delineia seus atos, inscrevendo o sujeito no campo simbólico, num lugar outro que não o da desordem, do despedaçamento, do caos pulsional.

“Eu quero ouvir o resto da história”

Conforme discutimos, é do lugar em que as crianças e os adolescentes em situação de rua se encontram na sociedade e na família que chegam à instituição, desdobrando-o nos atos e nas falas que, às vezes, parecem “convocar” ao fracasso. Afinal, dos “trombadinhas”, “cheira-colas”, “delinquentes”, “meninos de rua”, não se espera outro movimento que não o de reproduzir a posição que ocupam, o lugar daqueles que, como afirma um personagem do filme Los Olvidados, de Luis Buñuel, “deviam ser mortos antes de nascerem”.

Marcados pela violência de uma sociedade que os exclui, da violência sofrida em casa e atualizada na rua, pela “relegação social” que os situa enquanto “abjetos”, os “meninos de rua” apresentam-se como sujeitos “espalhados” (conforme define uma educadora social), sem uma barreira protetora que lhes sirva de sustentação, a qual parecem demandá-la da instituição. Não é, pois, sem repercussão que dizem fazerem parte de uma “pá de gente” ao se referirem aos bandos, remetendo-nos à noção de um objeto que reúne fragmentos que sujam o ambiente. É-nos igualmente reveladora a formulação de uma adolescente, ao simular uma entrevista, dizendo à psicóloga “Você é uma cata-lixo”, o que parece supor uma função de recolher e dar unidade aos “fragmentos” de corpos dilacerados da rua.

Para Figueiredo (2004FIGUEIREDO, A. C. A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Ano VII, n. 1, 2004, p.75-86.), “temos que suportar, no sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo à sua responsabilidade a cada vez, a cada ato”. A instituição situa-se, assim, enquanto destinatário de investimentos intensos, como as pedras arremessadas, as inúmeras narrativas de delitos cometidos, de abusos sofridos, as ameaças das quais é alvo. Convocar e situar o sujeito demanda, muitas vezes, o recurso ao impedimento, o qual aparece na obra freudiana como “uma necessidade, por parte da cultura, de produzir uma parada da ação em alguns indivíduos” (FREJ, 1997FREJ, N. Z. Le nom ou le corps. Mémoire de Diplôme d’Etudes Approfondies. Universidade Paris XIII, 1997.). Impedir implica uma intervenção proveniente daquilo que escapa ao campo da interdição, produzida pelo corte da palavra. O recurso ao impedimento faz-se necessário, sobretudo, em situações em que a palavra parece não alcançá-los. Ao impedir que os adolescentes se agridam ou agridam profissionais, ao impedir que se percam em meio ao dilaceramento, institui-se um corte que delimita e cria fronteiras entre o dentro e o fora, entre a rua e a instituição.

Situamos, nesse sentido, a instituição enquanto Outro que é invocado, no lugar da confirmação, que atribui a significação de um apelo ao que lhe é endereçado, realizando a ajuda específica “que a criança atrai pelos seus gritos” (FREUD, 1926/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 21)., p. 85). Não é sem reação que se dá o endereçamento da instituição, no sentido de convocá-los a um lugar outro. A intervenção é, geralmente, perpassada por investimentos de ódio, os quais, além de apontarem para uma resposta à exclusão, configuram uma reação do sujeito ao que a significação do apelo institui, ou seja, a palavra.

Forget considera que o adolescente que foi privado do recurso à palavra solicita o Outro através de suas atuações. “É o recurso ao interdito que eles procuram.” Trata-se de uma “espera dos adolescentes por um endereço simbólico confiável para aprender a se familiarizar com suas próprias marcas, e para estruturar sua palavra” (2009, p. 184).

Para se humanizar, propõe Lebrun (2008LEBRUN, J. P. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC Editora , 2008.), o sujeito tem de consentir em uma perda de gozo. Falar supõe o vazio, implica não estar mais ligado diretamente às coisas, não estar mais no imediato, na urgência. “A instalação desse vazio gera dois lugares diferentes: aquele de onde um fala e aquele de onde o outro escuta” (ibid, p. 43), instituindo um lugar de endereçamento ao Outro.

