Open-access A escrita fronteiriça de Susy Delgado

Susy Delgado’s border writing

Resumo

Este texto propõe uma aproximação à poesia da paraguaia Susy Delgado sob o prisma do debate de(s)colonial como escritura que se erige em um entrelugar fronteiriço, ou ainda em meio aos trânsitos e às dinâmicas da fricção entre línguas e identidades, no contexto paraguaio contemporâneo. Além de sua importância poética, ressaltamos também a atuação política de Susy Delgado que, como jornalista e gestora, vem exercendo um papel fundamental em torno às línguas oficiais do Paraguai.

Palavras-chave: mediação cultural; poesia latino-americana; Paraguai; Guarani

Abstract

This text proposes an approach to the poetry of the Paraguayan Susy Delgado, under the prism of the (de)colonial debate, as a writing that is erected in a border in-between, or in the midst of transits and dynamics of friction between languages and identities, in the contemporary Paraguayan context. In addition to her poetic importance, we also highlight the political activities of Susy Delgado who, as a journalist and manager, has been playing a key role in the official languages of Paraguay.

Keywords: Cultural mediation; Paraguay; Latin American poetry; Guarani

Resumen

Este texto propone un acercamiento a la poesía de la paraguaya Susy Delgado bajo el prisma del debate de(s)colonial, como escritura que se erige en un entrelugar fronterizo, o en medio a los tránsitos y dinámicas de la fricción entre lenguas e identidades, en el contexto paraguayo contemporáneo. Además de su importancia poética, resaltamos también la actuación política de Susy Delgado que, como periodista y gestora, viene cumpliendo un rol fundamental en torno a las lenguas oficiales del Paraguay.

Palabras clave: mediación cultural; poesía latinoamericana; Paraguay; Guarani

Escritora, jornalista e gestora cultural bilíngue (espanhol-guarani) nascida em 1949, em San Lorenzo, Paraguai, Susy Delgado alcança a maturidade com uma obra literária que compreende muitos volumes, entre os quais se destacam, com clara ênfase, os dedicados à poesia, embora também tenha publicado contos e livros infantis. Em maior medida, obras poéticas nascidas do trânsito irrestrito entre ambas as línguas de sua formação subjetiva, pessoal. Porém, Susy Delgado também é responsável pela compilação, organização e tradução de diversas antologias que recolhem vozes dispersas pela paisagem cultural paraguaia.

Poeta em ambas as línguas nacionais, a escrita de Susy Delgado se constrói como um mosaico em que se encaixam experiências nos dois idiomas, quase indistintamente. Tradutora de suas próprias palavras, em mão dupla, mas não apenas isso, Susy Delgado constrói sua carreira literária e seu trabalho na gestão pública procurando mediar as culturas que conformam sua subjetividade e, de maneira mais ampla, a sociedade paraguaia. Sua trajetória é marcada pelo trabalho de implementação de políticas culturais - mais especificamente linguísticas - que buscam ser coerentes com as práticas discursivas que mobilizam memória e sensibilidade pessoais e coletivas.

Entre seus poemários bilíngues, citamos apenas alguns títulos: Tataypýpe (Junto al Fuego), Ayvu membyre (Hijo de aquel verbo), Ñe’ë jovái (Palabra en dúo), Jevy ko’ë (Día del regreso), Tyre’ÿ rape - Camino del huérfanoe Ogue jave takuapu - Cuando se apaga el takuá. Parte de sua obra foi traduzida ao inglês, ao português, ao alemão e ao galego. Recebeu diversas premiações nacionais e internacionais, entre as quais o Prêmio Nacional de Literatura do Paraguai, em 2017. Como afirma o escritor e crítico Rubén Bareiro Saguier: “Susy Delgado escribe en guaraní, en castellano, en poesía, en mayúscula siempre. Valga la metáfora para caracterizar la calidad sostenida de su escritura” (DELGADO, 2015a, p. 15)

Em entrevista recente, Susy Delgado faz uma revisão de sua trajetória após receber o Prêmio Nacional, demonstrando ter muita lucidez sobre seu próprio percurso, particularmente sobre a importância do giro criativo alavancado pela possibilidade de escrever em guarani. E, junto com a língua cotidiana, guarani e jopara (essa “língua bastarda” que mescla guarani e espanhol), a poeta passa a submergir-se na cosmovisão que as caracteriza, mediante o estudo do livro sagrado dos mbya-guarani, Ayvu Rapyta:

Yo empecé a borronear mis primeros poemas y cuentitos en los años de la adolescencia y cuando me atreví a publicar mi primer libro, teniendo 34 años, ya tenía montañas de papeles escritos. Mis inicios en la escritura en guaraní se dieron en forma fortuita, por un hecho que nunca olvidaré. Antes tengo que decir que en aquellos años yo tenía un respeto tal vez mal entendido hacia mi lengua materna y pensaba que me sería muy difícil escribir con ella. Pero un día, trabajando en una empresa publicitaria en la que yo hacía mis primeras experiencias como creadora de textos publicitarios, me pidieron un libreto radial para el popular dúo cómico Los Compadres, en guaraní. Y esa experiencia constituyó el gran hallazgo para mí. Descubrí que no era imposible escribir en mi lengua materna, enloquecí de placer y me lancé a buscar libros que me ayudaran a mejorar los rudimentos de la escritura. Desde entonces, coexistieron en mi creación como dos territorios bien diferenciados, mis dos lenguas; durante muchos años ellas no se mezclaron, seguramente porque había mamado ese fuerte prejuicio que existía contra el jopara… Hasta que mis reflexiones y lecturas sobre la lengua me llevaron a un pensamiento nuevo: que si mis lenguas se mezclaban permanentemente en mi vida cotidiana, como escritora yo debía asumir esa realidad y expresarla en mis textos. Y tenía que atreverme al desafío de intentar una estética con esa mezcla. Entonces fue que empecé a experimentar con la mezcla en mis poemas… La lengua se había convertido en un tema central entre mis preocupaciones y mis textos, con sus postergaciones y sus desafíos. […] Y para ir al terreno de la palabra guaraní, el Ayvu Rapyta caló profundamente en mi sensibilidad, al punto que le dediqué una humilde declaración de discípula en mi libro Ayvu membyre. Pero solo los que saben analizar estas cosas dirán si llevo algo de estas voces… […] En este camino de asumir la mezcla de mis lenguas, mezcla que a veces es diálogo, complicidad, vecindad tensa o pelea, voy descubriendo los pliegues ocultos de esa compleja convivencia, en la que se borran las fronteras, como se borran los pruritos, por suerte… (CASTELLS, 2021, n. p.) 1

Ñe´e - Palavra-alma

Antes do continente se tornar América pela imposição de documentos escritos, emitidos em terras europeias à revelia das realidades sócio-históricas que habitavam essa parte do orbis terrarum (o que nos imputava ser o Novo Mundo com o qual sonhavam as consciências do outro lado do Atlântico), o continente já bailava ao som de suas próprias palavras cantadas, ritualizadas ou simplesmente instrumentalizadas para organizar a vida diária e cultural.

[…] El “Nuevo Mundo” se inventa -se forja- como una construcción imaginaria, ficcional, en la cual participaron la violencia de los cuerpos, de las armas y de las letras a través de la actuación de los cronistas, soldados y sacerdotes: hombres de la palabra escrita, servidores de la autoridad letrada. (PEREIRA, 2014, p. 200).2

As palavras europeias, para representar um mundo tão inesperado e tão insubmisso ao logos peninsular, se veem obrigadas a ajustar-se às novas realidades para dar conta da paisagem natural e humana que se revelava (PEREIRA, 2014). Ñe´e, em guarani, desde tempos imemoriais já significava “palavra”,) ou “alma”, e “fundamento de todas as coisas” (CADOGAN, 1992, p. 43). Dessa antiga, embora permanente,) fricção entre corpos e línguas, na qual se imbricam histórias e memórias em conflito, construímo-nos como seres sensíveis e sociais habitando sociedades contemporâneas complexas e pluriculturais.

Naquele contexto de conquista e colonização, iniciado nos séculos XV e XVI, o castelhano e a tecnologia do livro se impuseram como mecanismos de poder com o objetivo de organizar a vida social, impondo hierarquias que perduram até os dias atuais. As consequências desse longo processo que vem condicionando as diversas camadas que compõem o tecido social, estão presentes desde as políticas macro institucionais (a própria sistematização do Estado-nação), até as relações interpessoais. Segundo a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2010, p. 19-20):

[...] las palabras se convirtieron en un registro ficcional, plagado de eufemismos que velan la realidad en lugar de designarla. Los discursos públicos se convirtieron en formas de no decir. Y este universo de significados y nociones no-dichas, de creencias en la jerarquía racial y en la desigualdad inherente de los seres humanos, van incubándose en el sentido común. [...] Nos cuesta hablar, conectar nuestro lenguaje público con el lenguaje privado. Nos cuesta decir lo que pensamos y hacemos conscientes de este trasfondo pulsional, de conflictos y verguenzas inconscientes. (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 19-20)3

As elites, formadas pelos mestiços da colonização, aprenderam a conviver com a “ferida colonial” (MIGNOLO, 2007) que se impunha a partir da história fraturada do continente. Ao vazio de um passado arrancado, foram sendo somadas as novas identidades pós-independências. Desse contexto nascem sensibilidades alternativas, mais ou menos dependentes dos arquivos coloniais ou da memória ancestral; sempre tensionadas pelo mosaico de imaginários e heranças culturais em conflito, constitutivos das nossas sociedades.

É nessa chave que Bartomeu Meliá (1932-2019), um dos principais estudiosos do guarani, nos apresenta a poética de Susy Delgado no prólogo do livro Ogue jave takuapu - Cuando se apaga el takuá (2010):

Los ecos y repercusiones de las tacuaras que escanden el canto y la danza de los Guaraníes son el bajo continuo que sin pausa sirven para la armonía del acompañamiento instrumental. Forman parte esencial del teko marangatu, la religión guaraní. Sin el resonar de las tacuaras en manos de las mujeres no hay ritmo ni equilibrio en la fiesta, y la palabra cantada de los hombres quedaría sin apoyo e imprecisa. Pero esas tacuaras cuyo retombar satura el suelo, lo estremece y pasa a través de los pies a nuestras entrañas, hace tiempo han sido relegadas al olvido y la ignorancia por la sociedad paraguaya. Para muchas de las personas esos sonidos no existen ni siquiera como memoria. Y sin embargo, ahí están todavía y es Susy Delgado quien nos lo presenta en palabras, no de pasado, sino de futuro. Las takuaras se apagaron, pero queda en la tierra del lenguaje su persistente vibración. Es palabra actual mediante la cual el himno antiguo se ha vuelto, por desgracia, endecha de muerte. […] La palabra poética se hace creadora de presente y nos hace asomar al futuro. Y es ahí donde la lengua guaraní se reviste de fuerza, no sólo la que le viene de su raíz profunda y milenaria, sino la que se nutre de las experiencias, sensaciones y sentimientos del presente. […] Susy Delgado hace honra a la definición de poesía en cuanto palabra creativa; palabra nunca hecha del todo, porque crece continuamente mientras no se llame a silencio […] como palabra compartida con una comunidad de comunicación. (DELGADO, 2010, p. 9-10).4