A instalação do vazio implica, conforme vimos, um espaço terceiro. Isso nos faz considerar que as intervenções e o “confronto” com o ódio e a destrutividade de crianças e adolescentes em situação de rua são perpassados pelo respaldo que a instituição, enquanto terceiro, oferece na sustentação de uma “dissimetria irredutível” entre o sujeito e o Outro. Institui-se, assim, uma diferença no que tange à relação imaginária com os pares, na qual o outro aparece nos conflitos como ameaça de aniquilamento, precisando ser eliminado: “Ele disse que ia me matar. E, quando me juram de morte, só um pode ficar vivo” (João, 15 anos).

No espaço de dissimetria que estabelece, a instituição constitui-se como “condição de subjetivação” - como aponta De Munck, em debate com Lebrun (2008LEBRUN, J. P. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC Editora , 2008., p. 130) - face ao consentimento às regras, à responsabilidade e ao comprometimento que a fala implica.

Lebrun destaca, entretanto, a dificuldade de uma intervenção desse tipo para determinados sujeitos aos quais, desde a primeira infância, não foi instituído o lugar de alteridade, de modo que “constitui-se uma imunidade em relação a qualquer confrontação com o Outro. Essa imunidade que corre o risco, sobretudo, de torná-lo capaz de perpetuar, incessantemente, a evitação, e até que a morte sobrevenha. {...} o sujeito corre o risco de encontrar a morte real antes da alteridade” (2008, p. 55).

Retomamos uma articulação com a função do pai, a qual, para Lebrun (2004LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud , 2004.), além de reconhecida no meio familiar, necessita ser ratificada pelo social, na sustentação que este atribui à pertinência de sua intervenção. Consideramos, do mesmo modo, que qualquer deslocamento do sujeito demanda uma ratificação pelo social que autentique sua nova posição, o que, muitas vezes, impõe uma barreira, dada a fixidez da cadeia significante da qual falávamos anteriormente, que expõe o “menino de rua” ao iminente encontro com a morte real antes da alteridade.

Rosa considera que a escuta clínica desses sujeitos, na medida em que opera na relação entre sujeitos que ocupam “lugares opostos na estrutura social: a inclusão e a exclusão”, implica romper com o “pacto de silêncio do grupo social a que pertencemos e do qual usufruímos” (2004, p. 155), implica considerar o sujeito na posição de desejante. Assim percebemos o estranhamento de um adolescente: “Por que vocês se preocupam tanto comigo?”.

Apesar da dificuldade que essas questões impõem ao trabalho institucional, respaldamo-nos em falas como “Vê se me desimbaça!” (BARROS, 2009BARROS, P. C. M. ‘Vê se me desimbaça’: do apelo à demanda de crianças e adolescentes em situação de rua. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2009.), “Você é uma cata-lixo”, “Eu preciso de lei”, que nos impõem corroborar a instituição em sua função continente, um espaço possível de endereçamento, constituindo, para além de uma unidade de atendimento, um lugar psíquico que institui a palavra. É nesse sentido que, ao apontarmos a instituição enquanto um lugar que acolhe, interdita, nomeia e simboliza, permitimo-nos pensar num endereçamento à palavra que acolhe, à palavra que interdita, à palavra que nomeia, para além do real da rua.

Ao dizer “eu quero ouvir o resto da história”, Pedro faz um furo no que se tece como necessidade pura e faz emergir a demanda por uma inscrição, por uma palavra que o narre, por uma história, fazendo uma irrupção para além da violência e da exclusão social. Uma história, entretanto, interrompida na sua própria morte, ao sofrer um acidente enquanto empinava uma pipa num telhado. Na escrita deste texto, a tentativa de inscrevê-lo e de autenticá-lo enquanto sujeito.

“Eu quero ouvir o resto da história”... um endereçamento à palavra que alimenta.

Referências

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  • BARROS, P. C. M. ‘Vê se me desimbaça’: do apelo à demanda de crianças e adolescentes em situação de rua. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2009.
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  • 1
    Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro (Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior - PDSE) na realização desta pesquisa.
  • 2
    A circulação de energia no organismo foi objeto de estudo de Frej (2003), que propôs inserir a noção freudiana de reflexo e de arco reflexo no campo analítico.
  • 3
    Na versão da obra utilizada, fremde Hilfe foi traduzido por “ajuda alheia”; porém, preferimos a tradução adotada por Frej (2003) - “ajuda estrangeira” - por aproximar-se mais do original.
  • 4
    Embora não estejamos “categorizando” as crianças e os adolescentes em situação de rua como “delinquentes”, a leitura de Melman (2000) permite-nos uma apreensão importante do que se constitui em termos de prática de delitos, fator intensamente presente nas ruas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2015
  • Aceito
    11 Maio 2015
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