Nesse livro, que se abre e se fecha com a performatização do “tum tum” do takuá através do seu primeiro e último poemas, há um extraordinário poema que se intitula “Vida”. A leitura dos fragmentos abaixo nos permite a apreensão do tom melancólico com o qual a poeta define a vida. Entre a denúncia das desigualdades sociais, historicamente perpetuadas por diversas violências, a sua versão em espanhol, sempre acompanhada da escrita em guarani, nos dá constância de que a vida é uma ininterrupta luta contra “as sombras”, “a fome”, “o cansaço” ou “a ausência”. Vida: ação e movimento que exige assumir a memória, com suas dores e sofrimentos, como condição de existência que imprime força para criação de presente e futuro.

Vivir buscar arañar arrancar cada día el alento del fondo de las sombras asumir la luz sucia del hambre la áspera camisa del hastío la puerta de la ausencia. …………………. Vivir correr de o hacia, no importa pero lanzarse como caballo desbocado como caballo loco en la autopista donde todo vale y nada vale chutar las latas abolladas del crepúsculo sortear el control de la vergüenza derribar al puñetero cuate del miedo.5 ……………. (DELGADO, 2010, p. 64-70)

Também no poema “Desalma”, do livro Tyre'y rape - Camino del huérfano (2008), Suzy Delgado nos conduz ao mesmo sendeiro histórico percorrido por sujeitos que há séculos procuram encontrar o equilíbrio necessário para sua sobrevivência, ora configurando-se como construção sensível e resiliente, ora se insurgindo e exigindo autonomia e desprendimento da colonialidade. Esse longo poema coloca em cena um manancial de identidades em conflito, cuja tensão forjada pela imposição colonial é memória e cicatriz, está selada no corpo e na alma, assim como nos passos que inventam nossos caminhos coletivos. O/A escritor/a, segundo a poeta, “lejos de ser dueño de la lengua como algunos creen, es apenas una víctima más de esa revolución gigantesca, alguien que puede asumir su condición de multicolonizado y ofrecer su testimonio” (DELGADO, 2010, p. 13-14).6

Como se trata de um poema longo, vejamos apenas alguns fragmentos (DELGADO, 2008, p. 72-90).

¿Dónde estabas, dónde estás donde estarás? Útero del principio y del final memoria del regazo soporte de mis pies inaugurando el mundo utopía del regreso. ¿Dónde? Mi casa mi paisaje mi horizonte mi suelo mis olores mi viento mi lluvia. Mi historia mi familia mi infancia mi lengua. Mi pulso mi paso mi voz mi silencio. Mi trajín mi cansancio mi desvelo mi sueño. ¿Cuándo fue que empezaste a agrietarte? ¿Por qué te fuiste resquebrajando quebrando cayendo? ¿Cuándo acabaste siendo Un puñado de escombros? ............................................ Hoy araño el recuerdo buscando los rostros que esculpieron mi rostro. He olvidado la voz de mis padres el olor de mis hijos el sabor del amor. Hoy el olvido me mata de a poco no recuerdo siquiera cómo eran mis ojos ni cómo hacían ellos para deletrear el mundo. .................................. Si paragua bolita sudaca chola guarango cabecita negra pinche cabrón grasa plaga ciruja chorro turro pendejo indio caballo loco pokyra loser ganchero cartonero macoñero reventada hijo de la chingada popinda terrorista puta barata o carne de pornoshit. ..................................... Hoy voy a la deriva en la vía del puro extravío traveseo en una travesía sin puerto de salida ni llegada. ................................. Hoy camino otra historia otro paisaje otra lengua otro sueño .............................. Camino descamino despatria deslugar desorilla descuerpo deshondura desnorte desencuentro Camino despaso desllegada desregreso Camino desaire desagua desfuego desangre deslengua desvida desalma. ¿Dónde estabas, dónde estás donde estarás? Tierra sin Mal...7

A obra de Susy Delgado se erige, portanto, como um fazer poético fortemente delineado por diversos trânsitos tradutórios e mediações culturais entre universos linguísticos e cosmovisões diferentes. Sobre a importância da tradução, a poeta afirma, na apresentação da curiosa edição quadrilingue (espanhol, guarani, português e inglês) de Jevy Ko'e - Día del regreso (2014a):

Desde el primer poema que borroneé en la otra lengua con que la suerte me dotó, sentí la intensa fascinación de iniciar un viaje tentador pero arriesgado, a un universo diferente. Y desde una mirada menos metafórica, desde aquellos años consideré que para una lengua como el guaraní, las traducciones a otras lenguas más conocidas constituían un puente imprescindible para alcanzar el reconocimiento que se merece. (DELGADO, 2014a, p. 10)8

Na Antologia 8 mulheres (2015b), edição trilíngue da qual faz parte, podemos observar a dança entre significados e significantes que, alternando-se entre o espanhol, o guarani e o português, compõem um quebra-cabeças em que as palavras, embora dispostas em línguas diferentes, não procuram criar uma unidade independente em cada poema, mas ao contrário: os signos estendem-se de um idioma a outro, buscando sua completude em mosaico, a partir do reconhecimento da incapacidade de ser inteiros em um só idioma. Um dado muito relevante é que as traduções/recriações foram feitas pela própria poeta e pela estudante paraguaia Jazmín Gutiérrez, do curso de Letras - Artes e Mediação cultural (UNILA), ambas bilíngues (espanhol-guarani).

Sin título Ombligo antiguo de una inmensa madre todopoderosa, pozo de olvido por la necedad del hombre, lengua guaraní. Sy guasuete ipu’akapáva puru’ã yma, tesarái kuára yvy póra ivyropágui, ñe’ê guaraní. Umbigo avó, a mãe toda poderosa; buraco do esquecimento do homem Dtolo; ñe’ê guaraní. (DELGADO, 2015b, p. 7)

Traduções que se constroem como tentativas de trazer para a escrita literária como gênero, e para a escritura alfabética como suporte, a experiência vital e orgânica da incompletude, acionada em seu sentido mais positivo. E seria possível ser positivamente incompleto? Sim, desde que se entenda que a incompletude, neste caso, não é marca do vazio ou da falta, mas sim da abertura para o preenchimento pelo outro (idioma, cultura, memória, sociedade), pela alteridade que compõe a riqueza da diversidade do mundo.

Como uma espécie de canibalismo ancestral que se propunha a devorar as fortalezas dos inimigos vencidos nos confrontos, Susy Delgado relaciona oponentes em guerras culturais, igualmente temidos e admirados na formação da mentalidade antropofágica paraguaia que, de alguma maneira, associa o “subimperialismo” brasileiro ao “imperialismo” norte-americano e à colonialidade eurocentrada (QUIJANO, 2014), oriunda do colonialismo europeu.

El reconocimiento paulatino de la poesía guaraní, en cualquiera de sus vertientes, en los ámbitos de prestigio, se ha ido alcanzando en el mismo camino lento y trabajoso del reconocimiento de la lengua como valor fundamental de la cultura paraguaya. Valga señalar aquí que en este proceso largo y difícil, se construyeron cimientos importantes en el reconocimiento del guaraní como lengua oficial en 1992 y con la Ley de Lenguas en el año 2010. Pero el relegamiento de la lengua y sus expresiones a un lugar de menosprecio, no se ha superado del todo. Por ello, hablar de la literatura guaraní en general, sigue significando hablar de una literatura discriminada. (DELGADO, 2016, p. 4).9

Institucionalização das políticas linguísticas no Paraguai

Em 2010, durante o Governo de Fernando Lugo, é finalmente aprovada a Lei de Línguas, que responde a uma concreta demanda social, constituindo-se como política pública com o objetivo de “establecer las modalidades de utilización de las lenguas oficiales de la República; disponer las medidas adecuadas para promover y garantizar el uso de las lenguas indígenas del Paraguay y asegurar el respeto de la comunicación visogestual o lenguas de señas” (Ley de Lenguas, 2010, Art.1)10.

Para dar subsídio e estrutura à implementação, a referida lei cria toda uma organização institucional para o desenvolvimento da política linguística no país: a Secretaria de Políticas Linguísticas. Essa Secretaria tem como função coordenar a política juntamente com o Ministério da Educação e Cultura. Com isso, o Paraguai dava os primeiros passos necessários à institucionalização de uma política linguística cuja existência, de alguma maneira, já estava sinalizada na Constituição de 1992, que no seu Artigo 140 afirma que “el Paraguay es un país pluricultural y bilingüe. Son idiomas oficiales el castellano y el guaraní. Las lenguas indígenas, así como las de otras minorías, forman parte del patrimonio cultural de la nación” (CONSTITUCION NACIONAL, 1992, Art. 140)11.

Não obstante, apesar da definição legal do Paraguai como um país bilíngue (castelhano-guarani), essa nação é conformada por uma diversidade linguística composta por 19 línguas indígenas faladas por 19 povos originários reunidos em cinco famílias linguísticas (Secretaria de Políticas Linguística, 2021). O que a Secretaria promove é o reconhecimento da realidade pluriétnica e pluricultural do Paraguai. Porém, nem mesmo a língua guarani, de fato contemplada pela Lei de Línguas, consegue ter o mesmo status linguístico que o espanhol. Segundo Miguel Ángel Verón, Diretor Geral da Fundação Yvy Marãe’ỹ e membro da Academia da Língua Guarani: “Pese a las importantes conquistas en el campo de la legislación, en la práctica los avances para la normalización del uso del guaraní, como lengua oficial, son muy lentos, debido a las rémoras del colonialismo cultural y lingüístico, con raíces profundas en el imaginario colectivo, y a la resistencia de su normalización en el Estado” (VERÓN, 2017, p. 106). Ainda segundo esse autor:

Los desafíos y los problemas que enfrentan las lenguas paraguayas minorizadas y minoritarias no son técnicos ni lingüísticos, sino políticos. Las élites que se apoderaron del país después de la guerra de la Triple Alianza se caracterizaron por su mezquindad y por defender por todos los medios sus privilegios y despilfarros a expensas de la población mayoritaria, especialmente rural guaraní hablante. Las barreras lingüísticas son barreras políticas y económicas y han sido construidas y mantenidas a propósito. Mantener aislada a la población que no habla la lengua de la élite ha sido el caldo de cultivo para las décadas de segregación social. Actualmente más del 20 % de la población sigue siendo monolingüe guaraní, pero el Estado sigue funcionando sólo en castellano. En estas condiciones, ese segmento de 20 % de la población sigue privado y excluido de todo tipo de participación, dado que no entiende la lengua de la política ni de la economía. Los derechos lingüísticos de los guaranihablantes y de los pueblos indígenas en general siempre fueron desconocidos, dado que el Estado nunca se comunicó con ellos en su lengua. (VERÓN, 2017, p. 125-126).12

Susy Delgado - mediadora cultural

Em recente postagem nas redes sociais, Susy Delgado retoma seu ativismo pela defesa da diversidade linguística paraguaia:

Igual que a toda la gente de mi generación y de muchas generaciones de este país, a mi lengua materna, que señala mi herencia más profunda, se agregó otra lengua que si bien tuvo un valor diferente, este valor siempre fue alto para mí. Si la primera significaba ese cuenco incanjeable que guardaba la memoria y los valores antiguos de mi pueblo, así como el acento entrañable de mi infancia, la segunda se erigió frente a mí como puente hacia los saberes y cosmovisiones del mundo. Me tocó la suerte de heredar dos lenguas, y si hoy estoy aquí, es por ellas. (DELGADO, 2022, n. p.) 13

Pela sua atuação como tradutora de universos culturais e autora de uma obra potencializada no trânsito entre línguas com memórias e performances discursivas diferentes, podemos afirmar que Susy Delgado é também ativa mediadora, atuante em muitos âmbitos que interconectam a gestão da cultura. Além de escritora, foi editora da Revista Takuapu (2005-2008) e diretora de Línguas e Culturas Indígenas da Secretaria de Cultura do Paraguai. Em ambas as atividades, foi certamente uma militante pela promulgação da Lei de Línguas (2010), mas principalmente uma ativista pela consciência linguística no Paraguai (VERÓN, 2017).

Assim, além de funcionária da Secretaria de Cultura, seu trabalho pela Lei de Línguas vem sendo realizado dentro e fora da instituição estatal: como agente cultural, Susy Delgado publicou diversas antologias que, se por um lado certamente ampliam a visão da literatura paraguaia, por outro não se restringem ao campo literário canônico. Trata-se de produções voltadas a uma política linguística e cultural de empoderamento das vozes guaranis espalhadas pelas periferias e pelo campo. Na composição dos dois volumes - Ñe'e rendy (2011) e Las voces del umbral (2014) - Susy Delgado faz a seleção, introdução e tradução ao castelhano de poemas dispersos nunca antes organizados em livro, embora amplamente difundidos na oralidade. Na apresentação de Las voces del umbral, afirma:

Con esta antología, que bautizamos como Ñe’e rendy, quisimos hacer una contribución al proceso de valorización de la lengua guaraní que se vive en el Paraguay y en el mundo, y a la obtención de un mayor reconocimiento de la poesía que se escribe en este idioma, como la expresión más alta que este ofrece a nuestro tiempo y a la posteridad. […] Hoy retomamos ese mismo título, apelando a la sagrada herencia de la palabra de nuestros ancestros guaraníes. El trabajo y el relacionamiento con comunidades del interior nos han permitido descubrir la existencia de numerosos poetas como éstos, que buscan caminos para su desarrollo, sin encontrar más estímulos que su propia vocación. […] Muchos de estos poetas pertenecen a comunidades humildes que no han tenido acceso a la computadora y el Internet caseros, como tampoco a la publicación de un libro. […] Los estudiosos y amantes de la literatura podrán descubrir muchos otros rasgos de esta poesía indudablemente rica en contenido y forma que mantiene sus fuertes lazos con las raíces culturales y la tradición que ha heredado, pero al mismo tiempo, asombrosamente, puede codearse con las corrientes más nuevas de la literatura del mundo, por encima del aislamiento y la postergación. (DELGADO, 2014, p. 11-12).14

Há um incontestável valor cultural e político nas ações literárias de Susy Delgado, e aqui me permito a expressão “ação literária” na tentativa de ir além da escrita em si, ampliando seu escopo à mobilização das letras a partir da compreensão de que elas são parte da existência real - concreta, histórica e sensível - de sujeitos que respiram a palavra, que a reconhecem como parte de sua própria alma (ñe'e).

“Ação literária”, ou, ampliando ainda mais o termo, mediação cultural capaz de jogar luz sobre esse emaranhado de fios tecidos individual e coletivamente que, embora entretecidos na formação de comunidades de fala e de comunidades sociais, constitui-se como trama que, inexoravelmente, inclui na sua composição tensões e conflitos. E é justamente nessa tessitura em que a mediação, como práxis, vem para fortalecer a ético da convivência.

Ética será, nesse sentido, a qualidade das relações que estabelecemos com o que há neste mundo e, sobretudo, uns com os outros, enquanto essas relações se fazem como relações humanas baseadas na linguagem que criamos diariamente mesmo sem saber. A ético-poética é a luz que ilumina essa criação diária. (TIBURI, 2014, p. 17).

Assim, podemos aproximar ética e poesia com o objetivo de pensar e praticar políticas culturais voltadas ao buen vivir, à convivência menos desigual e assimétrica entre as heranças idiomáticas e históricas que carregamos. Todas essas vertentes tecidas como fios sociais e mediadas pelas subjetividades que compõem identidades e identificações contemporâneas encontram na escrita poética uma específica potência de ação, pois como afirma o mexicano Octavio Paz, “el poema es mediación: por gracia suya, el tiempo original, padre de los tiempos, encarna en un instante. La sucesión se convierte en presente puro, manantial que se alimenta a sí mismo y trasmuta al hombre” (PAZ, 1998, p. 25).15

Em todo caso, e para finalizar, cabe esclarecer que o político aqui é compreendido como “espaço de exercício da cidadania individual e coletiva”, desvinculando essa esfera dos contextos meramente partidários ou institucionais; assim como a poética se desprende do seu papel literário para ser valorizada como produção de vida, tanto subjetiva como material (TIBURI, 2014).

Segundo essa perspectiva, a arte (como instituição) e os/as artistas e poetas (como sujeitos), ao moldarem as palavras ou criarem imagens, estão confeccionando, também, “peças hermenêuticas” (RIVERA CUSICANQUI, 2015) que interpretam e teorizam a realidade; estão criando, portanto, narrativas e discursos que incidem sobre as subjetividades, em constante processo de retroalimentação. Nesse sentido, a arte amplia sua atuação para inserir-se no campo da mediação cultural, movimentando e problematizando imagens e discursos mediante o entrelaçamento de preocupações éticas e estéticas, voltadas à interpretação da realidade sócio-histórica da qual emergem.

Conclusão

Essa aproximação ao fazer poético de Susy Delgado nos leva, necessariamente, a refletir sobre o contexto de sua produção e ao papel social dos seus textos e, de maneira ampliada, do seu trabalho de ativismo em torno das letras e das culturas, pois

[...] quem pratica o guarani, como Susy, cidadã urbana e cosmopolita, não se estrutura desde uma cultura indígena, mas representa a complexidade de uma palavra cantada que de origem cultural majoritária do meio rural paraguaio, resistiu ao domínio colonial de outra língua de prestígio como o castelhano. (DINIZ, 2018, p. 106).

Poeta e mediadora cultural, Susy Delgado erige sua vida e sua obra nesse espaço móvel e transfronteiriço, em que à fluidez da “palavra alma” soma-se a rigidez do arquivo; à sensibilidade poética soma-se a atuação política em prol de valores culturais originários desse fundo ancestral guarani que, apesar dos séculos, se mantém vibrante em muitas das práticas sociais paraguaias.

Agradecimentos:

Este trabalho foi financiado pelo Edital No. 136/2018 da PRPPG-UNILA, e corresponde ao Programa Agenda Tríplice. Os autores e os editores de Alea agradecemos ao órgão de fomento à pesquisa.

Referências

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  • PEREIRA, D. A. La Palabra Poética y la (Re)Invención de América. Revista Remate de Males, v. 34, n. 1, p. 197-211, 2014.
  • QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder / Aníbal Quijano; selección a cargo de Danilo Assis Clímaco. Buenos Aires: CLACSO, 2014.
  • RIVERA CUSICANQUI, S. Ch´ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.
  • RIVERA CUSICANQUI, S. Sociología de la imagen Buenos Aires: Tinta Limón , 2015.
  • TIBURI, M. Filosofia prática Rio de Janeiro: Record, 2014.
  • VERÓN, M. Á. Paraguay: una nación pluricultural con dos lenguas oficiales. Revista de Llengua i Dret, Journal of Language and Law, n. 67, p. 106-128, 2017.
  • 1
    Eu comecei a ensaiar meus primeiros poemas e pequenos contos nos anos de adolescência e quando me atrevi a publicar meu primeiro livro, com 34 anos, eu já tinha montanhas de papéis escritos. Meus inícios na escrita em guarani se deram de forma fortuita, por um fato que eu nunca esquecerei. Antes tenho que dizer que naqueles anos eu tinha um respeito talvez mal-entendido em relação a minha língua materna e pensava que seria muito difícil escrever com ela. Porém um dia, trabalhando em uma empresa publicitária na qual eu fazia minhas primeiras experiências como criadora de textos publicitários, me pediram um livreto radial para o popular duo cômico Los Compadres, em guarani. E essa experiência constituiu um grande achado para mim. Descobri que não era impossível escrever em minha língua materna, enlouqueci de prazer e me lancei na busca de livros que me ajudassem a melhorar os rudimentos da escrita. Desde então, coexistiram em minha criação, como dois territórios bem diferenciados, minhas duas línguas; durante muitos anos elas não se misturaram, seguramente porque eu havia mamado esse forte preconceito que existia contra o jopara… Até que minhas reflexões e leituras sobre a língua me levaram a um pensamento novo: que se minhas línguas se mesclavam permanentemente em minha vida cotidiana, como escritora eu devia assumir essa realidade e expressá-la em meus textos. E tinha que me atrever ao desafio de tentar uma estética com essa mescla. Então foi assim que eu comecei a experimentar com esta mescla em meus poemas… A língua tinha se tornado um tema central entre minhas preocupações e meus textos, com suas postergações e seus desafios. […] E para ir ao terreno da palavra guarani, o Ayvu Rapyta tocou profundamente minha sensibilidade, ao ponto de dedicar-lhe uma humilde declaração de discípula em meu livro Ayvu membyre. Mas apenas os que sabem analisar estas coisas dirão se eu levo algo destas vozes… […] Neste caminho de assumir a mescla de minhas línguas, mistura que às vezes é diálogo, cumplicidade, vizinhança tensa ou peleja, vou descobrindo as dobras ocultas dessa complexa convivência, na qual se apagam as fronteiras, como se apagassem os pruridos, por sorte…(CASTELLS, 2021, n. p., tradução nossa)
  • 2
    […] O “Novo Mundo” é inventado -é forjado- como uma construção imaginária, ficcional, na qual participaram a violência dos corpos, das armas e das letras através da atuação dos cronistas, soldados e sacerdotes: homens da palavra escrita, servidores da autoridade letrada (PEREIRA, 2014, p. 200).
  • 3
    [...] As palavras tornaram-se um registro ficcional, repleto de eufemismos que velam a realidade em lugar de designá-la. Os discursos públicos tornaram-se formas de não dizer. E este universo de significados e noções não-ditas, de crenças na hierarquia racial e na desigualdade inerente dos seres humanos, vão se incubando no senso comum. [...] Nos custa falar, conectar nossa linguagem pública com a linguagem privada. Nos custa dizer o que pensamos e fazemos conscientes deste transfundo pulsional, de conflitos e vergonhas inconscientes. (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 19-20, tradução nossa)
  • 4
    Os ecos e repercussões das taquaras que marcam o ritmo do canto e da dança dos Guarani são o baixo contínuo que sem pausa servem para a harmonia do acompanhamento instrumental. São parte essencial do teko marangatu, a religião guarani. Sem o ressonar das taquaras em mãos das mulheres não há ritmo nem equilíbrio na festa, e a palavra cantada dos homens ficaria sem apoio e imprecisa. Mas essas taquaras, cujo ressoar satura o chão, o estremece e passa através dos pés à nossas entranhas, há tempo foram relegadas ao esquecimento e à ignorância pela sociedade paraguaia. Para muitas pessoas esses sons não existem nem sequer como memória. E, no entanto, ainda existem e é Susy Delgado quem os apresenta em palavras, não de passado, mas de futuro. As taquaras se apagaram, mas ficaram na terra da linguagem sua persistente vibração. É palavra atual mediante a qual o hino antigo se tornou, infelizmente, lamento de morte. […] A palavra poética faz-se criadora de presente e nos leva a vislumbrar o futuro. E é aí onde a língua guarani se reveste de força, não só aquela que vem de sua raiz profunda e milenar, mas a que se nutre das experiências, sensações e sentimentos do presente. […] Susy Delgado honra a definição de poesia como palavra criativa; palavra nunca feita de todo, porque cresce continuamente enquanto não se chamar o silêncio […] como palavra compartilhada com uma comunidade de comunicação. (DELGADO, 2010, p. 9-10, tradução nossa).
  • 5
    Viver/buscar/arranhar/arrancar cada dia o alento/do fundo das sombras/assumir/a luz suja da fome/a áspera camisa do tédio/a porta da ausência./Viver/correr/de ou para, não importa/mas lançar-se como cavalo desembestado/como cavalo louco/na estrada/onde tudo vale/e nada vale/chutar/as latas amassadas do crepúsculo/escapar/do controle da vergonha/derrubar/o tedioso camarada do medo. (DELGADO, 2010, p. 64-70, tradução nossa)
  • 6
    “(...) longe de ser dono da língua como alguns acreditam, é apenas uma vítima mais dessa revolução gigantesca, alguém que pode assumir sua condição de multicolonizado e oferecer seu testemunho” (DELGADO, 2010, p. 13-14, tradução nossa).
  • 7
    Onde estavas,/onde estás/onde estarás?/Útero/do princípio/e do final/memória do colo/suporte de meus pés/inaugurando o mundo/utopia do regresso./Onde?/Minha casa/minha paisagem/meu horizonte/meu chão/meus perfumes/meu vento/minha chuva./Minha história/minha família/minha infância/minha língua./Meu pulso/meu passo/minha voz/meu silêncio./Meu percurso/meu cansaço/meu desvelo/meu sonho./Quando foi que você começou a rachar?/Por quê você foi ruindo/quebrando/caindo?/Quando você acabou se tornando/um punhado de escombros?/ Hoje/ arranho a lembrança/buscando os rostos/que esculpiram meu rosto./Esqueci/a voz de meus pais/o cheiro de meus filhos/o sabor do amor./Hoje o esquecimento/me mata pouco a pouco/não lembro sequer/como eram meus olhos/nem como eles faziam/para soletrar o mundo./Se paragua/bolita/sudaca/chola/guarango/cabecita negra/pinche cabrón/grasa/plaga/ciruja/ chorro/ turro/pendejo/índio/caballo loco/pokyra/loser/ganchero/cartonero/macoñero/reventada/hijo de la chingada/ popinda/terrorista/puta barata/ou carne de pornoshit./Hoje ando à deriva/na via/do puro extravio/atravesso uma travessia/sem porto de saída/nem chegada./Hoje caminho/outra história/outra paisagem/outra língua/outro sonho/Caminho/descaminho/despátria/deslugar/desmargem/descorpo/desprofundidade/desnorte/desencontro/Caminho/despasso/deschegada/desregresso/Caminho/desar/deságua/desfogo/desangue/deslíngua/desvida/desalma./Onde você estava,/onde está/onde estará?/ Terra sem Mal... (DELGADO, 2008, p. 72-90, tradução nossa).
  • 8
    Desde o primeiro poema que esbocei na outra língua com que a sorte me dotou, senti a intensa fascinação de iniciar uma viagem tentadora, mas arriscada, a um universo diferente. E partindo de um olhar menos metafórico, desde então considerei que para uma língua como o guarani, as traduções a outras línguas mais conhecidas constituíam uma ponte imprescindível para alcançar o reconhecimento que merece. (DELGADO, 2014ª, p. 10, tradução nossa)
  • 9
    O reconhecimento paulatino da poesia guarani, em qualquer de suas vertentes, nos âmbitos de prestígio, vem alcançando no mesmo caminho lento e trabalhoso do reconhecimento da língua como valor fundamental da cultura paraguaia. Vale a pena assinalar que neste processo longo e difícil, foram construídas bases importantes para o reconhecimento do guarani como língua oficial em 1992 e com a Lei de Línguas no ano de 2010. Porém, o rebaixamento da língua e suas expressões a um lugar de menosprezo, não foi superado de todo. Por isso, falar da literatura guarani em geral, ainda significa falar de uma literatura discriminada (DELGADO 2016, p. 4, tradução nossa).
  • 10
    “(...) estabelecer as modalidades de utilização das línguas oficiais da República; dispor as medidas adequadas para promover e garantir o uso das línguas indígenas do Paraguai e assegurar o respeito da comunicação viso-gestual ou línguas de sinais” (Lei de Línguas, 2010, Art.1, tradução nossa).
  • 11
    “(...) o Paraguai é um país pluricultural e bilíngue. São idiomas oficiais o castelhano e o guarani. As línguas indígenas, assim como as de outras minorias, fazem parte do patrimônio cultural da nação” (Constituição Nacional, 1992, Art.140)
  • 12
    Os desafios e os problemas que as línguas paraguaias minorizadas e minoritárias enfrentam não são técnicos nem linguísticos, mas políticos. As elites que se apoderaram do país depois da guerra da Tríplice Aliança se caracterizaram por sua mesquinharia e por defender por todos os meios seus privilégios e desperdícios à custa da população majoritária, especialmente rural guarani falante. As barreiras linguísticas são barreiras políticas e econômicas e foram construídas e mantidas de propósito. Manter em isolamento a população que não fala a língua da elite tem sido o caldo de cultivo para as décadas de segregação social. Atualmente, mais de 20% da população continua sendo monolíngue guarani, mas o Estado continua funcionando apenas em castelhano. Nestas condições, esse segmento de 20% da população fica privada e excluída de todo tipo de participação, dado que não entende a língua da política nem da economia. Os direitos linguísticos dos guarani falantes e dos povos indígenas em geral sempre foram desconhecidos, dado que o Estado nunca se comunicou com eles em sua língua. (VERÓN, 2017, p. 125-126, tradução nossa).
  • 13
    Igual que todas as pessoas da minha geração e de todas as gerações deste país, a minha língua materna que introduz minha herança mas profunda, foi agregada uma outra língua com um valor diferenciado que sempre foi alto para mim. Se a primeira significava essa vasilha que escondia a memoria e os antigos valores de meu povo, a presença da minha infância, a segunda se apresenta como uma ponte de saberes e cosmovisões do mundo. Foi muita sorte minha herdar as duas línguas. Se hoje estou aqui, é por elas. (DELGADO, 2022, n. p., tradução nossa) .
  • 14
    Com esta antologia, que batizamos como Ñe’e rendy, quisemos fazer uma contribuição ao processo de valorização da língua guarani que se vive no Paraguai e no mundo, e a obtenção de um maior reconhecimento da poesia que se escreve neste idioma, como a expressão mais alta que este oferece a nosso tempo e à posteridade. […] Hoje retomamos esse mesmo título, apelando à sagrada herança da palavra de nossos ancestrais guarani. O trabalho e o relacionamento com comunidades do interior nos permitiram descobrir a existência de numerosos poetas como estes, que buscam caminhos para seu desenvolvimento, sem encontrar mais estímulos que sua própria vocação. […] Muitos destes poetas pertencem a comunidades humildes que não tiveram acesso ao computador e à Internet caseiros, como tampouco à publicação de um livro. […] Os estudiosos e amantes da literatura poderão descobrir muitas outras características desta poesia indubitavelmente rica em conteúdo e forma que mantém seus fortes laços com as raízes culturais e a tradição herdada, mas ao mesmo tempo, assombrosamente, pode igualar-se às correntes mais novas da literatura do mundo, por cima do isolamento e da postergação. (DELGADO, 2014, p. 11-12, tradução nossa).
  • 15
    “(...) o poema é mediação: por sua graça o tempo original, pai dos tempos, encarna em um instante. A sucessão transforma-se em presente puro, manancial que se alimenta a si mesmo e transmuta o homem.” (PAZ, 1998, p. 25, tradução nossa)
  • Parecer Final dos Editores:
    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com
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